"e como que a experiência é a madre das cousas, por ela soubemos radicalmente a verdade" (Duarte Pacheco Pereira)
A Internacional
quarta-feira, fevereiro 10, 2010
«Tradição, autoridade, mercado» por Sandra Monteiro
São os Estados Unidos reformáveis? - por Serge Halimi
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Reconfigurações na saúde por Sandra Monteiro
Reconfigurações na saúde
por Sandra Monteiro«Consenso de Pequim» por Serge Halimi
«Consenso de Pequim»
por Serge HalimiNotas
sexta-feira, julho 10, 2009
Que manifesto para a economia social?
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por Sandra Monteiro
Em Portugal, a economia social está muito ausente do espaço público e mediático. A situação, que não é nova, manteve-se com a actual crise do capitalismo financeiro, apesar de tudo indicar que este é um momento propício para outros modos de conceber a economia, como acontece com a economia social, surgirem com as suas concepções, experiências e propostas. Poder-se-ia pensar que esse silêncio traduz simplesmente a falta de peso do sector no conjunto da economia, mas basta olhar para os dados relativos ao número de organizações (cooperativas, mutualidades, associações, fundações…), bem como de trabalhadores, membros e volume de vendas envolvidos neste sector para verificarmos que a invisibilidade é desproporcional ao seu peso (ver, no dossiê sobre Economia Social da edição de Julho, o artigo de Manuel Canaveira de Campos, «A economia social – outra forma de economia»).
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As causas do silêncio são mais complexas e têm que ser procuradas a montante, tanto no interior do próprio sector, como nos dois pólos com que historicamente tem sido relacionada, o mercado e o Estado. Para isso é necessário compreender as dinâmicas políticas de estruturação de cada um desses pólos, pois elas dão origem a diferentes arranjos políticos e institucionais, em função de diferentes tensões e escolhas que ao longo do tempo são feitas nas sociedades.
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E porque é realmente de escolhas de sociedade que se trata, escolhas essas que operam sobre toda a organização social, mesmo quando não resultam de processos muito transparentes, é ainda necessário fazer intervir na arqueologia da estruturação (actual e futura) desses pólos pessoas com conhecimentos específicos sobre a economia social: membros das suas diferentes organizações, poderes públicos e estruturas com que desenvolvem formas de cooperação (das estatais às sindicais) e investigadores dos meios académicos. Mas também devem ser chamados à participação elementos exteriores, isto é, os membros das diferentes comunidades em que os cidadãos se inserem, e que de um modo geral podemos designar por comunidade.
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Propor que se invista nesta partilha de experiências e conhecimentos, e que se debata a economia social, como sector, com interlocutores específicos, é certamente simples, mas não é neutro. E isso deve ser assumido com clareza, porque nada prejudica mais o debate do que presumir-se que ele não será plural. Quebrar a invisibilidade da economia social passará por reconhecer a extrema diversidade de soluções organizativas e de actividades (produção de bens e serviços, distribuição, crédito, etc.) que caracteriza o sector. Essa heterogeneidade é, em parte, responsável pela dificuldade que o sector tem de se pensar a si mesmo enquanto tal – e os seus membros enquanto actores de um projecto alternativo mais amplo. No entanto, é ela que dá origem a experiências muito variadas, que devem ser mapeadas sem deixar de eliminar quaisquer tentações de esconder dificuldades, pontos de vista conflituais ou até caminhos divergentes.
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Só assim se poderá ter uma perspectiva do sector que se aproxime da realidade, que tenha em conta as experiências concretas no interior das organizações e, além disso, que considere a dimensão performativa dessa participação. Só se não cairmos em simplismos que venham substituir a ilusão do homo economicus por uma espécie, igualmente «natural», de homo cooperativus é que poderemos colocar-nos no terreno da construção, árdua e contraditória, dos arranjos que pensamos terem mais capacidade para instituir práticas que favoreçam sociedades mais assentes na cooperação, na reciprocidade, etc. Práticas que aproveitem as potencialidades de cada homem e mulher, que garantam uma melhor utilização dos recursos socioeconómicos ao serviço do bem comum e que o façam tendo em conta a sustentabilidade a longo prazo, ou seja, assegurando que o respeito pelo tempo dos homens incorpora o respeito pelo tempo da Terra.
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A partir do momento em que nos colocarmos no campo da economia social como construção histórica e política será mais fácil recentrar a reflexão nos valores e princípios que orientam a actividade do sector, abordagem que também não é neutra. Em primeiro lugar, porque permite recuperar objectivos comuns e abrir caminho para formas concretas de solidariedade, economias de escala e estratégias de rede entre os diversos actores da economia social, permitindo evitar o efeito de escoamento de recursos, tão dificilmente gerados no seu quadro, para estruturas da economia mercantil, onde os fins são implacavelmente lucrativos.
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Em segundo lugar, porque se recordarmos que a economia social actua em simultâneo no mundo mercantil e não-mercantil, monetário e não-monetário, mas não abdica da concepção democrática da gestão interna e da propriedade comum por parte dos seus membros, nem do princípio da ausência de fins lucrativos (os excedentes são objecto de justa repartição ou são reinvestidos no projecto), então não é difícil sustentar que a forma como a economia social entende a prossecução do interesse geral tem ressonâncias com as lógicas que devem animar o Estado e o sector público.
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Neste sentido, atribuir prioridade à questão das finalidades, e dos valores que lhes estão associados, é também uma forma de propor uma linha de fronteira que não se limita a separar os três pilares da economia que a designação «terceiro sector» tão bem traduz. Com efeito, uma economia social meramente definida de forma relacional, como o sector situado entre o Estado e o mercado, corre o risco de perder uma voz própria (as definições pela negativa tendem a ser mais frágeis) e, além disso, de facilitar o entendimento dos dois outros pólos como entidades de referência predeterminados e não, também eles, como construções sociais. Em vez disso, a economia social, sem deixar de reconhecer as diferenças estruturais que a distinguem do Estado, com quem não partilha a obrigação, assente em recursos materiais, da provisão de serviços públicos, da garantia do acesso universal aos direitos e à igualdade, pode contribuir para que se torne claro que a linha de demarcação fundamental é a que separa a economia mercantil de outras formas não-mercantis de organização socioeconómica.
