A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht

sábado, novembro 23, 2013

José Pacheco Pereira - INTERVENÇÃO NA AULA MAGNA (21 DE NOVEMBRO DE 2013)

23.11.13
 INTERVENÇÃO NA AULA MAGNA (21 DE NOVEMBRO DE 2013)

- Texto escrito e lido com pequenas diferenças devidas à oralidade da intervenção -  


Como é que vos (nos) devo (devemos) tratar? 

Queria evitar o frémito que Mário Soares provocou na última destas reuniões ao me chamar “camarada”, coisa que gerou alguma excitação nas hostes. Devo por isso dirigir-me ao nosso anfitrião como “companheiro”, a fórmula de conveniência, que se usa, ou melhor, usava no PSD? Ou, na tradição republicana, “correlegionário”? Ou devo lembrar que “camarada” é, entre outras coisas, uma fórmula de tratamento que os nossos militares aqui presentes reconheceriam nos seus “camaradas de armas”? Ou, se ainda houvesse tipógrafos, lembrar que esta era uma forma de tratamento comum entre profissionais de vários ofícios, para além dos ideais políticos de cada um? Ou, para fugir à carga das palavras, sinal também ela da crise que atravessamos, usar uma fórmula de tratamento esquecida, usada pelos velhos operários esperantistas, “samideano”, no seu significado de "com as mesmas ideias", ou numa tradução de um dicionário esperantista,  “co-idealista”? Não devo, porque há muitos materialistas na sala e não há palavra, nem em esperanto, para co-materialista. 

Vou usar outra fórmula, aquela que o Manuel Alegre conhece bem, que vinha da Rue Auger, Alger, Algerie e que iniciava as emissões da Rádio Voz da Liberdade, com um tonitruante “Amigos, companheiros e camaradas”. 

Amigos, companheiros e camaradas,

Como membro de uma minoria em extinção, pelo menos no topo do meu partido, o PSD, a dos social-democratas, não se espere de mim nem uma palavra de justificação por aqui estar. Bem pelo contrário, farei a muitos a pergunta de por que razão não estão aqui de corpo, já que de espírito muitos estarão. Não os represento, não represento ninguém a não ser a mim próprio e mesmo assim de forma bastante imperfeita, mas os tempos não estão para inércias nem para confortos, nem para encontrar pretextos do passado, ou diferenças no futuro, para não se lutar, não pelas mesmas coisas, mas contra as mesmas coisas. Em momentos de profunda crise, tem que ser assim, sempre foi assim, e esse é o sentido mais profundo deste tipo de iniciativas de Mário Soares. O incómodo que geram, no poder e na oposição, vem disso mesmo. 

Nós somos de facto muito diferentes entre nós, somos aquilo que no mundo anglo-saxónico se chamaria “strange bedfellows”, estranhos companheiros de cama. Não se assustem as almas pudibundas, porque a expressão vem de Shakespeare e refere-se ao manto em comum que protege os marinheiros da tempestade, “misery / acquaints a man with strange bedfellows.” 

Na verdade, estranha assembleia esta que junta quem quer rasgar o memorando e colocar delicadamente a troika na rua, quem a quer colocar na rua menos delicadamente, com quem aprovou o chamado Pacto Orçamental, com quem pensa que o memorando, filho da necessidade extrema, podia ser aplicado de modo muito diferente, sem o rastro de incompetências e mistelas ideológicas deixado nestes dois anos. 

É ambígua essa “unidade”? É sem dúvida, mas seria muito mais perigoso não ter qualquer forma de entendimento quando o mal que se está a fazer ao país, a Portugal, a tempestade que nos assola, é tão grave que considerações de conveniência só servem o Deus dos trovões e da chuva que nos quer afundar o navio. Sim, até porque muitos marinheiros já estão na água, como aqueles a quem se chama eufemisticamente “desempregados de longa duração”, ou seja, aqueles portugueses cuja vida está estragada até ao fim dos seus dias. 

E nem sequer estou certo que o que nos une seja o lema deste encontro: “Em defesa da Constituição, da democracia e do estado social". Não me entusiasma como lema, ninguém se mobiliza por uma lei, mas por aquilo para que essa lei serve, ou aquilo que essa lei defende: democracia, confiança, soberania, contrato social. Ninguém se mobiliza pelo “estado social” que é muitas vezes uma abstracção ideológica. Mobiliza-se por que todos possam ter uma vida decente, saúde, educação, segurança, – muita gente esquece-se que existe também um direito à segurança, – e para que ninguém possa ser excluído desses bens básicos porque não tem dinheiro. E se alguns podem, devem apoiar os que não podem, não como caridade ou assistência, mas como forma natural de viver em sociedade. Tão simples como isso. Vem no Programa do PSD escrito por Sá Carneiro, vem na doutrina social da igreja. 

Mas, acima de tudo, custa-me a ideia de que o papel dos que aqui estão seja apenas “defender” como se estivessem condenados a travar uma luta de trincheiras. Não, os que aqui estão não estão a defender coisa nenhuma, mas a atacar a iniquidade, a injustiça, o desprezo, o cinismo dos poderosos para quem a vida decente de milhões de pessoas é irrelevante, não conta, é um “custo” que se deve “poupar”. A transformação da palavra “austeridade” numa injunção moral serve para um Primeiro-ministro, apanhado pelo sucesso dos celtas, sorrir cinicamente para nos dizer que a “lição” da Irlanda é a ainda precisamos de mais austeridade, ainda precisamos de mais desemprego, ainda precisamos de mais pobreza. E sorri muito contente consigo mesmo.

O discurso de contínua mentira e falsidade que nos diz como se fosse uma evidência, que “as empresas ajustaram, as famílias ajustaram, só o estado não o fez”, como se as três entidades fossem a mesma coisa e o verbo “ajustarem” significasse o retorno a um estado natural das coisas de que só o vício de quererem viver melhor afastou os portugueses. Na verdade, pode-se dizer que “as empresas ajustaram”. Sim algumas “ajustaram”, mas a maioria “ajustou” falindo e destruindo o emprego, - que para quem não tem outra “propriedade” é o seu modo de vida. As famílias não “ajustaram”, empobreceram e estão a empobrecer muito, para ter que ouvir como insulto os méritos de perderem a casa ou o carro, ou a educação superior para os seus filhos, e o valor moral de deixar de comer bife e passarem a comer frango.

No entanto, há uma coisa em que estou de acordo, de facto o estado não “ajustou”, continua religiosamente pagar os desmandos dos contratos leoninos das PPPs, a negociar com vantagem para o sistema financeiro, os contratos swap, em vez de receber a lição do sucesso judicial de empresários que recorreram aos tribunais, a baixar uns impostos para algumas empresas ao mesmo tempo que continua a permitir que um contínuo entre um establishment no poder ligado ao sector financeiro capture as decisões políticas, tornando intangíveis os seus interesses na razão directa em que viola todos os contratos com os homens e mulheres comuns, destruindo toda a confiança que numa sociedade democrática é a garantia do contrato social.

 Amigos, companheiros e camaradas,

Nos comícios da oposição antes do 25 de Abril cantava-se muito o hino nacional. No grande comício de Norton de Matos no Porto, em 1949, deve-se ter cantado pelo menos meia dúzia de vezes, nem que seja pelo prazer de gritar o “às armas”, que mais do que um grito “às armas”, - estejam sossegados não é isso que quero dizer, - era um grito pela resistência da nação face aos seus inimigos. Não sei se os organizadores desta sessão previram esse acto, mas deviam ter pensado nisso porque é de Portugal que se trata e o hino não é só para usar no futebol. 

Quem sente Portugal como uma comunidade, dos pescadores do Algarve, da Nazaré, das Caxinas, dos pequenos empresários de Leiria ou de Viseu, dos operários têxteis do Ave, dos professores de todo o país, dos agricultores dos Açores, do Minho ou do Ribatejo, dos comerciantes do Porto e de Lisboa, dos universitários de Aveiro ou de Braga, dos funcionários públicos que permitem o funcionamento de escolas, tribunais, municípios e hospitais, dos trabalhadores da indústria metalomecânica, da cortiça, dos moldes, dos transportes, dos agentes das forças de segurança e militares, dos reformados e pensionistas, percebe a enorme destruição desta crise, que atinge avós, pais e netos, todas as gerações, que atinge quem tem muito pouco e quem ainda tem alguma coisa, mas que não atinge quem tem muita coisa. Esta é que é a nossa comunidade, um Portugal cuja mera enunciação viola a afrontosa redução de tudo e todos à ambígua designação de “empreendedores” de um lado e “piegas” gastadores do outro. Ou que torna inaceitável o obsceno uso da palavra soberania ou do protectorado para desresponsabilizar o governo e os seus apoiantes de políticas que abraçaram com todos os braços, e que agora, quando correm mal, fazem de conta que não é com eles. 

