A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht

segunda-feira, abril 29, 2013

2013 a Ferro e Fogo – Vagas de fundo (parte II.1)

Parte I aqui.
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Quando a crise financeira explodiu em 2007-2008 a primeira reacção de muitos analistas do “regime” foi classificá-la como um fenómeno restrito ao sector financeiro e aos EUA, há vários exemplos disso… O relatório do FMI sobre a economia Grega publicado em Dezembro de 2007 é elucidativo:
Economic growth will continue to be driven by domestic demand in the coming years.(…) Consumer demand is also expected to remain robust. (…) The Greek banking system remains healthy, adequately capitalized, and highly profitable, but some developments will need to be monitored closely. (ainda há quem leve estas aventesmas a sério????)
Quando a crise passou do sector financeiro para a “economia real” ( como se existi-se algum muro ou barreira a separá-los, como se o sector financeiro não fosse uma componente, até a principal, do actual sistema económico mundial…), muito consideraram que era uma crise séria, mas passageira. De facto em 2010-2011 as principais economias mundiais (Alemanha e seus satélites norte europeus, EUA, China) recuperaram e voltaram a crescer… A crise parecia restrita aos PIIGS europeus, as cigarras pecadoras que mereciam pagar pelos seus “pecados”… Mas a realidade não encaixa nessa visão moralista. Na verdade a maior parte dos indicadores económicos indicam que a recuperação da actividade económica em 2010-2011 não chegou aos níveis pré crise, o volume de tráfego de mercadorias é um bom indicador.
O ano de 2012, para quem tenha dois dedos de testa, mais não é do que o prenúncio da enormidade que se avizinha. Em 2012 a zona euro no seu conjunto está em recessão e a produção industrial da EU27 em contracção. No resto do mundo o crescimento económico arrefeceu, a China é o exemplo paradigmático.
A actual crise não é um soluço ou um percalço que será rapidamente superado, estamos a viver uma depressão apenas comparável há que se iniciou em 1929. As consequências desta crise serão profundas, no plano económico, político, social e cultural. O sistema-mundo que irá emergir após esta crise será muito diferente daquele em que vivemos até 2007. Estamos a viver numa era de transição em que os anteriores equilíbrios políticos, sociais e geopolíticos são insustentáveis. Até se atingirem novos compromissos e equilíbrios irá decorrer um longo período de intensa conflitualidade. A forma que esses novos equilíbrios tomarão dependerá do resultado das lutas que forem (que estão a ser) travadas.
O pensamento acima exposto não é propriamente o cúmulo da originalidade. Existe uma quantidade quase infinita de livros e artigos que debatem a profundidade desta crise e das suas consequências. Destaco os seguintes textos:
A crise do Capitalismo Democrático“, Streeck
Crise Estrutural” e “Crise Estrutural, e agora?“, Wallerstein
O centro não vai aguentar, ascensão e queda do liberalismo“, Amin
Vivendo no fim de uma era“, Žižek (esta crítica de um cronista do regime é deliciosa LOL)
O argumento que pretendo vincar não é que estamos a viver a “crise final do capitalismo”, não pretendo iniciar essa discussão, até porque primeiro teria de se definir o que é o “capitalismo”, uma palavra usada para designar tudo e mais alguma coisa desde sistemas políticos, hábitos culturais, e claro está, uma dada forma de organização do sistema económico e da propriedade. É possível afirmar-se que o sistema-mundo em 1914 era “capitalista”(existindo ainda fortes traços aristocraticó-feudais), em 1945 também se poderá dizer que o sistema-mundo era “capitalista”(existindo importantes bolsas de resistência ” comunistas”)… Mas ninguém negará que entre 1914 e 1945 houve mudanças profundas, apenas olhando para o mapa da Europa muito se pode deduzir.
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Em 1914 a Europa a leste do Reno era praticamente dominada por três impérios, com raízes fortemente aristocráticas e autocráticas. O II Reich Alemão, o Império Austro-Húngaro e a Rússia Czarista. O Imperialismo Europeu estava no seu auge, com practicamente toda a África e vastas partes da Ásia sobre seu controlo directo. Mesmo onde havia regimes parlamentares liberais o sufrágio universal era uma miragem. Os direitos laborais, o direito à greve, o descanso de dois dias semanais, segurança social, sistemas de saúde, férias pagas,  tudo isso era ou inexistente ou (na melhor das hipóteses) restrito a sectores ultra minoritários. A estratificação social e a diferença entre classes  era vincada não só pela diferença de poder económico mas também por normas culturais profundamente enraizadas… Agora pensemos em como era o mundo em 1945 e nos 30 anos que se lhe seguiram? Sim em 1914 o mundo era “capitalista”, em 1945 também… Mas a organização política, económica, os hábitos e a cultura mudaram profundamente, o sistema-mundo de 1914 e de 1945 eram muito diferentes.
O ponto onde quero chegar é que independentemente do mundo em 2045 poder vir a ser qualificado como “capitalista”, será tão diferente de 2014 como 1914 foi diferente de 1945. E como será então o mundo em 2045? Bem isso será o resultado das lutas que se irão travar. No global o mundo em 1945 era bem melhor do que em 1914… Mas não foi fácil… E por mais que alguns se escandalizem, para que em 45 as perspectivas fossem bem melhores que em 14 foram necessárias coisas como a Revolução Bolchevique ou a “Ordem 227“. Não é certo que haverá novas guerras mundiais, aliás se houverem serão tão diferentes (e semelhantes) das guerras mundiais do século XX como essas foram das guerras Napoleónicas do século XIX. Também as revoluções do século XXI serão tão iguais a 1917, como 1917 foi igual a 1789-1792. Aquilo que é certo é que a intensidade da luta atingirá níveis semelhantes, sendo que a forma que essas lutas tomarão serão moldadas pelas condições sociais e geopolíticas do século XXI (diferentes das de 1789 ou 1917).
Mas há uma importante conclusão a reter, é de que nesta nova era de transição os tiradas inflamadas de um MaratO Homem tem o direito de lidar com os opressores devorando seus corações palpitantes“, poderão não apenas vir a ser adequadas como necessárias. Talvez sejam expressões demasiado hiperbólicas para já, mas são necessárias para acordar muita gente dos anestesiantes anos 90 com o seu elán liberaló-pacifista onde lutas sangrentas apenas aconteciam em distantes paragens… Basta pensar na reacção que umas quantas pedras atiradas aos que actuaram como mercenários do Cavaco-Passos-Gaspar+Portas causaram. Vá lá que vai havendo quem tem alguma memória histórica.
Neste momento é fundamental perceber que os eventos de 14 de Novembro são apenas um leve prelúdio daquilo que será necessário acontecer para que de 2014 a 2045 os ganhos (ou a derrota de projectos tenebrosos) sejam pelo menos ao nível do que se conseguiu em 1914-1945.
De forma a reforçar o argumento da inevitabilidade do agudizar das contradições e ao mesmo tempo identificar algumas tendências que moldarão o mundo onde se darão os 1917s e 1792s do futuro, parece-me útil discutir quatro grandes áreas/temas:
- Monopolização e economias de escala.
- A Revolução Digital, telecomunicações e gestão da informação.
- A emergência da China e dos “BRIC”, miragem ou realidade?
- A escassez de recursos e a sustentabilidade material do actual modelo económico, a centralidade da luta social e os mitos eco-deterministas.
A Europa e as suas múltiplas contradições sociais, inter-estados (países do sul versus norte, Reino Unido em curso para sair da UE…) e intra-estados (Espanha-Catalunha, Reino Unido-Escócia, Itália-Lombardia) é o palco chave a curto prazo. O arco mediterrânico do euro Portugal-Espanha-Itália-Grécia-Chipre-Eslovénia é o elo fraco da cadeia capitalista/sistema-mundo. Por esta ser uma análise mais próxima e de mais curto prazo não será discutida neste texto em específico, fica para a parte III.
Parte II.2 aqui.

