7 FATIAS DE SAUDADE EMIGRAMADA
Era um emigrante com seu fadário recheado de esperança no regresso. Derreteu os dias da sua vida a erigir palaciano sonho em tijolo forjado, na aldeia ou vilória do encantamento, na inglória desforra dos dias expatriados.
Sonegou num recanto bem resguardado da alma trinta e tal anos de fidelíssimas venturas pré-anunciadas. Porém, quando despertou da sua letargia o tempo ditara-lhe que estava na véspera da descida ao bojo da terra que, no íntimo, nunca soubera amar, e lhe tribulara a alma de canseiras e saudade. Húmus estranho , fendido, para lhe arrecadar o corpo e recolher a alma calcinada de uma realidade por viver.
Nunca acreditei que um emigrante tivesse duas pátrias. Acredito sim, na dupla expatriação. O que ele tem (tenho, teremos?) são dois lugares do mundo para sonhar e nenhum para realisticamente viver. O drama é testemunhar a vida esgotar-se, virtualmente bipartida sem real possível; o drama é testemunhar a vida finar-se na sua própria virtualidade.
Sempre que quero regressar ao mítico da infância, sintonizo Portugal. Fontes, milheirais, homens de barba de três dias, mulheres enlutadas de cesto à cabeça, uma carroça com o cheiro a erva, o ressoar do gemido de uma nora, a pachorrenta vaca de olhos vendados, o chocalhar das águas de lata em lata, uma sombra onde me resguardo a testemunhar uma sinfonia de vento e sorver o espectáculo da natureza.
Ah!... Umas uvas brancas, gulosas, com refulgências de sol a desejarem ser tragadas por um cristão, e a luz avassaladora, emoldurando de encanto as folhas da vinha e sobre este cenário uma rola desata a arrulhar. Silêncio.
Não existe um único dia que me não assome à memória o sabor do vento, sussurrante nos pinheiros, um barquito a baloiçar nas águas da Malhada ou um rosto de velho pescador, barba desgrenhada e cigarro a fumegar, pendente dos lábios, com redes entre as mãos, ou aquela ponte que diziam romana, tecida de nacos de pedra sabiamente argamassada, cor cravo, resistível aos séculos, por entre juncos esgrouviados e uns fios de água.
Por aí fumei uns cigarritos furtivos. No torpor da nicotina, de olhos inebriados, colhi a luz refulgida na ria entre águas plácidas onde navegava um moliceiro tão suave que, ainda hoje, não sei sonhar mais inebriante idílio paisagístico.
Se vivesse em Ílhavo, todos os dias faria uma romagem de saudade pelas ruelas onde a infância se petrificou. Regressaria oniricamente ao único tempo em que a inocência e a candura eram possíveis, aplacando o vazio do presente com a levitação dos rostos que persistem acompanhar-me, pactuantes em gestos e vozes saudosas no fadário da vida. Afinal, estamos a cada passo a tropeçar na memória-viva dos mortos que connosco encenaram o palco da vida. A qualquer segundo emergem, talvez (quem o saberá?) com o propósito de nos reavivar o seu do nosso destino.
Miguel Torga, com a presciência anímica que lhe é reconhecida afirmara, discorrendo sobre a emigração: "Regressar é quebrar o encanto, permanecer, perpetuar o drama". Bem aventurados serão aqueles que nem quebraram o encanto, nem estão lúcida, nem minimamente conscientes do drama e vão alimentando todos os sonhos, exclusivamente do pão de cada dia. Há destes sábios que sem o saber o são.
De onde emerge este desejo obstinado de regressar às raízes? Será um desejo inconsciente de tentar inutilmente recuperar o tempo da mítica infância?
Há tempos, li algures, um poeta dizer que as nossas raízes não residem na terra, mas no tempo.