O que nos une aqui é um outro dilema, a ”questão que temos connosco mesmos” do poema de Alexandre O’Neil 

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, 
golpe até ao osso, 
 fome sem entretém, 
perdigueiro marrado e sem narizes, 
sem perdizes,
 rocim engraxado, 
feira cabisbaixa, 
meu remorso, 
meu remorso de todos nós . . . 

É para não termos esse remorso que estamos aqui, não à defesa, mas ao ataque. Ao ataque por todos os meios constitucionais.

Por aquilo a que chamávamos no passado “a nossa pátria amada”. 



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sexta-feira, novembro 22, 2013

Paulo Pinto - step by step

step by step

por Paulo Pinto, em 23.11.13
Diz-se que o imperador romano Sétimo Severo terá dado o seguinte conselho aos filhos, no seu leito de morte: "enriqueçam a soldadesca e marimbem-se no resto". A adaptação ao Portugal de 2013, pós-21 de novembro, poderia ser a seguinte: "não brinquem com a bófia". Um aviso que, como em quase tudo o resto, este governo invulgarmente perspicaz só parece ter percebido tarde demais e da forma desastrada que se conhece, com um ministro a fazer um comunicado mais de 24 horas depois dos eventos, e a anunciar aquela trapalhada que se sabe:exigiu demissões, o diretor da PSP fez-lhe a vontade e ele nomeou para o lugar o comandante da Unidade Especial de Polícia, aquela mesmo que costuma formar o cordão de segurança nas manifestações na AR mas que, desta vez - e sabe-se lá porquê - não o fez. Portanto, na manifestação de anteontem, a segurança era composta por "polícias de esquadra". Colegas dos manifestantes, portanto.
Estes, os manifestantes, não eram perigosos subversivos que exigissem segurança reforçada e bastonada em barda, como ocorre com Indignados, Que se Lixe a Troika e outras organizações sinistras, "profissionais da agitação" como Miguel Macedo os classificou em anteriores eventos. Não, estes são apenas agentes, cidadãos, gente como nós com contas para pagar, pais (e mães) de família com dificuldades e preocupações legítimas em relação ao seu futuro e à sua carreira. A "invasão da escadaria" foi um incidente grave? Depende do ponto de vista. O governo não diz que sim nem que não. O Primeiro Ministro, com aquela sapiência que lhe é peculiar, disse que "não é um bom indicador da própria autoridade das forças de segurança", o que é seguramente tranquilizador para toda a gente. Não diz o que é, diz o que não é.
E a PSP? Tudo calmo, que o povo é sereno: foi uma estratégia "inteligente", aquela de deixar os manifestantes dar um passo ameaçador em direção à sede do poder democrático. Afinal, "havia manifestantes armados" e a coisa podia ter dado para o torto se alguém os tentasse impedir, podia ter ocorrido um "banho de sangue". Ontem ouvi aquele senhor do Observatório da Segurança, ou lá o que é, dizer mais ou menos o mesmo. Extraordinário. Eu digo que sim, que foi gravíssimo: dois pesos e duas medidas, claro como água. E que estes tontos que nos governam estão a criar roturas insanáveis e a arrastar tudo para o fundo.
Agora podem tirar as conclusões que quiserem, fazer balanços, mudar chefias, refletir sobre aquele momento onde podia ter havido sarilho à séria. Eu fiquei com a certeza de que há manifs de primeira e manifs de segunda, protestos que são para ignorar - ou cascar, consoante mostram ou não respeitinho - e protestos que são para ouvir. Velhos, desempregados, sem-abrigo, classe média empobrecida, jovens sem esperança são mais incómodos que perigosos, fazem comichão mas não mordem; polícias são outra história. E eles sabem-no bem. Um deles, manifestante, até se dignou provar a um jornalista que estava ali mas podia estar do outro lado, ao sacar-lhe a câmara ou o telemóvel, ou lá o que foi.
Posto tudo isto, o cidadão que sente que Portugal está bloqueado entre um sentimento generalizado mas surdo de descontentamento e um governo cercado mas protegido pelas regras da democracia e pelo Presidente da República hesita em classificar os incidentes de quinta feira, em mostrar empatia pela polícia em protesto ou temer o caráter excecional que este tomou. Eu digo o que penso: foi mau e vai piorar.
Duas coisas podem acontecer. A primeira é o governo recuar, e já. "Não se brinca com a bófia". Mas recuando, vai acentuar o sentido de injustiça dominante, porque a fatura vai cair em cima de outros, inevitavelmente os do costume: classe média, funcionários públicos, reformados. Vão todos engrossar as próximas manifs, e nessas os cordões de segurança já poderão funcionar como de costume contra as "invasões de escadaria". A segunda é ficar tudo como está. Sabendo que já não podem contar com uma lealdade policial incontestável, os imbecis governamentais irão acocorar-se atrás de uma guarda pretoriana e arriscam-se a ter que chamar a tropa dos quartéis. E numa altura em que já se ouvem rumores de que também os militares poderão vir para a rua, o prognóstico é mais do que incerto. Espertos como são (e com largas provas nesse sentido), seguirão provavelmente uma inteligente estratégia mista de "fazer sinal à esquerda e virar à direita", a somar à já anunciada mudança de chefias. Não tardará muito, quem sabe, a serem chamadas a S. Bento. O que, da última vez de que me lembro ter ocorrido, não foi exatamente um sucesso.

Diogo Duarte - Da polícia e da política

22/11/13


Da polícia e da política

Os acontecimentos da manifestação das polícias ocorrida hoje não teriam nada de muito surpreendente não fosse o que nos dizem (ou melhor, recordam) acerca da esquerda (institucional e não-institucional) que temos em Portugal. Historicamente ignorante e politicamente ingénua (perdoem-me a arrogância), continua a agir como se algo como um simples gesto de desobediência civil fosse já, em si, a expressão de um fenómeno altamente disruptivo, o último passo antes de se resvalar para o descontrolo social, para o caos absoluto ou para a temida revolução (sim, por vezes a revolução parece causar mais pesadelos à esquerda do que à direita, a julgar pela ânsia com que insiste em atirá-la para o horizonte mais longínquo possível). Quem é polícia parece revelar maior lucidez a este respeito, tal como demonstra não só o acto de invasão da escadaria mas também a opção de não irem mais longe – o mais curioso, nesta última opção, é que a polícia (quer a manifestante, quer a de serviço) agiu contrariamente a um dos dogmas basilares da psicologia de massas de qualquer manual policial: aquele que sublinha constantemente a imprevisibilidade da multidão, em particular o facto de esta ser tomada por uma irracionalidade colectiva com enorme facilidade, alcançando rapidamente um ponto de não retorno, como uma avalanche que avança e inevitavelmente cresce até ser parada por uma força maior.

E, por falar em imprevisibilidade, estes acontecimentos lembram-nos ainda outra coisa quando olhados em comparação com a esquerda e os protestos que esta tão gentilmente nos tem proporcionado: até a polícia parece perceber que a imprevisibilidade é indissociável da política. O esforço que os organizadores das manifestações ditas inorgânicas (como lhes chamam aí pelos jornais) dedicam a controlar cada um dos gestos, passos e gritos dos manifestantes, diz muito sobre o seu entendimento da política e da sociedade (e também, porque não, sobre as pretensões de muitos dos seus membros). A tentativa de controlar totalmente um sujeito e de lhe impor uma ordem (seja esse sujeito colectivo ou individual) é a negação total da política; é, paradoxalmente, a substituição da política pela polícia. É, por isso, curioso constatar que a maioria das manifestações à esquerda tem tido “polícias” (tanto a organizá-las como a participar nelas) muito mais eficazes do que os próprios polícias profissionais.

Nenhuma destas aparentes contradições na acção da polícia (contradições que ajudam a expor o carácter anedótico das “nossas” manifestações) causaria qualquer perplexidade se não fosse uma espécie de tabu, para muita gente, aceitar que a polícia é a primeira a recorrer a meios de acção ilegais quando isso lhe é conveniente. E fá-lo sistematicamente, isto é, por lógicas derivadas do seu próprio funcionamento, o que é dizer que o recurso à ilegalidade não é algo que só acontece excepcionalmente (por exemplo, na conjuntura de “crise” em que vivemos) mas mesmo em tempos de suposta “estabilidade social”. Se é verdade que esse recurso à ilegalidade é em momentos como este mais evidente (e evidente para mais gente), é certo que ele acontece sempre.

