A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht

quinta-feira, agosto 29, 2013

João Cabral Fernandes "A cultura estalinista está presente no BE"



Por Ana Sá Lopes
publicado em 26 Ago 2013 - 05:00

O histórico do PSR afirma que a saída de Louçã foi má para o Bloco, mas a sua gestão de tendências também

Os jardins do Hospital Júlio de Matos foram o local escolhido para a entrevista com o psiquiatra João Cabral Fernandes, fundador em 1973 da LCI, Liga Comunista Internacionalista (formação política que depois daria origem ao PSR, Partido Socialista Revolucionário, que se integrou no Bloco de Esquerda). Ex-director clínico do Júlio de Matos, Cabral Fernandes é hoje um grande crítico dos partidos de esquerda - embora não se tenha passado para a direita e ainda acredite na revolução. Fiel à correlação de forças, votou no "traidor" Sócrates, para não se sentir responsável por colocar a direita no poder. A entrevista é sobre política e psiquiatria.
Como é que o fundador da LCI, que é uma coisa que as pessoas com menos de 45 anos não sabem o que foi, vê o Bloco de Esquerda que é um partido novo mas também herdeiro daquele projecto da Liga Comunista Internacionalista?
O Bloco de Esquerda seria só herdeiro parcialmente, numa tradição de uma prática revolucionária, de uma prática de ruptura social com o sistema. Mas o que eu acho - e isso pode chocar muitas pessoas, mas é a minha visão - é que depois da derrota do 25 de Novembro e do afundamento dos partidos de extrema-esquerda, as direcções de alguns partidos procuraram a unidade a todo o custo e fundaram o Bloco de Esquerda. Poderia ter representado um avanço... Mas o bloco de Esquerda é um saco de gatos. Podia não ter sido, se houvesse uma clarificação das práticas, desde que houvesse democracia interna, prática unitária na acção e nas lutas e uma atitude inteligente para os grandes partidos da esquerda, quer face ao PS quer face ao PCP.
Acha que isso nunca existiu no Bloco?
Havia muitos militantes que tinham essa perspectiva, mas ficaram defraudados porque o Bloco entrou no parlamento e não foi capaz de representar a acção social, a ligação com a acção de massas. Hoje, o Bloco é um partido que aparece às oito horas.
À hora dos telejornais?
Sim. Não tem figuras, nós não conhecemos os dirigentes em vários campos.
Acusou o Bloco de ter uma grande falta de democracia interna. De quem é a culpa disso? Porque é que isso aconteceu, na sua opinião?
Acho que tem a ver com ser difícil manter a democracia interna e os dirigentes da altura procurarem um sucesso fácil, mantendo uma concepção fácil do que é uma vanguarda política. Uma vanguarda política não pode destruir as vozes de quem quer transformar o movimento social.
Mas foi a carismática liderança de Louçã, em conjugação com Luís Fazenda, que provocou isso?
Francisco Louçã era o melhor quadro do Bloco de Esquerda e hoje está reduzido ao papel de comentador. Ele acabou com o PSR, os outros ficaram no parlamento e não vão sair de lá. Estão lá encostados como uma lapa. No último congresso, a lista B teve 23,5% e não estava presente nos órgãos dirigentes fundamentais. O Louçã era o melhor quadro político, com uma força muito grande, e teve de fazer um papel muito ingrato: o papel de um cesarista omnipresente e de um bonapartista omnipresente. Ele era o resultado vectorial de todas aquelas tendências e de todas as coisas ocultas dos partidos que estavam dentro do Bloco de Esquerda. Podemos dizer que foi um grande impulsionador e um quadro que tinha uma grande vivacidade e que mais sabia de política - o quadro político mais antigo - mas também foi em parte um destruidor porque ficou cego com a necessidade de apressar o processo de transformar o Bloco de Esquerda num partido mediático e eleitoralista. O sistema de organização tem impedido o Bloco de ser um partido de militantes. Não quero falar muito da palavra estalinismo. Mas a cultura estalinista está muito presente no Bloco.
Acha? É uma coisa muito violenta...
Depois da descida eleitoral nas eleições de 2011 houve um balanço. Eu fui assistir a uma reunião. E quando o debate se resume a cada pessoa poder falar só três minutos e à meia-noite tinha de acabar porque era esse o contrato que tinham feito com o hotel... Isto é uma rendição ao sistema burguês! Aqui, neste caso, à hotelaria portuguesa (risos). O Bloco não é um partido totalmente livre, é um partido que perdeu aquilo que nos anos 74-75 foi muito exagerada, a discussão política. Na altura discutia-se de mais, agora perdeu-se.
Portanto, acha que no Bloco de Esquerda, antes desta nova direcção, discutia o Francisco Louçã, o Luís Fazenda e o Miguel Portas quando era vivo?
Sim, fundamentalmente. E o Rosas. Acho que a concepção de democracia interna e de independência não existe. A sucessão foi cozinhada nas cúpulas! O não haver um representante da lista B na direcção quotidiana do Bloco é uma infâmia para a democracia interna. O que eu digo é que o Bloco de Esquerda quer ter protagonismo nem que seja à força. A Mariana Mortágua subiu 14 degraus na lista de deputados e foi mais ou menos "cooptada" para substituir Ana Drago.
É o equilíbrio das tendências?
É o equilíbrio das ditas tendências, que não são verdadeiramente tendências. São grupos de aparelhos, e de um aparelho mais geral...
Mas o que está a dizer é que essas tendências no Bloco nem sequer têm a ver com questões ideológicas e com a sua origem multipartidária?
O Bloco de Esquerda fez coisas muito importantes, mas no caso da sucessão e da organização deste congresso não houve discussão. E querer que o Louçã saísse da direcção? Era o melhor quadro! Isso é dramático.
Mas defende que Louçã devia ter ficado na direcção do Bloco?
Claro! Era o melhor quadro! Mesmo que eu lhe faça muitas críticas, é o melhor quadro e é um pensador. E agora está remetido ao papel de comentador.
Mas Louçã não sentiu que também estava a travar a ascensão de outros quadros? No fundo, aquilo que dizia, ele era quase o "dono" do partido...
Não é bem "dono"... Ele funcionava como o ponto vectorial de equilíbrio de todas as tendências. Louçã é um político inteligente, sagaz e o Bloco perdeu. Ele foi recuando, recuando e teve de sair... e esperava que os dirigentes da UDP fizessem o mesmo. Mas o Luís Fazenda não sai.
Um ano antes de morrer, Miguel Portas deu uma entrevista ao i onde defendeu que tinha chegado a hora dos dirigentes que fundaram o Bloco de Esquerda se retirarem de cena...
Achei uma fórmula exagerada. Eles tinham era de deixar de ser protagonistas daquele modelo de trabalho ou daquela concepção de equilíbrio de tendências, que permitisse a emergência de uma nova geração de dirigentes fruto de uma outra sensibilidade... já libertados da ganga do período revolucionário, mas que tivessem uma perspectiva revolucionária. O que é que interessa um partido fazer muitos projectos-lei no parlamento, se o parlamento está bloqueado, se nós não vivemos num Estado de direito?
Porque é que acha que nós não vivemos num Estado de direito?
Por tanta coisa. É tudo aprovado numa Assembleia da República onde os deputados fazem leis especiais para eles e diferentes para o povo. É um Estado de direito esquisito, não é? É evidente que numa sociedade em que foi apagada a possibilidade de uma discussão mais livre e em que as instituições se moldaram ao parlamento, não vejo nenhum interesse em se fazerem muitas leis que não são aprovadas. O Bloco devia-se ter dirigido mais para o movimento de massas, organizado mais iniciativas de protesto, de acção, de unidade.
Acha que o Bloco está apagado nessa área?
Está. E sobretudo está apagado numa coisa fundamental, a unidade da esquerda, a prática unitária.
Recentemente, Mário Soares promoveu uma reunião das esquerdas na Aula Magna e João Semedo, o Bloco de Esquerda, esteve presente.
Mas a prática unitária não é isso. A prática unitária não é fazer um comício onde estão umas figuras. A prática unitária é trabalhar nas diversas frentes para se chegar a compromissos ou acções - mesmo que não haja acordo completo com o PCP, com o PS, com independentes - no sentido de dizer que tem de haver uma mudança na política. Isto é que é a prática unitária. E depois o Bloco às vezes tem umas posições maximalistas. Por exemplo, os cartazes que dizem "Devolvam-nos o que nos foi roubado". Isso é uma palavra de ordem maximalista! Não se deve defender um dia de ajuste de contas porque esse ajuste de contas vai ser muito difícil! Porque a Alemanha ganhou 41 mil milhões de euros, metade do que nos foi emprestado, à custa de uma desigualdade e do funcionamento da União Europeia. Todos os países periféricos estão subordinados a uma lógica capitalista e a União Europeia está subordinada ao capital financeiro. Devemos ser contra a troika, exigir a nossa autonomia e independência, mas isso implica uma discussão ao nível da Europa, o que é difícil, porque o blairismo destruiu a social-democracia, que era parte da esquerda.
Portanto, as palavras de ordem do Bloco e do PCP são inúteis?