2 respostas a 2013 a Ferro e Fogo – Vagas de fundo (parte II.1)


  1. Gambino diz:
    Bom texto!
    Infelizmente, o 14 de Novembro não suscitou uma resposta mais vigorosa e não deu azo a uma legítima revolta popular, mas, pelo contrário, serviu para afastar manifestações do parlamento. É pena! Espero que o curto prazo que preconizas seja verdadeiramente curto, mas temo que somos semelhantes aqueles que viverem em 1870 e anunciaram plenos pulmões a inevitabilidade de uma revolução social que só chegaria 50 anos depois.

terça-feira, abril 23, 2013

2013 a Ferro e Fogo – Um balanço e perspectivas (parte I)

 

A capa da mais recente edição da economist faz-me lembrar algumas das pinturas de Bosch ou Bruegel. Isto encaixa bem com o título que escolhi para esta série de posts “2013 a Ferro e Fogo”, no seu conjunto formarão uma espécie de balanço e perspectivas orientado para a luta social e política. Este é o primeiro texto dessa série, uma espécie de introdução.
economist2013
 
Pieter Bruegel The Triumph Of Death
O produto interno bruto(PIB) português em 2012 irá contrair-se em cerca de 3%, são estas as projecções nacionais e do FMI no seu relatório de Outubro de 2012. É fundamental relembrar que em Março de 2011 o Banco de Portugal previa para 2012 um crescimento de 0.3%, em Abril de 2011 o FMI previa para Portugal uma redução de 0,5%, em Setembro de 2011 o FMI revia esse número para  1,8%. A realidade ( e ainda não temos os números finais) é que a contracção da economia portuguesa é aproximadamente o dobro da última previsão para 2012 feita em 2011. Este fenómeno não é único a Portugal, as previsões do FMI em Setembro de 2011 para a zona Euro eram de um crescimento de 1,1% em 2012, chegados a Outubro de 2012 constata-se que a zona euro irá ter uma redução no PIB de 0,4%.
Estes números de Outubro de 2012 são a constatação de um facto mais do que uma previsão, a não ser que o FMI também siga a filosofia do João Pinto jogador do FCP, imortalizado pelo seu comentário, “prognósticos só no final do jogo”.
Em Outubro de 2012 as previsões para 2013 do FMI são de uma contracção do PIB nacional de 1%. Para a zona euro prevê-se um crescimento de 0.2%…
Para lá dos números temos as declarações Passo-Gasparianas, ainda em Agosto deste ano Passos afirmou que 2013 seria o ano do fim da recessão. O vice presidente do PSD em Janeiro de 2012 afirmou que 2012 seria o “ano de preparação do crescimento económico“. Gaspar também em Janeiro havia afirmado que 2012 seria um ponto de viragem. Estas declarações foram todas elas FALHADAS. E se alguma coisa se pode dizer das previsões para 2013 é que são optimistas e que provavelmente a contracção da economia será mais acentuada… É importante reter estes números e declarações, sobretudo quando surgem novos cantos da sereia a apontar a segunda metade de 2013, ou 2014, como o início da retoma (mesmo os que agora fogem à questão, mais tarde serão tentados a atirar mais areia para os olhos do povo)…
Mas o PIB é uma medida muito agregada, há outros números que em conjunto traduzem melhor a catástrofe económica. A queda acentuada quer dos passageiros nos transportes públicos, quer do tráfego nas auto-estradas. Ou seja, pura e simplesmente os Portugueses estão a deslocar-se menos e a mover menos bens. Estão também a falar menos ao telemóvel. E o país esvazia-se, porque a natalidade cai a pique e a emigração sobe. O desemprego dispara, e abrange sectores muito dispares, da banca às grandes superfícies, para não falar na liquidação do pequeno comércio e n outros sectores. Não há capital disponível para que agora se acumulem stocks e se realize o trabalho necessário à própria reprodução do capital, não há investimento, o consumo afunda-se, as exportações são uma miragem quando a nível global há um recuo no crescimento ou mesmo contracção da economia (como é o caso Europeu onde estão os maiores parceiros comerciais de Portugal).
E ainda para lá dos números há as alterações qualitativas e estruturais que abrangem toda a realidade económica, social e cultural. A recuperação da mundividência Salazarista da pobreza e do papel do Estado feito por Jonet é mais que revoltante, em certo sentido é já o reflexo de uma sociedade em rápida mutação-degeneração. Estamos longe da utopia liberal de uma economia movida pelo livre empreendedorismo não constrangido pelas amarras estatais, num clima de sã concorrência. Aquilo a que assistimos é a uma economia movida a favores  à sombra do orçamento de estado, onde monopólios naturais, serviços públicos e activos da nação são vendidos e/ou concessionados a quem paga a mais alta comissão. Estas “comissões” não são apenas monetárias e os os beneficiários não são individuais, o objectivo é pagar outros favores e alargar/engordar a rede clientelar (parece que até já há um jogo de computador que retrata isso). O suposto benefício que viria para o público em geral, devido a uma uma “melhor gestão” dos privados, esbarra na realidade do que são as parcerias público privadas… A utopia liberal que nos vendem, é na realidade uma espécie de neo-feudalismo reaccionário e pré-moderno.
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Independentemente de não concordar com toda a sua análise, Pacheco Pereira é quem tem feito alguns dos melhores retratos da actual sociedade portuguesa. Quando fala da crise como ponto de não retorno para muitos, quando nas suas tendências para 2013 refere que tudo irá de mal a pior e que o bom povo vai ficar mau, revela estar em sintonia com o momento histórico. Nicolau Santos no seu “Os cavalos também se abatem” é menos analítico, mais emocional, mas a mensagem é semelhante Estamos a evoluir da vida minimamente confortável para a pobreza e da pobreza para a indigência.(…)temos de nos preparar para o tsunami social que vai devastar o país em 2013. Será o ano da total desesperança, do desespero, da impotência – mas também da indignação e da revolta.  Estes não são radicais esquerdistas anti-sistema, são os intelectuais mais lúcidos do regime.
De facto, a contestação irá crescer nos próximos tempos. A manifestação de 15 de Setembro abriu uma nova fase na luta popular anti-reaccionária e se é certo que existirão momentos de alguma acalmia, a tendência de fundo é o alargamento e crescente radicalização dos protestos. Fui publicando alguns textos acerca deste novo período que complementam este balanço:  Apontamentos para o “Outono Quente”; “Outono Quente”, seis comentários elementares; Reuniões Governo/FMI são “guerra aberta contra Portugal” – Equacionando a resposta insurrecional; MEGA-GREVE varre o sul da Europa; 25N Eleições na Catalunha. A Esquerda Radical Independentista soma e segue. Parece-me que o tempo vem validando aquilo que tenho vindo a escrever.