A ausência de uma reflexão acerca do monopólio da violência pelo Estado e do funcionamento do seu aparelho repressivo permite que, entre outras coisas, se continue a criticar a violência ou a defender o pacifismo nas manifestações ao mesmo tempo que se aceita – mais ou menos plenamente – o recurso à violência por parte das forças da autoridade (ignora, desde logo, que o simples acompanhamento duma manifestação pela polícia já é em si uma forma de violência, pela demonstração de força que representa e sem a qual esta seria obsoleta).

O que aconteceu hoje sublinha, ainda, outra coisa igualmente tabu acerca da polícia (talvez ainda mais ignorada do que o resto), expressa geralmente no argumento de “que eles são pessoas como nós”. Se a frase em si é um truísmo, pois quem veste a farda da polícia é uma pessoa, a verdade é que acaba por esconder outros elementos fundamentais (e talvez o faça com tanta eficácia precisamente por ser algo aparentemente óbvio). Antes de mais, e ainda em jeito de anedota, neste caso particular coloca-nos a seguinte questão: se eles são como “nós” por que é que “nós” temos, e insistimos em ter, tanta dificuldade a fazer o que eles fizeram, i.e., desobedecer? Num registo mais sério, se é verdade que quem veste a farda de polícia é uma pessoa como “nós”, também temos que saber ver as particularidades de se ser polícia e aceitar que um polícia não é uma pessoa como outra qualquer. Tal como o controlo absoluto (ou a sua tentativa) é a negação da política e a sua substituição pela polícia, o polícia é, enquanto sujeito, a negação de toda a subjectividade política. Ser polícia é uma condição profissional derivada dum treino específico e altamente rigoroso que tem a obediência como seu ponto fundamental. Se a inculcação do sentido de obediência falhar na formação de um polícia, esta falha completamente e torna-se ineficaz enquanto instituição. Mais uma vez, a situação de hoje demonstra-o com clareza, ao revelar o peso dessa “condição profissional” sobre o sujeito, ou por outras palavras, demonstrando o peso que a farda tem (na medida em que, quando um polícia "veste a farda" e está a exercer a sua actividade profissional, é capaz de bater ou mesmo matar alguém que esteja a fazer algo que compreende ou até corresponde àquilo que ele próprio gostaria ou quereria estar a fazer; basta ser ordenado a fazê-lo). Um dos maiores paradoxos desta democracia (e um daqueles que a expõe como farsa) é precisamente o de a sua ordem ou regularidade funcional depender duma força construída com base no princípio da obediência, ou seja, algo que é a negação da própria democracia, da individualidade e do espírito crítico.

Finalmente - mas isto já não devia ser novidade para ninguém -, as manifestações e o recurso à desobediência por parte dos manifestantes não indiciam per se, como é óbvio, nada de revolucionário num sentido emancipatório e igualitário. Que uma entidade repressiva e autoritária - uma "força da ordem" - tenha sido aquela que mais rapidamente recorreu à desobediência numa manifestação, devia servir precisamente para nos chamar a atenção para a elevada probabilidade de qualquer transformação social poder resvalar para um pesadelo ainda maior do que aquele que vivemos. E digo isto não só pelo sentido de alerta que devia surgir em quem deseja e luta por um mundo melhor, mas, especialmente, porque esse pesadelo parece um cenário mais provável do que qualquer outro.

quarta-feira, novembro 20, 2013

Giorgos Marinos - Não à diluição dos PCs, pela saída do capitalismo

20/Nov/13
por Giorgos Marinos [*]
Giorgos Marinos.Caros camaradas,

Agradecemos ao Partido Comunista Português pela hospitalidade e saudamos os representantes dos PC que participam no 15.º Encontro Internacional de Partidos Comunistas e Operários.

O KKE homenageia o comunista Álvaro Cunhal, Secretário-geral do Partido Comunista Português, uma figura ilustre do movimento comunista, no ano do 100.º aniversário do seu nascimento.

Álvaro Cunhal dedicou a sua vida à luta pelos interesses da classe operária, pela causa do socialismo e foi um forte defensor do princípio do internacionalismo proletário.

As lutas dessa geração de comunistas inspiram-nos a continuar a nossa luta de forma mais decisiva, a fim de desenvolver as tarefas que temos pela frente, para derrubar o desatualizado sistema capitalista.

Caros camaradas,

Os desenvolvimentos que estamos a testemunhar confirmam a avaliação de que o capitalismo se está a tornar cada vez mais reacionário e perigoso, dando origem a crises e guerras. Condena milhões de trabalhadores ao desemprego, à pobreza, não pode satisfazer as diversas necessidades do povo.

Esta situação manifesta-se por todo o globo e o movimento comunista é obrigado a fazer o maior esforço possível pela sua própria e independente luta ideológica, política e de massas, para adquirir uma estratégia revolucionária unificada.

Entendemos que é precisamente esta questão que deve fazer parte de todas as discussões dos PC, em combinação com a atividade coordenada sobre os problemas do povo em conflito com as forças do capital.

O movimento comunista deve responder a esta questão crucial, com qual estratégia vai ser capaz de ficar em terra firme e expressar de forma tão eficaz quanto possível os interesses da classe operária e das camadas populares, numa linha de conflito com a barbárie capitalista. Tratar o socialismo não como um objetivo para o futuro distante, mas como uma questão da atividade diária, dado que a sua atualidade é realçada pelos tormentos dos povos. 


Deste ponto de vista, gostaríamos de centrar a nossa atenção nas questões onde diferentes opiniões e divergências se expressam no movimento comunista, tendo em conta que a posição que argumenta que podemos prosseguir "na base daquilo em que estamos de acordo"leva à complacência, não permite um exame mais profundo das fraquezas e a tomada de medidas para tratar de assuntos de importância estratégica, o que é necessário para o reagrupamento dos partidos comunistas, de modo a poderem cumprir o seu papel de vanguarda da classe operária.

Em primeiro lugar, o problema da crise também nos preocupou em reuniões internacionais anteriores, mas, infelizmente, observamos que ainda há abordagens que falam de uma "crise do neoliberalismo", uma "crise financeira". Essas abordagens ficam limitadas a incriminar uma forma de gestão do capitalismo, exonerando a social-democracia, a gestão neo-keynesiana e o próprio sistema capitalista. Estas posições absolutizam o papel do capital bancário, subestimando o papel de outros setores do capital, ignorando a realidade da fusão do capital industrial e bancário e o papel do capital financeiro, que é um traço característico do capitalismo na sua mais avançada fase imperialista, hoje.

O problema é mais profundo e está relacionado com as leis de funcionamento do sistema. A crise manifesta-se periodicamente nos países capitalistas, independentemente da forma de gestão burguesa.

Os povos enfrentam uma crise capitalista de sobreprodução e sobreacumulação de capital, os pré-requisitos de que foi criada, nas condições de crescimento da economia capitalista.

A crise capitalista, que pára a reprodução alargada do capital social, tem a sua base numa contradição básica do sistema: no caráter social da produção e na apropriação capitalista dos seus resultados, devido à propriedade capitalista dos meios de produção. É precisamente esta a origem do lucro e da exploração, a origem do desenvolvimento anárquico e desigual que caracteriza o sistema. 


O fortalecimento dos monopólios e a internacionalização da economia capitalista agravam o desenvolvimento anárquico, aprofundam as contradições com maior intensidade e levam a crises mais profundas - a uma competição mais acirrada entre os principais grupos empresariais e os estados capitalistas – e aproximam as guerras imperialistas.

Surgem problemas durante a crise relacionados com a luta dos PC e do movimento operário e popular; e permitam-nos dar alguns exemplos.

Os governos burgueses, liberais, social-democratas e com a participação da esquerda governamental impuseram duras medidas antipopulares na Grécia. Foram assinados memorandos e acordos de empréstimo com a União Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional, mas o ataque contra a classe operária e os direitos do povo não está exclusivamente relacionado com os memorandos, como o Partido da Esquerda Europeia e outras forças oportunistas proclamam, com o objetivo de apoiar a "linha antimemorando" e exonerar a estratégia mais geral do capital.

A verdade é que as medidas que foram impostas estão incluídas na estratégia da União Europeia, na estratégia dos monopólios, com as reestruturações capitalistas, desde o início da década de 1990. Esta estratégia visa a redução do preço da força de trabalho, o reforço da capacidade concorrencial dos monopólios europeus contra os seus concorrentes, especialmente contra os grandes grupos empresariais das potências capitalistas emergentes da China, Índia, Brasil, onde os níveis do preço da força de trabalho são muito baixos. 

Nesta conjuntura, as medidas antipopulares não são apenas implementadas em Estados que assinaram um memorando, mas também em muitos outros Estados capitalistas na Europa e em todo o mundo.