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Não será essa também uma maneira de recolocar a questão do Estado como espaço de lógicas não-mercantis, por oposição às pressões que nas últimas décadas este tem vindo a sofrer no sentido da progressiva adesão aos princípios e práticas do neoliberalismo (privatização, desregulamentação, erosão de responsabilidades sociais, aumento das desigualdades, etc.)? E não será também esse um caminho para a economia social definir, em independência e respeito pelos seus princípios, mas sem afastar formas de cooperação com o sector público, projectos que estejam cada vez mais ancorados no tecido social e que contribuam para desenvolver linhas de trabalho sustentáveis, conjugando formas dignas de trabalho e de emprego com a coesão social e territorial?
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Ainda no quadro desta lógica de contágios mutuamente benéficos que, em vez de elidirem, reforçam os papéis de cada interveniente, não terão os actores da economia social um contributo a dar para a discussão de temas como a ética de serviço público ou as motivações, práticas e expectativas que intervêm no viver comum? Não podem estas questões ser relacionadas com o distanciamento em relação à vida pública ou a falta de confiança nas instituições e na democracia? Talvez não seja pouco importante a contribuição, sem mitificações, que a economia social pode dar para se pensar, colectivamente, o aprofundamento da democracia, com mais participação, e o pluralismo da economia, com mais racionalidades não-mercantis. Venha o debate.
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in Le Monde Diplomatique
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Os primeiros passos de Obama
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por Serge Halimi
Para afrontar a herança dos seus antecessores, o novo presidente dos Estados Unidos repudiou muitas das ideias deles. É certo que Barack Obama não acelerou a retirada das tropas americanas do Iraque e que mobilizou mais soldados para o Afeganistão, para uma guerra mortífera e sem saída. No plano interior, a sua política relativa à indústria automóvel, aos bancos ou às remunerações dos dirigentes não rompeu com o imparável «liberalismo», que socializa somente as perdas das empresas. Apesar disso, Obama representa sem dúvida aquilo que o sistema estadunidense pode actualmente criar de mais progressista, ao ponto de as decisões dos dirigentes de Washington parecerem por vezes preferíveis às dos seus homólogos de Paris, Bruxelas, Moscovo, Pequim ou… Teerão. Se a determinação de Washington não vergar, e se alguns dos lóbis que controlam o Congresso forem postos em xeque, dentro de pouco tempo os Estados Unidos irão dispor de uma legislação que protege o direito sindical e se preocupa com as despesas de saúde dos 46 milhões de americanos que não têm nenhuma segurança social. Não é nada pouco.
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Poder‑se‑á objectar que Obama, no fim de contas, é democrata; mas isso será ignorar quarenta anos de história. Porque desde a chegada de Richard Nixon à Casa Branca, em 1969, os dois presidentes democratas que se lhe seguiram aludiram de facto a uma ruptura… mas com a ortodoxia do seu partido, a seu ver demasiado progressista. Desse modo, tanto um como o outro prepararam o terreno para os republicanos que lhes sucederam (Ronald Reagan e George W. Bush). Jimmy Carter abriu o baile das desregulamentações, promoveu uma política ultramonetarista e, a pretexto da «defesa dos direitos humanos», relançou a Guerra Fria. Com Bill Clinton foi ainda pior: endurecimento das sanções penais, generalização da pena de morte, abolição das ajudas federais aos pobres, activação de operações de guerra no Afeganistão, no Iraque, no Sudão e no Kosovo, sem mandato das Nações Unidas. Devemos pois avaliar o balanço inicial de Barack Obama tendo também como termo de comparação estes precedentes.
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O seu discurso do Cairo, no passado dia 4 de Junho, não trouxe nada de muito novo quanto ao fundo da questão: George W. Bush já tinha admitido a ideia de um Estado palestiniano e desde a governação de Jimmy Carter todos os ocupantes da Casa Branca reclamaram – com os resultados que todos conhecemos – o congelamento da colonização israelita. Em contrapartida, o tom mudou por completo. Obama, desejoso de «romper o ciclo da suspeita e da discórdia» entre os Estados Unidos e os povos do Médio Oriente, evitou cuidadosamente empregar o adjectivo «terrorista», tão apreciado pelo seu antecessor. Ao evocar o Hamas, o presidente americano admitiu até que esta organização «tem apoiantes entre alguns palestinianos». Por último, ao sugerir a estes últimos que se inspirem nas lutas (não violentas) dos afro‑americanos, assimilou implicitamente a colonização israelita à «humilhação segregacionista» outrora vivida pelos negros dos Estados Unidos.
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No entanto, acrescentou, «a América não pretende saber o que é melhor para toda a gente». Este tão sábio princípio foi de imediato aplicado ao Irão. No seu discurso do Cairo, Obama lamentou o golpe de Estado que em 1953 foi orquestrado contra Mohammad Mossadegh pelos serviços secretos americanos: «Em plena Guerra Fria, os Estados Unidos desempenharam um papel no derrube de um governo iraniano democraticamente eleito». Desde logo, essa declaração sugere que os Estados Unidos não estão na situação ideal para repreender os que falsificam os resultados das urnas, sobretudo quando estes últimos só estão à espera que isso aconteça para acusarem os seus desgraçados concorrentes, anteriormente pilares do regime teocrático, de se terem transformado em mercenários do Grande Satã. Mas quanto mais a situação iraniana for endurecendo, mais a disposição do presidente dos Estados Unidos para negociar com Teerão o irá expor às diatribes da direita neoconservadora, e essa não vai desarmar nunca.
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Os interesses estratégicos norte‑americanos continuam a ser extraordinariamente constrangedores para qualquer presidente dos Estados Unidos, que será sempre tributário, queira ou não queira, do papel de soberano do império. Os primeiros passos de Barack Obama parecem todavia indicar que ele ainda não esqueceu completamente o seu passado progressista nos bairros pobres de Chicago.
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in Le Monde Diplomatiue - quinta-feira 9 de Julho de 2009
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sábado, junho 06, 2009
Concentração dos media e outras "evidências"

Quantas vezes já ouvimos estas palavras, ou até demos por nós a dizê-las: «toda a gente sabe…». Se fizermos um esforço de distanciamento e rigor, podemos concluir, ou pelo menos admitir, que o enunciado que elas antecedem talvez não seja assim tão universalmente sabido, nem sequer reconhecido como verdadeiro ou indiscutível. Mas, entretanto, o efeito foi conseguido: as palavras ficam lá, como que a marcar a importância e a autoridade – difusa, mas pesada – do que vai ser exposto, como que a acelerar o pensamento de quem ouve, ou lê, e desprevenidamente pudesse ter sido tentado a parar, a reflectir criticamente sobre o que lhe é apresentado. Ao afastar dúvidas e suspensões de juízos, fecha-se a reflexão e o debate antes mesmo de eles terem começado. Nas mãos de um indivíduo, trata-se de recorrer a um dispositivo retórico para legitimar um argumento ou opinião, com vista a persuadir. Nas nossas sociedades, traduz uma ampla generalização de concepções e preconcepções que constituem a própria tessitura da complexa construção política, socioeconómica e cultural que é a globalização neoliberal. E chamamos-lhe pensamento único.
