A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht
Mostrar mensagens com a etiqueta Família. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Família. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, maio 23, 2007



  • Poemas
     
    * Rui Pedro Gato 

Eu
que cresci em ti
de teu corpo
Celeste
Que vivi em ti
O conforto
Agreste
De te ver partir
Com um "até já"
Sem te ver sorrir,
Sem acreditar,
Sem me aperceber quão belo é
Tudo o que perdi.
Tu
Que me deste a mim
Não pensaste em ti,
E me abraçaste
Com teu céu eterno.

.. 

Lembro-me como se não tivesse acontecido
Como um grito contido
Numa gaivota de asas partidas

Lembro-me como uma sombra na escuridão
Como que perdendo a razão
Numa lógica matemática, 

Lembro-me porque quero.
Porque penso que esquecendo
Começo do zero
E á esquerda não existo.

.. 

Como uma palavra por dizer
Um prazer por sentir
Sou
Como uma meia lua,
Nunca cheia
Numa aldeia desabitada
Uma frase inacabada
Sou o sentido oculto
De uma rima erudita
Mal dita,
Sou a primeira vez,
Sou a conta que deus fez,
Errado
Igual a vocês
Complicado
Complicado...
Sou sem ser
Por pensar
Por sentir
Sou sem ser
Por existir.

..


Acordo
e é diferente o sentir
preferia dormir
invisivel
ser sem que os outros saibam
preferia não acordar
é diferente o sentir
ser onde os outros caibam
convidar um estranho a entrar
olhar em volta
para nunca mais acordar

..

a estória do que não foi

A noite é fria,
como o dia é quente,
como é indiferente.
e o tempo passa,
como um corredor,
como a morte em todo o seu esplendor
como ficamos parados,
como gelados,
glorifico tudo o que não sou,
porque o que sou não chega
exemplo em tudo o que te dou
porque não chega

enternurece-me a solidão,
porque é onde te encontro
um assombro,
se me identifico,
aí fico.
e explico a minha ausência
com a presença de outro
pois se sou tão pouco
muito outros serão
muito outros verão
e se o tempo passa
como um corredor
eu fico
como uma memória
como a estória do que não foi

..

o amor é meu.
fui eu que o inventei
num olhar
fui eu que o visionei
numa palavra
num gesto
o amor é teu
fui eu que te o dei.

..

O passado acabou
o futuro vai ser melhor
é mentirosa esta visão optimista
é passageira esta visão futurista
porque o futuro será passado também

..

A vida é fugaz
Voa como sabes
Voa que és capaz
A vida é este momento
De tudo o que acreditas
De tudo o que te faz
Voa rapariga
Que a vida foi lá atrás.

..

Esta folha branca se transforma
Palavras tomam forma
Sentimentos aparecem
Na mente de quem lê
.
Esta mente ganha vida
Palavras aparecem
Sentimentos tomam forma
Na mente de quem lê .

E numa palavra me apercebo
De um sentimento que concebo
Por ti

Numa palavra me arrependo
Num fim em que me rendo
Por ti

Amor.
..

entrei por ti
silencio
por ti
calei-me
o manto cobriu-me
enorme destino
nas mãos de uma rotação
entregue á aflição
do ritmo
do rio
do frio
entregue ao silêncio
entregue a ti
silêncio
..

a morte como a vida

estamos como estamos
porque nascemos
e amamos porque morremos
e tememos
a morte
como a vida
e vivemos
como podemos
como tememos
a morte
como a vida
e erramos
como choramos
como pensamos
são anos
e anos
porque nascemos
e choramos
como vivemos
a morte
como a vida
morremos
porque nascemos
porque sabemos
porque pensamos
choramos
como amamos
a morte como a vida
porque tememos
como amamos
a vida
como somos
porque morremos.

..

Dispensável
Descartável
desde que te faça falta
sou
um momento.
substituível
um pensamento renovável
possivelmente
indiferente
certamente
passado
um momento
acabado

..

Rui Pedro - 2004

Fotografia de Victor Nogueira (Celeste Gato)




Celeste Gato, Susana e Rui Pedro

I

Uma manhã de Dezembro

* Rui Pedro Gato

Sou um fracasso, sou fraco, estéril de acções, fértil de pensamentos que disso não passam, sou maternidade e cemitério. Sou inútil, incerto, sou deserto, mas tão cheio de nada. Sou frio, mais frio que esta manhã de Dezembro que desabrocha lá fora, lá, fora de mim, onde não existo.

Bebo mais um gole. Preto e quente este café, amargo como eu. Não gosto de café. Não gosto do Inverno. Não gosto de acordar de manhã...não gosto de acordar.

Aproximo-me da janela como quem liga a televisão. Por entre a neblina matinal vislumbro na paragem os vultos que já adivinhava, os do costume. Há 13 anos que os vejo. Há 13 anos que com eles me transporto às 7:15 para a fábrica, onde não existo. E há 13 anos que às 17:20 regresso a esta paragem. A verdade é que aos domingos não vou, nem nas ocasionais mas obvias folgas que me dou por dívidas para com o sono. Mas mesmo assim, 13 anos são 13 anos.

Saio e desço no desagradável elevador que todos os dias me aproxima da paragem que me desagrada. «Então Gomes, bom dia. Está uma manhã agradável, não?» Aceno com a cabeça que sim. Chama-se Carlos Coimbra este homem que me fala. Fala-me sempre. Na casa dos quarenta, Carlos é uma figura simpática. Invejo as pessoas simpáticas, invejo os despreocupados, os felizes, os que não pensam, invejo as pessoas que não sou...

Subo para o Autocarro como quem desce ao inferno, sento-me nos bancos de trás, onde posso observar sem ser observado, e fecho os olhos.

O que seríamos nós sem as memórias? Sem estas velhas fotografias do passado em preto e branco. Que nos matam, que nos prendem, que não me deixam viver.