O confronto sobre as formas de gestão da economia capitalista está a intensificar-se durante a crise.

Dois blocos de forças económicas e políticas formaram-se na Grécia. Um tem a sua base no governo ND-PASOK, juntamente com a UE, a qual é a favor de uma política fiscal dura; e o outro no SYRIZA, Fundo Monetário Internacional e EUA, que apoiam uma política fiscal mais relaxada, com o objetivo de reforçar o financiamento estatal dos monopólios. Estas propostas de gestão respondem às necessidades de secções específicas do capital e fazem parte de uma competição interimperialista mais genérica.

Em conclusão, podemos dizer que cada forma de gestão burguesa serve a rentabilidade dos monopólios através da imposição das medidas antipopulares, da intensificação da exploração da classe operária e da deterioração da situação das camadas populares. 

Em função das diferentes formas de gestão burguesa do sistema (liberal ou keynesiana), a reforma da cena política está a ser promovida na Grécia para que a classe burguesa possa controlar os desenvolvimentos, impedir a luta de classes, colocar todo tipo de barreiras na frente da luta do KKE e do movimento de classe. A reformulação está expressa através da criação de um pólo de centro-direita, com o partido liberal ND como seu eixo, e um pólo de centro-esquerda, com o SYRIZA como seu eixo.

O nosso partido quer informar os PC, que o PEE [1] e outras forças oportunistas estão a tentar, de forma planeada, distorcer a realidade e apresentar o SYRIZA como uma força favorável ao povo, que está a lutar pelos interesses dos trabalhadores contra o capital. A verdade é que o SYRIZA, como uma formação oportunista que se desenvolveu num dos pilares da gestão social-democrata, é apoiado por setores da classe burguesa, é um defensor do capitalismo e da União Europeia. É um partido que exaltou a linha política de Obama como progressista e promoveu o mito de que um novo vento soprava para os trabalhadores na Europa com a eleição de Hollande.

Uma característica da reformulação do sistema político burguês na Grécia é também a organização fascista criminosa do Aurora Dourada.

O Aurora Dourada é uma criação do capitalismo, apoiado pelo Estado burguês e os seus mecanismos. Desenvolveu-se com a tolerância dos partidos burgueses, para atuar como uma força de repressão do capital e para lutar contra o movimento operário e popular, contra os comunistas.

O nosso partido defende que o isolamento e esmagamento do Aurora Dourada é uma questão para a luta organizada da classe operária, para a aliança popular. Essa luta não pode ser realizada através das chamadas frentes antifascistas que as forças burguesas e oportunistas propõem, mas pela luta que tem como objetivos a abolição das causas que dão origem ao fascismo, o derrube da exploração capitalista, o conflito com a EU, que tem o anticomunismo como ideologia oficial e promove uma comparação anti-histórica do fascismo com o comunismo. 

Em segundo lugar, a realidade demonstra que, em condições de crise capitalista, as contradições interimperialistas se estão a agravar, bem como a competição para a aquisição de novas áreas para investir o capital acumulado, para o controlo dos recursos naturais. Neste terreno, as causas dos conflitos militares e das intervenções multifacetadas estão a ser formadas. Isto é algo que estamos a viver na região do Mediterrâneo Oriental, no Médio Oriente, no Golfo Pérsico, no Mar Cáspio, em muitas regiões do globo.

O KKE opõe-se às guerras imperialistas, está a lutar contra o envolvimento da Grécia e esclareceu que, em qualquer caso, independentemente da forma de participação da Grécia numa guerra imperialista, o KKE deve estar pronto para liderar a organização independente da resistência operária e popular, para que esta luta esteja ligada à luta pela derrota da classe burguesa, tanto da classe burguesa nacional como da invasora estrangeira. 

O KKE deve tomar a iniciativa, de acordo com as condições específicas, para a formação de uma frente popular e dos trabalhadores, tendo como slogan: "o povo trará a libertação e a saída do sistema capitalista, que, enquanto prevalece, traz a guerra e a "paz" com uma arma apontada à cabeça do povo". 

Esta posição é de particular importância para o movimento comunista internacional e protege os povos de serem aprisionados por um ou outro setor da classe burguesa, por uma ou outra aliança imperialista. 
Isto é ainda mais importante uma vez que, nos últimos anos, há uma tentativa para o ponto de vista sobre o chamado "mundo multipolar" ser adotado e para falsos dilemas serem colocados como objetivo, manipulando os povos e enredando-os na competição interimperialista.

Em terceiro lugar, a posição dos comunistas e dos povos contra o sistema imperialista e a união imperialista é de grande importância.

Quando falou sobre o imperialismo como a fase superior do capitalismo, Lenine falava, em primeiro lugar, sobre a base económica do sistema, o domínio dos monopólios. Na sua obra "O Imperialismo, fase superior do capitalismo", ele mencionou que:

"A menos que as raízes económicas deste fenómeno sejam compreendidas e o seu significado político e social seja apreciado, nenhum passo pode ser dado para a solução do problema prático do movimento comunista". 


Esta posição é de grande importância para a nossa análise.

A União Europeia não é perigosa apenas devido ao seu curso de "unificação" (integração), mas também devido ao facto de ser um interestado, uma união imperialista de monopólios. Tanto a União Europeia, bem como outras uniões que surgiram na Ásia ou na América Latina – e também nos BRICS – têm uma base económica específica, são apoiados na cooperação e união de forças dos principais grupos monopolistas de negócios e apesar das contradições que se manifestam nas suas fileiras, os critérios básicos são os seus próprios interesses, o controlo dos mercados e, consequentemente, são contra os povos e os seus direitos.

O imperialismo não é apenas uma política externa agressiva, é o capitalismo no seu final, no mais alto nível, é um sistema em que os Estados capitalistas são assimilados e tomam a sua posição de acordo com a sua força económica, militar e política.

Nestas condições, é muito importante lidar com as questões de "dependência" "soberania" numa base de classe. O assunto deve começar a ser discutido, devemos preocuparmo-nos, pois tem consequências políticas muito graves, um tratamento errado leva ao apoio a soluções de gestão e políticas de aliança com setores da classe burguesa, com as forças políticas que são defensoras do sistema de exploração. 


O 19.º Congresso do KKE considerou que, no quadro do desenvolvimento desigual, "o capitalismo na Grécia está na fase imperialista do seu desenvolvimento, numa posição intermediária no sistema imperialista internacional, com fortes e desiguais dependências dos EUA e da UE". 

Ou seja, o problema básico consiste no desenvolvimento desigual do capitalismo, que forma relações de dependência e interdependência desiguais e, por esta razão, as posições que apresentam a Grécia bem como outros estados com uma posição inferior na pirâmide imperialista como estando ocupados, como sendo colónias, não têm fundamento. 

Claro que, enquanto a classe burguesa tem as rédeas do poder, ela constrói as relações internacionais de acordo com o seu interesse de classe e, nesta base, cede os direitos de soberania. Os conceitos de "independência" "soberania" são conceitos com conteúdo de classe e devem ser tratados numa direção que salienta que a classe operária, com o seu próprio poder, pode tornar-se dona do seu próprio país, escolher o caminho do desenvolvimento que corresponde aos seus próprios interesses e construir as respetivas relações internacionais com a retirada da UE, da NATO e das outras uniões imperialistas.

Além disso, queremos observar que as colónias, como um elemento da trajetória histórica do capitalismo, desapareceram. Esta é a realidade inegável. O colonialismo foi derrubado pela luta dos povos e a grande contribuição do socialismo. Esta página foi virada e hoje, infelizmente, estão a reviver posições que apresentam as relações desiguais dos estados capitalistas dentro do sistema imperialista como um fenómeno de neocolonialismo. Países que desenvolveram o capitalismo monopolista, com uma forte classe burguesa e um forte Estado burguês são caracterizados como novas colónias, e está a ser adotado um estádio intermédio, como uma forma de gestão burguesa para a resolução destes problemas.

Em quarto lugar, o caráter de nossa era é uma questão fundamental para a elaboração da estratégia revolucionária. Os factos objetivos provam que, independentemente da derrota contrarrevolucionária do socialismo na União Soviética e noutros países socialistas, a nossa época continua a ser uma época de transição do capitalismo para o socialismo.

Por quê? Porque o capitalismo tem-se deteriorado; porque é atormentado por contradições insuperáveis; porque esgotou os seus limites históricos. O surgimento e o desenvolvimento dos monopólios e das grandes sociedades anónimas, o surgimento e desenvolvimento da classe operária, a entrada do capitalismo na sua fase superior imperialista sublinham que as pré-condições materiais amadureceram, o que permite a construção da nova sociedade socialista-comunista. Este é um elemento definidor da análise marxista-leninista da evolução, uma vez que mostra o sentido da luta dos partidos comunistas, que têm a obrigação de se preparar de uma forma multifacetada, de modo a atender às necessidades da luta pelo socialismo-comunismo, 
bem como de modo a contribuir para o amadurecimento do factor subjetivo, para a preparação da classe operária como a classe de vanguarda na sociedade capitalista, a fim de a levar a desempenhar o papel de liderança na aliança com as camadas populares e a lutar pelo poder.