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O problema do pensamento único é que, apesar da perspectiva simplista e ficcional com que aborda o real, impregnou de tal forma as nossas mentes que só uma crise com dimensões dramáticas veio criar disponibilidade para questionar o que «toda a gente sabe», para escutar os silêncios que o pensamento único também edificou, tanto nos discursos como nas práticas. É altura de olharmos para o mito liberal da sociedade como soma de indivíduos atomizados e movidos unicamente por uma racionalidade egoísta; para pensarmos na complexidade de razões que levam os indivíduos a agir e a cooperarem entre si para o bem comum. É altura de encararmos as raízes profundamente ideológicas, e sem sustentação na análise da realidade, da oposição do mercado ao Estado, e do carácter natural e eficiente do primeiro por oposição aos constrangimentos e ineficiência do segundo.
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Não para cair em novos simplismos, mas para compreender as dimensões políticas e o papel que os Estados e os governos tiveram (e têm) na construção do mercado e desta economia mercantil e financeira a que chegámos. Porque após os «salvamentos dos bancos» já não é evidente dizer-se que de um lado estão os investidores, dinâmicos, que correm riscos e que têm que ser por isso devidamente recompensados, já que ninguém os protege quando tudo corre mal, enquanto do outro está a massa dos trabalhadores, e em especial os funcionários públicos, por natureza preguiçosos e incompetentes, sempre a sonhar com a troca do trabalho árduo pela protecção e pela assistência do Estado. Não é que tudo esteja bem no sector público, mas convém não nos enganarmos quanto ao que queremos reparar.
Só havendo uma reflexão aprofundada sobre estas e outras questões dentro de cada sector profissional e na sociedade será possível fazermos escolhas informadas e conscientes sobre as políticas em que nos revemos. Aliás, não será essa apropriação do espaço público que pode reaproximar os cidadãos da política? Um dos sectores que deve fazer um esforço urgente para se pensar a si mesmo à luz do que a crise nos revela sobre o fracasso do modelo neoliberal é o da comunicação social (e desde logo, os jornalistas). No entanto, também aí continuam a multiplicar-se os silêncios – como se a reflexão sobre o campo mediático e a profissão dos jornalistas pudesse ser um exclusivo sindical ou dos académicos da área – ou, no sentido inverso, a reproduzir-se formulações do tipo «toda a gente sabe». O problema é o mesmo.
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Isso foi visível uma vez mais no processo de discussão da chamada Lei do Pluralismo e da Não Concentração nos Meios de Comunicação Social (proposta de lei n.º 215/X) [1], diploma que após os vetos presidenciais será adiado para a próxima legislatura. O tema é complexo e envolve aspectos relativamente técnicos que, em grande medida, decorrem da própria sofisticação do funcionamento do capitalismo nesta fase muito financeirizada da economia. É o que acontece, por exemplo, com os aspectos relativos aos vários tipos de concentração (horizontal, vertical, diagonal) possibilitada pelas novas estruturas de propriedade dos meios de comunicação social num mundo em que os grupos económicos são nacionais e transnacionais, em que os accionistas detêm participações cruzadas, em que os proprietários dos media são também detentores de empresas nas mais diferentes áreas de actividade (sem excluir o comércio de armas…), etc. Mas tudo isto deveria realçar, e não ofuscar, a necessidade de se discutir a concentração dos media no quadro actual e as relações entre essa concentração e o desejável pluralismo na informação. Porque é um direito democrático fundamental, a informar e a ser informado, que está em causa.
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Remeter a discussão para o debate em curso na União Europeia tem, teoricamente, o mérito de ter em conta a dimensão supranacional da questão, coincidente com o carácter transnacional dos grupos económicos detentores dos meios de comunicação. Mas torna-nos espectadores de uma decisão que outros tomarão por nós, o que, em particular ao nível das instituições comunitárias, tem dado os resultados de deslegitimação formal e concreta do projecto europeu que hoje são bem visíveis. Pelo contrário, seria importante usarmos este período para promover estudos empíricos sobre a relação entre a concentração e o pluralismo. Como realça o jornalista e investigador Fernando Correia, não se podendo aqui falar de causalidades simples, também não se pode fazer uma análise simplista que esqueça o peso relativo tanto da estrutura e a natureza da propriedade dos media como das «estruturas de intermediação» (concorrência, publicidade, nichos de mercado a que um órgão se dirige, jornalistas e outros profissionais que nele trabalham…) [2].
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A crise económico-financeira tem revelado uma dupla crise nos media: na vertente de projectos empresariais que atravessam dificuldades para sobreviver (quebra de receitas publicitárias, investimentos que se deslocam para outros sectores mais lucrativos, despedimentos e reestruturações editoriais, etc.) e na vertente de projectos jornalísticos que podem suscitar a adesão do público, pela relevância da informação veiculada (por exemplo, que capacidade demonstraram para informar sobre os mecanismos de funcionamento do poder económico e financeiro?).
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Nestas circunstâncias, será possível olhar para a concentração da propriedade dos media sem alertar para o facto de ser um «decisivo factor condicionante no tocante à informação», esquecendo as consequências que estão já a ter sobre todo o universo informativo e comunicacional as lógicas empresariais, a transformação da informação em mercadoria, a procura do lucro e a corrida às audiências acima de qualquer outra consideração, a dependência da publicidade e a mistura de lógicas comerciais e redactoriais, ou ainda a precarização do trabalho dos jornalistas, e em particular dos estagiários, num quadro da redução da possibilidade de emprego a dois ou três grupos empregadores [3]?