É certo que ao contrário do que alguns esperariam (inclusivé do PSD), o governo não caiu. A percepção é que cerrou fileiras e deu um salto em frente, num fernesim de medidas e propostas: novo orçamento de estado; as propostas de privatização da TAP, ANA, RTP, Águas  CTT, CP; fim do princípio da gratuitidade do ensino obrigatório e saúde;  despedimentos em massa na função pública (chamados eufemisticamente de “reforma do estado”)… Mas o movimento de protesto já demonstrou ter uma capacidade real de influência, realço dois grupos de vitórias:
1º – Em dois casos concretos o governo foi obrigado a recuar, no caso da TSU e agora na TAP. Nesta última situação é óbvio que a desculpa das “garantias bancárias”, não passa de isso mesmo, uma desculpa para ceder face à pressão social.
2º – O Governo e o seu programa encontram-se muito mais fragilizados e a sua base de apoio reduziu-se. Um dos pilares deste governo, o pacto social, está de facto moribundo. Os amarelos da UGT, estão em processo de demarcação. O PS “não oficial”, já entendeu que tem de romper com Passos-Gaspar-Relvas, o que inclui a adopção de um tom semi-populista-demagógico e a exigência de demissão do governo. O PS oficial é mais cauteloso, mas também quebrou com a sua postura de apoio incondicional. Mesmo no seio do PSD o apoio a este governo está cada vez mais periclitante, o aproximar das eleições autárquicas irá aumentar as tensões internas. Tudo isto é resultado da intensa pressão popular e do instinto de sobrevivência político dos agentes em causa. Não espero nada a não ser manobras de diversão por parte do PS-UGT, mas a quebra do pacto social em torno deste governo e do seu programa, abre o espaço necessário à derrota do governo e à vitória do movimento popular.
Isto demonstra que o bando de saqueadores que tomou conta do governo, parlamento e  presidência da república, mesmo controlando todos esses órgãos, não pode agir impunemente. Demonstra que é possível resistir e vencer. Nicolau e Pacheco falam de uma inevitável radicalização do protesto com um tom algo sombrio, como se isso fosse mais uma “praga bíblica” a juntar-se às que hoje em dia já se abatem sobre a sociedade portuguesa. Ora a radicalização e alargamento da luta popular é exactamente o oposto, é única esperança para uma superação democrática e solidária da crise.
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Este é o momento em que me parece ser útil fazer um “balanço e perspectivas” à situação politicó-social. Existe um amplo consenso acerca da necessidade de derrubar o governo. Numa recente manifestação Arménio Carlos afirmou “Nós vamos a jogo não é para perder, é para ganhar e vamos ganhar“.
Mas o que é realmente necessário para causar a queda do governo? É previsível o CDS-PP quebrar a coligação? O Cavaco demitir o Governo? Um terramoto nas eleições autárquicas causaria a queda do governo? Mesmo considerando que o governo poderia cair na sequência das autárquicas (formalmente nem Passos  tem de se demitir, nem Cavaco de o demitir…), já se imaginou os danos que mais 10 meses desta governação irá causar? E mesmo que o governo caía, e depois? Como ficará o acordo com a Troika? Se o PS o substituir o que mudará de substância? É importantíssimo que Arménio diga que estamos aqui para ganhar, é um importante sinal às massas, mas o que significa “ganhar”? Irá a EDP ser renacionalizada? Irão as gravosas leis laborais ser revistas? Irão os subsídios de férias e natal, desemprego e outras prestações sociais ser repostas? O que será realmente possível e necessário fazer para encontrar uma saída progressista para a crise?
Não é o objectivo deste texto dar uma resposta cabal a todas estas questões, nem providenciar uma calendarização detalhada do menu necessário ao derrube do governo e derrota do “processo reaccionário em curso”. Mas é possível e a meu ver necessário: Ter uma compreensão do que efectivamente se está a passar em Portugal e do papel/objectivos das várias forças em presença; perceber quais as mais prováveis evoluções na situação político-social; perceber o real significado e impacto de diferentes caminhos propostos à esquerda; identificar propostas/acções que serão erros monumentais a evitar; identificar algumas acções, métodos e políticas que irão, garantidamente (ou com grande probabilidade) trazer bons resultados; identificar contradições e equívocos comuns na Esquerda a evitar neste momento; reflectir acerca de propostas que geralmente e de forma algo superficial são rejeitadas à priori mas que poderão ser muitíssimo adequadas ao actual momento histórico.
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Em resumo, perceber o que se passa, ter noção do que é mais previsível vir a acontecer, identificar o que de certeza não deve ser feito, identificar o que muito provavelmente terá bons resultados. Isto está longe de dar um roteiro de acção detalhado do que fazer, isso em política é algo absolutamente imbecil. Porque a informação ao nosso dispor é limitada  e, sobretudo num momento tão dinâmico como este, há sempre imprevistos e imponderáveis que influenciarão de forma importante os acontecimentos e que nós não controlamos (às vezes até ninguém controla). Mas é possível e necessário mapear os possíveis cenários e balizar o rumo a seguir.
A análise que farei será estruturada da seguinte forma, onde cada ponto corresponderá a um post:
1 – “Vagas de fundo”, vivemos numa era de transição do sistema global, é um tema mais implícito que explícito em vários dos meus textos, vou discuti-lo um pouco mais detalhadamente. Dentro desta transição sistémica, em conjunção com ela e parte dela referenciarei  quatro grandes vagas de fundo/tendências que são simultâneamente motores e sinais desta transição inexorável. Haverá outras, mas estas quatro parecem-me as mais relevantes. a) Crescente monopolização do capital, b)Revolução Digital-Internet, c) Emergência da China (BRIC?) no sistema mundo, ou o fim da hegemonia Europa+Anglo-Saxões(EUA/Canadá/Reino Unido/Austrália)+Japão d) A escassez de recursos e a questão ecológica.
Mencionarei algumas discussões recentes acerca da “tendência decrescente da taxa de lucro”, mas não pretendo deduzir nenhuma lei geral do desenvolvimento do capitalismo num sentido abstracto e genérico. Não é esse o objectivo. A ideia fundamental é identificar as forças produtivas e relações de produção que são simultâneamente determinantes no sistema-mundo actual e estão em mutação. O ponto fundamental é que a transição em curso irá implicar uma intensidade/conflitualidade semelhante ao que se viveu nos períodos 1914-1945 ou 1775-1815, os conflitos irão se expressar de forma diferente, mas a intensidade será semelhante.
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2 – “Previsões e Realidade”, olharei mais a curto e médio prazo, para as previsões e estimativas oficiais do PIB para 2013-2014, isto em conjunção com a análise das tais “vagas de fundo”. Parece-me que a noção de recuperação em 2013 ou 2014 é altamente optimista, o mais provável é uma nova recessão. A Europa estará no centro da tempestade, as tensões intra e inter nações, o conflito social e a crise económica irão intensificar-se e reforçar-se mutuamente. Portugal, um dos Porcos(PIIGS) na periferia meridional do IV Reich(aka União Europeia) será um campo de batalha relevante. Muito do que cá se passa é determinado pelo exterior, mas é preciso reconhecer que uma das cadeias mais fracas (se não a mais fraca…) do sistema-mundo/capitalismo actual são exactamente os PIIGS. A “Revolta dos Porcos” terá um impacto que se fará sentir bem para lá deste canto da Europa…
3 – “Portugal. O governo, a reacção e a Resistência”, pretendo expor quais os objectivos, forças e limitações do governo Passos-Relvas-Gaspar + Portas. Analisar também as várias forças que a ele resistem.  Debater os vários cenários possíveis para a evolução da situação político-social-económica nacional.
4 – “3 questões estratégicas”, terminarei com uma discussão de três prementes questões estratégicas para o campo da Esquerda anti-troika. a) Alianças e postura face ao PS, b) O Euro, colete de forças do IV Reich, c) Luta de massas, na rua e perspectivas insurreccionais.
5 – “Pontos chave”, síntese das conclusões fundamentais desta reflexão.

PS – Prevejo que até final de Janeiro este balanço estará concluído
    
 

6 Responses to 2013 a Ferro e Fogo – Um balanço e perspectivas (parte I)

  1. JgMenos says:
    A análise do funil!
    Tudo considerado, o resultado é a desordem pública, que talvez dê em revolução, que talvez seja democrática, e que não o sendo, talvez dê um regime de esquerda!
    • De says:
      Funil?
      Talvez seja isso mesmo.JMenos afunilado em torno da amada ordem pública dos regimes que ama.
      Sem reparar que a desordem pública é quotidiana.Sob a pata deste governo de crápulas.
      Venham mais reflexões.
  2. Rocha says:
    Descida aos infernos ao som do Tony Carreira???? Pleonasmo visual. Truísmo musical.
  3. Rocha says:
    Venham daí essas reflexões!
  4. Zé Povinho says:
    Excelente post, os meus parabéns, fico a aguardar com interesse a sua continuação.

segunda-feira, abril 15, 2013

Paulo Gaião Os banqueiros estão todos com Passos Coelho


Expresso        
Paulo Gaião
 
 
Verdadeiramente quem manda no país há dez anos são os banqueiros, apoiados por senadores e comentadores de topo que andam há muito por aqui e são unha com carne com os banqueiros.
.
Muitos conhecem-se da vida partidária, porque há cada vez mais banqueiros vindos da política, o que aumenta a promiscuidade e o poder de influência dos bancos sobre a governação do país


 Os banqueiros não gostaram do acórdão constitucional da semana passada, defenderam as posições do governo, ficaram em pânico com a voz grossa de Bruxelas e Berlim com Portugal. Temem uma crise política e a realização de novas eleições que ponham o seu estatuto protegido em causa.

