A Internacional

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domingo, fevereiro 13, 2011

EUA usam “democracia” para legitimar invasões internacionais - Cristina Soreanu Pecequilo

Mundo

13 de Fevereiro de 2011 - 12h37

Um dos termos mais utilizados na retórica da política internacional, ao lado de paz e guerra, é democracia. Traduzida e manipulada pelos mais diferentes interesses e grupos políticos, a palavra pode ser levada a extremos como ao justificar a invasão norte-americana ao Iraque em 2003 ou a Guerra Contra o Terror de 2001 do Afeganistão em 2001.

Por Cristina Soreanu Pecequilo*

Para os Estados Unidos (EUA), trata-se de motivação de uso corrente para legitimar intervenções externas para o seu público interno e que ultrapassa fronteiras. Mesmo com o patente unilateralismo de George W. Bush, alguns veículos e analistas chegaram a definir este momento como o início de uma “Primavera dos Povos” para o Oriente Médio, similar a 1989 na Europa Oriental.

Esvaziada pela realidade, que levou ao fracasso desta manipulação, esta “Primavera” de 2003, reapareceu novamente no Oriente Médio sob o signo da retórica norte-americana. No Cairo, em 2009, Barack Obama pronunciou um de seus muitos discursos classificado como “histórico”. A reconstrução estratégica da região, o renascimento do processo de paz, o diálogo entre civilizaçõe e a recuperação dos laços dos EUA com seus parceiros locais e novos parceiros a serem conquistados foram anunciados como prioridades da política externa. Este e outros pronunciamentos de teor similar na África e na Ásia foram considerados motivos para a concessão do Prêmio Nobel da Paz a Obama naquele mesmo ano.

Poucos foram os que apontaram os paradoxos que envolviam tal discurso: sua realização no Egito, governado a mais de três décadas por Hosni Mubarak de forma autoritária, e a recuperação do “diálogo entre civilizações” lançada originalmente por Mohammad Khatami, Presidente do Irã de 1997 a 2005. Eleito pelo voto popular, o reformista Khatami fez esforços significativos para reaproximação do Irã com o Ocidente, mas que foi rechaçado pelos conservadores norte-americanos, mesmo com a política de descongelamento parcial do Presidente Bill Clinton e da Secretária de Estado Madeleine Albright. Apesar de definido como o “Gorbachev do Oriente” em alusão a glasnost e a perestroika soviética de liberalização econômica , a iniciativa foi ofuscada pelo choque das civilizações do Ocidente contra o resto de Samuel P. Huntington.

Mais uma vez, a democracia para o mundo árabe surgia de forma intercambiável, i.e, condicionada a interesses de segurança e preocupações geopolíticas dos EUA, e de seus aliados mais próximos como Israel. A visão ignorada de Khatami era revitalizada pela retórica da hegemonia, mas limitada pela realidade de poder que definia o que era democracia e qual o seu alcance: ou seja, a democracia que impede o acesso ao processo de grupos definidos como fundamentalistas pelos que estão no governo ou por ingerência externa. Em alguns, prática aceita como no Egito, Argélia e outros aliados, e em outros, criticada e deslegitimada (Irã, Autoridade Palestina, Líbano).

Obama nada mais fazia do que reafirmar a clássica política norte-americana de “tolerar o mal para alcançar o bem”, conforme definida pelo historiador John Lewis Gaddis (1998) quando, na Guerra Fria, os EUA optaram por apoiar ditadores e golpes contra governantes democraticamente eleitos em nome do combate ao comunismo. O mal continua sendo entendido como regimes autoritários, nos quais a democracia é permeável a interesses de preservação do status quo. O bem, a democracia, é o objetivo final, mas como um modelo fechado de soluções e regras que serão definidas pelo contexto e as necessidades de determinados grupos no poder. A Primavera, no caso, não era, e não seria, mais uma vez para todos.

Todavia, o tensionamento interno nestas sociedades impediu a continuidade destas transições controladas e políticas de acomodação, repetindo um fenômeno que já se fez presente na América Latina no século XXI: o da ampliação da participação popular e de pressões sobre os governos estabelecidos, visando a sua correção de rumos para maior inclusão social ou o término de regimes autoritários. Apesar de definida como polarizada e anti-democrática pelos críticos e opositores, a transformação latino-americana está ocorrendo via sistema político depois de muitos anos de quebra institucional. Ao trazer ao poder segmentos antes excluídos com a eleição de Luis Inácio Lula da Silva no Brasil, Hugo Chavéz na Venezuela, Evo Morales na Bolívia e Rafael Correa no Equador, somente para citar alguns, os regimes adaptam-se, não sem crises, mas demonstram sua vitalidade. Na África tendências similares são observadas, assim como a preocupação em alcançar soluções autóctones para problemas do continente, sem ingerências externas.

A eclosão da revolta no mundo árabe representa mais um capítulo nesta busca de voz e autonomia. Como se pode ver pelo movimento no Egito, e mesmo nos protestos que se seguiram à reeleição de Ahmadinejad no Irã, existe uma razoável dificuldade em que este ciclo de reivindicações seja absorvido pelo sistema político. A somatória de resistências internas à demanda geopolítica externa, que intensifica situações de ingerência e temores de perda de soberania, gera situações limite.