A posição tem de ser uma posição mais construtiva, sem ser reformista, mas uma posição que aponta para o caminho das lutas. O Bloco de Esquerda é muito filhinho ainda do PCP... acha que a aliança com o PCP para a saída da troika é fundamental. Ora, nós não temos um movimento de massas de esquerda para estar até à exaustão a apelar a isto. Tem de haver formas unitárias de trabalho e de transformação. Acho que os dirigentes do Bloco ficaram muito iludidos com as vitórias que foram tendo. Quando são aprovadas muitas leis sobre liberdades individuais - homossexualidade, droga, etc. - isso foi porque a social-democracia encontrou essa bandeira para se manter com uma certa figura de esquerda, quando já tinha capitulado pelo blairismo. Não se pode dizer, como o Bloco muitas vezes diz, que foi o partido que mais defendeu isso. Não, o PS defendeu tudo isso como também deputados de outros partidos defenderam. É preciso não ser tão triunfalista nesta questão e ser mais claro. Mas eu penso que o apagamento do Bloco poderia ser corrigido.
O que pensa concretamente da nova liderança do Bloco?
É uma liderança que perdeu força. Mas é difícil, a não ser que fossem um casal de apaixonados, sincronizarem o ritmo de sono e a vida em comum. Eu defendo a figura do secretário-geral. João Semedo é uma figura simpática e agradável, mas não tem o carácter incisivo que tinha o Louçã. Agora, Louçã também era muito acusado de ser muito demagógico e protagonizou o afastamento de muita gente - quem estava em divergência com ele, pertencia quase ao outro lado da barricada.
Portanto, na sua opinião, Louçã concentrava em si o melhor e o pior do Bloco?
Louçã era o melhor e depois, devido ao papel cesarista e de equilíbrio vectorial de todas as forças, foi entrando num jogo palaciano cor-de-rosa que teve consequências muito graves na situação em que o Bloco está agora. Qual é, efectivamente, o programa do Bloco? É um programa revolucionário? É um programa de compromisso? É um programa centrista? Como se faz a unidade da esquerda? O Partido Socialista é de esquerda, embora a sua direcção seja completamente blairista e traidora?
Mas João Semedo também diz que só fará alianças quando o Partido Socialista se chegar à esquerda...
Não é o Partido Socialista que se vai chegar à esquerda. São acções em vários domínios que irão levar que vários militantes e pessoas do Partido Socialista defendam que se tem de mudar de política.
Ainda acredita na revolução?
Acredito.
E como se faz a revolução?
Como se está a fazer no Brasil... Mas é muito complicado. A revolução árabe foi um fiasco. O que está a acontecer no Egipto é dramático. E é porque o regulador de tudo isto é o capital financeiro a nível mundial. E o capital financeiro está maduro para cair mas tem muitos anos de experiência e uma grande capacidade.
Mas não opõe a revolução ao parlamentarismo?
Não! O Bloco devia dividir-se entre uma acção parlamentar, desmascarando todos os actos e propostas, mas não meter a cabeça na areia. E ter outra parte, dirigida autonomamente, que era o movimento de massas.
Mas aí o PCP é melhor...
É melhor, mas não é mais revolucionário que o Bloco de Esquerda. Talvez tenha mais tradição. O PCP não é um partido revolucionário, é um partido de esquerda, como o Partido Socialista também é.
Mas então o que é um partido revolucionário?
É aquele que consegue as transformações sociais adequadas em determinado momento. Acabar com a desigualdade social, onde não existam privilégios e uma casta que se apropriou do poder. O que quer dizer revolução? A retomada da evolução! Esse nome que assusta tanto apenas quer dizer o retomar da evolução. Um revolucionário não é um tipo que põe bombas! É um tipo que retoma a evolução e não pode haver evolução com o sistema capitalista.
Como psiquiatra, como vê o disparo no consumo dos antidepressivos? As pessoas estão mais deprimidas agora do que antes? Inventam depressões? Ou foram os médicos que mudaram?
Uma mistura de tudo isso. Mas sabemos que há mais pessoas deprimidas. Uma pessoa que fica no desemprego, uma família em que vivem três gerações na mesma casa, são situações depressivas. Mas não existem mais doenças mentais, as doenças mentais crónicas têm a mesma percentagem. Os vários tipos de depressões é que não são todas elas situações médicas. Algumas são situações psicológicas, ou sociais ou uma falta de resiliência - há pessoas mais frágeis que podem cair numa situação dessas. Consomem-se mais antidepressivos porque muitas vezes os médicos não têm tempo e são poucos. Eu defendo uma percepção global. O pensamento vem da matéria, uma pessoa que pensa pode mais facilmente ultrapassar as suas crises.
Acha que os psiquiatras abandonaram a parte mais psicoterapeuta para se concentrarem exclusivamente na neurobiologia?
Houve uma deslocação, depende dos países. Eles deixaram de ter a formação que nós dantes tínhamos, uma formação mais humanista, mais global, psicoterapêutica e psiquiátrica. E houve também uma evolução muito importante: as neurociências desenvolveram-se de uma maneira formidável e hoje é possível curar uma depressão em dois ou três meses. Agora, tenho de tratar a depressão de forma a que possa ser capaz de reconstituir a sua mente e a sua vida para não voltar a cair passados uns tantos meses no mesmo ciclo depressivo. Nos exames onde estou, costumo perguntar sempre: "Diga-me o que é a depressão". E dos internos que vão a exame poucos respondem correctamente. Dizem que é uma doença! A depressão não é uma doença!
Não é uma doença?
Só parte da depressão é uma doença. Quem não deprime é má pessoa (risos). Há pessoas que não têm de passar pela experiência da depressão. Mas todos nós, pelo menos uma vez na vida, 30 a 40% ao longo da vida temos de deprimir. A vida é uma sucessão de ganhos e perdas. Tem de haver esse balanço. Até digo que se uma pessoa está em depressão e consegue trabalhar, aí a depressão tem um lado benfazejo. Há uma coisa que se chama a natureza humana. Vejam-se os bipolares, que são pessoas muito ricas, aliás são os dirigentes de nação.
Winston Churchill era bipolar...
Sim, o Churchill, e grandes escritores e intelectuais. A bipolaridade é um problema de desequilíbrio do humor. E esse desequilíbrio do humor vai permitir uma curiosidade e uma necessidade de afirmação maior por parte dessas pessoas. E, de facto, os antidepressivos têm hoje uma qualidade que não tinham há 20 anos, são muito melhores, têm muito menos efeitos secundários. E são os únicos medicamentos energéticos, quando uma pessoa faliu. Em determinadas personalidades, o antidepressivo é preciso. Mas se não for feito um trabalho humano, de apoio, de interacção mental com essa pessoa, ou de uma forma mais elaborada de psicoterapia ou de psicanálise... As psicanálises hoje acabaram. São muito caras, levam muito tempo.
E a psicoterapia também. Há muita gente que afirma precisar de fazer psicoterapia mas não ter dinheiro para isso.
É o que está a acontecer hoje. E a psicoterapia está praticamente remetida para os psicólogos, o que não é mau, mas tem uma desgraça: eles não têm formação médica. Podiam ter internatos, mas não têm. Nós não temos psicólogos nas equipas, ou temos muito poucos.
Mas houve mesmo essa mudança de escola de pensamento que transferiu os psiquiatras da psicoterapia para a receita de substâncias químicas?
Houve uma evolução científica e tecnológica muito grande nos medicamentos. Os primeiros medicamentos para a esquizofrenia e para a doença bipolar sedavam as pessoas e toldavam o pensamento. Nos anos 50, eram vistos como instrumentos de opressão quando eram mal utilizados. Hoje, podem ser instrumentos de liberdade quando podem conter uma pessoa e dar um sentido para a vida dessa pessoa. Agora, o trabalho tem de entrar na categoria da totalidade. A evolução da neurobiologia foi fantástica e nós não a podemos negar. Mas temos de, a par disto, desenvolver os conhecimentos psicológicos e as psicoterapias. Se fosse hoje em dia não faria psicanálise nem grupanálise durante 20 anos como eu fiz! Mas faria alguma psicanálise e recomendo aos meus internos que façam. Tratam-se as pessoas como doenças e não como seres humanos que podem ou não ter doenças. O termo perturbação mental é mais adequado do que doença. Mas a doença bipolar é mesmo uma doença. Mas uma pessoa que tem sucessivas perdas na infância, adolescência, tudo isto é muito complicado. Há uma multicausalidade - é o psíquico, é o orgânico e o social.
Em quem vai votar?
Vou votar na esquerda. Ainda não sei em quem, mas seguramente na esquerda. Mas vou-lhe falar das últimas eleições. Votei no José Sócrates.
Porquê?
Porque não podia estar de acordo que um partido, ainda que tenha cometido muitos erros, com uma direcção traidora e dominada pelas ideias blairistas, pudesse ser substituído pelos senhores que vieram a seguir, mais troikistas que a troika. O voto depende da correlação de forças entre a direita e a esquerda. As pessoas não perceberam que não se pode estar junto da direita...
Então acha que o Bloco e o PCP fizeram mal em derrubar Sócrates?
Claro! Claro! Mantinham a sua posição de princípio, mas não o derrubavam.