Já houve um tempo em que vivi. Um tempo em que gostava de café e acordava como um escritor para quem o dia é uma folha em branco pronta a escrever.

...

Parada a olhar o mar, absorve-me completamente e esforço-me por ser o ar que ela respira, esforço-me por chegar a ela sem no entanto mover os pés. Os dez metros que nos separam parecem uma eternidade. Surgem-me como uma barreira intransponível, repleta de perigos, na qual nem o mais ousado «eu» ousaria aventurar-se. A rapariga apoia-se curvada sobre o varandim que dá para o mar, tem a pose de quem olha para o seu quintal e no entanto parece deslocada. Eu, ao lado dela, finjo estar concentrado nos pescadores que na praia em frente lutam numa luta desigual com uma rede de pesca, enquanto procuro sentir as vibrações no varandim. O varandim em que os braços dela se apoiam é o mesmo que me apoia. E pelo canto do olho vejo-a engolir o mar e vejo-me navegar. Pelo canto do olho contorno a timidez e vejo-me falar. Calado. No meu lugar. Ela olha-me, e eu, pela primeira vez, fixo realmente os pescadores e prometo-me não voltar a olhá-la. E, faltando ao prometido, constato que ela me continua a olhar, e sorri, sorri como quem é feliz, como quem sabe mais que eu. Sorri como eu quero ser. Dirige-se a mim, segura de si, deixando-me mais inseguro a cada passo que dá.

É fim de tarde, no verão.

...


Deitados no chão olhamos o escuro, olhamos o futuro, prendem-nos as estrelas e o seu brilho, distantes, tão distantes quanto irreais como o futuro para dois miúdos de 11 anos para quem a vida é o egoísta presente. Ao meu lado, Luís, cúmplice de todas as brincadeiras e alegrias. Pensamos o que aí vem. Não precisamos, porque somos crianças, porque o futuro é longe e não existe. Mesmo assim pensamos. E a noite abafada e quente parece parar no tempo. E naquele momento somos únicos e sozinhos e donos de nós.

...
Louise - é assim que a rapariga se chama - é francesa, filha de portugueses e fala com um sotaque que por si só a torna querida. É engraçado como os sotaques nos fazem olhar para as pessoas como tendo uma fragilidade ternurenta, uma deficiência querida.

Olhos do tamanho da sua confiança, enormes e castanhos. Cabelo curto e loiro, como o trigo no Alentejo, e uma calma, uma segurança, a paz...

Louise olha-me, fala-me, toca-me e a tarde transforma-se em noite, os minutos transformam-se em fonte e as horas em prazer.

Sentados na areia ouvimos as gaivotas gritarem estorias de tempestades passadas sobre a calmia da presente água. E a cerveja aproxima-nos como anos de experiência em comum. A desconhecida rapariga do varandim é agora, esta noite, nesta praia, a pessoa mais importante. E eu sou dela, sem que ela talvez ainda o saiba, neste momento sou o que quero, sou com ela. Neste momento sou para sempre, sem que ela talvez ainda o saiba. E guardo cada gesto dela, por mais insignificante e natural que para ela seja, guardo-os como se fossem exclusividade minha.

...

«Pedro, vem para dentro que vai chover» diz a voz que me chama, a voz de que não me lembro. Eu corro junto com «Évora», a nossa cadela, horta dentro, pisando couves e tomates q.b., não oiço a voz de que não me lembro, a voz que me chama para o real, porque neste momento estou embebido na luta contra o mal junto com o meu fiel companheiro destas demandas. «Évora» olha-me como quem me admira, «Évora» olha-me feliz, e eu olho-a como a um guerreiro.

«Pedro, não me ouviste chamar-te para dentro?» diz a voz que me acorda com uma palmada na cabeça. A cabeça onde largo a espada e um guerreiro se transforma numa cadela. Sigo a voz para dentro de casa. São as férias de verão. E estamos todos. Sentamo-nos á mesa e comemos, vemos televisão e dormimos, e quando acordamos, estamos todos.


...
Estou acordado há mais de uma hora e sou espectador do mais belo espectáculo, no mais belo palco. A luz do sol e a sombra do cortinado dançam no corpo de Louise. E o seu corpo imóvel ganha vida para além da vida que já tem. E os seus contornos ganham evidência para além da evidência que lhes dou. Vejo-a dormir, tenho medo de pensar demasiado alto, tenho medo de acordá-la e estragar o momento.

Pela janela aberta entra o mais azul dos céus, e a brisa fresca do mar toca o corpo sobre o qual adormeci, e o branco e suave lençol parece encontrar o par ideal na suave e adormecida pele de Louise. E vendo-a assim, indefesa, nua, despida de qualquer disfarce mental, toco-lhe o cabelo e esforço-me por ser o sonho que ela dorme.

Louise neste momento é tão simples, ela simplesmente dorme. E não são as coisas simples as mais belas?

Esta manhã desprezo todos os cursos e todos os grandes pensadores, os empregos, o xadrez, as cirurgias, teorias e todas as justificações. Esta manhã estou a sentir, como há anos não sentia. Como o pensar me impedia. Esta manhã Louise dorme e eu estou mais acordado que nunca.

...

Sigo os passos de Luís como se de uma lição se tratasse. Balde na mão e galochas nos pés, avisto já ao fundo a miniatura do moinho. Ontem combinámos apanhar caranguejos e esta madrugada assim o fazemos. Quero impressioná-lo. Quero principalmente impressionar-me a mim. Quero ser como ele, natural. E a minha falta de jeito para apanhar pássaros, caranguejos ou arranjar bicicletas só é agravada pela minha consciência disso mesmo.

...


Voa um pouco de pão e das árvores em redor poisam dezenas de pombos e uma dúzia de pardais. Lutam como se fosse o último bocado de pão em todo o parque, seu mundo.