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É certo que, como salientam alguns [4], a concentração permite economias de escala e até que se seja suficientemente robusto, em termos financeiros, para se apostar em áreas mais dispendiosas do jornalismo (como a formação ou a investigação) ou para se recusar a publicidade de algum anunciante sem se ir à falência. Mas será isso que mostra a realidade? Não temos que distinguir entre essa teoria e a prática, e verificar, como lembra Fernando Correia, que essas sinergias existem mais «nos sectores da gestão e em tudo o que tenha a ver com a poupança de gastos e o aumento dos lucros, em desfavor da atenção pela informação e pelos seus agentes»? [5]
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Podemos continuar a sustentar a nossa análise numa artificial separação entre o mercado e o Estado e desse modo repetir que tudo vai bem com a concentração, porque historicamente as pressões até vêm do poder político e não do poder económico? O que explica então a falta de investigação sobre os próprios grupos económicos e o mundo dos negócios? Não há pressões nem constrangimentos dos proprietários nem dos anunciantes (efectivos ou potenciais)? Não há outras razões para algo «não se vender» ou «não estar na agenda» que não sejam a falta de recursos ou de «procura » por parte das audiências? E quem define a afectação de recursos e o que interessa às audiências? Se é nesse mundo perfeito que vivemos, diria que nem toda a gente sabe…
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sexta-feira 5 de Junho de 2009
Notas
[1] A proposta de lei foi apresentada em Junho de 2008, votada a 23 de Janeiro de 2009 e por duas vezes vetada pelo presidente da República, a 2 de Março e 20 de Maio. Pode ser consultada no sítio da Assembleia da República. No sítio do Sindicato dos Jornalistas encontra-se, entre outros, um parecer detalhado à mesma.
[2] Fernando Correia, «Concentração à portuguesa», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Novembro de 1999.
[3] Ibidem.
[4] Ver a entrevista a Ricardo Costa e Francisco Sarsfield Cabral num noticiário da SIC Notícias de 20 de Maio de 2009.
[5] Fernando Correia, ibidem.
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in Le Monde Diplomatique
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Simulacro europeu
por Serge Halimi
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Desde a primeira eleição dos deputados europeus por sufrágio universal, em 1979, a taxa de abstenção saltou de 37 para 54 por cento. Todavia, os poderes deste Parlamento foram incrementados e o seu campo de acção abrange 495 milhões de habitantes (contra 184 milhões há trinta anos). A Europa ocupa o palco; mas não tem impacto sobre o público. Porquê?
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Sem dúvida porque não existe realmente uma comunidade política continental. A esperança de que a simultaneidade de vinte e sete escrutínios nacionais, quase sempre disputados à volta de questões internas, venha um dia a resultar no advento de uma identidade europeia continua a ser da alçada do pensamento mágico.
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Terão os eslovenos qualquer conhecimento, mesmo aproximativo, dos debates eleitorais suecos? Informar-se-ão os alemães a respeito da vida política búlgara? Mas após o escrutínio europeu, tanto uns como os outros ficam a saber que em Estocolmo ou em Sófia o veredicto das urnas pode ter infirmado o resultado da única eleição a que prestaram alguma atenção, e que os seus votos, na realidade, designaram apenas 1 por cento (Eslovénia) ou 13,5 por cento (Alemanha) do total dos deputados da União [2]. Será possível imaginar que uma revelação deste género não leva o eleitor a sentir-se relativamente inútil? Impressão essa que os governantes europeus não contradisseram, ao ignorarem a escolha feita sucessivamente por três povos no tocante ao Tratado Constitucional, ao cabo de uma campanha que, nesse caso, mobilizou o interesse dos eleitores e os empolgou.
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Em França, sete das oito circunscrições eleitorais foram retalhadas unicamente com o objectivo de favorecer os grandes partidos; não correspondem a nenhuma realidade histórica, política ou territorial. A circunscrição do Sudeste tem aliás como líder um socialista outrora eleito no Noroeste e que classificou a sua própria transferência como um «suplício». Esse, no entanto, está previamente eleito, tal como a ministra francesa da Justiça, tão pouco interessada pelo escrutínio que julga que é em Haia, e não na cidade de Luxemburgo, que o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias tem a sua sede. Em Itália, Silvio Berlusconi encarou sem hesitação a possibilidade de apresentar como candidatas oito manequins e actrizes de telenovelas.
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Mas há mais. As forças políticas que desde há trinta anos transformaram, em conjunto, o Velho Continente num grande mercado indefinidamente alargado a novos países, propõem de repente «uma Europa que proteja», «humanista», «social». Ora, se é verdade que os socialistas, liberais e conservadores se afrontam nas campanhas eleitorais, eles votam juntos na maior parte dos escrutínios do Parlamento Europeu. E dividem entre si os lugares de comissários – seis dos quais atribuídos aos sociais-democratas, encarregados, designadamente, da fiscalidade, da indústria, dos assuntos económicos e monetários, do emprego, do comércio. O medo do confronto e a despolitização das grandes questões favorecem a renovação indefinida deste bloco governante, que vai «de um centro-direita esponjoso a um centro-esquerda amolecido, passando por uma coligação liberal insossa» [3].
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Poderá uma tal ausência de alternância garantir o lugar de José Manuel Durão Barroso na chefia desta atrelagem cujo balanço é mais do que medíocre? «Ele fez um excelente trabalho, faço questão de dizer claramente que nós o apoiaremos», declarou o primeiro-ministro trabalhista britânico, Gordon Brown. O socialista espanhol José Luis Zapatero disse a mesma coisa: «Eu apoio o presidente Barroso». É verdade que Brown e Zapatero têm o mesmo programa, o do Partido Socialista Europeu (PSE). Ao qual também pertence Martine Aubry. «A Europa que eu quero», preveniu a dirigente francesa, «não é uma Europa dirigida por Barroso com os seus amigos Sarkozy e Berlusconi». Os eleitores que percebam tudo isto…
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sexta-feira 5 de Junho de 2009
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Notas
[1] Vaclav Havel, «A Table for Tyrants», The New York Times, 11 de Maio de 2009.
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[2] Dos 736 deputados do Parlamento Europeu, os eslovenos elegem 7, os alemães, 99.
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[3] «An Unloved Parliament», The Economist, Londres, 9 de Maio de 2009.
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n Le Monde Diplomatique -
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sábado, maio 09, 2009
Conflito e consenso

por Sandra Monteiro
Há períodos em que a realidade se impõe, em toda a sua complexidade. São tempos em que se sente, mesmo que habitualmente se ande mais distraído, a necessidade de compreender as ligações visíveis, e as menos visíveis, entre os processos e os actores. De fazer escolhas que sejam capazes, idealmente, de respeitar uma relação sustentável com os diferentes tempos da história: escolhas com memória, escolhas que construam um futuro entusiasmante porque instauram um presente em que cada um se sente mais livre para ser o que deseja ser e mais igual para satisfazer as suas necessidades.