Para dar espaço de manobra ao Governo de Passos Coelho, os banqueiros lançam apelos para um governo ou pacto nacional com o PS, bem sabendo que António José Seguro não quer nem tem condições políticas para o fazer. O objectivo é salvar o governo de Passos. 
 
Faria de Oliveira, presidente da Caixa Geral de Depósitos e da Associação dos Bancos Portugueses tem sido o arauto desta estratégia, estendida ao CDS.
 
O facto é que o governo se prepara para passar a tormenta, com o apoio dos banqueiros eo branqueamento de Cavaco Silva, ainda que  pondo em causa o regular funcionamento das instituições com o afrontamento ao Tribunal Constitucional e o estado de excepção decretado por Gaspar. Este é um verdadeiro estado de emergência e talvez precisasse de ser decretado pela Assembleia da República e votado por maioria de dois terços.   
 
São os banqueiros que hoje sustentam Passos Coelho, com a cumplicidade do Presidente da República.
 
Os banqueiros hoje fazem viver Passos. Ontem mataram dois primeiro-ministros. 
 
Foram os banqueiros que asfixiaram o governo de José Sócrates em 2011, deixando de comprar dívida portuguesa, e estiveram na origem do pedido de resgaste a Portugal e da demissão do líder do PS.
 
Apostavam já no PSD e em Passos Coelho, com a acção directa de Cavaco Silva.
 
Foram os bancos que deram a estocada final ao governo de Santana Lopes, apostando já em José Sócrates e em eleições, com o envolvimento directo de Jorge Sampaio.   
 
A bolsa portuguesa teve ontem a melhor sessão desde Maio de 2010, um ano antes do pedido de regaste financeiro. Os bancos foram os mais beneficiados, com subidas de dois dígitos.
 
Há dois dias, as acções dos bancos também subiram (ainda que aliviando as perdas da semana passada). A possibilidade de alargamento dos prazos para sete anos do pagamento da dívida portuguesa estará na origem desta subida.
 
Como é sabido, a troika criou em 2011 uma linha especial de 12 mil milhões de euros para recapitalizar os bancos. É através dela que alguns bancos têm sobrevivido. O caso mais evidente é o Banif.
 
É um modelo que torna os bancos instrumentos essenciais da política financeira e económica, em Portugal e na Europa. Nada se faz sem eles, ainda que tenham sido os bancos os grandes responsáveis pelas crises que se vivem em muitos países, Irlanda, Espanha, Grécia, Chipre, Eslovénia (também Portugal através do BPN e Banif).
 
Os bancos têm ganho muitos milhões de euros com a compra de dívida portuguesa. Financiaram-se junto do BCE a juros baixos, compraram dívida e obtêm rentabilidades muito superiores.
 
A vida corre-lhes bem.
 

sábado, abril 13, 2013

Manuel Loff - Thatcher, o mito

Diário.info

 

Thatcher, o mito*

Manuel Loff

13.Abr.13 :: Outros autores
AManuel Loff direita mundial, de Gorbatchov a Obama, de Merkel a Blair, de Passos a Portas, derrama elogios sobre Margaret Thatcher. Mas o mito não serve para ocultar a realidade: a “mudança” de que é um dos expoentes é a do trágico ciclo de retrocesso histórico com que a Grã-Bretanha e grande parte do mundo estão hoje confrontados.

“A maior líder política britânica do séc. XX, depois de Winston Churchill” escreveu anteontem João Carlos Espada sobre Margaret Thatcher. Estão “de luto” os “amigos da liberdade” pela mulher (Reagan chamava lhe “o melhor homem que os britânicos tinham…”) que ocupou o poder na Grã-Bretanha durante 11 anos. Abriu um ciclo político de que ainda hoje a direita não saiu.
Há muitas razões para Thatcher ser a mais idolatrada das líderes das direitas ocidentais desde o fim da II Guerra Mundial. Em 1979 tomou o poder e abriu o caminho a uma viragem à direita (18 anos consecutivos de governos conservadores na Grã Bretanha) que começou dez anos antes da queda do Muro e se ampliou a Portugal (o PSD entraria nesse ano no governo de onde só sairia 16 anos depois), aos EUA (Reagan e Bush, 1981-93), à Alemanha (Kohl 1982-98)… Mas daí a dizer que conseguiu mudar não apenas a paisagem política do seu país mas a do mundo vai um passo disparatado que só gente que a quis imitar, como Tony Blair, é capaz de dar. Thatcher foi um modelo para a direita mas, como qualquer conservadora, não reinventou o mundo: limitou-se a querer voltar atrás 40 anos na história. Em torno dela se tem construído um autêntico mito que, como ocorre sempre, mais que discutir o passado, pretende prescrever soluções para o futuro.
Para Merkel, Thatcher tinha “a liberdade individual no centro das suas crenças”. Obama, que podia ter evitado a bazófia, disse que Thatcher contribuiu para demonstrar que “podemos moldar a História com convicção moral, coragem inabalável e vontade de ferro”. Falamos, atenção, da mesma mulher que se opôs até ao fim às sanções internacionais contra o apartheid sul-africano e considerou o Congresso Nacional Africano, dirigido por Nelson Mandela “uma típica organização terrorista” (Guardian, 8.4.2013) ou que, com os EUA, apoiou na ONU os Khmeres Vermelhos contra o novo governo cambojano colocado no poder pelas tropas vietnamitas que derrubaram o genocida Pol Pot (John Pilger, New Statesman, 17.4.2000); e que intercedeu a favor de Pinochet quando a justiça internacional o quis julgar por crimes contra a humanidade. Para ela, o ditador que deixou três mil desaparecidos e 32 mil torturados foi quem “trouxe a democracia ao Chile” (BBC News online, 26.3.1999). Thatcher disse-o atacando a sentença da Câmara dos Lordes que acedia às pretensões da justiça espanhola e à de três outros países em exigir o julgamento de Pinochet, pressionando, com sucesso, para que o governo britânico não a cumprisse.
Na construção do mito é recorrente (e de uma banalidade entediante) a comparação com Churchill. Supõe-se, assim, que Thatcher terá tido o seu Hitler. Desengane-se, porém, quem julgar que ele terá sido a ditadura militar argentina, que lhe ocupou as Malvinas (1982) (alguém julgaria que a anticomunista admiradora de Pinochet teria grandes objecções aos ditadores argentinos?). Ele foi, pelo contrário, um líder sindical - Arthur Scargill - que dirigia o Sindicato Nacional dos Mineiros quando, em 1984-85, lançou a mais longa greve de que há memória na história britânica. O ministro das Finanças de Thatcher comparou o sindicalista com Hitler, a imprensa tablóide e os serviços secretos lançaram sobre ele toda a lama que puderam e a primeira-ministra não hesitou, como não o faria um qualquer ditadorzeco, em referir-se aos sindicatos, contra quem a verdadeira batalha se fazia, como “o inimigo interior”.
É verdade: ganhou três eleições consecutivas (1979, 1983, 1987) mas - qual triunfo, qual quê -nunca acima dos 44% dos votos (menos de 1/3 dos eleitores) as mais reduzidas vitórias eleitorais desde 1945, cada uma delas com menos votos que a anterior.
Apesar de todos os disparates sobre “a vitória do senso comum sobre a ideologia”, Thatcher nunca convenceu os britânicos. “O seu legado é o da divisão social, egoísmo privado e o culto da ganância” (Guardian, editorial, 9.4.2013). Thatcher implantou a fórmula que nos trouxe até onde estamos: desregulação económica, empobrecimento generalizado dos assalariados, um aspirador de riqueza de baixo para cima que fez da Grã-Bretanha a mais injusta das sociedades pós-industriais.
Funcionou? Durante o seu governo, e apesar de todo o petróleo escocês cujo preço subira astronomicamente, o Reino Unido passou de 5 ª para 6 ª economia mundial, ultrapassada pela Itália, atrás da França e da própria URSS em plena crise de dissolução. Hoje é a 7 ª e caminha para o 10 º lugar. Para quem gasta encómios à reforma económica (melhor seria dizer à devastação produtiva thatcherista) os dados da História parecem não contar para nada…
A mulher que garantia que “a sociedade não existe: o que há são indivíduos e famílias”, proibiu em 1987 as escolas de ensinarem “a aceitabilidade da homossexualidade como relação familiar”. A classe social, dizia, era “um conceito comunista” - e nos 11 anos que governou, a proporção de crianças pobres duplicou (www.theyworkforyou.com, 20.6.2005).
Entre a muito boa música que contra ela se compôs naqueles anos, os The The cantavam já em 1986 que “não poderão nunca ser limpas as manchas no coração de um país doente, triste e confuso. O 51 º estado EUA” (Matt Johnson, Heartland).
*Este artigo foi publicado no “Público”, 11.04.2013