De facto. Quando regresso a Portugal, percorre-me a alegria de um tempo redescoberto. Mas, em abono da verdade, nem a terra nem eu somos os mesmos. Contudo, apesar desta dorida realidade, não há desencontros. O reencontro é cada vez mais desejado e poético. As memórias avivam-se neste desejo obstinado de voltar a onde não se pode, senão pela memória. Ah! O tal espaço mítico e verdadeiro da infância... As memórias, autenticamente fiéis, os decénios transcorridos, os sonhos do regresso fenecidos e o tempo-algoz a dirimir impiedoso os dias sobrantes. Percorre-me a mágoa de saber o inexorável da morte. As pessoas idosas da minha infância já se escapuliram; os caminhos que abrigavam amoras e silvedos estão abarrotadas de casario. Até o velho alpendre, com o seu portão carcomido de histórias, onde um namorisco se abrigou dos chuviscos, entre o aroma da resina, a rama seca de pinheiro e peças museológicas: um podão, uma foice, pedaços a esmo de charruas desengonçadas, pendentes de pregos esturricados de ferrugem, um molho de erva a rever as águas da vessada, o arrulhar de uma rola cativa e os tais chuviscos que adocicavam as beijocas furtivas e um fio de vento que sinfonizava de ventura uns olhos que saciavam todas as sedes da alma. Tudo feneceu. Hoje é cimento sobre cimento, ferro sobre ferro, sem alma e portão de zinco.
Abominei o progresso. Distorceram-me as imagens da memória, desfeitearam o cenário dos dias encantados na inebriação de um rosto que fora toda a alegria possível, sonho de todos os sonhos: um namorisco na plenitude de todas as labaredas da alma.
Não é impunemente que se desfeiteia o destino. Na minha alma vive um povo, o ressoar de um língua tão autêntica e íntima ( tal o acto de respirar), uma língua adocicada, melódica e melosa, sem arestas. Escuta, meu amigo: foram gerações que moldaram o sangue do sentir. Contra esse facto nada posso. Além de me defrontar com a saudade que se grudou no cerne da alma e aí reside. Definitivamente. Para que o destino se cumpra é necessário o reencontro vivo com a terra que tatuou no espírito este malfadado jeito de sentir a saudade. Sou um pedaço desmembrado de Portugal. Para estes padecimentos da alma, haveria a cura do regresso.
Quereis então saber qual a condenação de um emigrante? Nenhuma escolha abrange o todo. Entre a pátria e os filhos haverá escolha? Digam os heróis do silêncio, aqueles que sabem rilhar a saudade, silentes, porque entendem que sofrer, publicamente, constitui desgraça, despromoção. Afinal não somos um fragilíssimo sopro de espírito em barro vestido? Temíveis, são aqueles que nunca choram, os que escarnecem de quem padece e não sabem perdoar quem sofre e nos cortam a prumo a esperança com a sua própria desolação. Haverá pecado maior que destituir um homem do sonho, ainda que saibamos que apenas e tão-somente do sonho se trata?
Não sou desta terra onde desemboquei, mercenário de sonhos estrangeirados. Nada aqui testemunhou a minha infância. Nem viela, nem o adro da igreja, nem o cheiro a jarro em dia de romaria; nem as velhas embiocadas a ladainhar pelas esquinas as mazelas alheias; nem os gritos da garotada pontapeando trapos esféricos, clamando: "Passa a bola!"; nem o cheiro a sardinhas que ensardinhavam o ar de névoas fumarentas, entre fogareiro e abanador, com o gato a estraçalhar uma espinha misericordiosa; nem o repicar dos sinos anunciando um baptismo ou o ressoar tétrico das badaladas que anunciavam o retorno do corpo ao seio da terra.
Explicada está a desolação que me assola a alma emigrada, tal procela em terra alheia. Sou náufrago do pão em duas terras madrastas, sem outra bússola que não seja a miragem do regresso com que entretenho este sonho com que me ludibrio.
Barbosa Tavares, Brampton, Canadá.