Não precisávamos de assistir ao fracasso do neoliberalismo para sabermos duas coisas: a primeira, que esse modelo não nos aproxima, nem em termos socioeconómicos, nem ambientais, desse ideal que atravessa os tempos; a segunda, que a construção de alternativas a esse modelo não pode cair no simplismo ilusório de qualquer outro «pensamento único». A realidade, no dinamismo das suas contradições, no complexo jogo em que as ideias ganham força material, não se compadece com receitas esquemáticas, emparedadas em muros feitos de certezas.
A crise que hoje vivemos, com tudo o que de dramático encerra, não deixa de favorecer uma leitura do real como campo de possíveis em que podemos actuar. Por vezes de forma imperceptível, faz‑nos descobrir que não sabemos tudo e que, ao mesmo tempo, estamos longe de não saber nada. É também por isso que os momentos concretos que vivemos importam. Situa‑nos, perante nós e perante o mundo. Os versos de uma canção de José Mário Branco resumem bem essa relação com a realidade: «Ensinas-me a fazer tantas perguntas / Na volta das respostas que eu trazia / Quantas promessas eu faria / Se as cumprisse todas juntas» («Inquietação», Ser Solidário, 1982).
Talvez o primeiro desafio que a realidade hoje nos coloca seja o de sermos capazes de identificar os campos em que temos perguntas e aqueles em que temos respostas. Uma resposta não é, em si mesma, sempre melhor do que uma pergunta (e inversamente). No debate de ideias, como na apresentação de propostas, todo o rigor tem que ser colocado nessa distinção. Como poderíamos ter a ilusão de estabelecer relações de confiança com os outros (e connosco mesmos) se aparentássemos estarem já traçados os caminhos que ainda estamos a descobrir ou, por outro lado, se não estivéssemos presente com soluções concretas para problemas responsáveis por tanto sofrimento? Ainda que tenhamos que colocar imensas perguntas sobre como convulsionar a ordem social estabelecida, para que a exploração de seres humanos e do planeta deixe de ser legítima, não podemos deixar de contribuir com todas as respostas que pudermos dar para combater essa exploração.
O segundo desafio que a realidade nos coloca consiste em sermos capazes de distinguir os campos em que temos consensos daqueles em que temos conflitos. Num país marcado, e menorizado, por 48 anos de ditadura, continua a ser demasiado generalizada a tendência para encarar todo o conflito como negativo, para o evitar a qualquer custo. Em si mesmo, o conflito, tal como o consenso, não é bom nem mau. Todas as sociedades são conflituais e em todas as sociedades se geram consensos. Negativo é, sobretudo, enganarmo‑nos nas conclusões a que chegamos quanto ao que nos divide ou nos une, provavelmente porque isso não resulta de um processo de livre formação, expressão e aferição de pontos de vista.
Que sentido faz associarmos automaticamente «liberdade», «estabilidade» ou «unidade nacional» a algo positivo, se não soubermos como nos posicionamos em relação aos conteúdos concretos a que esses termos se referem? E se estiver em causa a «liberdade» de explorar ou de cometer actos criminosos impunemente? Ou a «estabilidade » que permite manter o desastroso rumo do capitalismo de casino (em vez de impor instrumentos públicos capazes de melhorar a vida das populações)? Ou a «unidade nacional» em torno de arranjos e acordos, não publicamente explicitados, que erguem falsas fronteiras entre o que tantos portugueses têm em comum com tantos outros cidadãos europeus? Termos como estes fazem parte de um léxico que pulula pelo espaço mediático, como se a sua simples evocação dispensasse a argumentação sobre a bondade do seu conteúdo. Apoia‑se a recondução de José Manuel Durão Barroso como presidente da Comissão Europeia porque é português e isso favorece o país. Aceitaríamos que um presidente de qualquer outra nacionalidade favorecesse o seu país? É esse o projecto europeu que defendemos? Não importam as políticas concretas, neoliberais e belicistas, que o presidente da Comissão pôs em prática?
Defende‑se como direito inalienável a privacidade de quem pode ter enriquecido ilicitamente, mesmo que isso comprometa uma investigação de potenciais crimes de corrupção que, por sua vez, corroem toda a sociedade. Reagimos da mesma forma quando essa «intimidade» é devassada ao contrairmos um crédito bancário ou quando os mais pobres são obrigados, para terem acesso a apoios sociais, a essa exposição? Como afirmava Pedro Adão e Silva num artigo recente, temos uma «indignação selectiva», grande «perante a compressão de direitos dos que, ganhando muito, fogem ao fisco», mas «quando se trata de pobres, a única indignação é com a fraude no benefício de prestações» [1]. Fala‑se muito de crise de valores, mas interroga‑se pouco a facilidade, ou o desdém, com que um certo moralismo critica as escolhas trágicas de quem é pobre, quando trata com complacência as escolhas de quem é rico, mesmo que sejam trágicas para o resto da sociedade.
Insiste‑se durante anos na certeza de que as reformas projectadas desde o fim dos anos oitenta para o ensino superior vão melhorar a qualidade do ensino, garantir apoios sociais do Estado e assegurar uma maior «empregabilidade». Será possível continuar a insistir nesta ficção, quando se comprova agora que o resultado foi um aumento de 425 por cento, entre 1995 e 2005, nas propinas do ensino público, o que faz com que as famílias portuguesas sejam «das que mais pagam» na Europa pela educação superior («o dobro do valor de vários países europeus»), e que estejamos a caminhar a passos largos para um ensino «elitista» e com sérias «deficiências de equidade» no acesso [2]?
Sabemos que a resistência das pessoas à violência quotidiana introduzida nas suas vidas tem limites. Não sabemos quais são esses limites. Sabemos que por vezes são «pequenas coisas» que se tornam insuportáveis. Ser um trabalhador precário, excluído do subsídio de desemprego, e ouvir repetidamente afirmar, a propósito dos clientes do Banco Privado Português (BPP), que quem tem 300 mil euros de poupanças nem sequer é rico. Descobrir que os serviços públicos obrigam a renovar um documento que jamais se imaginou que caducasse: uma certidão de óbito. Olhar para a geração dos pais e constatar que todos os dias se tem medo de não conseguir dar aos filhos as condições de vida que se gostaria, quanto mais ter a expectativa de os ajudar quando se tornarem adultos.
Sabemos também que as perdas não são irrecuperáveis. Pode tentar‑se «fazer de cada perda uma raiz / e improvavelmente ser feliz» [3].
quinta-feira 7 de Maio de 2009
Notas
[1] «A indignação selectiva», Diário Económico, 21 de Abril de 2009.