É o dia mais quente do verão - disseram os entendidos, de dentro da sua televisão - e do colo de Louise, onde a minha cabeça descansa, vejo-a atirar outro bocado de vida ao jardim morno e morto. «Pombos estúpidos» diz Louise; «roubam o pão aos pardais». Estamos num recanto do jardim, coberto por densa vegetação. Por detrás da vegetação estão outros bancos, e outros namorados, diferentes estorias na mesma tarde do mesmo jardim.

Louise faz-me festas no cabelo e eu fecho os olhos, e o vento nas folhas parece música de embalar, e o cheiro adormece-me e acorda-me continuamente. Juntos vemos o sol pôr-se por entre as árvores. E olhando nos olhos dela vejo o inverno.

Faltam 2 semanas para o fim do verão.

...

Alguém desenha um céu quente no chão frio da velha casa, uma folha outrora branca é agora uma montra para a imaginação, onde gaivotas voam, flores amarelas e sorridentes crescem ao tamanho de casas fumegantes de felizes gigantes de mão dada. No castanho e idoso sofá descansa a minha avó, cosendo uma espécie de sapatos de lã que já imagino aquecerem-me os pés no inverno que se avizinha. No quarto alguém ouve Duran Duran, cantando o refrão numa desafinada pré-adolescência, saltando na cama num evidente descontrole hormonal. Ponho a data e o meu primeiro nome na parte de trás da folha, tal como o meu pai me ensinou. Poiso a caneta de relva, e chama-me á atenção a televisão, montra para a realidade. Assusta-me a ideia de morte, é um medo desmesurado, é um medo sufocante, cinzento, é um medo que uma criança de 5 anos não devia ter, que me ocupa e aprisiona na minha cabeça, meu mundo. A maior parte das vezes não penso nisso e sou feliz. Mas quando penso, sou só e apenas isso. É um pânico indescritível. Quem dera que as flores sorrissem e crescessem com a vontade como limite. E o rosto desfocado olha-me, a mão ausente afaga-me, e a voz de que não me lembro diz que tudo vai correr bem. E eu finjo acreditar até me esquecer.

...

«Lulu», chamo eu. Louise finge não me ligar ou então não me ouve mesmo. Há alturas em que é difícil perceber. Cada vez mais. Sentado na cama vejo Louise na varanda, como se de um quadro se tratasse. Estática, como um mistério. Em segundo plano vejo o mar, que olha para ela como um chamamento, uma recordação, uma vontade. Louise não olha para mim. Como um adeus.

...

O telefone toca, eu levanto-me, dos desenhos animados, o telefone toca, eu caminho, calmo, o telefone toca, eu atendo, calmo, alguém chora e num segundo passa-me a vida inteira pela cabeça, neste segundo somos todos adultos. O coração dispara. O telefone mata-me e as palavras matam-me, as palavras mataram a voz, o rosto, o toque. O choro lembrou o inevitável. e o choro toca-me. O telefone toca-me. e do outro lado do choro lembram-me que a voz de que não me lembro não voltará a falar. do outro lado do telefone acordam-me. do outro lado da vida adormecem-me. do outro lado da morte mataram a vida. mataram a minha criança.

...

«Sabes o que dizem? Que quando dormimos a nossa alma anda por aí a vaguear. Nos sonhos. Então vou mandar a minha adormecer-te, até que acordes, vou mandar a minha sonhar-te, até que eu acorde» digo eu a Louise que, deitada a meu lado, me olha com olhos de mar, olhos que não percebo, olhos de noite, que cai como as pálpebras. Cai como a razão, que há muito deixou de existir. Já não lhe vejo o branco dos olhos, já não lhe oiço a segurança da voz. Louise está por detrás da noite, está por detrás das pálpebras fechadas. incontactável. Olho o tecto que cai em mim como um inevitável amanhã, como um acordar que não quero. Como um fim que não pedi. Não consigo adormecer... pois sinto que já dormi tempo de mais. E não sei quando aconteceu o que vai acontecer. Não sei quando podia ter evitado o que vai acontecer. É um vazio de angústia e impotência. Não sei quando deixei de a ouvir, não sei quando deixei de lhe falar.

...

A morte afinal existe. Não é algo de que se fala...não é como o papão ou o pai natal. As pessoas desaparecem, as vozes calam-se, os rostos são comidos e desfigurados, os ossos aliviados do pensar e existir.

Esta noite é a lua que me olha. Esta noite tenho a certeza que a voz não voltará a chamar-me á realidade. E a fantasia é tão mais fácil de aceitar. E olho a lua que me chama, com todos os seus fantasmas, é a lua com todos os seus uivos que me embala, como uma mãe embala a sua criança. A voz não mais me embalará.

É dia 21 de dezembro. Começa o inverno - dizem os entendidos de dentro da sua televisão. E penso «deus queira que deus exista». Que seja só eu que não oiça a voz, mas que ela continue a falar a quem a oiça, porque ela não me voltará a chamar para a realidade, e a fantasia é tão mais fácil de aceitar. Sento-me no sofá e ligo a televisão, para deixar de pensar, e os dias enfim passarão, a noite cairá dos céus, e a lua continuará a reflectir o sol.

...

Estou acordado há mais de uma hora, ainda não abri os olhos com medo de ver o que lá não está. A minha cabeça é uma fábrica de pensamentos, de hipóteses, esta fábrica de medos, esta desconcertante certeza. Levanto-me sem olhar para o lado esquerdo onde o vazio se deita. E caminho com passos de desconforto para o chuveiro. Como é difícil carregar esta cabeça ... pesada ... como é difícil esta certeza... este acordar. Abro a água, fria como a manhã, e olhando para o ralo desejo ver desaparecer toda a minha existência. Desejo que a água me lave de pensamentos e pela manhã escorrego pelo ralo com a água que me arrasta.