Pensando no Egito, o apoio norte-americano a Mubarak somente diminuiu com o agravamento da situação interna. A partir do momento em que se solidificou a percepção de que sua permanência no poder tornou-se insustentável, os EUA, via Departamento de Estado e Casa Branca, sinalizaram à Mubarak a necessidade de sua saída, recompondo alianças com as Forças Armadas. A intensificação dos protestos subestimados pelos EUA, somente demonstrou o equívoco em dar sustentabilidade ao regime de Mubarak, em particular nos últimos anos, apesar da piora da situação econômica e dos impasses políticos.

A presença cada vez mais ostensiva dos EUA no Oriente Médio, com as Guerras do Afeganistão e Iraque, a pressão sobre o Irã, o fracasso do processo de paz com os palestinos, a condescendência com Israel, também é um componente que perpassa este movimento. Estes fatores somente serviram para agravar o sentimento anti-ocidental na região, revitalizando o desejo de nacionalismo, identidade e independência que tinham sido o motor do processo de descolonização nos anos 1950/1960 e que se encontravam latentes nestas sociedades.

A crise no Egito evidenciou a dificuldade de adaptação aos novos tempos da diplomacia das grandes potências, especialmente dos EUA, a novas situações e grupos políticos emergentes que demandam a transição da democracia do discurso para a prática. Presa a paradigmas de “bem e mal” da Guerra Fria, esta diplomacia é capaz de oferecer “discursos históricos” ao lado da mais conhecida repressão e boicotes, acomodando-se a situações que lhe parecem de baixo custo. Mubarak, neste sentido, representava, segundo estes cálculos, um baixo custo, diante de um Oriente Médio conturbado e desorganizado pela estagnação política e intervenções.

Desde a assinatura dos Tratados de Paz entre Israel e Egito em Camp David, 1979, o país deixara de ser uma fonte de crise estratégica para tornar-se aliado e uma preocupação geopolítica “a menos” tanto para Israel quanto para os EUA. Não só os EUA, mas Israel, Mubarak e outros países do mundo árabe acomodaram-se em situações conhecidas, fossem elas democráticas ou autoritárias. Ao invés de preparar uma transição gradual que garantisse e avançasse estes processos, dando-lhes sustentabilidade, a opção foi a da continuidade.

Na prática, isto significou a paralisia da democracia nestas sociedades e mesmo o retrocesso das negociações de paz na região, que colocou em xeque a manutenção do poder. A regra do Egito aplicou-se a outras nações aliadas como Jordânia e na península arábica, ignorando-se sinais de insatisfação. Frente ao efeito demonstrativo das manifestações egípcias e seu desfecho com a saída de Mubarak, a tática para estas nações também se alterou: as orientações passaram a ser não mais de resistência, mas de reacomodação e atualização.

Enquanto isso, no Egito, algumas palavras, além da democracia, tornaram-se chave: transição, paz e estabilidade, pregando a tolerância pouco exercida pelo regime anterior. Nas entrelinhas, uma democracia “comportada” e que não quebre os compromissos prévios principalmente no campo do processo de paz e que deixa em aberto a pergunta: o que fará a diplomacia norte-americana caso os resultados de futuras eleições no Egito tragam ao poder grupos considerados como pouco confiáveis? O apoio permanecerá às Forças Armadas, responsáveis pela transferência de poder pós-Mubarak caso estas não consigam sustentar sua influência política? Ou haverá apoio ao novo governo, independente de qual for, reiterando a idéia do “diálogo”?

Estas são perguntas sem resposta. O que é definido por alguns como turbulência é, na realidade, o renascimento dos povos. Um renascimento que deixa bastante claro que o núcleo dinâmico da política está nas periferias do mundo em desenvolvimento. O clamor é pela democracia ocidental, que, nos Estados que mais a utilizam como discurso, encontra-se estagnada como procedimento em meio às polarizações, perda de valores, radicalismos e xenofobia. Do mundo árabe ao americano, passando pelo africano, o principal desafio destes novos grupos quando no poder será o de não reproduzir estes erros e os de seus antecessores, dando continuidade à reforma. Este não é um processo fácil, e, por vezes, até por uma razão de sobrevivência, alguns regimes poderão recorrer a práticas que hoje criticam, devendo ser igualmente questionados.

Neste caminho, devemos nos perguntar por que algo que aparece com tanta frequência no senso comum e nos discursos, como “a democracia”, causa tanto desconforto quando associada às demandas por maior participação política de correntes definidas como “diferentes” e “preocupantes”, da Irmandade Muçulmana egípcia, ao socialismo de Chavéz ou mesmo as políticas de inclusão social aqui no Brasil. Afinal, é nesta suposta estranheza da democracia que reside seu valor, princípio e promessa.

* Cristina Soreanu Pecequilo é professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

Fonte: Carta Maior
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