A formação da consciência política de classe não pode ser conseguida com as velhas ferramentas para a gestão do sistema. As posições políticas que aprisionam a classe operária na gestão burguesa, sob a forma de estágios intermédios entre o capitalismo e o socialismo, posições políticas que apoiam a participação num ou noutro governo de gestão burguesa – que é rotulado como de "esquerda" ou "progressista" – não têm lugar na época de transição do capitalismo para o socialismo.

O poder estará ou nas mãos da classe burguesa, isto é, dos capitalistas, ou nas mãos da classe operária. Os meios de produção estarão sob propriedade capitalista ou social. Independentemente das suas intenções, as soluções no âmbito do sistema não só não constituem uma forma de aproximação da solução socialista, mas, pelo contrário, favorecem a perpetuação do capitalismo, compram tempo para isso, fomentam ilusões entre os trabalhadores. 


O nosso partido não diminui de todo a importância da experiência histórica; leva seriamente em consideração o caráter complexo dos processos políticos e sociais. Estuda os desenvolvimentos no Chile, mas também em Portugal na década de 1970; estuda a experiência recente em Chipre e os desenvolvimentos na América Latina.

Com base neste estudo, podemos defender (e também em função dos resultados) que nenhuma solução de gestão foi confirmada como um caminho para a transição para o socialismo e não poderia ter sido de outra forma. Porque este caminho perpetua a contradição entre o capital e o trabalho, não pode impedir as crises capitalistas, o desemprego e a exploração, pois mantém as causas que lhes dão origem, porque o lucro capitalista continua a ser o critério de desenvolvimento.

A escolha dos estágios intermédios viola uma posição comummente aceite, a posição de que entre o capitalismo e o socialismo-comunismo não existe nenhum sistema sócio-económico intermédio, nenhum poder político intermédio. 


Claro que os comunistas lutam no interior dos parlamentos burgueses para a promoção e defesa dos direitos do povo, combinando e dando prioridade à atividade extraparlamentar; mas isso não está relacionado com a adoção de pontos de vista parlamentares que semeiam a confusão de que a solução favorável ao povo pode emergir das instituições burguesas.

O caminho parlamentar que, historicamente, tem sido exaltado pelas forças oportunistas é um dos mais importantes fatores que leva à assimilação de fortes partidos comunistas a à redução das reivindicações dos trabalhadores. 

A história ensina.

A lógica das reformas e a rejeição do caminho revolucionário, a rejeição da revolução socialista, constituem um refúgio doloroso e a negação do elemento mais básico que caracteriza um Partido Comunista.

A luta de classes tem as suas próprias leis, que são fundadas sobre a contradição entre o capital e o trabalho, que tem um caráter universal e diz respeito aos estados capitalistas como um todo. A luta de classes não se restringe ao desenvolvimento das lutas para determinar as condições para a venda da força de trabalho. Mas é determinada pela questão da abolição da exploração capitalista, da luta pela conquista do poder. 

O Partido Comunista de cada país tem a obrigação de estudar a situação específica, o desenvolvimento do capitalismo, o percurso dos setores e os ramos da economia, as mudanças na superestrutura, a estrutura social e de classe, a fim de traçar uma estratégia revolucionária. No entanto, isto é totalmente diferente das posições que, em nome das particularidades nacionais, negam a estratégia revolucionária e substituem a luta pelo socialismo por soluções governamentais e uma política de alianças que correspondem à gestão burguesa.

O tratamento do socialismo meramente como uma declaração está a causar um grande dano. Degrada o próprio objetivo estratégico, o objetivo que determina as táticas, a postura dos Partidos Comunistas como um todo, o seu trabalho no movimento laboral e popular, a sua política de alianças. 

Nas suas declarações programáticas, o "eurocomunismo" e as outras correntes oportunistas referiam-se ao socialismo, mas a sua linha política negava o caminho revolucionário. Em nome de peculiaridades nacionais lutaram contra as leis da revolução e da construção socialistas. Nas obras de Carrillo e Berlinguer o termo socialismo aparece privado de sua essência: sem o poder da classe operária, a ditadura do proletariado, sem a socialização dos meios de produção e de planeamento central. Eles falavam sobre a transformação, a democratização do Estado burguês, da ditadura dos monopólios, fomentavam ilusões sobre soluções a favor do povo pelo caminho parlamentar, através do governo burguês e da aliança com a socialdemocracia.

Hoje, têm emergido plataformas oportunistas que são igualmente perigosas como o "eurocomunismo", tais como o "socialismo de mercado","socialismo do século 21", que se opõem ao socialismo científico. Fala-se de uma "economia social", procura-se a utopia de um capitalismo humanizado. Em vários casos, há uma tentativa de reduzir, de negar a importância crucial da luta de classes ao nível nacional, em nome da "globalização". 

Em qualquer caso, a frente contra o oportunismo é um elemento de confronto com o sistema capitalista, com o imperialismo, e qualquer tolerância ou recuo tem um efeito corrosivo em detrimento do movimento comunista e da sua perspectiva.

O chamado Partido da Esquerda Europeia, que está a formar redes em todo o mundo, com os fundos da UE, está a causar um grande dano ao movimento comunista; é um veículo de promoção da estratégia da UE no movimento operário, que está intimamente ligado à social-democracia e deve ser estritamente tratado no âmbito politico-ideológico.

O seu núcleo é composto por forças que celebraram o derrube do socialismo, forças que, no âmbito do anticomunismo, elas próprias se identificam com várias forças burguesas e outras forças reacionárias, em nome do "antiestalinismo". 

Como conclusão, podemos dizer que o conteúdo de classe e, consequentemente, o conteúdo contemporâneo da luta políticoideológica e de massas, hoje, é determinado pela rutura, o conflito contra os monopólios e o sistema capitalista e contra as organizações imperialistas. É determinado pela organização da classe operária nos locais de trabalho, pela formação da aliança com os estratos populares, a preparação multifacetada para o derrube do capitalismo, para a sociedade socialista-comunista, para a abolição da exploração do homem pelo homem. 

O nosso dever é refletir sobre o facto de que Marx e Engels, na sua época, que era uma época de revoluções burguesas, falaram sobre a luta ideológico-política independente da classe operária. O nosso dever é levar em conta o quão profundamente eles estudaram a experiência da Comuna de Paris em 1871 e que falaram da necessidade do poder da classe operária, do esmagamento do Estado burguês.

Nós temos o dever de refletir sobre a experiência da grande Revolução de Outubro de 1917 e contribuir para o ajuste das direções programáticas dos Partidos Comunistas, da sua estratégia para as exigências da nossa era. "O imperialismo é a véspera da revolução social do proletariado", sublinhou Lenine. 


A situação revolucionária foi formada após a Primeira Guerra Mundial, na Alemanha, na Hungria, na Eslováquia, na Itália. A situação revolucionária foi formada na Grécia, em 1944, mas a possibilidade não foi transformada em realidade.

O factor crucial para travar a batalha decisiva é a preparação imediata dos partidos comunistas e da classe operária para os duros confrontos de classe que correspondem às necessidades da nossa época.

O caráter democrático burguês da revolução correspondeu ao período do derrube do feudalismo, quando a classe burguesa era uma classe revolucionária. Agora que o capitalismo substituiu o feudalismo, a contradição fundamental entre o capital e o trabalho é cada vez mais nítida. 

O programa do KKE, que foi aprovado por unanimidade pelo recente 19.º Congresso, faz a seguinte referência: "O povo grego será libertado das amarras da exploração capitalista e das uniões imperialistas, quando a classe operária, juntamente com os seus aliados, realizar a revolução socialista e avançar para construir o socialismo-comunismo. O objetivo estratégico do KKE é a conquista do poder revolucionário da classe operária, a ditadura do proletariado, para a construção do socialismo, como a fase imatura da sociedade comunista.

A mudança revolucionária na Grécia será socialista". 


As forças motrizes da revolução socialista serão a classe operária, como força dirigente, os semiproletários, os estratos populares oprimidos dos trabalhadores independentes urbanos, os camponeses pobres, que são afetados negativamente pelos monopólios. 


