A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht
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sábado, julho 27, 2013

josé pacheco pereira - A CRISE POR DETRÁS DA "CRISE"

ABRUPTO

A CRISE POR DETRÁS DA "CRISE"


Andamos tempo de mais a esquecer-nos de que Portugal ainda é uma democracia. Esquecemo-nos também de que Portugal ainda é um país soberano e independente. Há demasiadas pessoas a dizerem-nos que tudo isto é só nominal, porque não podemos viver em democracia sob o jugo da “economia” e não há soberania, enquanto houver Memorando. Aceitem e calem-se, porque o país deve ser governado sem lei, nem Constituição, e submetam-se a tudo que a troika nos diz, porque os nossos soberanos são os “credores”. Isto, dizem-nos, é indiscutível, é a “realidade”, no dizer do primeiro-ministro, e a “realidade” não se discute.
Daqui resulta uma enorme perturbação, como se vê nos filmes de ficção científica quando o Sol resolve destruir-nos, ou surge do fundo do Pacífico o grande lagarto Godzilla, ou as plantas resolvem matar-nos. O ministro dos Negócios Estrangeiros acha normal descrever o seu país como um protectorado. Como eram Marrocos, a Manchúria, a Boémia e Morávia, a Basotulândia, ou as ilhas Tonga. Repito: eu posso dizê-lo, ele não. O facto de o ministro usar essa classificação (ele não é analista, é ministro, pelo que a sua voz é aceite pelas diplomacias estrangeiras como sendo a descrição legítima, não só de facto mas de jure, da situação portuguesa) não tem origem em nenhum acto do Parlamento, nenhuma rendição de tropas, nenhum Pétain a assinar a submissão a Hitler, em nome da “salvação nacional”. Se somos um protectorado, devemos organizar a resistência ou ser “colaboracionistas”?

O que é significativo é que a existência de um Memorando, do teor do que foi assinado há dois anos, é considerado pela nossa elite do poder como uma cedência total da soberania, e uma suspensão da democracia, comportando-se em consequência com a maior das naturalidades. Não é apenas uma medida de emergência financeira, pactuada com entidades de que Portugal faz parte (Portugal é membro do FMI, do BCE e da UE), mas uma rendição que põe em causa tudo, a começar pela independência e a acabar na democracia.

Na verdade, a questão mais de fundo é que a política definida no Memorando era para uma elite económica-financeira-política muito mais do que um plano de emergência financeira, era o programa salvífico para “nos comportarmos bem”, e para que “o país nunca mais seja o mesmo”. Era uma oportunidade única e foi defendida com tropas em batalha, como se fosse uma guerra. E era, era e é, uma guerra social.

Ou seja, o Memorando foi não só uma emergência, mas também uma salvação divina. Deu aos seus colaboracionistas um bordão político que ia muito para além do seu cumprimento, tornando-se o programa de regeneração nacional que poria em ordem os preguiçosos gastadores dos portugueses que “viviam acima das suas posses”, reduzindo-os punitivamente à sua condição de pobres de que nunca deveriam ter saído, ainda por cima com dinheiro emprestado e encostados ao Estado. Quem eram esses portugueses? Os trabalhadores, os funcionários, os pequenos empresários, os reformados, os pensionistas, os “de baixo”.

Os de cima pagavam uma taxa, uma portagem, mas reforçavam o seu mando e ficavam com um país de mão-de-obra barata, assente no “estabilizador” do desemprego e na perda quase total de direitos laborais. Asseguravam que Portugal continuaria a pagar as suas reparações de guerra aos “credores”, na guerra em que o país tinha ficado um protectorado e, colaborando no presente, apostavam no futuro. No seu futuro. Para eles, a “salvação nacional” é a manutenção da hierarquia social e o reforço da sua desigualdade. Sabem os de cima e sabem os de baixo.