[2] Cf. Diário de Notícias de 3 de Maio de 2009 (http://dn.sapo.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=1219940).
[3] José Mário Branco, «Ser solidário», álbum Ser Solidário, 1982.
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in Le Monde Diplomatique - 2009-Maio
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Elogio das revoluções

por Serge Halimi
Duzentos e vinte anos depois de 1789, o corpo da Revolução ainda mexe. Apesar de François Mitterrand ter convidado Margaret Thatcher e Joseph Mobutu para confirmarem o seu enterro, aquando das cerimónias do bicentenário. E porque esse ano das comemorações foi também o da queda do Muro de Berlim, Francis Fukuyama anunciou o «fim da história», ou seja, a eternidade da dominação liberal exercida sobre o mundo e o encerramento, a seu ver, do parêntesis revolucionário. Mas a crise do capitalismo está de novo a abalar a legitimidade das oligarquias no poder. O ar está agora mais ligeiro, ou mais pesado, segundo as preferências. Aludindo «aos intelectuais e artistas que apelam à revolta», o diário Le Figaro mostrou-se desolado: «François Furet parece ter-se enganado: a Revolução Francesa não terminou» [1].
No entanto, como muitos outros, o historiador em questão não se poupou a esforços para esconjurar a lembrança da Revolução e para que as tentações se afastassem dela. Outrora considerada expressão de uma necessidade histórica (Marx), de uma «nova era da história» (Goethe), de uma epopeia encetada pelos soldados do Ano II cantados por Victor Hugo – «E víamos marchar os soberbos maltrapilhos nesse mundo deslumbrado» –, dela já se mostrava apenas o sangue que tinha nas mãos. De Rousseau a Mao, uma utopia igualitária, terrorista e virtuosa, teria espezinhado as liberdades individuais, parido o gélido monstro do Estado totalitário. Depois, a «democracia», voltando a sentir-se senhora de si, vencera – jovial, pacífica, de mercado. Também ela herdeira de revoluções, mas de uma outra espécie, à inglesa ou à americana, mais políticas do que sociais, «descafeinadas» [2].
Em Inglaterra também tinham decapitado um rei. Mas, como a resistência da aristocracia ali fora menos vigorosa do que em França, a burguesia, para assentar o seu domínio, não sentiu necessidade de fazer uma aliança com o povo. Nos meios favorecidos, um tal modelo, sem maltrapilhos nem revolucionários radicais, parecia mais distinto e menos arriscado do que o outro. Assim sendo, Laurence Parisot, presidente do patronato francês, não traiu o sentimento dos seus constituintes ao confidenciar a um jornalista do Financial Times: «Adoro a História de França, mas não gosto muito da Revolução. Foi um acto de extrema violência, de que ainda hoje padecemos. Obrigou cada um de nós a situar-se num determinado campo». Acrescentando: «Nós não praticamos a democracia com tanto sucesso como a Inglaterra» [3].
É pois uma lamentável polarização social isso de as pessoas se «situarem num campo», porque todos deveriam, pelo contrário, mostrar-se solidários com a sua empresa, com o seu patrão, com a sua marca – nunca saindo, é claro, cada qual do seu lugar. O que a revolução tem de mais errado, para quem a encara com maus olhos, não é a violência, fenómeno tristemente banal na história – é uma outra coisa, infinitamente mais rara: a convulsão da ordem social que irrompe ao ocorrer uma guerra entre ricos e proletários. Em 1988, em busca de um argumento de grande peso, o presidente George Herbert Bush admoestou assim o seu adversário democrata, Michael Dukakis, um tecnocrata perfeitamente inofensivo: «O que ele quer é dividir-nos em classes. Isso é bom para a Europa, mas não existe na América». Classes, na América! Imagine-se o horror de semelhante acusação! Vinte anos depois, quando o estado da economia americana parecia impor sacrifícios tão desigualmente repartidos como os benefícios que os haviam antecedido – um verso da Internacional reclama que «o ladrão restitua pela força aquilo de que se apoderou de forma indevida»… –, o actual ocupante da Casa Branca considerou urgente neutralizar a fúria popular: «Uma das lições mais importantes a tirar desta crise é que a nossa economia só funciona se estivermos todos unidos. (…) Não podemos dar-nos ao luxo de ver um demónio em cada investidor ou empresário que tenta obter lucros» [4]. Contrariamente ao que afirmam alguns dos seus adversários republicanos, Barack Obama não é um revolucionário…
«A revolução é antes de mais nada uma ruptura. Quem não aceite esta ruptura com a ordem estabelecida, com a sociedade capitalista, não pode aderir ao Partido Socialista.» Assim falava François Mitterrand em 1971. Desde então, as condições de adesão ao Partido Socialista (PS) francês tornaram‑se menos draconianas, visto não repugnarem ao director‑geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Dominique Strauss‑Kahn, nem ao da Organização Mundial do Comércio (OMC), Pascal Lamy. A ideia de uma revolução também refluiu por outras bandas, inclusive nas formações mais radicais. O que levou a direita a apoderar‑se da palavra, aparentemente ainda portadora de esperança, para a transformar num sinónimo de restauração, de aniquilamento das protecções sociais conquistadas, ou arrancadas, à «ordem estabelecida».
Censura‑se, contudo, a violência das grandes revoluções. Há quem se choque, por exemplo, com o massacre dos guardas suíços na altura da tomada das Tulherias, em Agosto de 1792, ou com o da família imperial russa, em Julho de 1918, em Ekaterinburgo, ou com a liquidação dos oficiais do exército de Chang Kai‑Chek, após a tomada do poder pelos comunistas chineses em 1949. Nesse caso, teria sido melhor não haverem anteriormente ocultado as fomes do Antigo Regime sobre o pano de fundo dos bailes em Versalhes ou do dízimo que os padres extorquiam; as centenas de manifestantes pacíficos de Petrogrado massacrados pelos soldados de Nicolau II, num certo «domingo vermelho» de Janeiro de 1905; os revolucionários de Cantão e de Xangai atirados vivos, em 1927, para dentro das caldeiras das locomotivas. Sem falar das violências quotidianas exercidas pela ordem social que outrora se pretendia derrubar.
O episódio dos revolucionários queimados vivos não marcou apenas quem se interessa pela história da China, é conhecido dos milhões de leitores do romance de André Malraux, A Condição Humana. Porque, durante décadas, os maiores escritores e os maiores artistas formaram um conjunto indissolúvel com o movimento operário, celebrando as revoluções, os amanhãs que cantam. Inclusive – é certo – menorizando as decepções, as tragédias, as lívidas madrugadas (polícia política, culto da personalidade, nepotismo familiar, campos de trabalho, execuções).