domingo, agosto 11, 2013

Combate do PS ao PCP tão ou mais importante que luta à direita, diz João Ribeiro


Autárquicas: Combate do PS ao PCP tão ou mais importante que luta à direita, diz João Ribeiro

O porta-voz do PS defendeu hoje que o combate ao PCP "é tão ou mais importante" que o combate à direita, acusando os comunistas de castrarem a liberdade política e serem exemplos de "atavismo" e de "sectarismo".

João Assunção Ribeiro, candidato socialista a presidente da Câmara de Setúbal fez um cerrado ataque aos comunistas no discurso que proferiu perante a Convenção Nacional Autárquica do PS, em que também usou o humor ao definir os "acordos" locais PCP/PSD como sendo "vodka com laranja".
Segundo o porta-voz dos socialistas, "há um muro que separa Setúbal da modernidade" por culpa da gestão autárquica do PCP.
Mas João Assunção Ribeiro foi muito mais longe nas suas críticas:"Sei bem que a situação nacional nos concentra no combate à direita ultraliberal que nos governa, mas quero ser franco e entendo que o combate ao PCP é tão ou mais importante do que esse combate à direita, porque é um combate pela liberdade política. Combatemos a direita que ignora direitos constitucionais, mas também combatemos a esquerda que atropela direitos civis e políticos", declarou o dirigente do PS.
De acordo com João Ribeiro, na atual pré-campanha autárquica, "tem sido raro o dia" em que não ouve queixas sobre ameaças de represálias ou sobre tentativas de condicionamento político.
"E o legado do PCP que vejo é o do desemprego, o da dívida, da falta de qualidade democrática, do atavismo, do conservadorismo e do sectarismo. O PCP é hoje um obstáculo ao progresso e ao investimento, é o campeão do quanto pior melhor, porque esse partido sabe que esse é o terreno fértil para o desespero e porque esse partido sabe que o desespero é a sua praia", acusou.
O porta-voz socialista dirigiu-se depois diretamente ao PCP para avisar "que os progressistas e os homens livres já derrubaram muitos muros na História - e não custa derrubar mais um muro".
"O PCP é um partido de bairrismos pouco saudáveis, de nacionalismos oportunistas, rasga contratos, não quer pagar dívidas, não tem ponta de modernidade, ficou para trás na História, confunde individualismo com autonomia individual. O PCP é um partido castrador das liberdades e da emancipação dos jovens, sendo um explorador do medo e da insegurança. Essas características do PCP explicam por que se aliou à direita para derrubar um Governo do PS" [de José Sócrates], declarou ainda João Assunção Ribeiro.
Antes o secretário nacional do PS para a Organização, Miguel Laranjeiro, colocou em dualismo o atual Governo, considerando-o um fator de divisão e de ataque à autonomia local, e os autarcas socialistas.
"O PS não esconde os seus símbolos, outros têm vergonha. Temos orgulho no trabalho dos nossos autarcas", declarou o dirigente socialista
Antes dos dois dirigentes do PS, o líder da Juventude Socialista, João Torres, defendeu que no próximo ciclo autárquico os socialistas devem privilegiar a ação social junto das populações e a emancipação.
"São dois domínios em que a política do atual Governo tem sido devastadora. Os nossos autarcas devem apostar em mais oportunidades para a qualificação dos jovens e na criação de emprego", declarou, sustentando, ainda, que os autarcas do PS "devem contribuir para a aproximação entre eleitos e eleitores".
Diário Digital com Lusa

quinta-feira, agosto 08, 2013

João Vilela - Sobre a «redução do desemprego» e a «criação de postos de trabalho na agricultura»