O programa do KKE analisa a questão dos fatores objetivos que podem levar a uma situação revolucionária (os de baixo que não querem mais viver como antes e os de cima, que não podem governar como antes). Dá uma ênfase especial ao aprofundamento da crise capitalista e ao envolvimento da Grécia numa guerra imperialista, que abre o caminho para a preparação do partido e do movimento operário e popular.

O KKE e a PAME [2] desempenham um papel de liderança na luta de classes e dão uma contribuição significativa no desenvolvimento de dezenas de mobilizações de greve e outras lutas multifacetadas. Entretanto, notamos que o movimento operário e popular não estava bem preparado e organizado, de modo a lidar com a agressividade do capital, nas condições da crise capitalista. A negativa correlação de forças, o impacto do sindicalismo dominado pelo patronato e governo, o papel do oportunismo, a social-democracia, a aristocracia operária, que apoiam a estratégia do capital, são factores cruciais.

Hoje, nas condições de uma situação não revolucionária, o nosso partido dá prioridade:

Ao reagrupamento do movimento operário, para que se torne capaz de atender às necessidades da luta de classes, de modo a que a classe operária cumpra o seu papel como classe de vanguarda na sociedade, como um veículo de mudança revolucionária.

O reagrupamento do movimento operário significa força, sindicatos de massas que vão lutar numa orientação de classe, com base nos trabalhadores, nos jovens que trabalham, nas mulheres, nos imigrantes, através de processos coletivos que protejam a participação na tomada de decisões e a implementação das decisões.

Fortalecimento da PAME, da unidade de classe no movimento laboral, mudança da correlação de forças em detrimento das forças do reformismo, do oportunismo, do sindicalismo liderado pelo patronato e governo e dos veículos de parceria social.

Organizações partidárias fortes nas fábricas e nas empresas de importância estratégica.

O movimento laboral está a lutar de uma forma militante e organizada no que diz respeito a todos os problemas da classe operária, baseado no critério das necessidades contemporâneas, conseguindo orientar o confronto contra as forças do capital para o derrube da exploração capitalista, bem como um alto nível de unidade de classe.

A classe operária, com a sua posição de vanguarda, deve desempenhar o papel principal na construção da aliança popular, que dê uma resposta à questão respeitante à organização da luta para repelir as bárbaras medidas antilaborais e anti-populares e para organizar o contra-ataque popular. 

A Aliança Popular expressa os interesses da classe operária, dos semiproletários, dos trabalhadores independentes e dos agricultores pobres, dos jovens e das mulheres das camadas populares pobres na luta contra os monopólios e a propriedade capitalista, contra a assimilação do país pelas uniões imperialistas. A Aliança Popular é uma aliança social e luta nos termos do movimento, seguindo uma linha de ruptura e derrube.

Hoje está a ser formada, na base da luta comum da PAME, a unidade de classe no movimento sindical, do PASY entre os agricultores pobres, do PASEVE entre os trabalhadores independentes, do MAS entre os estudantes, da OGE entre as mulheres.

Ela luta por salários, pensões, por um sistema de saúde exclusivamente público e gratuito, por bem-estar, educação, por todos os problemas dos trabalhadores e do povo.

Ela apoia o entendimento de que a luta por uma saída popular da crise está intimamente ligada à luta pela saída da UE e o cancelamento unilateral da dívida pública.

A luta pela saída da UE está ligada à luta contra o poder dos monopólios e à luta da classe operária e seus aliados pelo poder operário e popular.

A Aliança Popular adota a socialização dos meios de produção concentrados, o planeamento central, o controlo social dos trabalhadores.

A união da maioria da classe operária com o KKE e a conquista de secções de vanguarda das camadas populares vão passar por várias fases. O movimento operário, o movimento dos trabalhadores independentes nas cidades e dos agricultores e a forma de sua aliança, a aliança popular, com os objetivos antimonopolistas e anticapitalistas, com a atividade de vanguarda das forças do KKE, em condições não revolucionárias, constituem a primeira forma para a criação da frente revolucionária de trabalhadores e do povo, em condições revolucionárias. 


Nas condições da situação revolucionária, a frente revolucionária dos trabalhadores e do povo, utilizando todas as formas de ação, pode tornar-se o centro do levantamento popular pelo derrube da ditadura da classe burguesa, para a prevalência das instituições revolucionárias que enformam a nova organização da sociedade, o estabelecimento do poder revolucionário da classe operária, que será baseado na unidade produtiva, nos serviços sociais, nas unidades administrativas e nas cooperativas de produtores.

Sob a responsabilidade do poder dos trabalhadores:

Os meios de produção serão socializados: na indústria, abastecimento de água e energia, telecomunicações, construção, reparação, transportes públicos, comércio por grosso e a retalho, comércio de importação e exportação, turismo concentrado - infraestruturas de restauração.

A terra será socializada, bem como as culturas agrícolas capitalistas.

A propriedade privada e atividade económica na educação, bem-estar, cultura, desportos e comunicação social de massas serão abolidas . Estas áreas serão organizadas exclusivamente como serviços sociais.

Serão criadas unidades produtivas do Estado para a produção e transformação dos produtos agrícolas. Serão promovidas cooperativas de produtores agrícolas.

O Planeamento Central integra a força de trabalho, meios de produção, matérias-primas e outros materiais e recursos industriais, que serão utilizados na organização da produção, dos serviços sociais e administrativos. Esta é uma relação comunista de produção e distribuição que liga os trabalhadores aos meios de produção e as organizações socialistas. 

O derrube do socialismo foi um duro golpe para o movimento comunista e as suas causas ensinam quão essencial é o cumprimento das leis da construção socialista, a observância dos princípios revolucionários para a construção e o funcionamento dos Partidos Comunistas, bem como o alerta político-ideológico para a prevenção de erros e desvios oportunistas. Este é um dever da maior importância. No entanto, a contrarrevolução não pode ofuscar o contributo histórico inestimável para o progresso social do socialismo que foi construído no século 20. A posição de cada partido comunista é julgada em relação à defesa do socialismo contra os ataques caluniosos das forças burguesas e oportunistas. 

Caros camaradas,

O KKE, que assumiu a responsabilidade pela organização dos Encontros Internacionais após a contrarrevolução, continuará o esforço para a ação conjunta e a formação de uma estratégia revolucionária unificada do movimento comunista, apesar das dificuldades.

Vamos continuar a contribuir para os Encontros Internacionais de Partidos Comunistas, insistindo na preservação de seu caráter comunista e confrontando os pontos de vista ou planos que apoiam a transformação dos encontros num espaço da "esquerda". 

O nosso partido é decisivamente contra a transformação do Grupo de Trabalho num "centro de orientação", diretamente ou indiretamente, e rejeita a adoção de posições que violem testados princípios comunistas, introduzindo posições que levam ao apoio da gestão burguesa.

O KKE dedica as suas forças, como sempre tem feito, à coordenação da luta dos Partidos Comunistas na Europa e considera que a INICIATIVA de partidos comunistas e operários para pesquisar e estudar as questões europeias é uma grande conquista para o fortalecimento da lutar contra a imperialista UE.

Nas condições da crise do movimento comunista, o nosso partido apoia a ideia da criação de um confiável pólo marxista-leninista e apoia o esforço da "Revista Comunista Internacional", em que participam 11 revistas teóricas de partidos comunistas.
NT
1 Partida da Esquerda Europeia.
2 Acrónimo grego de "Frente Militante de Todos os Trabalhadores". 


[*] Membro da Comissão Política do Comité Central do Partido Comunista da Grécia (KKE). Discurso no 15 º Encontro Internacional de Partidos Comunistas e Operários, em Lisboa, 8-9/Novembro/2013.

A versão em inglês encontra-se em inter.kke.gr/... e a versão em português em www.pelosocialismo.net/ . Tradução de AM. 


Este discurso encontra-se em http://resistir.info/ .

domingo, novembro 17, 2013

Vasco Puliodo Valente - A arte de mentir

OPINIÃO

VASCO PULIDO VALENTE 17/11/2013 - 01:00
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Nunca gostei do mundo da blogosfera e das “redes sociais”, que é um repositório de iliteracia e de irresponsabilidade, sem direcção e sem lei.

Mas não imaginava que politicamente as coisas se pudessem passar como as conta um cavalheiro que a revista Visão entrevistou esta semana. Esse cavalheiro, que se descreve a si próprio como “consultor de comunicação”, gaba com enorme orgulho as patifarias que por aí se fazem para distorcer os resultados de várias espécies de eleições (por exemplo, as que Passos Coelho ganhou no PSD) e para “derreter” a imagem pública de pessoas que um pequeno grupo de facciosos considera inconvenientes (por exemplo, Paulo Rangel e Manuela Ferreira Leite). Estas “campanhas negras”, como são conhecidas, gozam segundo ele diz do apreço e da ajuda de algumas “notabilidades” públicas.