Em contrapartida, desde há trinta anos, só se fala disso; é mesmo recomendado a quem queira ter êxito na universidade e na imprensa, ou para brilhar na Academia. «Quem diz revolução, diz irrupção da violência», assevera Max Gallo. «As nossas sociedades são extremamente frágeis. A maior responsabilidade de quem tem acesso à palavra pública é advertir contra essa irrupção. » [5] François Furet, por seu lado, considerava que qualquer tentativa de transformação radical era totalitária ou terrorista, que «a ideia de uma outra sociedade tornou‑se quase impensável». Sendo pois esta a sua conclusão: «Estamos condenados a viver no mundo em que vivemos» [6]. Não é difícil imaginar que um tal destino correspondia às expectativas dos seus leitores, em geral protegidos das tormentas por uma existência agradável de jantares e de debates.
A fobia às revoluções e o seu corolário, a legitimação da ordem estabelecida, encontraram muitos outros retransmissores, além de Max Gallo e François Furet. Basta pensarmos nas opções dos media, incluindo o cinema. Desde há trinta anos, os media pretenderam demonstrar que fora da democracia liberal só havia regimes tirânicos e conivência entre eles. A importância dedicada ao Pacto Germano‑Sovietico foi pois muito maior do que a atribuída a outras alianças contranatura, como os Acordos de Munique e o aperto de mão de Adolf Hitler e Neville Chamberlain. O nazi e o conservador comungavam, pelo menos, no ódio às frentes populares. Esse mesmo medo de classe inspirou os aristocratas de Ferrara e os donos da siderurgia da região do Ruhr, quando favoreceram a ascensão ao poder de Mussolini e do III Reich [7]. Ainda será permitido lembrar estas coisas?
Nesse caso, podemos ir mais longe… Embora Léon Blum tenha teorizado com clamor a sua rejeição de uma revolução de tipo soviético, classificada por um dos seus amigos como «blanquismo com molho tártaro», essa figura socialista, tão respeitada pelos professores de virtude, reflectiu sobre os limites de uma transformação social cujo único talismã seria o sufrágio universal. «Não estamos muito seguros», preveniu ele em 1924, «de que os representantes e dirigentes da sociedade actual não saiam eles próprios da legalidade quando os seus princípios essenciais lhes parecerem muito gravemente ameaçados». Com efeito, desde então, as transgressões desse género não têm faltado, do pronunciamento de Franco em 1936 ao golpe de Estado de Augusto Pinochet em 1973, sem esquecer o derrube de Mohammad Mossadegh no Irão, em 1953. Sublinhava então o dirigente socialista que «nunca a República foi proclamada em França pela virtude de um voto legal, exprimido segundo as formas constitucionais. Ela sempre foi estabelecida, contra a legalidade existente, pela vontade do povo insurrecto» [8].
Evitar as restaurações conservadoras oriundas do saber
Deste modo, o sufrágio universal, agora invocado para desqualificar as outras formas de intervenção colectiva (entre as quais as greves nos serviços públicos, assimiladas a sequestros de reféns), teria passado a ser o princípio e o fim de toda a acção política. Mas as questões que Léon Blum levantou a este respeito não envelheceram nada: «Será hoje (o sufrágio universal) uma realidade plena? Não pesará sobre os eleitores a influência do patrão e do proprietário, juntamente com as pressões das forças do dinheiro e da grande imprensa? Será todo o eleitor livre no sufrágio que exprime, livre pela cultura do seu pensamento, livre pela independência da sua pessoa? Para o libertar, não será justamente necessária uma revolução» [9] Murmura‑se agora, todavia, que o veredicto das urnas fez abortar, em três países europeus – Holanda, França e Irlanda –, as pressões conjugadas do patronato, das forças do dinheiro e da imprensa. Mas, precisamente por isso, esse veredicto não foi tido em conta…
«Perdemos todas as batalhas, mas éramos nós que tínhamos as mais belas canções.» Esta declaração, cujo autor terá sido um combatente republicano espanhol que procurou refúgio em França após a vitória de Franco, resume à sua maneira o problema dos conservadores e da sua lancinante pedagogia da submissão. Ditas estas coisas simplesmente, as revoluções deixam na história e na consciência humana um vestígio indelével, inclusive quando falharam, inclusive quando foram aviltadas. Com efeito, elas incarnam o momento, tão raro, em que a fatalidade se subleva, em que o povo ganha vantagem. Daí a sua ressonância universal. Porque, cada qual à sua maneira, os amotinados do Potemkin, os sobreviventes da Longa Marcha ou os barbudos da Sierra Maestra ressuscitaram o gesto dos soldados do Ano II, esse gesto que levou o historiador britânico Eric Hobsbawm a dizer que «a Revolução Francesa revelou a força do povo de uma forma que nunca nenhum governo pôde dar‑se ao luxo de esquecer – quanto mais não seja por terem de se lembrar do improvisado exército de recrutas que venceu, sem preparação militar, a poderosa coligação constituída pelas mais experimentadas tropas de elite das monarquias europeias» E [10].
Não se trata apenas de uma «lembrança»: o vocabulário político moderno e metade dos sistemas jurídicos existentes no mundo inspiram‑se no Código que a Revolução Francesa inventou. Quem pensar no «terceiro‑mundismo» da década de 1960 bem pode perguntar‑se se uma parte da sua popularidade na Europa não terá vindo da sensação de reconhecimento (no duplo sentido da palavra) que ele fez nascer. De facto, o ideal revolucionário das Luzes, igualitário e emancipador, pareceu renascer no Sul, em parte graças a vietnamitas, argelinos, chineses e chilenos que tinham passado pelo Velho Continente.
Nesse tempo, o Império empastava‑se, antigas colónias revezavam‑se, a revolução prosseguia. A situação actual é diferente. A emancipação da China ou da Índia, a sua afirmação na cena internacional, suscitam aqui e ali curiosidade e simpatia, mas não remetem para nenhuma esperança «universal», ligada, por exemplo, à igualdade, ao direito dos oprimidos, a um outro modelo de desenvolvimento, à preocupação de evitar as restaurações conservadoras oriundas do saber e da distinção.
Se é maior o entusiasmo internacional que a América Latina suscita, é porque ali a orientação política se revela simultaneamente democrática e social. Desde há vinte anos, uma certa esquerda europeia tem justificado a prioridade que atribui às solicitações das classes médias teorizando o fim do «parêntesis revolucionário», o apagamento político das camadas populares. Ora, pelo contrário, os governantes da Venezuela ou da Bolívia mobilizam de novo estas últimas provando‑lhes que a sua existência é tida em conta, que o seu destino histórico não está encerrado, que, em suma, a luta continua.