Sobre a «redução do desemprego» e a «criação de postos de trabalho na agricultura»

Um velho ditado diz que não há Sábado sem sol, Domingo sem missa, nem Segunda sem preguiça. Também não há Verão sem Volta a Portugal, incêndios florestais, praia, cerveja na esplanada, e o Governo a usar o decréscimo sazonal do desemprego para vir vangloriar-se de que fez crescer a economia e já se vê luz no final do túnel.
Tudo nas recentes demonstrações de júbilo com a descida de 0,7% na taxa (nominal, recorde-se: não nos números reais) de desemprego seria apenas a repetição do banal nestas situações, se não tivesse aparecido mais um «argumento»: o de que desta vez é diferente porque (i) os postos de trabalho criados não estão ligados ao turismo, como é usual, mas à agricultura fundamentalmente, e (ii) porque a descida, de 0,7%, é mais considerável do que a usual, o que ilustra uma tendência estrutural. Será assim?
Ninguém neste Governo percebe nada, por elementar que seja, de agricultura. A começar pela ministra da tutela. Paulo Portas já descobriu que é possível caçar uns votos junto de determinadas franjas da população rural indo para as feira do Interior de bóina e samarra, mas no que concerne à substância da actividade é um retinto nabo. A prova disso está no desconhecimento (ou na dissimulação – e Portas é conhecido pelas suas dissimulações,vide a permanência no Governo coabitando com Maria Luís Albuquerque, classificada por ele próprio como tal) de que o Verão não é apenas a época da praia, das esplanadas, e dos turistas no All-Garve. No Verão também é tempo de inúmeras colheitas de uma série de produtos agrícolas e, todos os anos, em função disso cresce a procura sazonal de mão-de-obra pelos empresários agrícolas.
Essa procura de mão-de-obra é de há muitos anos suprida não pelas populações locais dos países onde as colheitas devem decorrer, mas por trabalhadores imigrantes, as mais das vezes agenciados por neo-esclavagistas do tráfico de seres humanos, que aliciados com promessas do El Dorado são submetidos a condições ignominiosas de exploração, violência, intimidação e opressão nos campos onde trabalham. É assim, ainda hoje, com muitos portugueses que vão para França nesta altura do ano, fazer a apanha da maçã e da uva; é assim com os incontáveis marroquinos que, na Andaluzia e na Catalunha, vão por este mesmo tempo colher pepinos e morangos; e tem sido assim desde há vários anos no Alentejo, na época das colheitas de azeitona, onde o recurso a trabalhadores romenos e tailandeses sobreexplorados e forçados a condições dantescas de trabalho foi denunciado já, aqui, pelo perigosíssimo esquerdista do bispo de Beja.
Em face disso, demos pois a palavra à confederação patronal que representa os grandes agrários portugueses, a CAP, e indaguemos como explica ele este crescimento do número de postos de trabalho no campo. E, seguindo o que noticia a Rádio Renascença, ficamos esclarecidos: João Machado, o tal Presidente da CAP, afirma que «[h]á um conjunto de empregos sazonais que normalmente não eram ocupados por portugueses, que não os aceitavam, mas agora com as dificuldades que estão a sentir estão a aceitar estes empregos. Por isso, estamos a importar menos mão-de-obra para as colheitas do que importávamos em anos anteriores». Recordando as condições em que romenos e tailandeses trabalhavam até aqui no Alentejo e sendo pouco crível que um qualquer rebate de consciência tenha tomado estes proprietários de terras, bem podemos imaginar com que vultuosos salários laboram estes trabalhadores. Bem podemos aferir quão devastador foi o pacto de agressão para as classes populares em Portugal, para tornar apetecível que façam estes trabalhos por estes salários. Bem podemos concluir que o efeito da governação PSD/CDS foi, literalmente, fazer de Portugal a Tailândia da Europa.
Sim, este número de desempregados é transitório e sazonal. Sim, repor-se-ão os valores de Março deste ano, mais cedo do que tarde. Isto é mera enunciação da evidência. Mas extrai-se desta notícia uma realidade mais soturna: a de que o grau de degradação das condições de vida dos trabalhadores portugueses já foi tão longe que, para dezenas de milhares deles, a vida servil de um imigrante tailandês a varejar azeitona no Alentejo já se tornou aceitável. Foi a isto que nos reduziu a política de direita dos últimos 37 anos. É este o interesse da troika nacional, é para isto que cá entrou a troika estrangeira. Nenhum trabalhador consciente pode tolerar este processo, e qualquer política progressista tem, necessariamente, de significar a derrota dos agentes deste processo de empobrecimento. Todos e cada um.
http://5dias.wordpress.com/2013/08/08/sobre-a-reducao-do-desemprego-e-a-criacao-de-postos-de-trabalho-na-agricultura/

Vaz de Crvalho - A dívida: quem quer capitalismo paga-o!

**Avante!
N.º 2071 
8.Agosto.2013 
 

  • Vaz de Carvalho 


A dívida: quem quer capitalismo paga-o!


1 – A dívida e os almoços grátis


Quando ouvimos a direita proclamar que temos de honrar os «nossos» compromissos e pagar as «nossas» dívidas, vem-nos à lembrança a resposta que a rainha Maria Pia (1), esposa de D. Luís, deu a um ministro ao ser instada acerca dos excessos do seu luxo: «Quem quer rainhas, paga-as!».

A questão da dívida nacional e o seu agravamento têm causas estruturais que radicam no crescente défice produtivo do País e que foi particularmente acentuada com as políticas do BCE e dos mecanismos do euro, que reduziram os países mais vulneráveis à servidão pela dívida. Donde, quem quer este BCE, este euro, esta UE da especulação financeira, dos monopólios e transnacionais, paga-os! O problema é que quem não quer, também os está a pagar!

Repare-se no seguinte: entre 1999 e 2012 Portugal pagou de juros de dívida 65 716,8 milhões de euros, a soma dos défices do Estado foi de 112 117 milhões, porém a dívida pública passou de 58 657,1 para 204 485 milhões de euros (mais 145,8 mil milhões!). Ou seja, quanto mais se paga mais se deve. (INE – Contas nacionais). Em 2012 os jurosrepresentaram nas Contas Públicas 69% do défice do Estado; em 2013 segundo previsões do governo no OE atingiriam cerca de 100% do défice do Estado.

É este o processo posto em prática pelo imperialismo para a extorsão de rendas financeiras e apropriação da propriedade pública (privatizações). A dívida externa pública dos países em desenvolvimento era, em 1970, de 40 mil milhões de dólares, em 2009 atingia 1460 mil milhões, porém no mesmo período foi pago como serviço de dívida 4529 mil milhões de dólares. Isto é, reembolsaram 98 vezes o que deviam em 1970, mas a dívida é 32 vezes maior, tudo isto em dólares(2).

A dívida é a forma de proporcionar os famosos «almoços grátis» à finança e monopólios, que os propagandistas do sistema dizem não serem possíveis para tudo o que é social. O BCE impõe que os estados se financiem junto da banca privada; esta recebe do BCE a 0,5% de juro, e empresta aos estados a um juro que depende tanto da especulação como de estratégias dos países dominantes. A Alemanha obtém juros a 0,5 ou a 1%, mas Portugal como muitos outros países obtêm a 5, 6, 7% e mesmo mais.