Não foi a idiossincrasia histérica de Portas, nem a autocrítica de Gaspar que abriram esta crise, foram os efeitos da “fadiga fiscal”, da “usura social”, do “cansaço social”, da “erosão significativa no apoio da opinião pública”, da “profunda crise (…) social e política”, ou seja, de tudo o que se passa fora dos gabinetes, e que foi considerado sempre irrelevante, menor, dano colateral. Os jornalistas e comentadores preferem valorizar as tricas políticas, dizendo que o Governo só caiu ou só podia cair por dentro. Na verdade, não podem admitir que aquilo que estão sempre a desvalorizar possa ter este papel. Mas, se não fosse a agitação social, essas coisas como greves, manifestações, protestos, Grândolas, insultos e quadra-costas, etc., como é que se sabia que havia “erosão significativa no apoio da opinião pública”? É, as causas exógenas actuam pelas causas endógenas.

Gaspar percebeu bem que a inflexão que o Governo estava a conhecer, e que se manifestou nas suas dificuldades para encerrar a sétima avaliação, se devia à entrada em cena, com toda a sua glória, do eleitoralismo. Passos e Portas são homens de partido, vieram de todas as jotas para o poder, Passos da JCP, via JSD, Portas da JSD. São muito diferentes, mas em muita coisa são iguais como políticos profissionais no actual sistema partidário. Sabem melhor do que ninguém que nos partidos que lideram, há, principalmente no PSD, milhares de pessoas cujo emprego depende do partido, nas autarquias, nas administrações regionais, no Parlamento, nas zonas empresariais ligadas ao poder político, na administração central e no Governo. De motoristas a funcionários dos grupos parlamentares, deputados, administradores hospitalares, membros dos conselhos de supervisão das grandes empresas, escritórios de advogados e consultoras financeiras onde o conúbio com o poder político é altamente lucrativo. E essas pessoas percebem bem de mais que podem ver o seu pool de empregabilidade e de acesso ao poder reduzido para metade num desastre eleitoral. Também aqui a aceleração da crise no interior do Governo vem de fora, da mesma “usura social” que ninguém quer admitir, aqui pelos seus efeitos eleitorais no poder dos partidos.

É por isso que a crise política em que estamos mergulhados tem tudo a ver com a democracia, no bom e no mau sentido. Só pode ser resolvida pelo desbloqueamento da situação política e isso só se consegue com eleições e, por outro lado, essas eleições são vistas com pânico pelos partidos da coligação, o PSD e o CDS. O Presidente queria esse desbloqueamento, a troika quer esse desbloqueamento, ambos sabem que sem o PS não há solidez nem continuidade nas medidas que desejam.

O PS, por seu lado, podia ter assinado de cruz, e assinaria de cruz, se o tempo andasse para trás. Ora o tempo nunca pode andar para trás, porque a razão que levou à exclusão do PS da governabilidade foi a arrogância utópica do “troikismo” radical, que queria fazer uma revolução e não queria “consensos”. Ir agora buscar o PS quando tudo está a ruir viola o princípio de autoperservação que em Seguro é da mesma natureza de Passos Coelho. Tempo errado, senhor Presidente, se querem que Seguro assine o que for preciso coloquem-no no poder por eleições, inseguro e frágil, e nessa altura ele entende-se bem com um PSD humilhado pelas urnas. É tudo muito mau, mas é assim.

Mas a crise não vai passar e irá piorar se não houver eleições. Queira o Presidente ou não, se dá ao Governo a remodelação que ele deseja — ela própria a melhor garantia de que vai continuar a haver instabilidade governativa —, e os dois anos até 2015, reforça a arrogância que Passos Coelho já mostrou na crise ao afrontá-lo na Assembleia. O Presidente volta ao contexto do seu discurso de 25 de Abril, mas numa situação muito mais frágil. É só uma questão de tempo até toda a gente perguntar se era para isto, por que perdeu todos estes dias? É que o argumento dos mercados não serve só para aterrorizar os indígenas com as eleições, serve também para Portas, Passos e Cavaco.

