A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht
Mostrar mensagens com a etiqueta Militante. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Militante. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, dezembro 14, 2015

Há 50 anos: «Fala Rádio Portugal Livre!...»




desenho do pintor António Domingues, datado de 1953. 

Há 50 anos: «Fala Rádio Portugal Livre!...»

Em 12 de Março de 1962, há precisamente 50 anos, estas palavras de esperança e de confiança, antecedidas pelos acordes do hino nacional, entravam nas casas de muitos portugueses.
«A notícia divulgou-se mais que depressa e em pouco tempo o entusiasmo correu de Norte a Sul.» «Finalmente ouviu-se a voz de Portugal Livre, grande aspiração de todos os antifascistas portugueses. Mais um golpe profundo foi dado pelo nosso povo na censura salazarista».
Foi nestes termos que o «Avante!» de Abril de 1962 anunciou na sua primeira página a entrada em funcionamento da emissora clandestina do Partido Comunista Português – a Rádio Portugal Livre (RPL).
Sublinhando que essa voz antifascista, vencendo todas as barreiras e obstáculos, chegava a muitos portugueses, apelando à sua divulgação e envio de sugestões e críticas para ajudar a nossa emissora a «ser um poderoso factor de esclarecimento, propaganda e agitação a favor da luta do nosso povo», o «Avante!» saudou «calorosamente essa nova e bela voz irmã».
A criação da RPL e a sua entrada em funcionamento em Março de 1962 correspondeu a uma exigência colocada pela luta do povo português contra a ditadura fascista, luta que entrara numa nova fase do seu desenvolvimento. O PCP, única força política organizada, vanguarda da resistência ao fascismo, dando uma vez mais provas da sua capacidade e imensa criatividade, foi ao encontro dessa exigência.
Os factores decisivos que tornaram possível a nossa rádio clandestina foram, indiscutivelmente, a dimensão que atingira a luta heróica do povo português pela liberdade e a democracia e a ampla repercussão além-fronteiras; a luta dos comunistas e o enorme prestígio alcançado pelo PCP, tanto no plano nacional como internacional; e, nunca é demais lembrar, a força do internacionalismo proletário, expresso no apoio e solidariedade incondicionais dos países socialistas, designadamente da URSS e da República Socialista da Roménia.
Se, na instalação da emissora do PCP em Bucareste, capital da Roménia, pesaram factores de ordem técnica, também é verdade que para tal contou igualmente a experiência desse país socialista na montagem de rádios revolucionárias clandestinas no seu território e, também, duma rádio do Partido Comunista Romeno no seu próprio país ocupado pelas tropas nazis hitlerianas durante a II Guerra Mundial.
As palavras de abertura da nossa rádio – «Fala Rádio Portugal Livre, Emissora Portuguesa ao Serviço do Povo, da Democracia e da Independência Nacional» – marcaram durante toda a sua existência o conteúdo geral das suas emissões.
Ao ir para o ar pela primeira vez, em Março de 1962, começando logo por divulgar amplamente o manifesto do Comité Central do PCP com os apelos à mobilização dos trabalhadores para a organização e preparação do 1.º de Maio, a RPL identificou-se com esta jornada de luta dos trabalhadores e do povo de tal modo que era corrente ouvir-se designá-la pela «Rádio do 1.º de Maio».
Nos nossos programas denunciámos, através da informação que nos chegava, enviada fundamentalmente pelo Partido, a política da ditadura fascista, a exploração dos trabalhadores, o domínio imperialista; os crimes das guerras coloniais; a situação repressiva (a censura, as perseguições, as prisões, a situação prisional, os julgamentos, as condenações, as torturas, os assassinatos). Divulgámos e apontámos como exemplos os comportamentos heróicos de firmeza perante a PIDE, a luta e a resistência consequentes travadas nas prisões fascistas. Denunciámos e apontámos ao povo os nomes dos torcionários.
Lugar de primeiro plano tiveram nas nossas emissões as lutas dos trabalhadores nas empresas, nos campos, nos portos, nas minas, nos sindicatos; as lutas da juventude nas escolas e universidades; dos intelectuais; das mulheres; dos soldados contra as guerras coloniais e a luta pela paz; a luta dos patriotas da Guiné, Angola e Moçambique pela sua libertação.
De destacar a rubrica «A Voz das Forças Armadas!», transmitida semanalmente aos sábados durante os 12 anos da rádio, de Março de 1962 até às vésperas do 25 de Abril de 1974. As realizações e conquistas do socialismo, as lutas e vitórias da classe operária e das forças revolucionárias mundiais chegavam aos portugueses através da RPL.
Obrigatória nos nossos programas era a leitura do «Avante!» e de «O Militante» e tempo considerável era dedicado à transmissão de todos os documentos centrais do Partido: das reuniões do CC, do Secretariado do CC; o «Rumo à Vitória»; o relatório ao VI Congresso; o Programa do Partido, etc. Assinalámos o 50.º aniversário do Partido, em 1971, com a divulgação, durante um ano, em emissões especiais noutros horários, de materiais e programas sobre a História do Partido, contribuindo também, deste modo, para a preparação política e ideológica dos quadros do Partido e tornando conhecida dos trabalhadores e do povo a luta dos comunistas desde a sua criação, em 1921.
Entrevistámos e recolhemos depoimentos de numerosos dirigentes do nosso Partido, entre os quais Álvaro Cunhal, Sérgio Vilarigues, José Vitoriano, Francisco Miguel, Manuel Rodrigues da Silva. Transmitimos igualmente entrevistas com dirigentes dos partidos comunistas irmãos, com velhos bolcheviques, com cosmonautas soviéticos, com dirigentes dos movimentos de libertação das colónias portuguesas. Recordo ainda com emoção a entrevista que gravei, em Praga, em Fevereiro de 1967, com Amílcar Cabral e, pouco tempo depois, nessa mesma cidade, a entrevista com o nosso camarada José Vitoriano, libertado após longos anos de prisão graças a uma campanha mundial pela sua libertação e em que a nossa rádio também participou.
Gravámos entrevistas, anónimas, de trabalhadores, mulheres, dirigentes estudantis, jovens desertores. Emitimos programas especiais dirigidos a várias terras, baluartes da luta antifascista: Couço, Baleizão, Pias, Vale de Vargo, Grândola, Aljustrel, Montemor-o-Novo, etc.
Aos domingos, ao meio dia, ia para o ar a nossa «Emissão Especial de Domingo» dirigida aos trabalhadores do campo.
Com cuidado especial tratámos a ilustração musical dos nossos programas utilizando música portuguesa de qualidade: Lopes Graça, corais alentejanos, Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire, Luís Cília, etc. Aos microfones da RPL os portugueses puderam escutar pela primeira vez a voz de Luísa Basto cantando o que viria a ser um hino da nossa luta: a canção «Avante, camarada Avante!».
Divulgámos igualmente canções revolucionárias e música popular de outros países: da URSS e de outros países socialistas; canções da guerra civil de Espanha; canções italianas e francesas da resistência na II Guerra Mundial.
Tudo isto só foi possível graças aos enormes esforços desenvolvidos pela Direcção do nosso Partido, designadamente do seu Secretariado, que, dando provas da sua imensa capacidade e criatividade encontraram formas, eficazes e habilidosas, de iludir a apertada vigilância policial fascista e canalizar para a rádio toda a informação necessária à elaboração de programas ligados às realidades do nosso país, do nosso povo, da nossa luta, apesar dos milhares de quilómetros que nos separavam.
Além da informação interna do Partido, e com o apoio também de outros partidos irmãos, recebíamos, embora com algum atraso, os principais jornais portugueses, as notícias das agências France Press, Reuters, Prensa Latina, Tass, Agência de Notícias Romena, imprensa comunista diária e revistas – da França, Itália, URSS, etc.
Por outro lado, diariamente fazíamos a escuta da chamada «Emissora Nacional» e de várias rádios estrangeiras.
Alguns trânsfugas, pretendendo denegrir o trabalho e a imagem do PCP, procuraram, depois do 25 de Abril, em entrevistas e jornais, rádio, televisões, fazer crer que a RPL não era ouvida e que o PCP, como se atreveram a dizer, andou «a falar para o boneco».
A prova de que a rádio do PCP era ouvida, e muito, e nalgumas regiões até em óptimas condições auditivas, foi o facto do governo fascista e da PIDE terem procurado prejudicar a sua audição com interferências a partir dos potentes meios técnicos americanos instalados na antena da RARET, em Glória do Ribatejo.
E, também, nos anos 60, o facto do então Governador Civil de Beja, o fascista António Marques Fragoso ter dirigido circulares aos presidentes das Câmaras do distrito para que fizessem um inquérito a quem comprasse rádios portáteis: em que condições, a pronto ou a crédito; se os recebiam gratuitamente; as marcas dos aparelhos; ondas que captavam, etc. Nas ditas circulares recomendava-se a apreensão do aparelho em caso de suspeita de actividade política e participação à PIDE.
Ao assinalar os 50 anos da rádio clandestina do PCP, que esteve presente, acompanhou e participou diariamente na luta do povo português contra a ditadura e pela liberdade, de Março de 1962 a Outubro de 1974, «O Militante» não esquece aqueles que contribuíram para isso e não desertaram e ainda hoje estão presentes na luta diária, e tão difícil, que o Partido está a travar. Mas é com especial gratidão que «O Militante» evoca aqui a memória do nosso saudoso camarada Pedro Soares, membro do Comité Central, falecido em 1975, primeiro responsável por essa exaltante e pioneira tarefa na História do PCP que foi a criação de uma rádio revolucionária clandestina: ao Serviço do Povo, da Democracia e da Independência Nacional.

terça-feira, janeiro 01, 2013

Carlos Carvalhas - A luta ideológica em torno da crise


Nº 315 - Nov/Dez 2011 • Economia

A luta ideológica em torno da crise

A crise do sistema capitalista que estamos a viver e que continua em desenvolvimento tem dado lugar a uma intensa propaganda e criatividade de linguagem para desviar o pensamento das massas das verdadeiras causas da crise e fazê-las aceitar as falsas respostas.