Para termos uma ideia de como este mecanismo actua lembremos o propalado «sucesso» da ida aos mercados» (!). Pediram-se 3000 milhões de euros, com juro de 5,68%, a 10 anos: recebemos 3000, pagamos 5212 milhões. Note-se: com uma taxa de 5,7% em 10 anos paga-se mais 74%; com uma taxa de 7% o empréstimo duplica. Compreende-se também o dogma do BCE de não querer inflação.

Pela via da dívida a troika impõe condições equivalentes à submissão dos povos por meios militares, obrigando as pessoas a perderem direitos, entregar partes crescentes do seu rendimento para alimentar a especulação, entregar ao desbarato património e serviços públicos e, finalmente, em nome de cumprir os «nossos compromissos», pretendendo reduzir a democracia a mera formalidade sem direito à escolha de alternativas.



2 - O ajustamento estrutural

Os comentadores são mobilizados para propagandear a ideia de que a austeridade é a condição para o «ajustamento estrutural» e que o pagamento das dívidas irá proporcionar crescimento futuro. Falso. É o caminho do colapso económico e social. Aquela propaganda serve precisamente para manter a sujeição pela dívida excluindo a análise de como a riqueza é criada, adquirida e distribuída e de que forma afecta o desenvolvimento.

Umas contas simples ajudam-nos a compreender a natureza do problema. Em 2012 o endividamento do Estado era 124% e o défice 6,4% do PIB. Com as actuais políticas, reduzir a dívida pública para 80% do PIB e o défice para 3% implicaria (mantendo o mesmo valor da dívida, ou seja, sem novos empréstimos) garantir um crescimento do PIB de 54,5% (3), portanto um crescimento médio ao longo de 10 anos da ordem dos 4,4 a 4,5%. Quanto ao défice, mesmo com este crescimento, seria necessário reduzir-se em 27,8% através da diminuição da despesa e/ou aumento da receita.

Se fizermos o mesmo exercício para o absurdo que é o Mecanismo Europeu de Estabilidade (aplaudido pelos partidos da troika como «regra de oiro») que exige sob a ameaça de «penalidades» (!) um endividamento público limitado a 60% do PIB e 0,5% de défice, teria de ser garantido um crescimento de 7,5% ao longo de 10 anos (ou de 3,6% ao longo de 20 anos) e uma redução de défice de 84%!

Mas crescimento como com as políticas da troika?! Os «cortes na despesa» feitos pela direita incidem sobre salários, prestações sociais e investimento, provocando a recessão, deixando intocados os juros, a tributação sobre rendas financeiras e monopolistas, além das PPP, SWAP, etc., que bloqueiam o crescimento.



3 – Duas escolhas

O prof. Michael Hudson cita o economista M. Flürscheim (1844 – 1912) referindo uma alegada afirmação de Napoleão, que dizia não entender como «o monstro do juro não tinha ainda destruído toda a humanidade», ao que Flürscheim comenta: «Teria assim sido há muito se a bancarrota e a revolução não tivessem sido os antídotos». Acrescenta Hudson: «E este é justamente o ponto. Alguma coisa tem de ser feita quando a matemática dos juros ultrapassa a capacidade da economia pagar» (4).

A austeridade torna o pagamento da dívida cada vez mais pesado; os interesses dos credores sobrepõem-se aos da economia nacional, ficando as nações devedoras e mais dependentes, suportando juros especulativos (com o argumento de que a economia do país não lhes dá garantias!), empurradas para exportações com baixos salários e baixa tecnologia ao serviço das transnacionais (é o mito de «captar investimento estrangeiro») e promovendo a emigração dos trabalhadores mais qualificados.

Os números que apresentamos servem para nos dar uma ideia de como a dívida nas condições da troika é impagável e como as políticas da UE e do euro estão apenas previstas para garantir rendimentos às oligarquias, «custe o que custar». Tudo isto prova como as referências ao «crescimento e emprego» ou «não se perderem os sacrifícios já feitos», não passam de reles embustes.

Números que revelam também como são justas e patrióticas as políticas de renegociação de dívida nos seus montantes, prazos e juros e a rejeição do pacto de agressão da troika, que o Partido defende e tem reivindicado.
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1 – D. Maria Pia de Saboia (1847-1911), rainha de Portugal, fazia questão de usar vestidos novos todos os dias expressamente vindos de Paris. Esta senhora ficou também conhecida como «O Anjo da Caridade». Eis o género de caridade (com muitos «pobrezinhos») que a direita aprecia.

2 – cadtm.org, «Les chifres de la dette 2011»

3 – Dívida em 2012 / 0,8 = PIB necessário

4 – «The Bubble and beyond», Michael Huson, Ed. ISLET, p. 97.