Ângelo Novo - Refundação comunista

A PÁGINA DE ÂNGELO NOVO

 
 Refundação comunista
 
 
 LUCIEN SÈVE
COMEÇAR PELOS FINS
- A nova questão comunista
Campo das Letras, Porto, 2001Lucien Sève é um conhecido filósofo marxista francês, com obras suas traduzidas em língua portuguesa nos anos 70 (1). É militante do P.C.F. há já meio século, tendo sido membro do seu Comité Central durante 33 anos (1961-94). Animador de vários órgãos da imprensa teórica ligados ao partido e director das suas Éditions Sociales, durante décadas foi conhecido como ideólogo de uma fidelidade sem falhas ao aparelho de Thorez, Waldeck-Rochet e Marchais. Foi como campeão da ortodoxia partidária que terçou armas contra as heresias de Henri Lefèbvre, Roger Garaudy e Louis Althusser, entre outros. Nos anos 80 rebelou-se finalmente mas foi também seduzido pelo sorriso e pelas promessas gorbatchovianas. A partir daí tem animado um corrente política sob o lema de “refundação comunista”, a qual, como se sabe, tem já expressão partidária independente em Itália. Em França, esta corrente é um dos sustentáculos (ainda que crítico) da direcção ultra-reformista de Robert Hue, estando ainda por provar que possa dar algum contributo para estancar o descalabro aparentemente imparável em que o partido se engolfou. Poderá um personagem com estas características propôr-nos uma reflexão sobre o comunismo com algum interesse e pertinência nesta alvorada do séc. XXI? A resposta é: sim, pode, e fê-lo. Vivemos tempos realmente surpreendentes.‘Commencer par les fins - la nouvelle question communiste’ foi publicado em França em 1999 e, já este ano, surgiu nos escaparates numa boa tradução portuguesa. Trata-se da súmula final das reflexões que o autor vem desenvolvendo, há já uns quinze anos, com vista a uma renovação teórica do movimento comunista (2). Aliando uma sólida cultura marxista, uma indiscutível integridade intelectual e um espírito saudavelmente inquiridor e não dogmático, o autor alinha mesmo um conjunto de teses estimulantes para a renovação do comunismo francês, com abertura às organizações trotskistas, activistas de esquerda independentes e aos nascentes movimentos sociais. A questão é saber se o paciente (P.F.C.) não estará já em fase terminal. Questão essa transponível também para o panorama português, onde a reflexão de Sève encontra ecos entusiásticos em sectores “renovadores” do P.C.P., a avaliar pelas recensões de Edgar Correia publicadas no ‘Público’ e na edição nacional do ‘Le Monde Diplomatique’. Questão que, enfim, pode nem ser decisiva, já que a estratégia traçada por Sève passa por uma completa reinvenção do partido, reconstruindo-o totalmente da base ao topo com base numa estratégia inteiramente nova. Nesse sentido, interpela todos os comunistas, dentro ou fora do que resta dos tradicionais partidos da Internacional fundada por Lenine.Na opinião de Sève, a questão política essencial tem sido colocada, há mais de um século, em termos de uma alternativa entre apropriação privada e estatal dos grandes meios de produção e de troca, ou seja, entre capitalismo (mercado) e socialismo (plano central). Alternativa esta afinal dentro de um mesmo género, fundado numa mesma lógica industrial de acumulação do trabalho morto como condição de crescimento da eficácia do trabalho vivo. Esta alternativa não se põe mais. Nesse sentido restrito, o triunfalismo da burguesia ocidental terá a sua razão de ser. A questão que se coloca hoje, no sentido autenticamente revolucionário que é o de Marx, é a da superação do capitalismo. Trata-se de acabar com todas as grandes alienações históricas, pôr termo à era milenar das sociedades de classe (pré-história da humanidade) e avançar para a emergência de um modo de produção que ponha em primeiro lugar os verdadeiros fins (contra a ditadura dos meios e a instrumentalização do próprio homem ao seu serviço), livremente decididos, da vida social, em que cada um possa receber consoante as suas necessidades, onde o livre desenvolvimento de cada um seja a condição para o livre desenvolvimento de todos. Este objectivo, fácil é reconhecê-lo, é o comunismo. Para ele se abre, no entender do filósofo, uma nova “janela histórica” nesta viragem do milénio.Sève tem suficiente cultura e lucidez crítica para saber que, enquanto houver capitalismo, Marx é um homem para todas as estações e a sua obra virtualmente inesgotável. Se na era da II e III Internacionais se leu, essencialmente, o Livro I de ‘O Capital’, abre-se agora uma era em que a tónica se porá mais no Livro III e nos ‘Grundrisse’. Opera-se com isso uma sensível deslocação de toda a problemática da revolução proletária, de uma perspectiva limitada, centrada na propriedade dos meios de produção, para uma perspectiva mais alargada e compreensiva, englobando a completa emancipação das classes laboriosas, o rasgar de todas as alienações indissoluvelmente associadas ao império do capital (a exploração, a exclusão, o fetichismo mercantil, a inversão ideológica, a agressão à natureza, o sexismo, o racismo, etc.) e a apropriação democrática do processo de decisão sobre as finalidades de todas as actividades sociais. O comunismo não é uma inevitabilidade histórica mas não deixa por isso de ser uma possiblidade dialéctica real, cujos pressupostos objectivos estão em plena maturação no actual desenvolvimento acelerado das contradições do capitalismo. Simplesmente, na sociedade actual, esses pressupostos materiais do comunismo aparecem desfigurados ou “de cabeça para baixo” como gostava de dizer Marx. É assim que a revolução tecnológica e a crescente aplicação directa da ciência aos processo produtivos nos trazem uma diminuição drástica do tempo de trabalho necessário, a qual nos aparece todavia sob a forma de crises de lucratividade e do desemprego em massa. Na recessão global em que estamos agora a entrar reconhecem-se já claramente, porventura pela primeira vez, os efeitos da lei da tendência à baixa das taxas de lucro. Os frutos históricos da era capitalista amadurecem mas têm ainda de ser colhidos, na hora certa, por uma vontade política organizada e esclarecida. Caso contrário apodrecerão no ramo, mergulhando-nos nas trevas e na barbárie. Põe-se pois a questão do agente desta imprescindível acção transformadora.Cerca de um terço do livro de Sève está consagrado à enunciação de um conjunto de ideias com vista a “revolucionar a forma-partido”. É certo que parte desse capítulo é constituído por considerações históricas (incluindo algum saboroso anedotário da experiência pessoal do autor no P.C.F.). Nesse campo, ele não se coíbe de assinalar em detalhe (e bem oportunamente) que as raízes históricas do que ele chama “centralismo autocrático” provêm na verdade da velha social-democracia alemã, não do partido bolchevique, de antes ou depois da sua estalinização. Sève identifica aliás como uma das grandes causas da falta de genuína democraticidade no funcionamento interno do P.C.F. o facto de o partido se integrar nessa mesma tradição, vendo-se forçado a lutar pelo poder no quadro institucional da democracia burguesa e segundo as regras do jogo impostas pelos oligopólios mediáticos. Causa essa que perdurará ainda naturalmente, com os seus efeitos nefastos, muito depois de se ter rasgado a última cópia do ‘Que Fazer?’.Estudioso e simpatizante de Lenine (em anexo I a este livro publica-se uma extensa e cerrada defesa do grande revolucionáro bolchevique, criticando uma recente biografia sua da autoria de Hélène Carrère d’Encausse), Sève não se furta a analisar a concepção leninista do partido. Considera que ela era, tudo somado, adequada ao seu tempo e circunstância, sustentando bem, historicamente, as críticas que na altura lhe foram feitas. Todavia, transposta para os nossos tempos e para as exigências da nova “janela histórica”, ela será inadequada, dado basear-se numa estratégia de assalto insurreccional ao poder, estando por isso enformada por uma organização de tipo vertical (relações cúpula/base) e por conceitos de origem militar (vanguarda, autoridade, disciplina, estratégia, militantes, etc.). De seguida, faz uma crítica cerrada às práticas políticas degradadas do estalinismo vulgar, exonerando o leninismo de qualquer responsabilidade na sua génese. Infelizmente, Sève não avança com uma inteira e acabada concepção nova do partido, limitando-se a apontar um pequeno conjunto de ideias directoras. Algumas destas parecem-me justas (não há aqui espaço para as discutir) mas a impressão geral que me fica é de um esboço muito vago e abstracto, e assim mesmo já reconhecivelmente tingido de muito irrealismo espontaneísta. Como aviso a epígonos incautos, refira-se que, seguramente por muito menos, já em Portugal uma linha política foi qualificada de “desvio anarco-liberal”...É claro que décadas de prática reformista deixaram o seu rasto indelével no pensamento de Sève. Ele rejeita a via revolucionária de acesso ao poder como sendo inverosímel nos países ocidentais (enveredando pelo já clássico esquema gramsciano da “hegemonia” e da “guerra de posições”); a sua reflexão é aliás totalmente eurocêntrica, parecendo totalmente alheia ao facto de existir um vasto mundo para lá das peculiares mansuetudes “franco-francesas”; mantém o seu apoio de princípio à supressão do conceito de ditadura do proletariado, operado pelo P.C.F. em 1976 no seu XXII Congresso (3); propõe-se encarar a tarefa do “definhamento do Estado” imediatamente, com mecanismos de devolução do poder aos “cidadãos” que fazem lembrar irresistivelmente a “libertação da sociedade civil” dos ideólogos burgueses; por fim, faz aberturas teóricas a uma concepção de luta “desalienadora” de carácter supra-classista. Quanto a este último ponto, a justificação do filósofo é assaz curiosa: é precisamente porque nos aproximamos do horizonte comunista que, desde hoje mesmo, se começa a observar uma dissolução da classe operária como agente histórico e que muitos dos problemas fulcrais do nosso tempo - ecologia, bioética, etc. - são já problemas típicos de uma sociedade pós-classista, que nos interpelam na nossa mais pura consciência simplesmente humana. E será armados com essa consciência humanista universal que devemos fazer frente ao “particularismo cínico do capital”. Esta concepção é de um flagrante idealismo e cai numa clara petição de princípio (: neste sociedade classista lutaremos pelo comunismo, não como consciência de classe oprimida, mas como consciência que é desde já universal, tendo superado por uma feliz antecipação todo as suas limitações de classe) que só pode ter como resultado um optimismo reformista, plenamente confiante na caminhada segura das forças do progresso e da razão.Com este conjunto de ideias (e equívocos), nas condições políticas actuais (com a participação do P.C.F. na área do poder, de que o autor não se desmarca) não pode causar surpresa que o apelo de Sève ao despertar do comunismo soe a muitos ouvidos estalinistas endurecidos como... uma rejeição do socialismo, por troca com um humanismo vago e invertebrado. Vozes ignorantes, sem dúvida. Mas quem pode garantir que isso não é essencialmente exacto? Face às suas origens num caldo de cultura tão notoriamente reformista e direitista (isto independentemente da integridade pessoal do autor, que não está em causa), como livrarmo-nos da suspeita de que se trata objectivamente de mais um passo na completa desvitalização do “comunismo”, embora caucionado por um trabalho rigoroso e pertinente (ainda que muito parcial e limitado) de regeneração do tecido clássico do marxismo, limpando-o do depósito acumulado dos detritos revisionistas estalinianos e pós-estalinianos. Refundação comunista: um passo em frente, ou mais dois à retaguarda? A meu ver isso dependerá ainda de muitos factores, mas essencialmente da dinâmica da luta de classes - na Europa e no mundo - nestes tempos de lento e penoso ascenso do movimento emancipador do proletariado. Em todo o caso, a questão do destino da particular corrente política em que Sève entende militar é uma questão decididamente menor, face ao peso de certas questões teóricas - em particular a questão da actualidade do comunismo - que ele aqui levanta e que são, essas sim, questões decisivas do nosso tempo. O marxista que existe ainda nele - sob a cinza fria dos desencantos e da acomodação ao “realismo” - foi suficiente para lhe permitir reconhecê-las.