A tese de que a crise teve origem na cupidez, na ganância, na ambição desmedida de alguns, e que hoje, sobretudo na Europa, ela é a consequência da dívida pública, continua a fazer o seu caminho.

É certo que houve especulação e complacência dos Bancos Centrais, que a crise rebentou em Agosto de 2007 e que começou no sector da habitação, que tomou proporções inesperadas para muitos e que a «inovação financeira» aumentou do «ponto de vista agregado o risco na economia, colocando o sistema à beira do colapso». Mas a crise não resultou da ganância de alguns, nem da falta de regulação do sistema bancário, nem do «crescimento excessivo do endividamento», que alguns consideram o exemplo mais recente e um dos mais notáveis do capitalismo na «dinâmica de expansão e contracção das economias. (1) Tudo isto se verificou. Mas são apenas as aparências casuais, os epifenómenos. Também não estamos perante «uma crise excepcional» (2), mas sim perante uma crise cíclica do capitalismo com características novas e específicas, agravada por novas situações – liberdade de circulação de capitais, deslocalizações, crescente peso das actividades financeiras e do «capital fictício», parasitário, especulativo, num quadro de domínio da ideologia neoliberal.

Crise de sobreprodução, crise de excesso de capital, cuja síntese passa pela destruição desse excesso em relação à taxa de lucro esperada. Uma crise de sobreprodução com extensão praticamente planetária «tendencialmente mundial», «sistémica», em relação ao subconsumo das massas (procura solvente).

Perante a concentração da riqueza e a perda do poder de compra dos trabalhadores, a tentativa de saída para a produção em relação à procura solvável das massas, foi o recurso ao crédito fácil e às exportações. Isto é, procurar saídas nos mercados dos outros e numa procura a crédito.

Para salvar os banqueiros e os accionistas, os Estados foram em socorro da banca com dinheiros públicos, nacionalizaram os prejuízos, criaram os «bad banks», para depois privatizar os lucros e endossar a factura aos contribuintes através dos impostos e do corte de despesa nas funções sociais do Estado. (3)

Depois da falência do Lemon Brothers até inventaram o «Big to Fail», isto é serem muito grandes para falirem, deixando cair milhares de pequenas e médias empresas e bancos, nomeadamente nos EUA.

Com uma campanha avassaladora fizeram esquecer a dívida privada, a dívida da banca ao exterior, que em muitos países é superior à dívida pública, como é o caso de Portugal, e conseguiram esconder que uma boa parte do crescimento da dívida pública se deveu à crise – injecção de dinheiro público na banca, nos subsídios de desemprego e prestações sociais, injecção de dinheiros públicos para tentar estimular a economia.

Conseguiram também fazer esquecer a responsabilidade da banca nesta crise e o facto de que o posterior aumento de impostos e o corte nas despesas sociais foram a outra face dos milhões que foram canalizados para o sistema financeiro.
Ao longo destes anos temos estado a resolver os problemas da dívida privada à custa da dívida pública.
Para justificar a drenagem de recursos para a banca através do corte na despesa orçamental, inventaram com criatividade a expressão corte «nas gorduras do Estado». Não há «papagaio» que não fale nas gorduras do Estado. É a linguagem do Spa, muito na moda e que aproveita a corrente das campanhas contra a obesidade.

Mas no essencial as medidas não vão no sentido da racionalização, nem da eliminação de gastos supérfluos, mas sim do desmantelamento do «Estado social». São cortes fundamentais na saúde, no ensino e na segurança social.

Por exemplo, em Portugal o Governo não corta nos subsídios à banca na ordem de milhões e esta despesa, verdadeira gordura do Estado, para utilizar a expressão destes, vai engordar os já anafados e obesos banqueiros e accionistas.

Mas não é só ao nível da linguagem e das expressões criativas. É também ao nível das Universidades e do ensino da teoria económica. Muitas destas universidades privadas, institutos e fundações, pertença directa ou indirecta de grandes grupos económicos (mas também as há públicas), o que ensinam é uma retórica e vulgata neoliberal, bem elaborada, a que não faltam expressões matemáticas para lhe dar um certo ar de cientificidade ao serviço das classes dominantes. Charlatanismo económico com os seus respectivos «catedráticos», os seus «académicos», que procuram com argumentos de autoridade e a conivência dos media, impor as suas ideias. As ideias dominantes são as da classe dominante e a ideologia económica dominante é a do neoliberalismo, vulgarizada por economistas e analistas nas universidades e grandes meios de comunicação, umas vezes por ignorância, por mimetismo, por interesse de classe e outras por interesse material (o filme «inside jobs» é muito esclarecedor destes casos). E, para além da linguagem, das expressões criativas e da produção ideológica nas universidades, temos também a simbiose entre o poder político e o poder económico, mesmo à «esquerda». Lembrar que Tony Blair deixou o governo e foi trabalhar para a J. P. Morgan, que Peter Mendelson está no Lazard, Roman Prodi na Goldeman Sachs, Gerard Shroeder no opaco conglemercardo financeiro, energético, da Gazpron.

Nos meios académicos, como testemunhava entre nós ainda recentemente um docente universitário (4), (…) «Os alunos aprendem logo no primeiro ano que a instituição de um salário mínimo cria desemprego. Mais tarde, ao nível pós-graduado, será confidenciado aos poucos que lá chegarem que, à luz da evidência disponível, essa proposição é tudo menos certa. Nessa fase do processo de doutrinação, porém, eles já estarão pouco disponíveis para questionar os dogmas da profissão. Quanto aos que não atingiram esse patamar, virão cá para fora de boa-fé papaguear a pseudo-ciência que lhes foi ministrada.
Os Nóbeis atribuídos nos últimos anos comprovam que os economistas investigam assuntos de grande relevância para o entendimento do funcionamento dos mercados, como sejam a psicologia dos consumidores, a informação assimétrica, as falhas de coordenação, os obstáculos à cooperação dentro das empresas ou as condições que favorecem o alargamento das desigualdades.

Todavia, a síntese dessa investigação que é servida aos estudantes e à opinião pública ignora sistematicamente as limitações da racionalidade humana e as falhas dos sistemas económicos que delas decorrem, em favor de uma visão cor-de-rosa do funcionamento dos mercados desregulados. Assim, embora o estudo do comportamento dos agentes económicos demonstre que os pressupostos da microeconomia estão errados, ela continua a ser ensinada como se nada fosse.» (...)

E todos estes sábios repetem mil vezes que «não há alternativa!» O conhecido acrónimo thatcheriano «Tina», «there is no alternative», é a resposta do pensamento único e dos que são responsáveis pela situação em que nos encontramos. Não há alternativa ao capitalismo, não há alternativa ao neoliberalismo, não há alternativa ao cumprimento do acordo com a troika...

Como já alguém disse, estes propagandistas da submissão e do conformismo também não descuram o marketing e a propaganda.

O salário é sempre na boca destes um «custo do trabalho», a diminuição dos salários é embrulhada na expressão «aumento de flexibilidade sobre o mercado do trabalho» ou «moderação salarial» e o desmantelamento do Estado Social naquilo que designam por «reformas estruturais». As quotizações sociais são sempre «encargos sociais», os patrões são «empregadores», a exploração desapareceu do léxico e os trabalhadores passaram definitivamente a «colaboradores», etc., etc.

A crise do sistema monetário internacional
O curso do dólar e o euro tem sido errático ao longo destes tempos. A chamada «guerra cambial» ou «guerra das moedas» tem-se traduzido nas disputas entre países na procura de ganhos de competitividade – desvalorizações para aumentar as exportações, movimentos especulativos sobre tal ou tal divisa (o yen japonês, o franco suíço...) e a luta pela manutenção dos privilégios do dólar, moeda de reserva mundial e intermediária internacional de troca, designadamente na compra de matérias-primas – petróleo, gás – contra o euro que se quer afirmar como moeda de reserva mundial.

O dólar tem visto o seu estatuto de moeda de reserva ser posto em causa devido à dívida externa dos EUA, à emissão de dólares sem correspondência à produção de bens e serviços para a resolução dos problemas do sobre-endividamento. Por isso, os EUA, acompanhado a maior parte das vezes pela Inglaterra, tem procurado ampliar e tirar partido dos problemas da zona euro, designadamente os ligados à dívida externa dos países periféricos, para descredibilizar o euro.