quarta-feira, agosto 07, 2013

Luís Bernardo - A família real e os arrotos paradigmáticos




A família real e os arrotos paradigmáticos


Nota: poste chato, longo e desnecessariamente complicado (falta-me a disposição necessária para sintetizar e simplificar). Passem à frente se não tiverem paciência.
Já se disse alguma coisa sobre Cristina Espírito Santo e a sua tirada em arroto queque acerca dos momentos lúdicos da Comporta. O Nuno já escreveu sobre o assunto, e bem. É uma das formas de abordar o problema – e é, de facto, um problema. Eu quero confrontá-lo de outra forma. Quero perceber, como teria feito C. Wright Mills, de que forma esta tirada reveladora se relaciona com uma mudança paradigmática – uma mudança na forma como nos relacionamos, como nos concebemos enquanto colectivo (ou não) e nas potenciais consequências dessa mudança. Nesse sentido, pus-me a pensar como um dos meus historiadores favoritos, Lucien Febvre, e numa das suas obras mais importantes,  O Problema da Descrença no séc. XVI: A religião de Rabelais. Porque algo está a mudar na sociedade portuguesa. Não necessariamente a falta de esperteza desta alta burguesia, tão estúpida e canhestra como há 100 anos, ou a estigmatização da pobreza (um fenómeno que ainda hoje me intriga, dado o carácter estrutural, violento e patrocinado da pobreza em Portugal – e daí, certamente, a sua estigmatização, a fazer lembrar a observação de Steinbeck acerca do proletariado nos EUA). Falo da legitimidade destas tiradas absurdas, que se repetem, feitos arautos de uma esfera pública onde os sinais de humanismo e humanidade, que já eram esparsos, desaparecem para dar lugar a relações mercadorizadas, a eus empreendedores refeitos diariamente e ao domínio total do mercado. Desde o “aguenta aguenta” aos bifes da Jonet, parece estar a emergir um consenso elitista em torno da culpa fundamental da figura operática do pobrete. Alguma esquerda intelectual ainda tem vergonha de dizê-lo abertamente, mas já o diz em surdina. “O elitismo é bom. Queremos uma sociedade de elite. Queremos um Portugal de elite”. Porque serão as academias e os institutos a salvar-nos. Adoramos coisas sebásticas e salvíficas.
Quando li a já famosa frase de Cristina Espírito Santo, lembrei-me de duas obras recentes. Ambas revelam três ou quatro coisas importantes sobre esta clivagem crescente de classe neoliberal. A primeira é a de que, tal como fomos todos keynesianos e multiculturalistas, também nos podemos ter transformado em empreendedores neoliberais do eu; é impossível não sermos neoliberais (tal como seria impossível, a Rabelais, ser ateu). A segunda é a de que esta mudança paradigmática não é teleológica ou desprovida de agência: trata-se de algo mais insólito, programado e estratégico. A terceira é a de que esta mudança terá consequências civilizacionais ainda mais graves que as actualmente identificáveis. A quarta é a de que, em bom português, estamos fodidos enquanto pensarmos que ter alternativas bonitinhas, enquanto achamos que os papões neoliberais são burros e só querem destruir o Estado social, basta. Não, não basta. Conhecer o inimigo é o primeiro passo para derrotá-lo. Sunzi já o dizia em mil novecentos e troca o passo.
São proposições pouco convenientes. Pouco convincentes, decerto, mas talvez seja essa a sua vantagem: podemos pô-las na mesa e discuti-las, sem grande fragor, porque não serão levadas demasiado a sério. O pensamento único está a transformar-se num bicho novo, com menos quebras e frestas; as suas contradições estão a ser incorporadas e não geram insuficiências explicativas. A simbiose entre hegemonia e crítica está a dar sinais de cristalização. O neoliberalismo não tem medo de heresias, hereges ou heresiarcas; incorpora-os e transforma-os em agentes do mercado-cyborg.
Uma delas, recém-publicada, tem um título que fala por si: Never Let a Serious Crisis Go to Waste: How Neoliberalism Survived the Financial Meltdown. O autor é Philip Mirowski, provavelmente o melhor analista contemporâneo do discurso e comunidade epistémica neoliberais. Trata-se de um corpo estranho entre a literatura acerca da crise contemporânea.
Em primeiro lugar, não é um panfleto económico. Nem sequer é, em sentido estrito, um livro sobre questões económicas com têm sido enquadradas nos últimos anos. É um estudo de sociologia do conhecimento e de história das ideias. Esta característica determina várias das teses de Mirowski, em particular aquela que me deixou a pensar com mais afinco: a possibilidade de termos incorporado as teses neoliberais e, involuntariamente, nos termos transformado em empreendedores do eu, um homem plural de Bernard Lahire com vocação camaleónica, ou um ser líquido, como proposto por Zygmunt Bauman. Mirowski não fala destes tipos; concentra-se em Foucault e na biopolítica (uma das falhas a apontar à obra). E é aqui que entra Cristina Espírito Santo e as brincadeiras brincalhonas da Comporta. Mirowski afirma que vivemos, hoje, imersos num complexo de discursos que fantasia a subjugação do eu às ordens de um mercado cuja capacidade computacional é, e será sempre, superior à de qualquer ser humano; o mercado exige que sejamos empreendedores do eu, em permanente ebulição e maleabilidade; sejamos empreendedores, portanto. Os pobres, novos ou velhos, são aqueles que, por defeito individual ou falta de capital humano, se mostram incapazes de submeter o seu destino ao julgamento do mercado. Em suma, merecem o destino que têm e merecem ser actores daquilo a que Mirowski chama de teatro da crueldade. E, se pensarmos no ressurgimento da caridade, na demonização das transferências sociais paliativas e nas idiotices vomitadas por gentalha como Cristina Espírito Santo, isto começa a parecer claro: o teatro da crueldade é, hoje, um dos instrumentos de legitimação da sociedade de mercado em que vivemos. A sobrelotação das prisões é outro desses instrumentos. E a ascensão de um aparato mediático multiforme, em que podemos incluir coisas como [Happy, Maxim], [Jornal de Negócios, Diário Económico], [Expresso, Sol], [Visão, Sábado], [SIC, TVI], e que servem de correia transmissora para (alerta palavrão) um projecto agnotológico de grandes dimensões, completa, de certa forma, o leque de instrumentos à disposição da comunidade epistémica neoliberal para completar a conversão da sociedade em componente funcional do mercado. Cristina Espírito Santo não é mais que a boca de uma visão voluntarista-lúdica da pobreza, “eles são pobres porque querem, e se calhar até merecem”, que surge, hoje, acoplada a uma visão utilitária da mesma, “a desigualdade não é necessariamente boa, mas é o que faz o mundo rodar; se os pobres quiserem ser como os ricos, isto anda e a remuneração do capital está garantida”.
Em segundo lugar, Mirowski não pretende apresentar soluções. Pelo contrário, concentra-se no diagnóstico duro e frio das insuficiências do pensamento crítico e da esquerda, geralmente condicionados pela legitimidade automática do pensamento único, mas também culpados de preguiça intelectual. Quando ouvimos os arautos da esquerda mediática a regurgitar Naomi Klein (uma excelente divulgadora, activista e oradora, aliás) e a engrandecer figuras como Krugman ou Stiglitz, esses arautos mostram uma das faces dessa preguiça: as treze teses oferecidas por Mirowski, no primeiro capítulo, ajudam a perceber porquê, e já lá irei. Outra face dessa preguiça é a simplificação excessiva da realidade tal como operada por quem insiste em enfiar a barba de Marx em tudo o que vê; precisamos de novas categorias e, acima disso, de olhar para a realidade sem pretendermos ser augures ou harúspices. Neste sentido, a obra de Mirowski é, a um tempo, cuidadosa e radical: não oferece soluções prospectivas porque considera o discurso das alternativas ancorado numa avaliação imprópria do inimigo neoliberal (Schmitt também anda por ali; Agamben nem por isso, e faria falta) e é a essa correcção que se propõe; radical porque não se coíbe de criticar os novos movimentos, apontando a sua cooptação dos modos de expressão política neoliberal – ou seja, o Occupy Wall Street, os Indignados e outros sujeitos políticos emergentes – como razão principal da sua inconsequência. A cultura do microfone aberto, com o seu apelo implícito à expressividade individual, à reengenharia do eu, ao empreendedorismo político