Saio ignorando a toalha e pingando o corredor e, como um zombie numa missão, sigo a brisa da janela aberta, em direcção ao quarto. A cama está vazia. Sento-me derrotado e olho para fora de mim... para fora de casa, fixo o varandim, e de Louise só resta o mar. Os pescadores continuam numa luta desigual. E de Louise só resta o mar. A areia molhada de Inverno lembra o calor que se foi. Deixo-me cair para trás e afogo-me num sono, de 13 anos, num sonho de Inverno, afogo-me em recordações boiando num presente sem verão.

E adivinho uma lua que á noite subirá ao meu pensamento, trazendo de volta todos os seus fantasmas, e mais alguns.

...

E tanta coisa que lhe queria dizer, mas já não me ouve. Tanta coisa que queria ouvir, mas já não me fala. Tantos dias que a queria acordar, mas já não me dorme. Tanto que queria viver, mas já morri. São 17 e 20 e regresso a esta paragem. Abandono a solidão ordeiramente agrupada e contributiva da fábrica para nesta paragem reencontrar a solidão egoísta de mim. Todos somos egoístas. Até mesmo os altruístas só o são porque tal os faz sentirem-se bem consigo próprios. Egotista de mim pensar assim... Esta paragem do tempo nesta viagem de vida. Saio aqui. Esta é a minha paragem. Há 13 anos. Nesta paragem. Daqui olho a minha janela. E sou actor da vida que dela vejo. Subo as escadas para casa como quem desce ao inferno. Abro a porta e entro na ausência. Sento-me na ausência. Sinto-me na ausência. O relógio de sala move-me os olhos. Move-me a vida estagnada. E com o passar do tempo não somos mais do que retalhos, fantasmas de vidas passadas, acabadas, interrompidas. Não somos mais do que peças de um puzzle que nunca fará sentido, simplesmente porque não encaixamos uns nos outros. E olhando para trás, não sei se cheguei a ter 11 anos, não sei se cheguei a ser eu com amigos ou se naquele final de tarde, no verão, cheguei realmente a falar com a rapariga do varandim ... ou se tudo isto é um sonho. Se amanhã acordo ao som de uma voz esquecida. A qual não estou certo algum dia tenha existido.

No fundo nada dura para sempre, a não ser a certeza e o sentimento de que nada dura para sempre. Para uma pessoa o princípio pode ser o fim para outra ... onde vejo uma estrada desaparecer no horizonte, outros vêm um beco ... um qualquer dia 1 de janeiro pode nunca deixar de ser um 31 de dezembro. Quantas vidas temos? Quantas realidades há para o mesmo acontecimento? Quantas palavras por dizer? Quantos rostos e lençóis vazios... as vozes que esquecemos, as coisas belas e simples que se complicaram, os fossos que cavámos em nosso redor, assombram-me como a inexistência. E é difícil aceitar que as pessoas que conhecemos não vêm sozinhas, mas trazem consigo todos os seus fantasmas e todas as pessoas que já foram.

Sinto falta que me cantem uma canção de embalar.

Sinto falta de ti, sinto falta de mim, sinto falta de nós, sinto falta que sintas falta. E a saudade é eterna. Eterna porque o «sempre» é a minha curta existência. Como se o passado existisse para além da minha cabeça, tenho saudades do futuro. Sou frio. mais frio que esta noite de dezembro que chove lá fora. Chove da lua que sobe lá fora ... onde os fantasmas moram. Onde os lobos choram e os namorados adoram. Onde sei que está o que perdi. Um pequeno passo para a humanidade, inalcançável para mim.

A vida é ... acontece e acaba. E o fim não tem uma lógica, acontece e pronto!

Fotografia de Victor Nogueira (Rui Pedro)



No Leito da Vida
Uma tragédia em dois actos


* Rui Pedro Gato

A tarde dissolve-se sobre a terra, sobre a nossa casa. O céu desfia um sopro quente nos rostos. Acende-se a lua, e com ela acende-se o teu rosto apagado, cansado, derrotado. O rosto ausente de ti.

Olhas o vazio que em cima tens, o tecto. Eu choro o vazio que em ti me lembra o chão. A lua foca-te como se numa peça de teatro na qual eras a actriz principal, fizesses o monólogo final. Calada, imóvel, condenada. A lua eterna foca o cair do teu pano.

Foi sob esta mesma lua que nos beijámos a primeira vez. Lembras-te? Eu lembro-me. Lembro-me como se não tivesse acontecido. E tinhas tu 17 anos. Parece impossível. Já fomos jovens...eras linda. Tinhas vida que dava para ti e para mim. Eras jovem. E eu estava lá, nos teus 17 anos... Lembras-te? Lembro-me como de cima da colina te dei a cidade, com todas as suas luzes. Como de cima da colina víamos a cidade insignificante e ignorante de nós. Adoravas que te levasse a passear de carro. E eu adorava ver os teus olhos brilharem. E ao som do piano de Chopin fizemos amor pela primeira vez, quando os teus pais tinham ido ao norte ver a tua prima Matilde. Lembro-me tão bem. Eras linda e jovem. Abraçaste-me e eu protegi-te e prometi que nunca mal algum te iria acontecer. Beijei-te a testa e os teus olhos brilharam. Eu namorava com a Graça na altura. Lembras-te? Eu lembro-me que eras linda.

A vida dissolve-se sobre a terra. Sobre o tempo que imóvel nos vê passar. A vida continua lá fora, e tu vais continuar a morrer aqui dentro e a não te lembrares que me amas. Não te lembras que fui jovem? Hoje um velho careca e gasto olha-me do espelho. É normal que não te lembres de mim. Nem eu próprio me reconheço nesta carcaça bolorenta. Ao lado da tua cama uma foto transporta-me 60 anos no tempo. E tens 20 anos. Eras tão linda, na tua camisa de dormir, a tua camisa transparecia um corpo que por todos os poros transpirava feminilidade. A tua pele jovem e macia. Nunca beijei pele mais macia. O teu cabelo despenteado caído sobre os teus brilhantes e felizes olhos... Foi pouco tempo depois que engravidaste. Lembras-te? Lembro-me como choravas quando me contaste. Fiquei sem fôlego. Olhei a cidade lá em baixo e a sua insignificância devolveu-me a mim. E decidi. Lembro-me como choraste com a minha decisão. Mas decidimos bem. Tratei de tudo. Paguei tudo. Tenho pena que essa acção te inviabilizasse de ter filhos até hoje. Mas não tínhamos outra opção na altura. Juro-te que eu não tinha. Afastaste-te de mim... Mas voltaste. Sabias que me amavas. Mais linda que nunca com os teus olhos brilhantes. Foi a opção correcta.