As reservas de divisas mundiais representam actualmente o equivalente a 9694 milhares de milhão de dólares (FMI, 31.03.2011), sendo 61% titulados em dólares US e 27% em euros. As duas moedas representam cerca de 90% das reservas de troca mundiais. A libra e o yen são respectivamente a terceira e quarta moeda mais importantes. Há dez anos a parte correspondente ao dólar era 10% superior à actual e a do euro era menor. O euro tem vindo a afirmar-se como moeda de reserva e investidores asiáticos, tal como russos, brasileiros e outros, têm procurado ficar menos dependentes do dólar. Para se ter uma ideia dos ganhos e perdas que se podem ter com a flutuação cambial das moedas e os movimentos especulativos, basta ver que o montante médio diário das transacções em 2010 foi de 4000 milhares de milhão de dólares. Estes fluxos monetários continuam a ser dominados pelo dólar. O euro subiu ligeiramente, passou de 18,5% para 19,5%. Mas a disputa continua, num quadro de grande instabilidade financeira, económica e social.

O Banco Asiático para o Desenvolvimento há muito que pressiona os seus membros para a criação de uma moeda comum, mas poucos passos foram dados. A Rússia, a Venezuela e o Brasil têm vindo a aumentar as suas trocas nas moedas nacionais e a pressão para a reformulação do sistema monetário internacional, da parte destes países e da China, tem aumentado. A evolução para uma moeda tendo por referência um cabaz de moedas fortes com uma parte em ouro, ou para a utilização dos direitos de saque especiais do FMI com base num mesmo cabaz, são propostas que surgem com peso, periodicamente. Mas que esbarram com a oposição directa ou indirecta dos EUA e da Inglaterra, que utilizam toda a sua força e pressão – designadamente militar – junto dos países produtores de petróleo, para que a sua cotação e transacção se faça em dólares, mantendo o status quo do sistema monetário internacional.

O euro tem flutuado entre 1,39 e 1,45, em relação ao dólar, embora o dólar tenha manifestado uma tendência para a baixa a longo prazo. A China e o Brasil, a Suíça e o Japão vão lutando contra as pressões e movimentos especulativos no sentido da apreciação das suas moedas.

Nos EUA, o recente aumento do tecto da dívida decidida pelo Congresso não suscitou nenhuma reacção por parte da China. Mas este país não tem estado a comprar Títulos de Tesouro americanos desde Outubro do ano passado e terá mesmo reduzido o seu montante em cerca de 15 milhares de milhão. O Ministro das Finanças americano estima que a China detém 1160 milhares de milhão de dólares de Títulos do Tesouro dos EUA. A China e o Japão são os maiores detentores da dívida americana.

A confrontação entre o dólar pela manutenção dos privilégios e o euro e outras divisas que procuram conquistar posições como moedas de reserva e de troca internacionais é uma luta estratégica que explica muito dos comportamentos dos EUA e da Wall Street, bem como da Inglaterra e da City e do Banco Central Europeu.~

A construção de um euro forte à imagem do marco de modo a credibilizar a moeda internacionalmente como moeda de reserva é a principal linha orientadora da política monetária e cambial do BCE e não a coesão económica e o desenvolvimento da zona euro como um todo, o que implicaria um euro muito menos valorizado. Esta política tem dificultado as exportações e agravado a situação dos países com economias mais débeis.(5)

Por sua vez, na União Europeia muitos dos países com dívidas públicas e privadas e dívidas externas extremamente elevadas jamais terão possibilidade de as resgatar. A solução, mais cedo ou mais tarde, terá de passar pelo corte da dívida (hair cut). Reestruturação das dívidas de forma mais ou menos planeada. A recusa e o protelamento da resolução das dívidas destes países põem em causa toda a estratégia de credibilização do euro. É uma contradição insanável. E tudo isto se irá complicar quando a Grécia declarar o incumprimento, ou tiver de pedir novos empréstimos (está-se só a ganhar tempo, já se fala num corte da dívida grega de 50%) e quando a crise chegar com mais acuidade à Espanha e à Itália, pois estes dois países, como já alguém disse, são muito grandes para falirem e são também muito grandes para serem salvos «too big to fail» e «too big to save»!

Os cortes das dívidas públicas a «mata-cavalos», em períodos tão curtos, afundam os países no marasmo e na recessão, acentuando a sua insolvabilidade. E as privatizações de empresas altamente rentáveis alivia, ganha tempo, mas é a condenação a maior dependência e a maior drenagem de recursos (dividendos, lucros) para o exterior.

Os recentes ataques de Fundos Americanos a bancos europeus, nomeadamente franceses, deixando-os desprovidos de dólares, o que fez baixar a sua cotação e notação, bem assim como a posterior intervenção coordenada dos Bancos Centrais, inserem-se na estratégia anglo-saxónica de enfraquecer o euro e o sistema bancário europeu e de mostrar ao mundo a importância do dólar. Os bancos europeus tinham euros mas não tinham dólares e não conseguem financiar a compra do gás, do petróleo, por exemplo! Na mesma linha está a ampliação através da comunicação social e da imprensa financeira e económica especializada, dominada pela City e Wall Street, dos problemas da zona euro e das dívidas públicas dos países periféricos. Mesmo algumas das declarações de Barack Obama não são inocentes e visam o mesmo objectivo: descredibilizar a zona euro em benefício do dólar (6). É por isso que quando a Alemanha, a União Europeia e o Banco Central Europeu quiseram penalizar a Grécia, ou fazem chantagem sobre a Grécia e outros países, pensando que estão sozinhos no mundo, Wall Street e a City de Londres, e as suas correias de transmissão, as empresas de «notação», aproveitaram a situação para criar um clima negativo e de dúvida sobre a zona euro, o que os obriga a «meter a chantagem no saco» e a tentar resolver os problemas.

A dívida externa dos EUA também não é resgatável e só se pode manter enquanto o mundo continuar a comprar dólares e Títulos do Tesouro americanos.

A resposta à crise, sobretudo da parte da UE, tem-se inscrito na ortodoxia neoliberal – diminuição dos salários, liquidação de direitos, desmantelamento do Estado Social, privatizações, com todos os países a procurar ao mesmo tempo nas exportações a solução para a marasmo económico. A absolutização da redução do défice através da diminuição de salários, pensões e prestações sociais vai continuar a agravar não só a situação social, como a situação económica e financeira.

Na verdade, todos estes planos de austeridade têm em comum passar a factura para os contribuintes e os trabalhadores, alimentar a recessão e sobrestimar as receitas futuras. Por isso, não é de estranhar as sucessivas revisões em baixa do crescimento destes países e de crescimento mundial. Está-se numa nova espiral descendente económica e financeira. E os dois principais vectores da política económica continuam a ser: diminuição dos salários e mais crédito para relançar o crescimento. Precisamente os vectores que estiveram na origem da crise do «sub-prime» e desta crise – uma distribuição desigual do Rendimento Nacional, a concentração da riqueza e o desenvolvimento do crédito para manter o consumo.

As contradições do capitalismo têm-se agudizado, bem assim como as rivalidades inter-imperialistas, designadamente em torno das perspectivas do sistema monetário internacional. É a esta luz que têm que ser vistos os desacordos entre os EUA e a UE na resposta à crise, ou as declarações de Tim Geihner em nome dos americanos, na reunião dos ministros das Finanças da UE, na Polónia, no dia 27 de Setembro, de que os europeus deveriam reforçar o Fundo Europeu de Estabilização Financeiro (FEEF) a fim de terem meios para reforçar os seus bancos.

Estas divergências ainda ficaram mais claras na reunião anual de Washington de 24 e 25 de Setembro de 2011, do FMI e BM: os americanos dando prioridade aos programas de criação monetária para relançar a economia e a UE dando prioridade à estabilização das finanças públicas e da banca através de dinheiros públicos. (7)

Contradições do capitalismo
São conhecidas as contradições fundamentais do capitalismo, que esta crise expressa com toda a clareza e evidência, bem como a luta de classes nos seus diversos planos. E a este propósito não deixa de ser reveladora a declaração há uns meses atrás do multimilionário americano Buffet de que ele sabia que estava a haver luta de classes, mas que era a sua classe que estava a ganhar, para mais recentemente vir defender um novo imposto sobre os ricos («deixem-se de apaparicar os ricos»). É a consciência de quem sente que é melhor dar alguma coisa antes que as coisas dêem para o torto!

Mas no quadro actual há uma nova contradição, simultaneamente ampliada e consequência de uma das maiores conquistas das classes dominantes na nossa época: a liberdade de circulação de capitais.

Essa contradição resulta das deslocalizações facilitadas pela livre circulação de capitais e impulsionadas pelo avanço das novas tecnologias, designadamente telecomunicações, informação e que têm também estado no centro de uma mistificação ideológica. É a exportação de capitais de forma exponencial (Lénine, O imperialismo estado supremo do capitalismo), expressa nas fórmulas de globalização das mercadorias e globalização financeira (ver, entre outros, Jacques Sapir, La demondialization, ou Eric Laurent, Le scandale des deslocalizations).

As deslocalizações, sobretudo pelos grandes grupos económicos e financeiros (mas até pelas administrações públicas) (8), deram lugar a altíssimas taxas de lucro destas empresas e a uma fantástica evasão fiscal. Mas com a passagem do tempo viu-se que a destruição de empresas resultante das deslocalizações maciças não foi compensada pela criação de empregos nos serviços e novas tecnologias. Que os empregos perdidos não se situavam só nos baixos salários, pois atingem hoje os empregos mais qualificados e os níveis salariais mais altos – investigadores, quadros informáticos, engenheiros e especialistas de ponta –, nem que a repatriação dos lucros tenha irrigado toda a economia – teoria do derrame. O que se verificou e está a verificar é a intensificação da concentração da riqueza, condenando o consumo de massas e o consumo popular (9) e agravando a procura solvente e o escoamento da produção. Hoje esta situação tende a agudizar o quadro social e as tensões sociais e políticas.