quotidiano, é uma nota indicativa e subtil. É impossível ficar indiferente a esta crítica. Será, certamente, estraçalhada por quem encontra, nas assembleias populares, uma nova subjectividade política e uma democracia “real” ou uma potência democrática “directa”, “participada”, maximalista. É aqui que entra uma componente importante da crítica de Mirowski: a reengenharia política do eu, simbolizada no microfone aberto, também se sustenta a partir da dispersão da autoridade epistémica. Toda a gente tem a mesma voz e o mesmo discernimento; uma pessoa com saber técnico não tem mais autoridade para falar de política que uma pessoa sem esse saber. Geralmente, tendo a ver isto como consequência da atomização das relações sociais da emergência de subjectividades ultra-individualistas – uma leitura perfeitamente convencional, diga-se; Mirowski vai mais longe (talvez demasiado) e afirma que esta desqualificação do conhecimento informal e formal decorre da preeminência do mercado e da subsequente reengenharia do eu, que torna qualquer presunção de capacidade irrelevante porque não decorre do julgamento desse computador Hayekiano omnisciente. O paradoxo, em seguinda, é este: o mercado é o mais perfeito processador de informação disponível até hoje (a visão tipicamente neoliberal-Hayek) e requer um empreendedorismo contínuo do eu (tal como referido por Foucault); no entanto, e se a comunidade epistémica neoliberal age em consonância com a ideia contraditória de que o mercado, como mecanismo informacional perfeito, precisa de correcções periódicas, os empreendedores do eu que pontificam nos novos movimentos sociais também elegem determinados saberes como especialmente relevantes para a acção política e, em particular, para a sua expressão individualizada.
Em terceiro lugar, Mirowski arrisca uma leitura estratégica da hegemonia neoliberal sem se esgotar na aplicação bafienta de uma visão gramsciana empobrecida. Faz uma arqueologia dos pontos focais do neoliberalismo. Procura mostrar a estrutura de poder inerente à produção do conhecimento. Daí o bold acima na palavra agnotologia.Agnotologia refere-se à produção social e cultural da ignorância. O colectivo epistémico neoliberal tem sido particularmente hábil na massificação dessa ignorância, recorrendo a uma infraestrutura de produção de conteúdo, sempre de acordo com a lógica dissonante das verdades duplas (um conhecimento exotérico, a aspergir pelos meios de comunicação, e um conhecimento esotérico, a dominar por um grupo limitado de barões), para introduzir barulho e interferência no debate público. Mirowski dá dois exemplos: o negacionismo no debate sobre a influência humana as alterações climáticas e a origem da crise do capitalismo contemporâneo. Com a frieza própria de um historiador, identifica instâncias específicas, eventos localizados no tempo em que instituições e indivíduos contribuiram para piorar a qualidade do debate público ao introduzir confusão nos termos desse debate, ao propor ideias, teorias e visões sem base empírica mas com um verniz de razoabilidade. Penso em Medina Carreira, Gomes Ferreira, Marcelo Rebelo de Sousa e outros, nominalmente à esquerda, que acabam por apoiar este projecto agnotológico ao dar corda a esta teia de cabeças falantes. O termo “idiotas úteis” adquire outra força. Não há grandes dúvidas a respeito disto: enquanto navegarmos na espuma dos dias, não vamos a lado nenhum. É assim que o colectivo neoliberal ganha tempo para programar os próximos passos da sua estratégia de recomposição socio-política. A conversa actual em torno dos swaps, de Joaquim Pais Jorge, de Maria Luís Albuquerque e de Rui Machete, como a conversa em torno dos submarinos, como a conversa em torno das equivalências de Relvas, não fazem mais que cumprir um propósito estratégico: desviar a atenção pública de um debate fundamental em torno das consequências reais e humanas da transformação revolucionária em curso e em vias de ser intensificada com as realocações orçamentais (ninguém acredita realmente que o aparelho estatal sofra cortes globais na ordem dos cinco mil milhões de euros; aquilo que acontecerá é muito mais simples – serão postos em sectores onde podem ser mercadorizados e transformados em renda por instituições extractivas).
Volto a Cristina Espírito Santo e à visão lúdica da pobreza. Em vez de caricaturarmos a vacuidade destas figuras sinistras, vale a pena atentarmos nas suas palavras. São icónicas de uma mudança operada em tempo real, à qual talvez devêssemos prestar mais atenção que a swaps.
Neste sentido, penso numa obra pouco conhecida em Portugal (ou, pelo menos, pouco discutida). O geográfo Danny Dorling, até há pouco tempo em Sheffield, tem ilustrado, de forma brutal, o crescimento das desigualdades naquele que já é o país mais desigual da Europa ocidental, o Reino Unido. Em Injustice: Why Social Inequality Persists, Dorling descreve a emergência do Estado social britânico, em particular com as figuras de Beveridge e Bevan, e a identificação de cinco problemas sociais que deveriam ser confrontados por instituições públicas próprias: a ignorância, a necessidade, o ócio/inactividade, a falta de cuidados sanitários e a doença (traduções minhas). Concorde-se ou não com a exactidão do diagnóstico, questione-se ou não o enviesamento de classe do mesmo, conteste-se ou não a eficácia da social-democracia, parece claro que o Estado keynesiano do pós-guerra fez algo para combater esses cinco fenómenos. Dorling afirma que esse combate deve ser actualizado com urgência. Porque, na Europa, vivemos em sociedades onde esses problemas convivem com outros, igualmente relevantes, e, além disso, porque, à medida que as sociedades europeias se tornam mais desiguais, emerge uma sopa ideológica legitimadora do status quo. Assim, os cinco males identificados por Beveridge estão a ser desposicionados por novos problemas. Dorling identifica os seguintes: o elitismo, a exclusão, o preconceito, a ganância e o desespero. E, de forma a facilitar a identificação das estratégias retóricas do pensamento único, adjectiva cada um dos problemas. Portanto, o elitismo é eficiente; a exclusão é necessária; o preconceito é natural; a ganância é boa; o desespero é inevitável. Tudo isto joga com o primado mercadista do colectivo neoliberal. O elitismo é eficiente porque promove o consumo e a competição, além de motivar a glorificação do capital e dos capitalistas; a exclusão é necessária porque as massas incultas e selvagens não podem infectar o Olimpo das gentes de bem; o preconceito é natural porque as desigualdades são devidas a diferenças individuais inevitáveis e os seres humanos são bichos naturalmente territoriais, desconfiados e motivados pela acumulação material; a ganância é boa porque confirma a ideia de que a acção auto-centrada é a totalidade do comportamento humano e confirma a perfeição ontológica do mercado; por fim, o desespero é inevitável porque os pobres, os burros, os fracos, os doentes, os preguiçosos, os velhos, os feios, os idiotas, os alienados, os condenados da terra, os desadequados a um sistema perfeito e tendente ao equilíbrio são danos colaterais e o desespero é humano, embora não deva ser, sequer, mitigado.
Cristina Espírito Santo corporiza tudo isto. A família Espírito Santo corporiza tudo isto. O elitismo, o preconceito, a ganância, a exclusão e o desespero contribuem para tornar a pobreza inteiramente lúdica e o pobre num actor auto-condenado ao teatro da crueldade. Porque o pobre não é um empreendedor do eu e insiste em não confirmar, com a vida, a perfeição do mercado. A pobreza é, afinal, uma questão de preferências desajustadas. O mercado é perfeito [mas precisa sempre de alguns ajustes, pelo que urge dominar a política e o Estado], os economistas sabem tudo [apesar de toda a gente saber que o mercado é o álfa e ómega da capacidade computacional universal, ultrapassando, obvia e necessariamente, o Planeta] e nós só precisamos de expressar a nossa individualidade [mas dá sempre jeito haver uma infra-estrutura de produção de hegemonia e promotora do barulho agnotológico]. O mercado prefere o elitismo, a exclusão, o preconceito, a ganância e o desespero; quem não concorda padece de uma combinação de três condições – ou é de esquerda, ou é pobre, ou é louco [mas o mercado já tem a cura: sejam empreendedores].