Verdade que certos governos meteram a colher na sopa, definindo as “linhas gerais” da sua propaganda e fornecendo informações secretas por “e-mail fechado” (um requinte que francamente não consigo perceber). Isto, a ser verdade, já é de si gravíssimo. Mas, sobre isto, os “consultores de comunicação” inventam “perfis falsos” (por outras palavras, personagens imaginárias) para o facebook, a que dão uma “vida” (“fotografias de família”, preferências particulares, clube de futebol e por aí fora) e que depois põem a espalhar calúnias sobre o indivíduo ou o partido que pretendem abater. Durante a campanha de Passos no PSD, o “consultor de comunicação” que os jornalistas da Visão confessaram, aliás sem grande dificuldade, passou uma noite a trabalhar em três computadores (fora o telemóvel) para virar a audiência contra Rangel e a favor de S. Exa. o actual primeiro-ministro.

Pior ainda: estes extraordinários peritos em “novas profissões” intervêm, sob nomes fictícios, nos chamados “fóruns” de opinião da TSF e da SIC. Ou para vexar um político particular (no caso, parece que Sócrates) ou para “defender” a gente para quem trabalham. Ao que alega o “consultor” da Visão as “Juventudes” fornecem muitos “voluntários” para esta meritória obra. E, mais tarde, acabam por receber a sua recompensa. Lugares no Estado, evidentemente, lugares nos gabinetes dos ministros, até contratos de um teor obscuro. Mesmo que o benfeitor que a Visão desencantou exagere a sua importância e as suas proezas, não fica a menor dúvida que existe um bas-fonds na “net”, a pedir uma boa limpeza. É para isso que existe a polícia e a Procuradoria-Geral da República. Ou não é?

Manuel Carvalho - O vírus da insolvência nas escolas públicas

OPINIÃO


Avaliações, rankings, cessação de contratos, horários zero, agrupamentos e mega-grupamentos, mudanças de programas, agressões a docentes, aumento do número de alunos por turma, cheque-ensino ou, mais pomposamente, liberdade de escolha, exames para ingresso na carreira. Se juntarmos a tudo isto um Ministério empenhado em reduzir a importância da escola pública e uma federação sindical, a Fenprof, transformada no reduto de um conservadorismo corporativo insensato e perigoso podemos constatar que a educação em Portugal se transformou num campo minado onde falta tudo o que é essencial para que funcione.
Não há paciência e sensatez para se atacarem os problemas gradualmente, tudo exige reforma, revolução, como se o país não existisse até agora, com os seus méritos e deméritos. Não há estabilidade, não há vontade nem motivação para melhorar. Está em gestação nas escolas públicas o vírus da sua insolvência. Mais cedo do que tarde, o Governo e aos seus émulos terão argumentos para cumprir o seu mais profundo desejo: o de criar em Portugal um el dorado das escolas privadas.
Esta semana o ministro Nuno Crato foi ao Parlamento anunciar mais um passo nessa estratégia. Cauteloso, não disse tudo o que queria e podia dizer sobre a estratégia do Governo, que no próximo ano reforça o estímulo financeiro à passagem de alunos da escola pública para a privada. Deixou sim um argumento, na aparência, sensato: os pais não se preocupam em saber se a escola é pública ou privada, querem é que seja boa. Mas há um juízo subjacente neste pensamento que torna a sua candura perversa: é que, na opinião do ministro as escolas privadas são por natureza e definição melhores do que as públicas. O que aqui está subjacente é uma visão ideológica do mundo. Tão legítima como qualquer outra, mas ao mesmo tempo tão discutível como as que se lhe opõem. Só é pena que Crato não esteja disposto a abrir o jogo. Teremos de esperar por portarias regulamentares.
O que se soube, porém, bastou para demarcar o debate. Francisco Assis, deputado do PS, lembrava no PÚBLICO que, “se há batalha política que a esquerda democrática deve travar é precisamente esta, a da defesa da escola de inspiração republicana, indispensável à afirmação de uma comunidade de cidadãos livres e iguais”. A resposta chegou logo depois pela opinião de José Manuel Fernandes. A sua tese é que “as escolas estão a falhar a sua missão”, pelo que se exige uma mudança e essa mudança dispensa um “axioma” do debate público que tende a considerar que “tudo o que é público é virtuoso e tudo o que é privado pecaminoso” - embora pudesse alterar a ordem da equação e reconhecer que o “público” se tornou para muitos a fonte de todos os pecados.
Ninguém discute que há problemas nas escolas do Estado e que os professores e os sindicatos erram ao afirmar que esses problemas não são também da sua responsabilidade – o terem recusado a avaliação projectou sobre eles a imagem de uma corporação adormecida no culto da mediocridade. As suas lutas laborais, mesmo que legítimas e eventualmente razoáveis, tiveram o condão de mostrar “a distância que vai entre os professores da escola pública e os da privada”, como reconheceu o jornalista Dinis de Abreu, no Sol. Mas será caso de dizer que a escola pública está em profunda decadência? Nada o indica. Se nos rankings a colocação das públicas se degradou, o referencial internacional do desempenho dos sistemas educativos, o relatório PISA da OCDE, mostra evoluções muito positivas dos alunos portugueses.
Dizer que as privadas são boas e as públicas más, ou, por outras palavras, que um sistema é por definição bom e outro mau, é por isso um exercício de pura fantasia ideológica. O que é verdade é que o sistema público tende a piorar com menos professores (na Infanta D. Maria, de Coimbra, eram 93 para 863 alunos em 2011/12 e passaram a ser 79 para 1012 alunos este ano), com a degradação social do estatuto dos docentes, com os cortes, com a incerteza e a instabilidade. O que é verdade também é que, internacionalmente, o desempenho dos sistemas que aplicaram o cheque-ensino está longe de ser brilhante. Veja-se o recuo da Suécia nos indicadores do relatório PISA ou leia-se o mea culpa de Diana Ravitch, que trabalhou na secretaria de Educação da Administração George W. Bush, hoje uma das principais críticas da privatização das escolas.
O pior que pode acontecer é cair na tentação de ver o mundo das escolas como uma ideologia radical capaz de erradicar os problemas do ensino e da coesão social. É bom que haja escolas privadas, mas também é bom que se reflicta sobre as ameaças que pendem sobre as escolas públicas. Porque na penumbra da discussão entreaberta pelo ministro Nuno Crato há mais riscos do que oportunidades. Essa ideia que um filho de uma família com problemas do bairro do Lagarteiro no Porto pode frequentar um colégio da elite não resiste à realidade: nem a família tem meios para aspirar a esse sonho, nem o colégio está disposto a comprometer o seu estatuto de elite onde só cabem bons alunos e alunos que não dão problemas disciplinares. Essa ideia de que todos poderiam ir para os bons colégios é uma utopia generosa mas perigosamente parecida com os amanhãs que cantam de outrora. A desigualdade de oportunidades infelizmente existe e a comunidade política representada pelo Estado não pode deixar de lutar contra ela no seu próprio terreno: o das escolas públicas. 
2- Esta semana uma conferência de imprensa convocada pelas comissões de coordenação do Centro e do Norte e pelas associações empresariais das duas regiões foi anulada em cima da hora. Pouco depois soube-se que o telefonema de um membro do Governo tinha travado a veleidade dos presidentes das CCDR e dos empresários. O acto falhado bastou no entanto para expor o seu cesarismo da administração pública e a sua incapacidade de perceber que há pessoas e interesses com direito a representação fora dos círculos da capital.
O que à superfície estava em causa era a apresentação de um estudo sobre as necessidades de infra-estruturas do Norte e do Centro para o próximo ciclo de fundos estruturais. Mas a realidade mais profunda era outra. O que moveu as comissões e as associações empresariais foi o protesto contra a criação de um gabinete destinado a inventariar os “investimentos de valor acrescentado” no qual metade do país e mais de metade da economia privada nacional não tinha qualquer tipo de representação. Num tempo em que se pede empenho aos empresários, numa era em que o sucesso das exportações é crucial, o Governo, pela mão do secretário de Estado dos Transportes, dispensa a participação de duas regiões fundamentais para a criação de “valor acrescentado”.
Seria inocente acreditar que esta omissão simboliza apenas o absurdo do centralismo. O que está em causa é mais perigoso. Para o Governo, e bem, o dinheiro que aí vem da Europa será para as empresas e para a competitividade, mas o que sobrar para infraestruturas parece ter o destino traçado: Sines e Trafaria. Ora, se há consenso sobre a importância estratégica de Sines, a Trafaria só se explica com a necessidade de este Governo, como todos os governos, precisar de uma obra para glorificar o seu regime. Para que nada perturbe esta “visão” radiosa, o secretário de Estado Sérgio Monteiro faz bem em ignorar os interesses e eventuais necessidades do Norte e do Centro. Eles que se calem e que continuem a fazer o que tão bem fazem: empresas, negócios e exportação. 