Por um lado, os governos sentem-se pressionados pelas populações sem emprego e com sucessivas reduções de poder de compra e nível de vida, e é a essa luz que se têm de ver os apelos de Barack Obama e Sarkozy à reindustrialização dos respectivos países, e, por outro, a pressão do grande capital que quer manter o status quo defendendo cada vez maior liberalização do comércio internacional, maiores garantias para os seus capitais exportados e opondo-se a qualquer forma de defesa da produção local ou interna. O proteccionismo passou a ser um tabu e a «livre concorrência não falseada», o dogma dos dogmas e o mito dos mitos do desenvolvimento económico. Os que lucraram, com as deslocalizações até se servem de argumentos sociais. É curioso ver representantes do grande capital a exaltar o livre-cambismo que, segundo eles, criou «milhões de empregos no Terceiro Mundo» e retirou «milhões da fome e da miséria». A intensa campanha ideológica deixou desarmada certa «esquerda» que não põe em causa o capitalismo e que se colocou na primeira linha na repetição de slogans bem elaborados, como o «não à Europa fortaleza», «não ao proteccionismo», «sim à globalização regulada»...

Hoje mais de metade dos produtos manufacturados consumidos nos EUA e na Europa são importados. E, agudizando ainda mais as contradições, os produtos que antes tinham ciclos de vida longos têm vindo a a ter ciclos de vida cada vez mais curtos pela variação de pequenas alterações tecnológicas, de forma, de cor, tornando cada vez mais difícil a sua amortização.

Nos EUA são cada vez mais os que se interrogam sobre se as deslocalizações são benéficas ou nefastas para a América.

Para convencer os americanos dos benefícios das deslocalizações, os grandes grupos económicos contratam empresas especializadas e académicos, pagando e subsidiando «estudos» enganadores e parciais.~


Vários relatórios são autênticos documentos de lobbying pró-deslocalizações. No entanto, depois de vários estudos, a publicação do «Outsourcing América» pelo «American Management Association» sobressaltou políticos e académicos ao evidenciar os efeitos negativos e ao mostrar que apesar disso muitos responsáveis políticos e promotores das deslocalizações continuam numa situação de negação.´

É neste quadro de crise global do capitalismo, com as velhas e novas contradições, que se devem analisar os acontecimentos e impulsionar a luta de massas, a luta popular, em todas as frentes.


Notas
(1) Fernando Alexandre, Crise Financeira Internacional. Estado de Arte. Ver Gandra Martins e outros. Universidade de Coimbra, 2009.
(2) Ibiden.
(3) O BPN e o BPP irão custar ao erário público muito perto de 4,5 mil milhões de euros.
(4) João Pinto e Castro, Jornal de Negócios, 15.06.2011.
(5) Portugal tem sido particularmente afectado pelo euro forte devido à estrutura das suas exportações e ainda porque a Taxa de Câmbio definida no momento adesão se traduziu numa desvalorização da peseta em 30% e do escudo em apenas 12%.
(6) Com a recente campanha americana sobre a crise europeia – veja-se, entre outras, a recente declaração (26.09.2011) de Barack Obama, em Silicon Valley, de que a crise do euro assustou o mundo, o dólar recuperou terreno e os Títulos do Tesouro americanos voltaram a ser reconhecidos como valores refúgio! Fantástico!
7) Com o agravamento da crise, mesmo os mais ortodoxos vão cedendo: Wolfgang Schauble, ministro das finanças alemão, disse que não se opõe a que a criação do Mecanismo Europeu de Estabilidade, que deve substituir o Fundo Europeu de Estabilidade, não espere por 2013. Por sua vez, a nova directora do FMI pede com urgência o aumento dos meios financeiros do FMI, no que tem tido o apoio dos chineses e a oposição dos americanos!
(8) Eric Laurent, no seu livro Le scandale des deslocalizations, cita o caso de um trabalhador americano que, telefonando para a segurança social para procurar conhecer os seus direitos por ter perdido o emprego, se deu conta que estava a falar para a Índia, para onde se tinha deslocalizado aquele serviço da Administração Pública.
(9) Joseph Stiglitz diz que os EUA são cada vez mais um país rico com populações pobres.

CARLOS CARVALHAS

http://www.omilitante.pcp.pt/pt/315/Economia/648/A-luta-ideol%C3%B3gica-em-torno-da-crise.htm

segunda-feira, dezembro 31, 2012

Agostinho Lopes - Reflexões à volta da crise e da troika


Nº 315 - Nov/Dez 2011 • Economia

(Para uma história da absolvição da política de direita e do silenciamento do PCP)

Reflexões à volta da crise e da troika

A gravidade da situação económica e social decorrente da fase actual da crise sistémica do capitalismo, obriga a classe dominante (a burguesia) a um extraordinário esforço de manipulação e diversão ideológica. Uma numerosa coorte de jornalistas, comentadores, articulistas, especialistas «sociais» – economistas, sociólogos, politólogos e filósofos… – é mobilizada e faz horas extraordinárias para explicar, justificar, esconder, as causas e os responsáveis pelo desastre.

A chegada da troika e um pacto de agressão
A chegada da troika e a imposição de um pacto de agressão, pela brutalidade das suas medidas, pela irracionalidade económica das suas soluções, pela regressão social que representam, causando revolta, indignação, perplexidade, obrigam escribas e comentadores de serviço a refinarem a campanha de manipulação e diversão.

Duas «ondas» mediáticas, não separáveis, cresceram nos principais órgãos da comunicação social e no discurso político, sobretudo no realizado por «não políticos».
Uma, bem presente a partir da decisão do governo PS/Sócrates de solicitar a intervenção da troika, que atravessou a campanha eleitoral até ao dia das eleições (5 de Junho).

Englobava um conjunto de explicações simplistas, justificações tautológicas, generalizações abusivas e sofismas evidentes sobre a necessidade da intervenção externa, via troika (FMI/BCE/CE).

Integram-na a conhecida tese «todos somos responsáveis pela situação a que o país chegou», em várias versões. Uma tentativa pura e simples, em período eleitoral, de ocultar as políticas e os responsáveis políticos (partidos e forças sociais) que governaram e conduziram a governação ao longo dos últimos 35 anos. Outra versão, foi a apelativa frase de que «vivemos acima das nossas possibilidades». Isto é, a extraordinária ideia de que «vivemos todos», os ricos e os pobres, a oligarquia financeira e os trabalhadores e pensionistas de baixas reformas. Os que enriqueceram e os que, ao longo dos últimos anos, empobreceram e se endividaram! Os grupos monopolistas, que concentraram e centralizaram capital, e as pequenas empresas – o grosso do tecido económico nacional – que faliram e sobreviveram por recurso ao crédito. O Estado que investiu e fez despesa nas funções sociais e o Estado que transferiu rendas e dinheiros públicos para a especulação financeira e os grupos económicos.

Apareceu, também, a versão da «inoportunidade de esclarecer as origens e causas da crise», em nome de que era então altura de lhe dar resposta, como se fosse possível acertar com o remédio sem conhecer a doença. Era sem dúvida nenhuma eleitoralmente muito importante para o PS, PSD e CDS/PP… ocultarem as causas da crise!

Uma quarta versão, a «exigência do consenso universal», que suportada pela gravidade da situação – era como se o país estivesse perante uma catástrofe natural – exigiria que todos estivessem de acordo para assumir como boa e única e inevitável a solução do «Memorando de Entendimento» da troika (quer na sua primeira formulação PEC IV, chumbada na Assembleia da República, quer na fórmula agravada, imposta pelo FMI/CE/BCE).

Um governo para executar o programa da troika
A segunda «onda» surge no período pós-eleições, bem articulada com a concretização do programa da troika, pelo novo Governo PSD/CDS-PP. Mas agora, mais do que explicar a crise, há que «ajudar» a suportar a violência da «medicina». Um objectivo central: permitir/facilitar a aceitação, produzir a resignação dos trabalhadores, do povo português duramente atingidos nos seus direitos e condições de vida, confrontando-os com a pretensa «inevitabilidade» das medidas, explorando o atordoamento decorrente da brutalidade, dimensão e intensidade da agressão e regressão, que muitos e muitos nunca julgaram ser possível no Portugal de Abril!

A crise como catástrofe natural
Uma primeira grande operação é a «naturalização» das causas da crise, neutralizando ideológica e politicamente as suas origens (o capitalismo, a integração capitalista europeia, as políticas de direita de sucessivos governos do PS, PSD e CDS-PP). Se os problemas decorrem de causas «naturais», do «natural» funcionamento da economia, se tudo acontece como num desastre da natureza, um tsunami ou terramoto, que se há-de fazer?, o que tem de ser, tem que ser e tem muita força, resignemo-nos… Se todos estávamos a gastar demais, a solução é cortar e gastar menos, cada um de nós, e o que o Estado gasta connosco, em saúde, em educação, em pensões e subsídios! Naturalmente, que ocultando a violenta e brutal desigualdade e discriminação com que essas medidas atingem as diversas classes e camadas sociais… este «raciocínio» suporta igualmente a «inevitabilidade» das medidas da troika e do Governo, as medidas boas são únicas, e são as que o Governo propõe e aprova! Mesmo quando o próprio Governo manda efectuar estudos que põem em causa a bondade de alguma medida, como sucede com a redução da TSU!