Publicado na revista ‘Política Operária’, nº 81, Setembro-Outubro de 2001._____________________________________
NOTAS:(1) ‘Análises marxistas da alienação’, Estampa, Lisboa, 1975; ‘Para uma crítica marxista da teoria psicanalítica’ (autores vários), Estampa, Lisboa, 1975; ‘Marxismo e a teoria da personalidade’ (3 vols.), Livros Horizonte, Lisboa, 1979.(2) Um primeiro esboço, muito sintético, deste trabalho foi apresentado pelo autor no congresso ‘Marx International’ de 1995, em Paris, podendo ser lido nas respectivas actas: Lucien Sève, ‘La question du communisme’, em ‘Cent ans de marxisme, bilan critique et prospectives’, Actuel Marx / PUF, Paris, 1996.(3) Neste particular, o P.C.P. foi “pioneiro”, já que despejou a ditadura do proletariado do seu programa, com toda a tranquilidade e sem a mínima discussão, no seu VII Congresso (extraordinário) realizado em Lisboa, em 20 de Outubro de 1974 (com um sentido de “oportunidade” bem revelador). O partido português nunca se notabilizou pela profundidade da sua cultura marxista nem nunca favoreceu um clima de livre discussão teórica, pelo que esta questão passou praticamente despercebida. Sobre a discussão em França, leia-se Étienne Balibar, ‘Sobre a ditadura do proletariado’, Moraes, Lisboa, 1977 (tradução de José Saramago) e Louis Althusser, ‘O 22º Congresso’, Estampa, Lisboa, 1978.

 
 
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Ângelo Novo - Fidel contado como foi