Os teus olhos baços, sem vida continuam a olhar o tecto. Que pensarás? Pensarás? Serás alguém atrás dessa ausência? Essa doença que te consumiu ao longo destes últimos anos. A doença que apagou tudo o que te fazia ser. A tua memória.

Gostava que te lembrasses daquele dia em que vim de propósito de Londres. Eu lembro-me. A tua mãe tinha morrido. O céu pesava nesse dia, e eu chorei contigo. Lembraste como era raro eu chorar? Chorei contigo. E prometi-te que eu não morria e tu prometeste-me que não morrias... o que estás a fazer agora?

Que sentido faz eu ficar cá depois de desapareceres? Com quem vou amar o passado amanhã? A quem vou dizer que eras linda e jovem? O que me impede de me deitar a teu lado e morrer contigo?

Já é noite, o sopro continua quente e abafado... era noite também quando vimos na televisão o Armstrong pisar a lua. E ao mesmo tempo que os teus olhos brilhavam maravilhados e sonhadores eu te dizia que uma montagem de uns americanos dissimulados não me enganava. Mas no fundo, cá dentro, também sonhava. Foi nesta casa que te comprei que assistimos ao “pequeno passo.” E foi nesta mesma janela por onde o sopro morto entra que ficámos madrugada dentro e me prometeste que um dia lá faríamos um piquenique. Lembras-te? A lua eterna continua distante...a diferença é que hoje também distante estás. E eu no meio das duas...a lua eterna e tu, finita.

As tuas mãos estão geladas... não se ouve nada neste quarto senão o meu pensamento e o teu arfar cansado. Dirijo-me para a varanda, também eu cansado...a rua continua a mesma...os mesmos postes, o velho marco do correio, a mercearia do Américo, a mesma rua continua a banhar a nossa casa. Lembro-me como se fosse hoje... dormias e eu, acabado de acordar, desta varanda vi um tanque passar, frente ao sr. Américo. E corri a acordar-te. Lembras-te? Quando percebeste o que se passava saíste de pijama de cravo na mão. E eu vi-te desta janela. Não vi o 25 de abril nas ruas. Vi o 25 de abril em ti.

Estamos sozinhos, como sempre estivemos sempre que estivemos. E tu calada, na noite, pela calada, onde sempre fizemos tudo o que fizemos.

Estás na cama, sozinha na tua cabeça, na tua doença. E eu na varanda, sozinho, prisioneiro do meu pensamento...Eras linda e jovem...

Faz-se tarde. E hoje não posso ficar mais tempo. Sabes que dia é amanhã? Lembras-te? Faço 60 anos de casado com a Graça. 60 anos...Como nós passamos rápido pelo tempo. O Rodrigo e a Maria já devem ter chegado a Lisboa. E sabes como a Graça fica toda contente quando eles trazem os netinhos lá a casa. Vamos renovar os votos. Grande festa querem eles fazer. Vamos renovar a mentira que é a vida... e tu perdida aqui dentro...aí dentro de ti...

O velho veste o casaco, ajeita o cachecol e senta-se mais uma vez ao lado da cama. Passou o dia todo num silêncio pesado de ouvir e durante 10 minutos não se ouve mais do que o respirar a conta-gotas da velha. Ele levanta-se e na cómoda liga o velho gravador de cassetes e sai porta fora como se nunca tivesse entrado. E na cama, no rosto da velha - não sei se do reflexo da lua, se do som de um piano intemporal – parece que por instantes luzem os olhos... como se ele nunca tivesse saído.

Rui Gato 2779 AIS
Fotografia de Victor Nogueira (Rui Pedro)

domingo, abril 08, 2007

Na casa de Goios


Na casa de Goios


* Victor Nogueira


À beira da estrada, a grande casa fora dividida em duas nas partilhas; uma metade para o primo Manuel, outra para o primo José. Era na deste último que o meu avô Barroso ficava, antes de construir a casa no Mindelo (Vila do Conde), para as férias de Verão. Fora isso, era nesta casa que se passava a Páscoa ou se faziam as visitas ao fim de semana.

Como boa casa minhota, o r/c era reservada aos animais e o acesso ao 1º andar, em qualquer delas, fazia-se por escadaria exterior. No primeiro andar havia nas traseiras um corredor comprido para o qual davam os quartos. Havia também uma enorme lareira, fuliginosa, onde me aquecia no inverno distraído com o dançar das chamas. Nessa lareira se cozinhava ao lume, em tripeças. Supremo luxo na casa do primo José era a casa de banho, construída a expensas do meu avô Barroso.

Escrevia eu em 1963: «No dia 14 [Abril. 1963], domingo de Páscoa, fui, com o avô Barroso e o tio Zé a Goios, passando por Famalicão. Almoçámos em Goios, tendo‑me aborrecido imenso. O "compasso". chegou por volta das 17 horas. À tardinha fomos para a Pedra Furada. Revi com prazer a Lourdes e a Cândida, e fiquei a conhecer a Celeste e a Amélia. Divertimo‑nos bastante. (Diário III - pag. 165)».

Havia também outros primos, como a Deolinda e a filha Laurinda, assim como o Adelino e o Joaquim, este surdo-mudo mas lá nos conseguíamos entender por restos. Creio que a última vez qe nos vimos todos, ainda a Celeste era minha namorada, foi em 1974, no faustoso e farto casamento dum deles, onde até os talheres eram de prata!