As idiosincrasias do povo português
Uma outra tese, bem disseminada, que vem de longe, mas que ganhou um fôlego surpreendente, é a que radica a situação e os problemas do país, e as muitas crises que o atravessam (económica, social, da justiça, …), na(s) idiossincrasia(s) do povo português.
Genéticos ou adquiridos por educação (ou ausência dela), estes «defeitos» dos portugueses, bem soprados por sociais-democratas, conservadores e outros reaccionários do Norte e Centro da Europa, com os da Alemanha à cabeça – (a notação PIGS é um exemplo!) –, justificam o que de outra forma ficava a cargo da integração capitalista europeia e em particular do Euro. Assim, se (re)descobriu que somos indolentes, preguiçosos, indisciplinados, gastadores (mais do que as suas posses!) e atreitos à corrupção. Pau neles…

Logo há que agir: facilitar e embaratecer o despedimento (sob pressão, o trabalhador deve ter a obsessão da produtividade da empresa!), reduzir e dificultar o acesso ao subsídio de desemprego (só assim os trabalhadores procurarão novo emprego, senão, a maioria está de costas ao alto em casa, a viver do subsídio!); aumentar as taxas moderadoras, para travar este vício atávico e sado-masoquista dos portugueses para frequentar serviços de urgência, centros de saúde, hospitais e fazerem análises clínicas! Etc., etc…Como é fácil ver, o nosso problema, individualizado no cidadão ou colectivo, «natural de certas classes», tem origem comportamental, pelo que uma legislação repressiva, que favoreça a disciplina, a retirada de «benesses e privilégios» do Estado social, uma «boa polícia» e a autoridade «paternal» do patronato (com a faca e o queijo na mão), resolverão quase tudo!

O Estado «gordo»
Outra tese, repetida até à saciedade, é a «diabolização do Estado e do funcionalismo público, da Despesa Pública». Fundada nos princípios e práticas do neoliberalismo, alimentada pelas políticas comunitárias, persegue-se uma reconfiguração do Estado, que elimine as funções e atribuições que, no quadro da criação da URSS e da comunidade socialista, as lutas dos trabalhadores e dos povos no século XX conquistaram nos Estados capitalistas desenvolvidos. Conquistas que em Portugal têm a idade da Revolução de Abril.´

A crise capitalista em curso surge como uma oportunidade de ouro para a liquidação do dito Estado social, as «gorduras» na linguagem de marchantes políticos do PSD/CDS-PP. Cortes na saúde, na educação, nos apoios sociais. É ainda a persecução do dito Estado «regulador», afastado, pelas privatizações e liberalizações da produção de bens e serviços essenciais – energia, água, serviço postal, comunicações e transportes – inteiramente submetido ao império do capital financeiro e grupos económicos monopolistas. É a tese primeira (e aparentemente única) do actual Ministro da Economia, para quem a causa única da situação do país é o «Estado desproporcionado», o «Estado omnipresente e despesista», o Estado «imune à austeridade»! Não explicou o Prof. Álvaro SP como calculou a «obesidade» do Estado. Mas olhando para o Peso da Despesa Pública Total no PIB não se percebe como o Estado português é «gordo», comparando os seus 49,8% em 2009, com a Áustria – 52,9%; Finlândia – 56,0%; Irlanda – 48,20%; Bélgica – 54,0%; Dinamarca – 58,3%; Holanda – 51,4%; Suécia – 54,9%; Grécia – 52,7%; França – 56,2%; Itália – 51,9% e Reino Unido – 51,6%, ou com uma média da União Europeia e da Zona Euro, 50,8%!

O regime de Abril, «obstáculo» à felicidade do povo português
Outra tese/operação que há muito se desenvolve, umas vezes em surdina, rastejante, outras vezes em estilo catedrático e solene, outras no correio do leitor, é a responsabilização do regime político e democrático de Abril e a sua configuração jurídico-política, a Constituição da República, pelos problemas que o país enfrenta. Seguramente a mais perigosa, tem na «crise» uma oportunidade para tentar uma machada mortal na Revolução de Abril! O que está em marcha, por via legislativa ordinária, e sem, para já, revisão formal da Constituição.

Pronunciamentos a esmo, uns bem antigos, outros agora «criados» à arreata da troika, centram-se, no que poderemos chamar «os elementos formais» (apesar da sua substancial e material importância) do regime democrático. Os elementos que regulam o «fazer política» e o acesso ao poder político. Concentram-se os «críticos» no regime eleitoral (número de deputados, círculos eleitorais, composição do executivos autárquicos, etc.), no sistema judicial (independência dos tribunais e do ministério público, etc.), e agora, numa dita «reorganização administrativa» (que se traduz, por razões de pretensa despesa pública, numa agregação de freguesias e municípios, e redução do número de eleitos, com justificação meramente técnico-estatística).

Aproveitando-se dos comportamentos políticos dos partidos (e respectivos eleitos) que têm sido governo (PS, PSD e CDS) e da propagandeada necessidade do corte de «gorduras» do Estado, suportados por uma argumentação fraudulenta e extrapolações inaceitáveis, julgam que o momento é propício aos seus objectivos.

Vale a pena referir cinco comportamentos, que transformados em «cultura» e praxis políticas daqueles partidos (PS, PSD e CDS-PP) facilitaram/ajudaram a cavar fundo na opinião pública a sustentação da tese «os partidos são todos iguais», «os deputados só querem poleiro» (para tratar dos seus interesses pessoais), «os deputados/eleitos são preguiçosos/não trabalham», etc.
– Promessas eleitorais, sucessiva e repetidamente não cumpridas, de que provavelmente o «não aumento de impostos» é um exemplo multiplicado ao infinito;
– Comportamento dúplice, «bipolar», no Governo e na oposição, fazendo e afirmando nesta o que depois se nega no Governo e vice-versa;
– Com excepções, mas particularmente visível nos deputados da AR, o quase completo desligamento e abandono dos eleitores e populações que os elegeram, com quebra dos compromissos eleitorais assumidos;
– O voto parlamentar ao arrepio do que foram propostas/opiniões suas na oposição, ou nas campanhas eleitorais, na melhor das hipóteses, «votações» com declaração de voto «sossega consciência»!
– A endémica «corrupção» e o tráfico de influências que atravessam aqueles partidos, nomeadamente com o deslizar de gente das cadeiras do poder para as administrações das grandes empresas públicas e privadas e vice-versa! (Problema hoje, numa fronteira e confusão perigosa, com a tentativa da criminalização da decisão e governação política, assim absolvendo as políticas e opções políticas!)
Comportamentos em geral «esquecidos» dos media, que assim dão forte contribuição para a amnésia persistente, para a confusão reinante e para a cacofonia de uma «classe política» que não existe… nomeadamente não fazendo a pedagogia da diferença, não inserindo «os factos», «os acontecimentos» nos processos políticos que os determinam, etc. Mas que têm uma particular e múltipla utilidade política e ideológica.
– Se os problemas, estrangulamentos e obstáculos, estão nos «elementos formais» do regime democrático, então estão absolvidas as opções políticas centrais e o conteúdo concreto das políticas levadas a cabo ao longo dos últimos 35 anos pelo PS, PSD e CDS. Se os problemas do país é do número de deputados ou da dimensão do círculo eleitoral, então qual a responsabilidade política dos deputados desses partidos pelo que aconteceu? E bastará fazer essas alterações, e não mudar de políticas, para que os problemas se resolvam!
– Se os problemas, e mesmo as causas da crise estão no regime democrático e por extensão na Constituição da República – alguns atrevem-se a falar do esgotamento do regime de Abril! – então a solução é a subversão do regime democrático e a liquidação da Constituição!
Os responsáveis políticos e de classe da crise nacional
Na campanha de manipulação e diversão em torno da crise nacional, da sua natureza e origem e dos caminhos e medidas para lhe responder, pesa também uma persistente e cultivada amnésia política, um pesado manto de silêncio e cortinas de fumo ideológico.
Não será estranho que poucos se espantem que o Programa do XIX Governo Constitucional (PSD/CDS-PP), 37 anos depois do 25 de Abril coloque como objectivo «uma estratégia destinada a inverter a desindustrialização do país registada nos últimos anos e promover uma reindustrialização (…)»? Noutro plano, é admirável ver um representante do Grupo Mello, João de Mello, Presidente da Associação da Indústria da Petroquímica, Química e Refinação (AIPQR) e da CUF, a perguntar: «Está na altura de saber se queremos um país produtivo, com um tecido industrial competitivo, ou se Portugal está condenado a ser um fornecedor de serviços, uma espécie de centro comercial, condenada a importar a generalidade dos bens de que necessita (…)» (porta-voz de um grupo económico que abandonou o sector produtivo, tendo vendido a Tabaqueira, adquirida por privatização, à Philips Morris e que está focado na produção de bens não transaccionáveis: auto-estradas, saúde, etc.).