A PÁGINA DE ÂNGELO NOVO

 
Fidel contado como foi
 
 
Esta biografia semi-oficial (não “autorizada” mas “consentida”) de Fidel Castro (*) apareceu naturalmente envolta em grande expectativa. Não havia ainda qualquer tratamento biográfico de Fidel digno desse nome e desta vez o dirigente cubano resolveu abrir totalmente o baú para a investigadora brasileira. Furiati é uma jornalista, escritora, guionista de cinema e professora carioca que já antes tinha tido acesso a informação classificada do Estado cubano para escrever “ZR, O Rifle que matou Kennedy”, sobre as tramas que envolveram o famoso magnicídio norte-americano de 1963. Desta vez, obtido o assentimento do comandante, ela partiu para nove anos de intensa pesquisa, dos quais cinco (de 1993 a 1998) vividos em Cuba, onde consultou o que desejou e entrevistou quem quis, incluindo personagens-chave que se mantiveram sempre na sombra como Jesus Montané e Manuel Piñeiro. A lista de agradecimentos é impressionante. Claudia Furiati não é Gabriel Garcia Marquez. Embora revele cultura e um instinto seguro para os detalhes interessantes, faz-se por vezes sentir cruelmente alguma falta de fôlego na narrativa, sobretudo quando ela requereria um tratamento mais próximo do épico. A parte técnica da economia praticamente não é abordada, bem como as questões teóricas fundamentais para o socialismo que estiveram e estão ainda em jogo na experiência revolucionária cubana (poder popular, etc.). Há passagens ininteligíveis devido a uma escrita deficiente, no que pode caber alguma responsabilidade à adaptação para a norma europeia do português feita pelas Edições Avante. Contudo, a obra não desaponta por completo e perdurará certamente por muitos anos como, não uma (como modestamente se intitula) mas a biografia de Fidel: aquela obra onde este faz conhecer, senão toda, pelo menos aquela verdade que contemporaneamente se pode já deglutir. Escreve a autora: “apesar de conspirador contumaz, Fidel pôs os segredos à luz do dia, na altura e no modo que julgou certos, neste livro, afirmando que, de importante, nada mais havia a revelar”.Há uma quantidade razoável de revelações de grande interesse. Fidel começou a ser conhecido politicamente a nível nacional ainda enquanto dirigente estudantil na Universidade de La Habana, o que nessa época (final dos anos 40) implicava não só destreza e brilho oratórios mas muita perícia e prontidão no gatilho. Numerosas questões de interesse político-académico eram então resolvidas à pistola no recinto universitário ou em correrias de automóvel e emboscadas de metralhadora pelas esquinas da cidade. Essa actividade implicava alianças e acordos de protecção equívocos com grupos mafiosos do bas-fond havanense, aos quais o jovem Fidel também recorreu quando disso teve necessidade. Há depois a revelação de que a expedição do ‘Granma’ foi em grande parte financiada secretamente por Carlos Prío Socarrás, o corruptíssimo ex-presidente cubano (derrubado por Batista encontrava-se então exilado nos E.U.A.) que Fidel havia denunciado violentamente na imprensa.Verdadeiramente delicada é a questão de saber quando é que Fidel se tornou comunista e como é que ele foi gerindo a sua imagem pública durante a juventude e, na verdade, até à declaração da revolução cubana como socialista, em 1961, dois anos e tal após a tomada do poder. Neste particular, a imagem que emerge do relato de Furiati é verdadeiramente surpreendente. Castro é versado no marxismo e um cripto-comunista convicto desde os seus tempos de estudante. Todavia militava no Partido Ortodoxo – um partido burguês, nacionalista e regenerador – e projectava uma imagem de tal modo furiosamente individualista e aventureira – no limite da irresponsabilidade e de uma temeridade algo selvática -, que não passava pela cabeça de ninguém associá-lo aos disciplinados exércitos da sombra do comunismo. A sua origem numa família latifundiária do Oriente, educação jesuítica e um discurso ideologicamente oco, polvilhado por apelos à honra e valor pessoal, tornavam-no insuspeito. E o equívoco manteve-se ao longo de uns quinze anos, por ele próprio activa e conscientemente promovido. Mesmo já na Sierra Maestra chegou a declarar-se anti-comunista, em entrevista ao ‘New York Times’, e era considerado pelos norte-americanos como uma alternativa de poder interessante, o que lhe garantiu alguns importantes fornecimentos de armas vindos da Florida por via aérea.Furiati mantém que tudo isso fazia parte de uma estratégia conscientemente montada. Fidel achava que o povo cubano não estava preparado para apoiar uma revolução socialista, a qual teria de lhe ser levada passo a passo, por sucessivos choques e uma consciencialização progressiva. Por isso usou de uma reserva mental de inspiração literalmente maquiavélica (‘O Príncipe’ era uma leitura recorrente sua). Por mim diria que, tal como os clássicos da antiguidade, Fidel sempre esteve consciente de que o verdadeiro herói tem de aliar ao arrojo a astúcia. Embora de temperamento impulsivo, não assumia riscos que não fossem calculados e ponderados com frieza, lucidez e um realismo cortante. Embora idealista, esteve sempre disposto ao compromisso, à manobra, à lisonja maliciosa, ao artifício requintado. Tinha o sentido do tempo e da duração, o que fez toda a diferença em relação à impaciência e rigidez hierática do seu amigo Che Guevara.Esta obra traz também à luz revelações novas referentes ao programa cubano de activa, organizada e secreta promoção da guerrilha e insurreição armada em toda a América Latina, nos anos 60 (e de modo mais localizado nos anos 70), bem como às diversas iniciativas africanas que, essas, se prolongariam até ao final dos anos 80 com o xeque-mate à racista África do Sul nos campos de batalha do Cuando Cubango. Confirma-se que, a partir de La Habana, Fidel Castro dirigiu toda a manobra cubana (e das FAPLA, por arrastamento) na guerra em Angola até aos seus mais detalhados pormenores operacionais.Fidel Castro Ruz é provavelmente um dos grandes dirigentes revolucionários de todos os tempos e é um privilégio ser seu contemporâneo, independentemente das reservas que se possam ter sobre o seu legado. Não nos vai deixar uma obra teórica de grande valor e originalidade, nem uma marca histórica profundamente talhada, fora do seu pequeno país. E mesmo aí, quem viver verá. Todavia, como vulto concreto de carne e nervos é uma figura absolutamente formidável, maior que a vida, um colosso de vontade e uma vaga imparável de entusiasmo e optimismo humanista. Vale bem mais como gesto, palavra e exemplo do que pelo património intelectual que nos lega para uso futuro. Também por isso era importante ter uma perspectiva de conjunto da sua vida, que é daquelas que, sem lenda, entra ainda mais definitivamente pelo campo do legendário. Ao longo de perto de 1000 páginas, esta obra abre pistas importantes e dá-nos uma aproximação global que, sendo obviamente traçada numa perspectiva favorável e simpatizante, não deixa de ser de uma grande e inquiridora honestidade.


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(*) Claudia Furiati, ‘FIDEL CASTRO, Uma biografia’ (2 tomos), Edições Avante, Lisboa, 2003.

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Ângelo Novo - Para onde vai a CGTP-IN?

PÁGINA DE ÂNGELO NOVO

 
 Para onde vai a CGTP-IN?
 