Os meus primos moravam uns em Goios e outros numa aldeia próxima, chamada Pedra Furada. Estes eram mais pobres Deles todos perdi o rasto após a morte do meu avô Barroso, em 1975 e após o meu casamento na mesma altura, quando as férias deixaram de ser passadas no Norte, em casa dos meus avós. Disso falo no meu poema Elegia pela minha família dispersa.

Na foto, à janela, o meu tio Zé Barroso e o autor destas linhas. 

Goios - a Páscoa numa aldeia minhota
Victor Nogueira

Aqui na cidade [do Porto] a maioria das freguesias paroquiais já não têm "compasso", isto é, procissão pascal - o pároco leva a cruz às várias residências; por ser uma manifestação inadequada aos dias de hoje. Mas na aldeia [Goios, ao pé de Barcelos] (e não só) ainda as pessoas aguardam a visita pascal - o padre deslocando-se pelas aldeias, cujas casas aguardam a sua visita. Na sala de entrada, bolos secos e vinho. No ar estralejam foguetes ! As pessoas dizem: " O compasso vai na casa de Fulano, daqui a xis horas está aqui!" As horas vão diminuindo e eis que aquela malta irrompe pela sala dentro, o povo ajoelha-se para beijar a cruz, (mais ou menos devotamente), e depois começa a comezaina e a copofonia. Ah! Ah! Ah! Ao fim do dia de certeza que o padre e seus acompanhantes estarão já um tanto ou quanto toldados!

(...) São 16 horas e o meu avô já me chamou ali do lado para me pedir um favor, muito de mansinho: que me ajoelhe e beije os pés da imagem. Se o não fizesse seria um escândalo, que as pessoas reparam em tudo: "Então ele é um ateu ?!" Quem diria, o sobrinho-neto do senhor D. António [de Sousa] Barroso", [que foi] Bispo do Porto (e esteve em S. Salvador do Congo, em Angola) ! Enfim ...

Na varanda coberta e fechada e comprida para onde dão os quartos de dormir a família aguarda o compasso. O primo Adelino tem o gravador aos berros, transmitindo música de ranchos folclóricos. É uma música mexida e movimentada, própria para bailar. Gosto muito mais da música alentejana.

Ali do guarda-fatos e das arcas retirou-se já a roupa domingueira. Estão todos enfiados nas fatiotas, colete, camisa de ver-a-Deus e gravata. Das arcas retiraram-se as cortinas, agora colocadas nas janelas, o soalho lavado, na casa velha cujo solo treme com o peso dos passos. Olho pela janela e a minha vista alcança os campos verdejantes, no meio da pequena e densa mata arborizada. O meu primo, dono da casa, sai descalço do quarto, sapatos e calçadeira na mão. O avô Barroso fala com o António e o resto da malta fala alto atrás de mim, enquanto o tio Zé [Barroso] está ali embrenhado na leitura dum "Précis de Statistique", dizendo‑me que ainda não percebe para que serve a Estatística.

Estralejam foguetes neste entardecer frio, cinzento e nublado. O compasso já está ali a dois passos: Vim agora da ponte que atravessa além o riacho, ao cimo da estrada, junto à pequena escola abandonada e arruinada onde o meu avô estudou.

Trouxeram o televisor lá de baixo da cozinha, onde estivemos no Natal, Estão a transmitir uma tourada do Campo Pequeno [em Lisboa] e toda a gente está entusiasmada, esquecida de meditar na Paixão e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, nesta casa onde há imagens e estampas devotas nas paredes da sala de estar, para além das fotografias do já falecido "Senhor D. António "e do seu secretário e sobrinho, também padre mas que não chegou a bispo.

A dona da casa, minha prima, pede‑me que avise quando o compasso se aproximar. Pego em mim e venho até aqui à janela, assim transformada em posto de vigia. No peitoril continuo o relato dos acontecimentos.

A malta ali na sala e na varanda está entusiasma: "Aquilo é que foi uma pega!".


A sineta toca e o compasso prepara-se para sair da casa do primo Manuel, nosso vizinho. Não, afinal não: acabou foi de entrar e o maralhal pode ainda assistir um pouco à tourada.

A estrada está atapetada de flores, melhor, de pétalas.

Reparo que sou o único barbado das redondezas. Tenho desculpa (terei ?) porque sou da cidade.

A televisão pode mais que o Nosso Senhor!

O compasso veio, as pessoas foram para a sala de entrada. Toca a sineta, que um miúdo traz adiante; uma cruz florida transportada por um homem de opa vermelha é dada a beijar às pessoas - que não se ajoelham - e o jovem seminarista aperta a mão aos presentes, desejando Boas Festas. Segue‑se uma "orgia" de apertos de mão e votos de boas festas. Alguns velhotes detêm‑se a falar com a sra.Elvira, criada do avô Barroso. Este está muito sorridente, apresenta a filha "que é professora em Luanda" e o neto. Não posso deixar de sorrir‑me e enternecer‑me com o ar jovial do avô, enquanto cumprimento "gravemente" as pessoas.