E não é que o país assiste espantado a Cavaco Silva, como Presidente da República reclamar e clamar pela defesa da agricultura, da pesca e do mar!

Será que os «criminosos» arrependidos, num acto de profunda contrição, reconhecem os seus erros e querem emendar a mão? De facto, procuram alimentar a enorme campanha de mistificação e propaganda que procura fazer crer que a causa da situação do país é órfã de pai e mãe, não tem causas nem responsáveis.

Identificados mas não conhecidos
Ora, hoje, estão perfeitamente identificados, o que não significa conhecidos, os responsáveis políticos e de classe pelas opções, orientações e políticas que conduziram o país ao buraco financeiro em que se encontra, os responsáveis pela extraordinária dimensão da dívida externa, pública e privada.

Os responsáveis políticos são os partidos e os seus dirigentes e os seus deputados, que, ao longo destes anos, no Governo e na oposição, aprovaram as opções, orientações e políticas de sucessivos governos – recuperação capitalista, latifundista e imperialista, a adesão à CEE e o apoio a uma integração comunitária crescentemente assimétrica, a adesão ao Euro, as políticas de destruição do tecido produtivo nacional – o PS, o PSD e o CDS! Os mesmos que acabaram de subscrever em Maio o Memorando da troika.

Os responsáveis de classe, os grandes grupos económicos monopolistas, reconstituídos e fortalecidos por aqueles partidos nas suas políticas de recuperação capitalista, nomeadamente através das privatizações e liberalizações, da predação dos trabalhadores, MPME e recurso públicos. Os grupos monopolistas que, sempre em profunda simbiose com os «seus» governos, apadrinharam e aproveitaram-se daquelas opções, orientações e políticas, para concentrarem e centralizarem o capital, crescendo e reforçando o seu poder económico e político!

Uma nova diversão do PS – o federalismo
Na pós-derrota eleitoral de 5 de Junho, encaixado no desenvolvimento «criativo» da campanha de manipulação e diversão, o novo PS de António José Seguro, descobre o novo caminho (das pedras): o federalismo, ou melhor o avanço do federalismo na União Europeia! E não está só, porque há também um outro «federalismo» à esquerda…

E com este federalismo (e os seus instrumentos: eurobonds, governo económico, etc.) pretende matar vários coelhos.

Atira para fora do país as razões das nossas dificuldades e problemas, aliviando as responsabilidades do PS, no passado. As razões estão na União Europeia, que não é tão federalista quanto devia ser… E anuncia iniciativas junto dos outros partidos sociais-democratas da Europa, para uma acção comum, por uma União Europeia solidária e etc…
Marca diferenças relativamente ao Governo PSD/CDS, mergulhado na execução do programa da troika, que assinaram os três…, e a quem Merkel e Sarkozy indicam/impõem o caminho da recessão económica, isto é do desastre nacional!

Evita abordar as causas centrais da crise em Portugal e pronunciar-se sobre as medidas da troika, de que é co-responsável com PSD e CDS-PP, apontando para uma não resposta aos problemas concretos do país.

Não é propriamente uma grande novidade a descoberta de A. J. Seguro. É a solução de políticos e ideólogos neoliberais, da social-democracia aos conservadores – em Portugal gente do PS, PSD e CDS – que, confrontados com a brutal realidade da integração europeia e do euro (a pedra sobre a qual Guterres ia construir a sua Europa), pondo a nu toda a propaganda, todas as fraudes e mentiras que ao longo de 25 anos foram impingidas sobre uma União Europeia de «coesão económica, social e territorial e de solidariedade entre os Estados-membros» (ainda hoje inscrita nos Tratados). Percebe-se, é necessário ensaiar velhas e novas explicações e justificações e inventar soluções miraculosas para a dramática situação que Portugal e outros países da periferia europeia enfrentam!

Com o que entramos no reino da mitologia. O mito dos pais fundadores da CEE/União Europeia e dos líderes inspirados que se lhes seguiram. O tempo do paraíso comunitário, em que o feroz leão convivia com o manso cordeiro, onde não havia «egoísmos nacionais»! Os «grandes e desinteressados» líderes, guiados pelo ideal de uma Europa unida e solidária, que conseguiram o facto notável de mais do que duplicar o número de Estados-membros no alargamento a Leste, reduzindo o Orçamento Comunitário!

Há mais de um ano que Estados-membros soberanos como a Grécia, a Irlanda e Portugal soçobram perante a chantagem e agiotagem dos chamados mercados financeiros e agências de rating. Situação que decorre sob as declarações e conciliábulos dos membros do Directório das grandes potências, com a França e a Alemanha à cabeça.
Quem depois de tudo isto julgar que a solução passa pelo reforço do comando político e económico do Directório, via soluções federalistas, como não é possível admitir ingenuidade ou boa fé, tal desígnio, só pode ser cúmplice dessas políticas. Não há mais margem para ambiguidades e dúvidas.

O silenciamento do PCP, uma estratégia de ocultação
Mas a campanha do pensamento dominante em Portugal não é apenas de manipulação e diversão. Acumula e integra uma deliberada estratégia de ocultação do PCP.

O silenciamento da justeza das suas posições passadas. É notável que reconhecendo-se hoje que o país tem um significativo défice nos sectores produtivos, não haja, nas lamúrias sobre o tema, alguém que diga: os comunistas tinham razão quando ao longo das três últimas décadas chamavam a atenção para a destruição da estrutura produtiva na agricultura, nas pescas, na indústria! E são muitos, os que hoje descobrindo e falando do desastre que foi a adesão ao Euro, para a competitividade das nossas empresas, na perda de importantes instrumentos económicos pelo Estado, ou da sua dependência absoluta dos mercados financeiros… não conseguem lembrar-se das posições do PCP sobre o assunto!

A desvalorização e apagamento das suas propostas no presente. Poder-se-ia falar das medidas avançadas em matéria de energia, crédito ou fiscalidade, na saúde e na educação, e para as pequenas empresas. Fixemo-nos na proposta de renegociação da dívida apresentada a 5 de Abril, antes ainda do pedido do Governo de intervenção da troika e formalizada em iniciativa parlamentar por Projecto de Resolução debatido a 20 de Julho. A falência do programa da troika, bem visível nas novas e draconianas medidas de austeridade presentes no OE para 2012, evidenciam, como muitos analistas e comentadores de diversas áreas político-ideológicas referem, a necessidade de mais tempo para pagar a dívida e condições para o crescimento económico. Isto é, renegociar a dívida, como o PCP propôs e propõe.

Aliás, quando se diz «somos todos culpados ou responsáveis», quando se afirma que «todos os partidos são iguais» ou se responsabiliza uma anónima «classe política», é da ocultação do PCP, do silêncio sobre as suas posições e prevenções, da negação das suas propostas que se trata.

Uma tentativa de anulação do PCP, como núcleo central de qualquer alternativa futura que não se limite a gerir o capitalismo.

Não o conseguirão.

http://www.omilitante.pcp.pt/pt/315/Economia/649/Reflex%C3%B5es-%C3%A0-volta-da-crise-e-da-troika.htm

quarta-feira, julho 25, 2012

César Príncipe ~ Tráfico & Corrupção: Doença genética do capitalismo


24 DE JULHO DE 2012 - 9H42 



No sistema do capitalismo real, o tráfico e a corrupção são elementos estruturantes. Nos Estados Unidos o tráfico de influências e a corrupção granjearam estatuto legal e gabinete no Congresso. Passaram à categoria de lobby. Conquistaram espaço de diálogo junto do Legislativo e nas cercanias do Executivo. Em Portugal, o lobby esconde-se sob nomes grotescos como sucateiro ou pós-modernos como parceria público-privada.

Por César Príncipe, na revista Militante, de Portugal

Sobre tráfico e corrupção muito se fala e pouco se clarifica. Situaremos o problema na esfera ideológica e na ilustração do concreto. No sistema do capitalismo real, o tráfico e a corrupção são elementos estruturantes; no sistema do socialismo real, são elementos acidentais. 

Não é um mero contraditório semântico e muito menos um resquício de ingenuidade ou um preconceito transformado em filosofia: a experiência histórica revela o problema e confronta o dilema. Bastará sinalizar quatro países como observatório: EUA, Portugal, URSS, Cuba.
 

Nos Estados Unidos, um dos super-veículos das virtudes do capital, o tráfico de influências e a corrupção granjearam estatuto legal e gabinete no Congresso. Sentaram-se à cabeceira da Mesa do Plano e do Orçamento. Passaram à categoria de lobby. Conquistaram espaço de diálogo junto do Legislador e nas cercanias do Executivo.

Em Portugal, o lobby esconde-se sob nomes grotescos como sucateiro ou pós-modernos como parceria público-privada. Mas é possível estabelecer uma barreira sanitária.
 

Na União Soviética, o tráfico de favores e a corrupção existiam mas não determinavam as relações estatais-empresariais nem a diplomacia econômica. Não por obra e graça do homem novo. A democratização do ensino e a didáctica cívica não seriam dissuasores bastantes. A ordem econômico-financeira de natureza socialista é o factor condicionante. No socialismo real, os benefícios à margem da lei, em geral, não transcendem o abuso corrente, o nepotismo, a promoção sem mérito, o acesso a mordomias. Já no capítulo do comércio externo aumenta o potencial de risco, pois entram em cena actores privados e podem ser sugeridas escapatórias extraterritoriais. Mantém-se, porém, nos gráficos da relatividade.