 
É de tal amplitude e insistência o rumor de esperança nas capacidades de Manuel Carvalho da Silva (CS) para dirigir a renovação - ou refundação, à maneira bertinottiana - do comunismo português que se justificaria, só por isso, uma atenção redobrada ás suas últimas intervenções em forma de livro. A avaliar por este volume (1), porém, tudo indica que as atenções, cuidados e a reflexão de CS vão permanecer firmemente ancorados no sindicalismo, entendido este embora (e correctamente) em sentido amplo, como sindicalismo de “movimento social”, ou seja, um sindicalismo que não se limita à gestão de interesses imediatamente emergentes da contratação laboral mas que assume um papel na própria formação (recomposição) da identidade dos trabalhadores, no acompanhamento das suas condições de vida, na estruturação da sua visão do mundo, incluindo o enquadramento da sua inevitável luta por uma transformação societal. Neste campo, a CGTP-IN já há muito deu amplas provas de não ser mais um instrumento dócil de estratégias exógenas. A questão agora é mesmo se, face ao definhamento esclerórito do PCP, não estaremos a assistir a uma espectacular inversão de sentido na famosa teoria estalinista da “correia de transmissão”. O facto é que CS não precisa de trocar de cavalo (correndo o risco de lhe sair um burro) para fazer mais e melhor “política” que aquela que pode neste momento ser oferecida pelo partido de Cunhal. CS é sem dúvida um pensador interessante, embora a sua escrita seja, por vezes, um tanto confusa, sintáctica e conceptualmente. O seu discurso oral é mais convincente e melhor estruturado. Este doutorando em Sociologia não será provavelmente alguma vez um ensaísta ou académico de nomeada, mas o que não há dúvida é que tem uma visão estratégica clara e articulada, solidamente ancorada e alimentada na prática. Uma prática, sem dúvida, de uma riqueza sem paralelo, porque passa por um percurso quotidiano, ao longo de décadas, pelas arestas mais vivas na frente da luta de classes em Portugal, as quais CS conhece com um detalhe e minúcia que provavelmente não estão ao alcance de mais ninguém. Mas nem toda a prática exaustiva dá lugar a uma reflexão profícua. É aqui que entra toda a argúcia e capacidade analítica de CS, que é toda ela prática e operativa. É um saber que é já um fazer. Ora, é também este sentido agudo do concreto e a imaginação prática e organizativa de CS – firmemente ancoradas numa perspectiva de classe - que lhe permitem as passagens de maior brilhantismo neste volume na denúncia das falácias do pensamento neo-liberal, sobretudo no campo do apregoado novo paradigma de organização produtiva, suas realidades e mitos.Tomando como esteio o melhor, senão único, pensador marxista português – Caraça -, CS traça toda uma linha estratégica para o movimento sindical português que, se é certo que solidamente apegada à via institucional (nacional e internacional), não deixa de manter duas características positivas que merecem destaque, por serem provavelmente exemplo único numa organização sindical hegemónica num país do “Ocidente”: um discurso emancipatório de classe que recusa o colaboracionismo (submissão) e um horizonte de luta que se mantém historicamente aberto a uma via (a reinventar) de superação das relações de produção capitalistas e da exploração do homem pelo homem. Nestes pontos, CS mantém-se dinossáurico e isso só lhe fica bem.Dito isto, há que dizer também que CS é um reformista e a CGTP-IN parece fixar-se numa perspectiva social-democrata clássica, de matiz evolucionista e bernsteiniana, para a qual “o movimento é tudo, o resultado final, nada”. Dir-se-á que isso é inevitável numa época histórica como a nossa e numa organização com a sua dimensão e responsabilidades. Não me parece que seja assim. A luta concreta por reformas e a ocupação de todos os espaços e vias abertas de diálogo institucionalizado são correctas, sem qualquer dúvida. Mas até na luta pelas mesmas reformas e nos mesmos espaços de “concertação”, a atitude de uma organização reformista é muito diversa da que seria a de uma organização revolucionária. E o pior ainda é que o próprio rebaixamento do nível de visão estratégica que acarreta este empenhamento total na via reformista leva a cometer erros políticos indiscutíveis, mesmo de um ponto de vista de mero progressivismo social.Por exemplo, é preocupante ver CS clamar por “mais Estado”, na economia e na vida social, sem cuidar de saber que Estado é esse e ao serviço de quem está (questão do poder). Mesmo que nunca tivesse lido uma página de literatura marxista, CS já anda aqui – isto é, no grande teatro da luta da classes - há muitos anos. Não vai conseguir convencer-nos de que nunca se apercebeu de que lado está o Estado. Todavia, o facto é que quando se não tem já a perspectiva da tomada do poder (ou esta perspectiva se perde num horizonte tão longínquo que se torna abstracta, quando não meramente retórica), o Estado começa a aparecer-nos como uma coisa natural, um instrumento neutro e imparcial ao serviço do “organismo” social. Ideal mesmo, para nos proteger dos “excessos” predadores da finança apátrida. Como certos prisioneiros que cumprem penas longas, optamos por esquecer o que é a liberdade, uma vez que esse pensamento nos é demasiado doloroso. Apelamos para o director contra as sevícias do carcereiro, fazendo por obliterar da memória aquilo que, no entanto, há muito já aprendemos: que os dois são unha com carne e, em última instância, o último é que tem afinal ascendente sobre o primeiro. O clamor por “mais Estado”, totalmente desligado da questão do poder, pode com toda a naturalidade conduzir-nos directamente ao fascismo. Como diz a Bíblia, mais lágrimas foram derramadas sobre as preces atendidas do que pelas não atendidas.Outra questão: é nada menos que arrepiante ver CS apelar para a Organização Mundial do Comércio (OMC) no sentido de esta adoptar a famosa panaceia das “cláusulas sociais”. Em primeiro lugar porque essas cláusulas são, na circunstância histórica actual, medidas pura e simplesmente proteccionistas (de protecção comercial dos mais fortes, entenda-se, não de protecção aos mais fracos), ou seja, instrumentos defensivos do poder imperialista. Depois não se percebe como é que CS não vê que a OMC é uma instituição completamente opaca, directório e tribunal supremo da oligarquia financeira e dos grandes monopólios/oligopólios multinacionais. Não se trata de nenhum fórum internacional “democrático”. Perante OMC’s, FMI’s, Bancos Mundiais, OCDE’s, G7(8)’s, Foruns Económicos de Davos e quejandos, o que há a fazer é exigir a sua abolição e dispersão pura e simples, sem mais conversas.CS não vê isto e o que dá a impressão é que, na prossecução da sua visão institucionalista (que já passou, sem problemas de maior, do plano nacional para o europeu), não tem objecções de fundo a que se vá consolidando a arquitectura institucional com que o imperialismo globalizante entende ir avançando, à sua medida, para a construção de um aparato para-estatal mundial, na esperança de que, numa segunda fase, também a voz dos trabalhadores (devidamente filtrada pelas suas organizações mais representativas, dos países mais desenvolvidos, naturalmente) aí acabe por se fazer ouvir também, dando-lhe uma ligeira pincelada “social” para remate final. Mas se isso é assim (e espero bem que não seja), então não se percebe que “ruptura” é essa que ele espera da parte do Fórum Social e do movimento dito anti-globalização. Se isso é assim, longe de agir contra a corrente, CS estará inteiramente submerso nela sem sequer se aperceber disso.CS acha que esta atitude tacteante é inevitável no movimento operário, desde que, com a famigerada “queda do muro de Berlim”, deixou de haver uma alternativa societal visível e exemplar que permitisse levar a luta até ao fim (ou até, tão só, chantagear os patrões com essa perspectiva). É muito curiosa esta confissão de impotência. A questão aqui é se se acredita, ou não, que os trabalhadores podem tomar o poder e dirigir colectiva e democraticamente a produção, em transição para uma sociedade sem classes. E isso não é nenhum aparatchik moscovita que nos pode meter na cabeça. CS, que nunca foi “ortodoxo”, pelos vistos dependia, também ele, nos anos 70-80, do alento trazido pela irradiação solar kremliniana – quando a única atitude correcta era, então, buscar em Moscovo o máximo de apoio e o mínimo de “exemplo” possíveis. Mesmo hoje ainda olha para trás com nostalgia…Marx e Engels não precisaram do radioso exemplo da pátria socialista para escrever o Manifesto Comunista e animar a Associação Internacional dos Trabalhadores. E também não é preciso ser um génio universal para acreditar no poder dos trabalhadores. Este poder é uma lava que brota espontaneamente, à medida que se agudizam e vão sendo expostas a céu aberto as contradições insanáveis do modo de produção capitalista. Embora sem linearidade e sem determinismo, esta lava tende a criar o seus próprios trilhos, na forma de instrumentos de análise e formas de organização que lhe são próprias.Como CS observa muito bem, é árduo e escarposo o caminho da solidariedade entre todos os trabalhadores, em todo o mundo. Mas para nós, comunistas, não há outro. Esta é a nossa própria e irrecusável globalização. Nessa matéria, o trabalho de “génio” já está todo feito. O que é preciso é, tão só, manter os olhos abertos e não ter medo de pensar. Não é preciso pensar muito “profundamente”. Basta pensar. E fazer face às conclusões que, historicamente, se impõem e nos olham bem de face. O tal “movimento social”, no seio do tal “movimento de movimentos”, será o veículo para a frente global dos trabalhadores e deserdados da Terra face ao grande capital imperialista, ou será nada. Não há qualquer “movimento” em organizações de regateio laboral localizado que apenas, de passagem, no decurso rotineiro da concertação e diálogo sociais institucionalizados, se manifestem de princípio e piedosamente contra as “exclusões”. Onde há “movimento” é na busca activa da solidariedade internacional, a Norte e a Sul, como base essencial de mobilização para a luta. Proletários de todos os países…


Publicado na revista ‘Política Operária’ nº 89 de Março-Abril de 2003._______________________
NOTA:
(1) Manuel Carvalho da Silva, ‘AGIR CONTRA A CORRENTE’, Campo das Letras, Porto, 2002.

http://www.ocomuneiro.com/angelonovo/CGTP.html