sexta-feira, agosto 02, 2013

João Vilela - A Sagração da Desigualdade – III: Deixa-te de Políticas


«De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário em construção

Olhou em volta: gamela
Banco, enxerga, caldeirão,
Vidro, parede, janela,
Casa, cidade, nação,
Tudo, tudo o que existia,
Ele, um humilde operário,
Um operário que sabia
Exercer a profissão!»

(in O Operário em Construção, de Vinicius de Moraes)
Vimos de que forma o trabalhador se dá conta de como existe entre ele e o patrão uma relação de compra e venda de força de trabalho, e se torna regateador perante o segundo, procurando vender-lha por preço mais alto. Este primeiro passo, que demonstrámos vir ainda enredado e maculado por uma adesão à moral burguesa que cauciona e institui como pressuposto da conversa a subalternidade social do explorado, é todavia, já de si, de grande monta: se a mercadoria força de trabalho for objecto da mesma gestão, pelos trabalhadores, que os capitalistas devotam aos produtos que leva ao mercado, encurta-se a taxa de mais-valia, e a razão de ser fundamental das relações de produção capitalistas fica comprometida. A tendência para a venda das mercadorias pelo seu custo antagoniza-se com outra tendência, a da redução do salário ao mínimo indispensável à subsistência: e esse antagonismo, que é a expressão material do antagonismo de classe, verte-se na repressão dos (ainda) rogos dos trabalhadores, com extrema brutalidade em alguns dos casos. Esta atitude do patrão permite ao explorado compreender que lhe importa dar o salto para fora dos quadros mentais dentro dos quais organiza a sua argumentação reivindicativa: porque é despedido, vítima de represália, repreendido, empregue nos trabalhos mais penosos, porque é que em último caso o agride a polícia (logo a polícia – porquê a polícia?!) quando ele faz o que qualquer vendedor faz, ou seja, procurar melhor preço de venda para um produto seu? A luta vai tornando o trabalhador progressivamente mais consciente de todas estas contradições e ajuda-o a forjar a sua ideologia de classe, a qual vem associar-se, como vemos nos versos que abrem este texto, a uma progressiva consciencialização da importância social do trabalho, e do trabalhador como produtor. É aí, compreende o trabalhador no auge da sua consciência, que reside o essencial do problema: a característica essencial da mercadoria que vende, a força de trabalho, é a de conferir valor e transformar o capital, de coisa morta e improdutiva, em valor de uso e de troca. É essa característica que é disputada entre si e o patrão. Em última análise, todos acabam por o perceber, fica com o valor quem tem os meios de produção. E essa vem sendo a grande saga, a grande luta, do movimento operário com a burguesia que o explora.
Quando a consciência de classe dos trabalhadores aqui chega, o patrão deita mãos à cabeça e lamenta não ter deixado as coisas como estavam quando, pela primeira vez, os seus subordinados lhe vieram tentar vender a pele mais cara. Com efeito, a repressão que sobre eles exerceu foi o que foi e não podia, aliás, ter sido de outra maneira. Era o fundamento das relações de produção que estava em risco. Ele já o sabia. Todavia, em face da sua repressão, os trabalhadores ficaram também a sabê-lo. Compreendem agora na globalidade o processo histórico que os integra, sabem onde reside o problema real, e querem uma solução que erradique esse problema. Não transigirão com alguma caridade, nem sequer com muita cedência. Passaram, simplesmente, a não reconhecer ao patrão o direito de o ser. A este só lhe restam dois caminhos: o de um esforço de convencimento dos trabalhadores sobre a validade e relevância social do seu estatuto, que o fará mandar os trabalhadores para uma escola que lho ensine (e já agora os adestre para o trabalho), e conceber ulteriormente todo um arsenal de bombardeamento ideológico, nos jornais, nas rádios, na televisões, no cinema, na publicidade, que atribua à divisão da sociedade em classes um glamour que a torne digerível; e quando esta conversa não pega e os trabalhadores partem para a greve, a manifestação, a desobediência civil, os demais actos de insubordinação e avanço transformador da sociedade, um aumento progressivo da repressão a mover contra eles, que atingiu o seu pico na constituição das ditaduras fascistas.
A sagração da desigualdade só é possível com uma transigência, a partir daqui. E essa transigência é a de aceitar a discussão com os trabalhadores, sim – contanto estes aceitem um regresso à pressuposição da sua subalternidade e abdiquem das reivindicações caracterizadas por maior radicalidade. O patrão já tolera falar de melhores salários, já admite alargar o período de descanso, já consente que lhe sugiram o pagamento de férias, já apoia na doença, na velhice, na maternidade, na invalidez, no desemprego. A menos que o sistema entre em crise e lhe seja preciso, para obviar a quebra da taxa de lucro, ir buscar uma fatia da riqueza social alocada até aí ao trabalho, ou que a correlação de forças se inverte por alguma forma de desorganização dos trabalhadores (que o patrão incessantemente promoverá), transigirá com reformas, até ao limite da resistência. Desde que o coração do sistema, a propriedade privada dos meios de produção e a extracção de mais-valia por meio dela, fiquem de fora. Tal pedido, afirma o patrão aos operários que o escutam, já cruza a linha do razoável, do pragmático, e torna-se um pedido perversamente «ideológico» e «político». E política não. «Deixa-te de políticas, que a tua política é o trabalhinho», cantava Zé Mário Branco. E pregam os patrões há anos e anos.
Dizíamos que o patrão promoverá, incessantemente, a desorganização dos trabalhadores. Sabe cedo uma verdade que Lenine ensinou: a de que no capitalismo a única arma dos explorados é a sua organização como classe para a luta. Essa desorganização tem como ferramenta mais preciosa a da exploração habilidosa da desigualdade na consciencialização política entre o conjunto dos trabalhadores. É que se o adensar da resistência dos trabalhadores vai criando as condições para  a sua progressiva consciencialização política, consciencialização de classe, o processo de coisificação dos trabalhadores que ontem vimos não cessa: e é além disso auxiliado, fora do local de trabalho, por poderosos aparelhos ideológicos que instituem e difundem nas mais variadas tonalidades a ideologia do patrão, e veiculam uma mensagem de mediocrização social do trabalhador. A isto não pode deixar de se associar a vigência, a despeito da resistência, do «esquema de caserna», com oficiais subalternos, sargentos, e uma hierarquia de supervisores, contramestres, capatazes, directores disto e daquilo, até aos «generais» detentores da empresa, que impõe uma disciplina aterradora num local de trabalho onde as liberdades tão caras ao burguês raras vezes entram. Some-se ainda a isto o efeito dissuasor que a repressão, ou a sua possibilidade, tem junto de alguns, e o efeito que o suborno pode ter na criação de bufos e amarelos – e temos criadas todas as condições para que a classe se desorganize, e se consigam manter as reivindicações dentro da moral burguesa, da disputa pelo preço a que é vendida a força de trabalho, e nunca pela questão radical de a quem pertencem os meios de produção. Em tal caso, o patrão até acolhe a discussão com o trabalhador: toma-a por benfazeja, porque afinal é a conversar que a gente se entende, e demonstrativa de como, sem vozearias nem palavras de ordem, se pode negociar calmamente, em gabinetes atapetados e com a intervenção salvífica e supraclassista da lei, como se reparte, na observância de uma «natural» desigualdade entre classes, a riqueza que se produz. O patrão consagra a desigualdade, curiosamente, admitindo que se discuta a desigualdade. Desde que não seja para erradicar essa desigualdade. Isso já é política. E o trabalhador deve deixar a política «para quem sabe», não tem direito de se meter nela – fazendo-o, entra pelo campo funesto das «reivindicações ideológicas», foge ao consenso, está de má fé.