Aplicada a tese a Cuba, o Estado impôs dispositivos de curto-circuito, e como os meios são escassos, embora a corruptela possa atingir alguns departamentos ou alguns agentes, não é fácil alcançar escala: a vida do traficante, do corrupto e do corruptor move-se numa malha apertada, já que a economia de peso está em mãos da mesma entidade e a finança não serve de lavandaria nem faz ponte com paraísos fiscais e as autoridades têm tradição supervisora, até porque o Império (a 150 quilômetros) tenta a cada minuto minar a credibilidade do regime.

A teoria do bom selvagem do Norte

A nossa tese vai, portanto, no sentido de que o tráfico e a corrupção não são uma doença infantil ou senil do capitalismo, mas um expediente necessário ao longo dos ciclos de acumulação de riqueza, de sabotagem e anulação da concorrência, de drenagem dos erários para os privados.
 

Daí que, ao contrário do acento posto pelo núcleo português da Transparency International, (1) que elabora um mapa de corrupção, desenhado segundo padrões de subdesenvolvimento/desenvolvimento, reabilitando, agora para euro-consumo, o estigma de africanos, asiáticos e sul-americanos ou a fórmula de um capitalismo selvagem, a Sul, e de um capitalismo civilizado, a Norte, sustentamos que a corrupção de topo é pilotada pelas potências políticas, industriais, comerciais, financeiras.
 

Um relance por países-modelo e deparar-nos-emos com uma paisagem de teias e pirâmides: Alemanha (que volta a defender trabalho escravo e decreta o confisco de salários e pensões nos países sujeitos a resgate, incorporou a economia da corrupção e da evasão, sobretudo por banda de companhias majestáticas, emergindo a Siemens como bandeira: a BDK/União Alemã dos Investigadores Criminais e a Transparency calculam em mais de 200 biliões de euros/ano as perdas, devido a subornos e a fintas ao fisco, sendo rotineiros os fluxos de capital clandestino, nomeadamente para a amável Suíça); França (sede de tráficos múltiplos: armas, diamantes, petróleos, de que a multinacional Alston é flagrante paradigma, funciona como abrigo de ditadores cleptocratas e sanguinários); Suíça (um dos terminais e tectos da criminalidade financeira mundial); Reino Unido (onipresente nos caminhos da corrupção econômico-financeira e da evasão fiscal, com musculosos tentáculos no Oriente Médio e na Ásia, além de incondicional anfitriã da máfia russa); Estados Unidos (capital do capitalismo de assalto, das lavandarias de armamento, droga e proxenetismo, dos desvios colossais, no âmbito civil e militar: um parafuso de um avião de combate encarece dezenas de vezes entre a fábrica e o Pentágono, bilhões de dólares somem no Iraque/Afeganistão).
 

O capitalismo tende a ser selvagem e corrupto. Nunca houve capitalismo civilizado por vontade própria. Quem o poderá moderar é a perspectiva organizada do mundo do trabalho, a inteligência do protesto, a força da reivindicação, o corretor democrático, a alternativa de classe.
 

De outro modo, a sacra iniciativa privada sempre tomará a iniciativa de explorar, roubar, corromper, amedrontar, manipular, através da posse e gestão dos recursos materiais e da captura política, jurídica e mediática da sociedade.
 

O predomínio da propriedade individual, familiar e de grupo sobre a propriedade social, cooperativa e nacional favorece a desregulação entre empresas e a permissividade crónica entre empresas e Estados.
 

O tráfico de favores e a corrupção associada são ingredientes do capital, tão indispensáveis como as crises. De fato, o capitalismo de dimensão nacional, continental e intercontinental não está em crise. Não se confunda o provocador da crise com as suas vítimas.
 

Desde a sua aparição, expansão e consolidação que o capitalismo sempre foi uma marca de crise e dá a volta à crise pilhando o tesouro público e saqueando as populações e as pequenas e médias empresas, lançando operações de domínio de povos e territórios.
 

Bilhões de seres humanos têm sofrido as dores de crescimento e recuperação do capitalismo. Ele entrará, de facto e de jure, em crise se ocorrer uma ruptura sistêmica, uma tomada do poder pelos trabalhadores e pelos seus aliados de convicção ou circunstância.
 

Só então se poderá declarar que, em determinada zona do globo, o capitalismo perdeu a direcção da História e deixou de ser fonte beneficiária da corrupção, da espoliação, da sujeição, da alienação.
 

Descodifiquemos, pois, a corrupção e a crise. Teremos de as reler como energias renováveis das máquinas de assalto do capitalismo nacional, regional e global.

Favor com favor se paga

Para assegurar o pleno funcionamento e buscar o máximo rendimento, o capitalismo de ponta, com formação acadêmica cosmopolita, treinado em ditaduras brutais e democracias formais, cuida das relações com o Estado (Administração Central/Local/Regional), apostando na criação e aliciamento de pessoal que desempenhe funções em nome da Cidadania e do Serviço Público.
 

Os protagonistas do capital, utilizando os seus legisladores na Assembleia da República, nos Governos, em Sociedades de Advogados, estas, desde há anos, alçadas a quinto órgão de soberania, começam por reformular os imperativos republicanos (não foi por acaso que a primeira revisão constitucional se voltou para a matéria econômica).(2)

Aqui atua o legislador, fabricando, por caderno de encargos, complacência ou incompetência, ordenamentos à medida das clientelas, das suas oportunidades e dos seus sobressaltos. A legislação permite lucros imorais aos grupos financeiros. Quem aponta o dedo ao complô legalista? Karl Marx, em 1867? Não. José Castanheira, em 2012.(3)
 

Para outros, tratar-se-á de má qualidade do processo legislativo. É um parecer tecnicista e benévolo muito em voga entre os bloquistas centrais com alguma subtileza e capacidade de desculpa. Na realidade, o enriquecimento lícito é tanto ou mais grave e danoso do que o enriquecimento ilícito. E como se ascende a membro da tríade legislativa? Óbvio: através de outra tríade, a partidária (PSD/CDS/PS).
 

O grande capital é mecenas destas companhias de teatro eleitoral, coopera na indicação ou sugestão de representantes da Nação, recruta quadros para o vaivém EE/Empresa-Estado/Estado-Empresa. Assim se solidificam os laços do Arco do Poder/Arco de Influência.
 

Este BCI/Bloco Central de Interesses foi assumindo, desde 1976, uma irrefreável vocação de business, sendo, hoje, tarefa delicada destrinçar até onde os três partidos ou agremiações se reduzem a Centros de Super-Emprego e Agências de Negócios.
 

Raul Rego publicou, em 1969, um opúsculo com um elenco de figurões do regime fascista que se passeavam do Poder Político para o Poder Econômico.(4)
 

Em 2011, o Diário de Notícias localizou 40 ministros e secretários de Estado, que saltaram dos Governos para as Empresas.(5)
 

Que rol de competências e afinidades terão demonstrado para merecerem acolhimento fervoroso e reconhecimento distintivo? Lusoponte? Mello? Quimigal? Mota-Engil? Cimpor? Camargo? Iberdrola? Endesa? EDP? Portgás? Galp? Sonae? Brisa? Efacec? Sapec? BCP? BPN? BPP? BES?
Santander? BANIF? BIC? CGD? BP? CMVM? ANA? TAP? CTT? PT? Ongoing? Fundações (Gulbenkian/Centro Cultural de Belém/Arpad Szenes-Vieira da Silva/Serralves/Casa da Música/Oriente/Luso-Americana/Champalimaud/Manuel dos Santos-Jerónimo Martins)? Misericórdias? 

Na esteira de ex-governantes do Bloco Central de Interesses, vai um séquito de ex-assessores, de antigos chefes de gabinete e segue uma escolta do entourage partidário. Mas alguns servidores (ex-governantes e autarcas) sobem, lance a lance, a escada do sucesso, metamorfoseando-se em empresários e banqueiros.
 

O motor de busca de cabeças políticas, coroadas pelo capitalismo, levar-nos-ia por tortuosos corredores. Como merecer retrato na Galeria do Sistema? Como ter assento no Governo Visível e ser da confiança do Governo Invisível?(6)
 

Não faltam cursos de província e diplomas de Harvard. E não faltam bailarinos de turno para as danças de cadeiras. Exibem currículos da causa pública e da coisa privada. Pavoneiam-se. Os fascistas eram mais complexados. Evitavam as parangonas: Nomeação do dr. Dias Rosas para governador do Banco Nacional Ultramarino. Não pôr, em título, que é ex-ministro da Economia. (Ordem da Censura).(7)

A Grande Porca

Analistas dos EUA caracterizam a elite governante do seu país, farol e torre de controle do capitalismo, como cleptocracia bipartidária.(8)
 

Em Portugal, dadas as dificuldades na imposição de todo o receituário neoliberal (convirá relembrar aos colecionadores de calendários: houve uma Revolução democrática em 1974 e continua em alta a resistência constitucional), optou-se pelo consenso alargado, recorrendo-se à via tripartidária, tendo a direita clássica atraído a direita moderna (PS) para conluios domésticos e cumplicidades internacionais e a direita moderna convidado a arcaica para parceiratos, reabilitando inclusive figuras do Estado Novo no Novo Estado.
 