José Pacheco Pereira - Não é "defender" a Constituição, é "defender" o Tribunal Constitucional



OPINIÃO

 

Em muitos momentos da História foi o falhanço do sistema judicial último que permitiu o fim das democracias.
Já que há por aí abundantes “pressões” para que o Tribunal Constitucional não aplique a Constituição, venho aqui “pressioná-lo” para que a aplique.
Não é por razões jurídicas, nem de interpretação constitucional, para que não pretendo ter competência, mas por razões de política e democracia, que é a razão suprema pela qual temos uma Constituição e um Tribunal Constitucional. É pela Constituição escrita e pela não escrita, aquela que consiste no pacto que a identidade nacional e a democracia significam para os portugueses como comunidade. É por razões fundadoras da nossa democracia e de todas as democracias e não conheço mais ponderosas razões que essas, porque são os fundamentos do nosso contrato social e político que estão em causa, muito para além das causas daqueles que se revêem na parte programática da Constituição.
Eu revejo-me em coisas mais fundamentais, mais simples e directas, que também a Constituição protege e de que, por péssimas razões, hoje o Tribunal Constitucional é o último baluarte. O Tribunal Constitucional é hoje esse último baluarte, o que por si só já é um péssimo sinal do estado da democracia, porque todas as outras instituições que deviam personificar o “bom funcionamento” da nossa democracia ou não estão a funcionar, ou estão a funcionar contra. Refiro-me ao Presidente da República, ao Parlamento e ao Governo. E refiro-me de forma mais ampla ao sistema político-partidário que está no poder e em parte na oposição. Quando falha tudo, o Tribunal Constitucional é o último baluarte antes da desobediência civil e do resto. Se me faço entender.
Há várias coisas que num país democrático não se podem admitir. Uma é a teorização de uma “inevitabilidade” que pretende matar a discussão e impor uma unicidade na decisão democrática. Tudo que é importante nunca se pode discutir. A nossa elite política fala com um sinistro à-vontade da perda de soberania, do protectorado, da “transmissão automática” de poderes do Parlamento para Bruxelas, sem que haja qualquer sobressalto nacional, até porque são aspectos de uma agenda escondida que nunca se pretende legitimar democraticamente, mesmo que atinja os fundamentos do que é sermos portugueses. É um problema para Portugal como país e para a União Europeia enquanto criação colectiva em nome da paz na Europa e que está igualmente presa numa agenda escondida, a que deu a Constituição Europeia disfarçada de Tratado de Lisboa, o Pacto Orçamental para “pôr em ordem” os países do Sul, e a que permite a hegemonia alemã e das suas políticas nacionais transformadas em Diktat. Uma parte da perda de democracia e da soberania em Portugal, com a constituição de uma elite colaboracionista, vem do contágio de uma União Europeia cada vez menos democrática.
Em nome de um “estado de emergência financeira” que umas vezes é dramatizado quando convém e outras trivializado quando convém, seja para justificar impostos, cortes de salários e pensões, na versão “estado de sítio”; ou para deitar os foguetes com o 1640 da saída da troika e do “milagre económico”, na versão “já saímos do programa”, considera-se que nada vale, nem leis, nem direitos, nem justiça social.
A teorização da “inevitabilidade” tem relação com a chantagem sobre o que se pode discutir ou não. Que um ministro irresponsável resolva avançar com números dos juros pré-resgate, isso só se deve à completa falta de autoridade do primeiro-ministro, traduzida na impunidade dos membros do Governo. Mas, quando se considera que os portugueses não devem discutir seja o resgate eventual, seja o chamado “programa cautelar”, está-se no limite de uma outra e mais perigosa impunidade: a de que os “donos do país”, a elite do poder, os cognoscenti, mais os seus consiglieri no sentido mafioso do termo, na alta advocacia e consultadoria financeira, o sector bancário e financeiro, o FMI, o BCE, a Comissão Europeia, podem decidir o que quiserem sobre os próximos dez ou 20 anos da vida dos portugueses sem que estes sejam alguma vez consultados. Aliás, é mais do que evidente que a pressão sobre o PS para que valide a política do Governo e da troika, e que assuma compromissos de fundo com um “programa cautelar”, que pelos vistos antes existia, mas agora não existe, destina-se a tirar qualquer valor ao voto dos portugueses. A ideia é que votando-se seja em quem for, a não ser que houvesse uma maioria PCP-BE, a política seria sempre a mesma. Esta transformação das eleições e do voto em actos simbólicos de mudança de clientelas, sem efeito sobre as políticas, é o ideal para os nossos mandantes e para os nossos mandados, e é uma das suas mais perigosas consequências.
Eu revejo-me numa democracia que assente num pacto social, justo e redistributivo, que é a essência do conteúdo do programa do PSD e do pensamento genético de Sá Carneiro, que se traduz numa sociedade em que a “confiança” garanta os contratos, seja para o mundo do trabalho, dos pensionistas e reformados, como o é para a defesa da propriedade contra o confisco. O que não aceito é que se considere que a “confiança” valha apenas para os contratos “blindados” das PPP, para os contratos swaps, para proteger os bancos, para dar condições leoninas nas privatizações e taxas disfarçadas para garantir que um governo que prometeu privatizar a RTP faça os portugueses pagar mais para controlar parte da comunicação social. Ora, escrito ou não escrito na Constituição, o espírito de uma Constituição de um país democrático tem de proteger esses princípios, que são mais do que isso, são valores numa democracia.
Fora disso, o que há é uma lei da selva que a equipa de velhos ricos habilidosos, dedicados a proteger a “família” e as suas posses, habituados a mandar em todos os governos, em coligação com meia dúzia de yuppies com retorno assegurado a todos os bancos e consultoras financeiras, e com uma classe política de carreira, deslumbrada e ignorante, todos entendem que nessa selva são grandes predadores e que se vão “safar”. Habituados à lei da força do dinheiro, da cunha, da “protecção” e da impunidade, eles querem atravessar os dire straits da actual situação com o menor custo possível. Um aspecto decisivo desta lei da selva é a desprotecção dos mais fracos, daqueles cuja vida pode ser destruída por despacho, os expendables, aqueles cujos direitos são sempre um abuso, e para quem as garantias não estão “blindadas”. Se o Tribunal Constitucional não nos defende do retorno a esta lei da selva, todos os dias vertida em leis escritas por aqueles que acham que estão acima das leis, então ninguém a não ser a força nos defende do abuso da força. Que se chegue a este dilema é o pior que se pode dizer dos dias de hoje.
Eu sou a favor de uma revisão constitucional profunda. Muito daquilo que a esquerda louva na Constituição, por mim não deveria lá estar. Acho o Preâmbulo absurdo. Sou contra a “universalidade” da “gratuitidade”, mesmo nesse eufemismo do “tendencialmente gratuito”. Tinha preferido que, após o memorando, PS e PSD tivessem mudado a Constituição, permitindo que na Educação e na Saúde quem mais recursos tivesse mais pagasse, até se chegar nalguns casos aos custos reais, mesmo que isso significasse acrescentar novos ónus à função redistributiva dos impostos dos que mais rendimentos têm. Entendo que a ideia de “universalidade” e “gratuitidade” é puramente ideológica, mas socialmente injusta e que algumas alternativas às políticas “inevitáveis” passassem por aí. Por isso, quem isto escreve não o está a fazer em defesa de muito que está na Constituição, ou se pensava que estava, visto que já se viu que a Constituição protege menos do que o que se dizia. Esse equilíbrio, resultado de decisões moderadas do Tribunal Constitucional e que, contrariamente ao que o Governo diz, têm em conta a situação financeira actual, torna ainda mais vital que um núcleo duro de direitos e garantias permaneça intocável.
A principal decisão do Tribunal Constitucional, seja sobre que matéria for das que lhe forem enviadas, sejam as pensões, as reformas, os salários, seja a legislação laboral, seja a “convergência” do público e privado, seja o que for, terá sempre um essencial pressuposto anterior: está o Tribunal Constitucional disposto a permitir o “vale tudo” que lhe é exigido pelo Governo e os seus amigos nacionais e internacionais, ou coloca-lhe um travão em nome da lei e da democracia?
É a mais política das decisões? É. E em muitos momentos da História foi o falhanço do sistema judicial último que permitiu o fim das democracias. O melhor exemplo foi o da Alemanha diante dos nazis e do seu ostensivo desprezo pela lei face à força.
Historiador