É para aí o 5º compasso em 8 anos e alguns destes homens são "habitués" nestas andanças (Sempre se come e bebe à custa dos outros). Mas ainda o compasso não abandonou a casa e já os meus primos e alguns amigos se precipitam para o televisor, "onde" um forcado é retirado de maca do redondel.
.....................
São 18:20 e ainda estralejam foguetes. O pessoal continua a assistir à tourada. A prima Clementina - mãe das que vimos a conduzir um carro de bois - tem um linguarejar (pronúncia) muito catita. Ali na outra casa [do primo Manuel] só se fala de terras e riqueza! Safa! Fazem parte da "elite" cá do sítio. Mas enquanto que os filhos do José são folgazões e desinibidos, mais que o pai, os do Manuel são muito acanhados.([1])

A senhora Elvira foi visitar uma amiga e ainda não voltou. A tourada já terminou e agora transmite‑se um programa de ginástica. (MCG - 1974.04.16)


[1] - Em 1975, com a morte do meu avô Barroso e com o meu casamento com a Celeste, perdi o contacto com os primos de Barcelos (Goios e Pedra Furada). Em 1989, sediados no Mindelo no Verão, fui com a minha mãe, o Rui, a Susana e a Joana Princesa a Goios, para (re)vermos os primos. Mas uns tinha morrido, os mais sociáveis, e os outros nem apareceram, deixando-nos a secar na estrada. Como na altura me não lembrava do nome dos da Pedra Furada, não fomos a esta aldeia, onde regressei mais tarde, com a Fáfá das Caldas, mas apenas numa das nossas múltiplas deambulações tutrísticas por Portugal de lés a lés, amiga, navegadora, auxiliar de fotógrafo e scipt-girl dum Livro de Viagens inacabado do qual restam milhares de fotos e o borrão duma «peregrinação» em livro inacabado, casa vez mais perdido nas brumas do tempo e da memória.
.
VN in RETRATOS
.
.

segunda-feira, fevereiro 26, 2007



ECCE HOMO (1)


Era o dia 26 de Fevereiro

O Pituca morreu!

Encerrado em si

hirto no seu pijama azul

as mãos bonitas e o rosto frio

um vergão em torno do pescoço

o rosto violáceo

o ar sereno.

Longe vai o tempo da minha alegria

das nossas brigas

da nossa amizade

silenciosa

tímida

desajeitada.

Fica-me no pensamento

a lembrança de ti

nas coisas que me deste

os livros os posters

os bibelots as estatuetas

africanas as tuas pinturas

a Marilyn e o Pato Donald

os discos e as cassetes.

Memória da infância perdida

nas palavras silenciadas

Meu irmão!


Victor Nogueira - Poesia

1987.Dezembro.22 (1989.Março.10) - Setúbal



É TEMPO DE CHORAR


É tempo de chorar

silenciosamente

os nossos mortos

irmãos encerrados

encurralados

É tempo de chorar

enquanto

para lá desta hora

a vida se renova

por entre

os bosques e

os regatos

sussurantes

do imaginar o son (h) o estilhaçado

É tempo de chorar o tempo que voa!

(IN MEMORIAM do meu irmão Zé Luís, morto de morte matada
por ele próprio e por muitos outros no tempo
que para ele terminou naquela tarde de
26 de Fevereiro de 1987 ............................. )


Victor Nogueira - Poesia

1989.Fevereiro.03 - Setúbal



Quadro - Dali - A Persistência da Memória

terça-feira, agosto 29, 2006



















"Reflexo "- o meu avô Barroso - fotografia de Victor Nogueira


O lugar da Casa

Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.

Eugénio de Andrade

sexta-feira, julho 07, 2006

No comboio, preparando a chegada - fotografia de Victor Nogueira

Avó e neta: chegada a Campanhã (Porto) - fotografia de Victor Nogueira
MEMÓRIAS - Viajando pelas linhas do Norte e do Oeste
* Victor Nogueira
Às 8:30 tomámos o rápido da linha do Norte. Caía uma chuva miúdinha e no céu via-se um lindo arco‑íris. Matabichámos [pequeno almoçámos] no bar da estação de Santa Apolónia, em, Lisboa, que é original, com motivos do caminho de ferro.

À saída de Lisboa passámos por um aeródromo militar. Monte Real era sobrevoada por aviões a jacto, da Base Aérea 5. A primeira paragem foi em Santarém. As cadeiras da automotora são mais espaçosas que as do rápido. Às 9:40 chegámos ao Entroncamento , a terra dos fenómenos. Ia tão entretido a ler que, entre Fátima e Pombal, passámos por um túnel sem eu dar por isso.

Antes de Pombal passámos por um outro que estava em obras. Nesta altura chovia. Às 11:10 chegámos a Alfarelos e pouco depois à estação de Coimbra B. O rio Mondego estava quase seco - e é um rio importante do continente! Passámos por Pampilhosa da Serra (11:43), Cúria (11:50), Aveiro (12:18), Estarreja, Ovar, Espinho, Granja (13:05), Vila Nova de Gaia (13:25), Campanhã e S. Bento (13:50). Na nossa carruagem seguiam 4 indianos que deveriam ter saído em Coimbra, mas por ignorância (passaram lá sem saber) não o fizeram e resolveram seguir até ao Porto. Muitas das estações do percurso tinham bonitos jardins.

E de Aveiro (ou será de Ovar?) recordo os vendedores que invadiam a carruagem do comboio, apregoando jornais, bebidas e... doces de ovos moles, em pequenas barricas de madeira. Espinho, cuja estação ficava no centro da povoação, indicava qase o fim da viagem.A partir de certa altura, em Vila Nova de Gaia, nova mudança de comboio, devido à fragilidade crescente da ponte D. Maria ! [1963]

No comboio, a caminho de Lisboa, pedi a um dos meus companheiros de viagem que me emprestasse as "Modas e Bordados" para folhear, pausa na conversa que mantínhamos desde o Porto. Agora o dia está maravilhoso e cheio de sol. (No Porto chovia a cântaros) Há já um bom bocado que deixámos Coimbra, onde era sempre a confusão da mudança de comboio, arrastando o saco de viagem ou malas.. O comboio desliza rápido, tac-tac, tac-tac. deixando para trás campos verdejantes, olivais e vinhedos, pinhais, alguns deles alagados, e casas dispersas na paisagem. Os meus vizinhos de compartimento dormitam, enquanto a sineta toca para o almoço. Daqui a uma hora chegaremos a Lisboa. (...) Os companheiros de viagem: a sra. D. Alice, ar aristocrático, minha velha conhecida do Porto, cheia de vivacidade, apesar da idade, rosto quadrado, sanguínea. O outro, desconhecido, deve ser um homem ligado à actividade comercial, pelo modo como veste e pelos apetrechos: óculos e lapiseira no bolso do lenço no casaco, pasta. Veste com pouca elegância, fato de um tecido acastanhado mesclado de azul e vermelho, colete cinzento de malha, gravata preta com duas listas - uma encarnada e amarela, estreita, outra mais larga, verde, junto ao nó. Sapatos castanhos, mal engraxados. Afinal a pasta continha um farnel embrulhado num guardanapo dentro dum saquito de plástico, que ele come, e que me ofereceu. (Isto faz‑me lembrar que tenho de ir ao bar comer uma sandes).