Mas há uma razão ainda mais funda, estrutural, para que a crise não se vá embora e ela traduziu-se na grande omissão destes dias, no enorme silêncio absurdo e cego com que se discute tudo e três tostões como se as pessoas comuns fossem mera paisagem, os portugueses súbditos sem voz — as eleições não servem para nada, dizem-lhes — e colonizados pelos colaboradores dos “credores” de um protectorado consentido sem revolta. Se nada disto mudar, é só esperar pelos próximos episódios.

http://abrupto.blogspot.pt/2013/07/a-crise-por-detras-da-crise-andamos.html

domingo, fevereiro 24, 2013

José Pacheco Pereira - o nº que está tatuado nos braços dos prtugueses: o ñº de contribuinte

 
ABRUPTO
 
 
23.2.13


O NÚMERO QUE ESTÁ TATUADO NOS BRAÇOS DOS PORTUGUESES: 
O NÚMERO DO CONTRIBUINTE


Aqui há uns anos houve uma discussão sobre o número único a propósito do cartão do cidadão. É uma matéria pouco popular, tida como importando apenas aos intelectuais e aos políticos, que as pessoas comuns vêem com muita indiferença. Se lhes parece mais eficaz que cada um tenha um número único que sirva para o identificar num bilhete de identidade, para reconhecer uma assinatura, na Segurança Social, no fisco, numa ficha médica, num cartão de crédito ou de débito, qual é o problema? Se isso lhe poupa tempo e papéis, qual é a desvantagem? Se isso permitir perseguir um criminoso, que importa existir uma base de dados com o ADN das pessoas? E se as tecnologias o permitirem, como permitem, qual o mal em podermos vir a ter um chip como os cães, ou uma etiqueta electrónica como as crianças à nascença, por que razão é que nós não podemos ser numerados por um qualquer código de barras tatuado no braço?
 
A maioria das pessoas é indiferente ao abuso do Estado nestas matérias se daí vier uma aparente maior eficácia e menor burocracia. E os proponentes destas medidas, uns tecnocratas, outros fascinados pelos tecnocratas, outros ainda gente mais perigosa e securitária cujo ideal de sociedade perfeita é o 1984 de Orwell, todos manipulam a opinião contra os antiquados defensores dos "direitos cívicos", que continuam a achar que não se deve ter número único, chip, ou código de barras, em nome dessas coisas tão de "velhos do Restelo" como sejam as liberdades e o direito do indivíduo em ter uma reserva da sua vida íntima e privada, sem intromissão indevida do Estado onde ele não deve estar.


Infelizmente, insisto, a indiferença cívica é o pano de fundo de muitos abusos e a sociedade e o Estado que estamos a construir são os ideais para uma sociedade totalitária. Se uma nova polícia política aparecer - e para quem preza a liberdade esse risco existe sempre -, não precisa de fazer nenhuma lei nova, basta usar os recursos já disponíveis para obter toda a informação sobre um cidadão que queira perseguir. 


A promessa que nos é feita é de que os dados "não são cruzados". Mas esta afirmação não só não é verdadeira como não garante nada. Não impede um serviço de informações que queira abusar, de obter cumplicidades e "cruzar" dados, não impede uma polícia de fazer o mesmo (o episódio do acesso da PSP às filmagens não editadas sem ordem judicial é um exemplo de práticas costumeiras que só são escrutinadas depois de um acidente de percurso), não impede a utilização de software mais sofisticado para fazer buscas na Internet, muito para além da informação já vasta que se pode obter no Google. E se somarmos as câmaras de vigilância e outros meios cada vez mais generalizados de controlo dos cidadãos, mais nos preocupamos com as liberdades no mundo orwelliano em que já vivemos. 