Rotativismo? Caciquismo? Tráfico? Corrupção? Lojas de Conveniência? Mimetismo Negocista? Nem precisaríamos de citar um ex-governante norte-americano, temos doutrina caseira e secular (1908): Nenhum dos dois partidos (Regenerador e Progressista) se distingue do outro, a não ser pelo nome do respectivo chefe. (9)
 

Não se distingue nas opções de fundo e no arrivismo dos barões. Na transição do séc. 19/20, como na transição do séc. 20/21, havia ministeriáveis, ministros e ex-ministros implicados em esquemas (rostos do painel: Hintze Ribeiro/José Luciano e Castro).
 

Oliveira e Costa, Dias Loureiro, Isaltino Morais, Armando Vara, José Penedos & aparentados podem consultar os sacos azuis da Monarquia e os cadastros do Fascismo e descobrir o seu brasão no Armorial.
 

Hoje, o fantasma BPN/SLN ronda o inquilino de Belém, como o fantasma Freeport ronda o ex-inquilino de São Bento, como o fantasma dos adiantamentos rondou o rei Carlos.
 

Vivemos na democracia da Grande Porca: (10) Fax de Macau, Bragaparques, Contentores de Alcântara, Banco Insular, Face Oculta, Apito Dourado, Operação Furacão, Portucale, Monte Branco, EXPO, Ponte Vasco da Gama, Submarinos & Casinos, Prescrições de Processos de Fundos Comunitários UGT & Américo Amorim, Aditamentos & Contratos Paralelos, Concursos Diretos & Pagamentos Sem Conta, Contabilidades Engenhosas & Derrapagens Calculadas.
 

Como afiança o rifão: O céu é de quem o ganha, a terra de quem a apanha. Como desabafou o refugiado Antônio Guterres, isto é um pântano. Como gracejou o desertor Durão Barroso, isto está de tanga.
 

Como reconheceu, sem rodeios, o empresário Henrique Neto, isto (Portugal) está entregue à máfia. A mafiocracia já atua de cara destapada na Americolândia, na Eurolândia, na Lusolândia: Goldman Sachs, Icesave, Allied Irish Bank, BPN, Bankia aí estão para comprovar que os maiores assaltos a bancos são perpetrados por bancos e dentro dos bancos.
 

Na década de 1980, escrevi algo de antecipador relativamente ao colapso do sistema financeiro/2008: o maior assalto a um banco não é praticado à metralhadora mas com caneta Parker.(11)
 

Os comunistas socorrem-se de um instrumental dialético e sinalético que lhes permite visão de microscópio e telescópio. Pena foi e continua a ser que demasiados portugueses não usem lentes de ver ao perto e ao longe.
 

Cá como lá: Os dois maiores obstáculos para a democracia nos Estados Unidos são: primeiro, a ilusão generalizada entre os pobres de que temos uma democracia, e segundo, o terror crónico entre os ricos de que tenhamos uma. Edward Dowling o escreveu. John Pilger o subscreveu.(12)
 

Três Perguntas

Quem lembrou que os gastos do Estado com as parcerias público-privadas estão estimados em 38 mil milhões de euros? (Há estimativas de despesa contratualizada de 50 mil milhões). Carlos Moreno.(13)

Quem salientou que o pagamento de juros (da dívida de perto de 20 mil milhões de euros das empresas públicas de transportes) representa 75% dos prejuízos? José Manuel Viegas.(14)

Quem pretenderá ocultar o conflito de interesses da auditoria a 36 parcerias público-privadas e a 24 concessões, encomendada pelo Governo à consultora Ernest &Young, que trabalha para os grupos José de Mello Saúde, Somague e Águas de Portugal, Endesa e Iberdrola, entre vários outros, parte interessada em várias PPP, como Lusoponte, Auto-Estradas do Atlântico, Auto-Estradas Túnel do Marão, Barragens de Gouvães, Alto Tâmega, Daivões e Girabolhos, Hospital de Braga, Hospital de Vila Franca de Xira?
 

Uma resposta

Poderíamos citar numerosas autoridades em assuntos públicos e privados, brilhantes defensores ou detractores do público e do privado, mas resolvemos transcrever a posição de um arauto dos princípios colectivos e das riquezas das nações.
 

Que pensar de quem vende e trafica bens soberanos? De quem desvirtua a Constituição da República? Há 2 mil anos um culto e radioso espírito já interpelava os privatizadores, já condenava a apropriação do que é da Humanidade por alguns humanos (ou desumanos). A água das Metamorfoses é a metáfora do inalienável.
 
A palavra a Ovídio:
Porque me proibis a água? O uso da água é comum a todos. Nem a natureza produziu um sol privado, nem o próprio ar, nem a fluida água. É um bem público aquilo a que venho. (15) 
 
Tríade mediática

Cumpre-nos clarificar na praça e nos suportes de comunicação livres o que é ocultado, desfocado e cortado nas televisões, jornais e rádios, na tríade mediática. Mais do que explorar o filão das novelas judiciárias, a opinião publicada carece de uma armadura conceitual, de uma agenda de investigação até ao osso e de colunas de tratamento sem anestesia.

No entanto, sempre que as mídias dos grupos se referem a casos dos grupos, excitam-se com o tema durante uns dias e de imediato recentram as atenções nas manchetes de futebol, sangue e sexo. A criminalidade econômica público-privada e a liquidação do patrimônio estratégico não sugerem aprofundamento.
 

Tocam áreas cruzadas e personagens com guarda-chuva. Os média preferem incidir os holofotes sobre uma ou outra personalidade mais indefesa ou caricata, um outro incidente mais movimentado. Resumem o escrito e o dito ao texto, ignorando o contexto.
 

Ora, o tráfico e a corrupção, bem como a entrega do ouro ao bandido, remetem-nos para a engrenagem institucional-partidária e para a sua tutela, o grande capital. A comunicação, que se proclama social, contenta-se com o clamor inócuo e o comentário de superfície, a fim de não despertar quem a vê, quem a lê, quem a escuta.
 

Ao ficar-se pela rama, entregue ao pensamento único e à contra-informação, acaba por desempenhar um papel equívoco, branqueador de factos e desnorteador de mentes. Uns branqueiam vis metais ou capitais, outros branqueiam jornais ou telejornais.
 

O Dicionário da Propaganda é tão imaginativo que o roubo das troikas ou tríades é considerado um pacote e um ajuste, uma ajuda e um resgate.
 

A indignação patriótica atingiu o clímax com o Ultimato Inglês de 1890 e concorreu para o descrédito e o derrube da Monarquia. Mas muito boa gente ainda não se apercebeu do alcance do Ultimato Alemão de 2011.
 

O Bloco Central Político/Econômico/Midiático tudo tem feito para retardar a cólera democrática e a exigência do pagamento da crise pelos que a causaram: especuladores e dilapidadores, traficantes e corruptos. Somente com o povo levantado do chão e a retoma do projecto de abril se porá termo ao saque e à servidão e se reabrirá a estrada do progresso social e cultural.

Notas:
(1) Transparency International (Portugal/Ponto de Contacto da Rede)/07/Imprensa, 05/2012. Segundo a percepção desta organização, Portugal ocupa o 32.º lugar num ranking de 180 países.
(2) Constituição da República Portuguesa. Sucessivas revisões à medida das privatizações e das carteiras de interesses da troika/UE/BCE/FMI (1982/1989/1992/1997) passaram uma esponja sobre o ordenamento econômico de 1976, baseado em três sectores: público, privado, cooperativo.
(3) Castanheira, José, ex-director-geral da Saúde, professor do Instituto Superior de Ciências da Saúde Egas Moniz, Lusa/DN, 03/05/2012.
(4) Rego, Raul, Os Políticos e o Poder, ed. autor, 1969; Arcádia, 1974.
(5) DN, 13/01/2011, 40 ex-ministros e ex-secretários de Estado em empresas. Caixa já empregou 23 ex-governantes.
(6) Bourdier, Pierre, Contre-feux 2, Éditions Raisons d`Agir. Governo invisível dos poderosos.
 
(7) Ordem da Censura/coronel Roma Torres, 06/06/1973. C.P: Os Segredos da Censura, 3.ª edição, Editorial Caminho, 1994.
(8) Craig, Paul Robert, ex-Secretário-Adjunto do Tesouro.
(9) Ortigão, Ramalho, Rei D. Carlos, Typ. A Editora, 1908.
(10) A Política: a Grande Porca. Uma porca, sentada no solo pátrio, amamenta uma ninhada de leitões. Raphael Bordallo Pinheiro, A Paródia, 1.ª série, n.º 1/capa, 17/01/1900.
(11) Fronteira, antiga crónica dominical do autor, JN.
(12) Dowling, Edward, editor, 1941, citado http://johnpilger.com/page.asp?partid=492/.
(13) PPP são chocantes - diz Carlos Moreno, juiz jubilado do Tribunal de Contas, Assembleia da República, O Sol, 25/05/2012.
(14) Contratos das PPP foram um arranjinho - diz José Manuel Viegas, professor do Instituto Superior Técnico, secretário-geral do Fórum dos Transportes da OCDE, O Sol, 19/05/2012.
(15) Ovídio, Metamorfoses, Cotovia, 2007.

*Este artigo foi publicado em O Militante n.º 319, julho/agosto 2012, Ano 71, Série IV

Fonte: Diário.Info