A D. Alice, o [jornal] "O 1º de Janeiro" nos joelhos, dormita, a cabeça apoiada na mão. Queixa‑se do frio, mas aqui para nós ainda bem que desligaram o aquecimento, pois isto já era um forno.
Chegamos ao Entroncamento são 12:40. Por causa das obras na linha, penso eu, o comboio vem atrasado. As casas, blocos uniformes, regularmente monótonos, as linhas, cruzando‑se e divergindo, cheias de carruagens, vagões e locomotivas, são uma nota diferente na paisagem, que desde há uns bons quilómetros é mais árida que no princípio da viagem. A linha férrea é uma ponte nos campos alagados, com água barrenta, levemente ondulada. Solitariamente, pequenas ilhas, renques de árvores de ramos desfolhados, cujos nomes desconheço. Já não se vêm no entanto árvores cortadas e oliveiras deitadas no solo, raízes desentranhadas pela força dos ventos, que no Porto e nos últimos dias sibilaram noites seguidas, infiltrando‑se pelas frestas das portas e janelas. Gostaria de andar num barquito por esses campos alagados. [1972]
Doutra feita a viagem decorreu bem, embora maçadora. No compartimento, além de mim, viajavam dois rapazes sisudos e calados e uma rapariga, que não tinha culpa de ser feiosa e fortezita! Ia mesmo sentada à minha frente mas, contra o meu costume, não trocámos uma única palavra. Pensando bem, ela não era tão feiosa como isso, até tinha uns lindos olhos azuis e um sorriso bonito. Só sorriu uma vez, quando eu, com um ar muito circunspecto, fingia admirar a paisagem; eis senão quando aparece um malandro dum comboio, sem avisar, às apitadelas, que me fez dar um salto na poltrona. A muito custo lá consegui assumir um ar de dignidade ofendida, embora a vontade de rir fosse grande. Bem, lá chegámos a Lisboa, onde chovia a potes. Táxis, nem sombra; os que apareciam eram logo anexados. Mas... enquanto há vida há esperança e sempre apanhei um! [1968]

Em Aveiro a corrente eléctrica foi abaixo e lá ficou o comboio parado e eu cheio de sede e de fome, a ver que íamos ali passar o resto da noite! Lá para as tantas entrou o "Foguete" na estação, rumo ao Porto. Vai daí, eu e mais alguns expeditos mudámos para ele, e assim consegui viajar confortavelmente, em poltronas estofadas e com aquecimento (1ª classe), conseguindo chegar ao Porto à tabela, i.e, ás 21:30, sem pagar bilhete. (Soube depois que o resto da malta, do outro comboio, só chegou depois das 23:00). Enfim ...

(...) Cá vou de regresso a Lisboa, num comboio cheio mas onde consegui arranjar um lugar sentado. Os meus companheiros de cabine dormem e um deles ressona beatificamente. Este postal é - creio - uma fotografia retirada dum dos dois filmes que há dias vi sobre as campanhas de alfabetização, as tais em que eu gostaria de ter participado em Agosto último se... Esta cena do filme era comovente: uma mulher que até aí não sabia comunicar por escrito, conseguir fazê-lo. A procura das sílabas, o gesto hesitante, o voltar atrás para corrigir ou desenhar melhor a letra!!! Deve ser bestial um tipo descobrir que sabe ler! (1974)

As carruagens do comboio da Linha do Oeste são antiquadas e as do Caminho de Ferro de Benguela [em Angola] são um pouco melhores. Passámos em Francelos, onde há um sanatório para doenças dos ossos. Perto de Aveiro, os campos têm pinheiros e milho. Em Coimbra nada vi, pois a estação velha não fica na cidade. De Coimbra a Monte Real vim a conversar com um sacerdote franciscano, bastante falador. O Rio Mondego estava quase seco. Havia muito arroz e oliveiras. Chegámos a Monte Real cerca das 17:30. Na Pensão Cozinha Portuguesa fiquei instalado. Um quarto do sótão, pequeno, sem água corrente, com uma clarabóia. O quarto tem uma cama com um óptimo colchão, um guarda fatos, uma mesa de cabeceira, além do lavatório e bidé. Como é meu costume tratei de visitar a terra, tendo dois hotéis e quase duas dezenas de pensões; a nossa fica num extremo. (1963)
E se a viagem era normal em épocas normais, aos fins de semana eram mais complicadas, com as carruagens cheias de magalas ruidosos. Mas ainda mais complicada era na altura do Natal, onde uma vez fiz a viagem quase toda de pé, a cesta de vime de alguém entre as minhas pernas, a carruagem cheia de sacos, aves vivas e o mais que as pessoas transportavam. Mas o que eu gostava mesmo, nos meus tempos de juventude, era seguir no degrau da porta, o vento a bater na face e, por vezes, uma fagulha traiçoeira incomodando os olhos.

Na linha do Oeste um deslumbramento para mim foi descobrir Óbidos entre muralhas, que na altura pensava ser um enorme castelo, até que mais tarde descobri que os castelos eram mais pequenos, normalmente situados no cimo da encosta aproveitando o alcantilado, e que o resto eram apenas muralhas mais ou menos extensas protegendo a povoação, conforme a sua importância. Victor Nogueira (Memórias de Viagem - 1996)