Por mais desejáveis que continuem a ser, as revoluções são raras. Elas pressupõem, ao mesmo tempo, uma massa de descontentes prontos a agir, um Estado cujas legitimidade e autoridade são contestadas por uma fracção dos seus defensores habituais (devido à sua imperícia económica, à sua incúria militar ou a divisões internas que o paralisam e desmembram) e, por último, a preexistência de ideias radicais que ponham em causa a ordem social, extremamente minoritárias à partida mas às quais poderão apegar‑se todas as pessoas cujas antigas crenças ou lealdades se dissolveram [11].
A historiadora norte‑americana Victoria Bonnell estudou os operários de Moscovo e São Petersburgo nas vésperas da Primeira Guerra Mundial. Como se trata do único caso em que este grupo social foi o actor mais importante de uma revolução «bem sucedida», merece ser referida a sua conclusão: «O que caracteriza a consciência revolucionária é a convicção de que as queixas só podem ser satisfeitas transformando as instituições existentes e estabelecendo uma outra organização social» [12]. Ou seja, essa consciência não surge de forma espontânea, sem uma mobilização política e uma ebulição intelectual prévias.
Tanto mais que em geral, e é a isso que actualmente assistimos, as exigências dos movimentos sociais começam por ser defensivas, desejando restabelecer um contrato social que consideram ter sido violado pelos patrões, pelos proprietários de terras, pelos banqueiros, pelos governantes. Ficam na ordem do dia o pão, o trabalho, a habitação, a escolaridade, um projecto de vida – não (ainda) um «futuro radioso», apenas «a imagem de um presente liberto dos seus aspectos mais dolorosos» [13]. Só depois, quando se torna manifesta a incapacidade dos dominantes para cumprir as obrigações que legitimam o seu poder e os seus privilégios, é por vezes levantada a questão, extravasando os círculos militantes, de saber «se os reis, os capitalistas, os padres, os generais e os burocratas continuam a ter utilidade social» [14]. Pode então falar‑se de revolução. Podendo a transição de uma etapa para a outra ocorrer rapidamente – dois anos em 1789, uns meses em 1917 – ou nunca acontecer.
Desde há quase dois séculos, milhões de militantes políticos ou sindicais, de historiadores e sociólogos, têm examinado as variáveis que determinam esse desenlace. Está a classe dirigente dividida e desmoralizada? Está o seu aparelho repressivo intacto? Estão as forças sociais que aspiram à mudança organizadas e capazes de se entenderem? Curiosamente, onde estes estudos têm sido mais abundantes é nos Estados Unidos, onde muitas vezes se tratou de compreender as revoluções, de admitir todos os seus contributos, para esconjurar melhor a sua pavorosa perspectiva.
Mas a fiabilidade desses estudos tem‑se revelado… aleatória. Em 1977, por exemplo, a maior preocupação era ali a «ingovernabilidade» das sociedades capitalistas. Surgindo, por contraste, esta pergunta: por que motivo é a URSS tão estável? Neste último caso, sucediam‑se as explicações: preferência dos dirigentes e da população soviética pela ordem e pela estabilidade; socialização colectiva fortalecedora dos valores do regime; natureza não cumulativa dos problemas a resolver, podendo assim o partido único ter campo de manobra; bons resultados económicos que contribuíam para a estabilidade desejada; melhoria do nível de vida; estatuto de grande potência; etc. [15]. Já então imensamente célebre, o politólogo Samuel Huntington, da Universidade de Yale, concluía da seguinte maneira essa enxurrada de índices concordantes: «Nenhum dos desafios previstos para os próximos anos parece ser qualitativamente diferente daqueles a que o sistema soviético já conseguiu dar resposta» [16].
Todos sabemos o que veio depois…
quinta-feira 7 de Maio de 2009
Notas
[1] Le Figaro, Paris, 9 de Abril de 2009.
[2] «Em suma, o que a sensibilidade liberal exige é uma revolução descafeinada, uma revolução que não tenha o sabor da revolução», resume Slavoj Zizek em Robespierre: entre vertu et terreur, Stock, Paris, 2008, p. 10.
[3] Financial Times Magazine, Londres, 7‑8 de Outubro de 2006.
[4] Conferência de imprensa de 24 de Março de 2009.
[5] Le Point, Paris, 25 de Fevereiro de 2009.
[6] François Furet, Le Passé d’une illusion, Robert Laffont/Calman‑Levy, 1995, p. 572 (O Passado de uma Ilusão, Presença, Lisboa, 1996).
[7] Em 1970, este assunto foi abordado pelos realizadores Vittorio de Sica (Il giardino dei Finzi‑Contini, O Jardim dos Finzi‑Contini) e Luchino Visconti (La caduta degli dei, Os Deuses Malditos).
[8] Léon Blum, «L’idéal socialiste», La Revue de Paris, Maio de 1924.
[9] Ibid.
[10] ric J. Hobsbawm, Aux armes, historiens. Deux siècles d’histoire de la Révolution française, La Découverte, Paris, 2007, p. 123 (Ecos da Marselhesa. Dois Séculos Revêem a Revolução Francesa, Companhia das Letras, São Paulo, 1996).
[11] Ler Jack A. Goldstone, Revolution, Wadsworth Publishing, Belmont (Califórnia), 2002, e Theda Skocpol, States and Social Revolutions, Cambridge University Press, 1979.
[12] Victoria Bonnell, The Roots of Rebellion. Workers’ Politics and Organizations in St. Petersburg and Moscow, 1900‑1914, University of California Press, Berkeley, 1984, p. 7.
[13] Barington Moore, Injustice. The Social Bases of Obedience and Revolt, Sharpe, White Plains (Nova Iorque), 1978, p. 209.
[14] Ibidem, p. 84.
[15] Cf. Seweryn Bialer, Stalin’s Successors. Leadership, Stability, and Change in the Soviet Union, Cambridge University Press, 1977.
[16] Samuel Huntington, «Remarks on the Meaning of Stability in the Modern Era», Seweryn Bialer e Sophia Sluzar (ed.), Radicalism in the Contemporary Age. 3 – Strategies and Impact of Contemporary Radicalism, Westview Press, Boulder (Colorado), 1977, p. 277.
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in Le Monde Diplomatique - Maio 2009
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