E quanto ao "cruzamento de dados" a partir de um número único com informação indevida, tudo isso já existe e chama-se NIF, número de identificação fiscal, ou mais prosaicamente, "número de contribuinte". De há dez anos para cá, o Governo Sócrates e depois o Governo Passos Coelho transformaram o fisco no mais parecido que existe com uma polícia global, e uma polícia global é também política, e o número de contribuinte no verdadeiro número único dos portugueses, cujo acesso permite todos os cruzamentos de dados e uma violação sem limites da privacidade de cada cidadão. Se somarmos a isso o facto de o fisco ser a única área da lei em que a presunção da inocência não existe e o ónus da prova cai no cidadão, temos um retrato de um Estado de excepção dentro de um Estado que se pretende de direito.


E não preciso de estar a recitar a litania do combate à evasão fiscal, porque este caminho de abuso tem sido trilhado exactamente porque o combate à evasão fiscal tem sido ineficaz onde deveria ser. O furor do Estado volta-se contra as cabeleireiras, os mecânicos de automóveis e as tabernas, mas ignora os esquecimentos de declaração de milhões de euros, que só são declarados quando descobertos e não merecem uma palavra de condenação nem do ministro das Finanças, nem do Banco de Portugal, nem de ninguém dos indignados com a factura dos cafés. E é exactamente porque o combate à evasão fiscal falha, ou porque a economia está morta, ou porque os Monte Brancos são mais numerosos do que todas as montanhas dos Alpes, dos Andes, do Himalaia, que se assiste a uma espécie de desespero fiscal que leva o Estado (os governos) a entrar pela liberdade e individualidade dos cidadãos comuns de forma abusiva e totalitária. Digo totalitária, mais do que autoritária, porque a tentação utópica de "conhecer" e controlar a sociedade e os indivíduos através da monotorização de todas as transacções económicas é de facto resultado de mente como a do Big Brother


Num computador do fisco está toda a nossa vida já inventariada e cruzada através do número de contribuinte e dos poderes discricionários da Autoridade Tributária. Se de manhã ao pequeno-almoço não pedir factura do café, pode vir um fiscal e multar-me (não pode porque é ilegal, impossível de facto, e o Governo anda a mentir-nos a dizer que já o fez quando se devem contar pelos dedos da mão as contra-ordenações realizadas, se é que há alguma à data do anúncio), e para lavrar o "auto" terá de dizer onde estou, o que consumi sem factura e informar o Estado sobre se tomo chá, café ou chocolate, doces ou salgados, etc. Depois passo por uma livraria e na factura estão os livros que comprei e está o número de contribuinte. Hum! Este anda a ler livros subversivos, ou quer saber coisas sobre a Tabela de Mendeleev (a química é sempre perigosa), ou uma história sexualmente bizarra como a Lolita, (diga aí ao assessor do senhor ministro que um boato de pedofilia é sempre mortífero e o homem lê livros sobre isso), ou o Vox do Nicholson Baker (uma história de sexo por telefone que o procurador Starr queria usar como prova contra Clinton, pedindo à livraria que lhe confirmasse a compra do livro por Monica Lewinsky, o que a livraria recusou e bem). Depois foi almoçar, e pelo número de contribuinte verifico que almoça muitas vezes a dois, e dois é um número suspeito. Coloque lá no mapa o sítio do pequeno-almoço, mais a livraria, mais o restaurante, e as horas. E depois? A Via Verde cujo recibo tem o número de contribuinte mostra que entrou na portagem X e saiu na portagem Y. Interessante, o que é que ele foi fazer ao Entroncamento? E levantou dinheiro no Multibanco. Muito ou pouco? Bastante. Veja lá as facturas que ele pagou no Entroncamento. Aqui está, comprou uma mala de viagem. Então a factura? Não há, comprou nuns chineses, mas foi visto com a mala na câmara de vigilância de um banco. Anote aí para mandar uma inspecção do fisco e da ASAE aos chineses, imagine o que seria se nós não tivéssemos as imagens do banco! O que é que ele vai fazer com a mala? E por aí adiante.


A nossa indiferença colectiva face ao continuo abuso do Estado, que nada melhor nos dias de hoje revela do que o fisco, vai acabar por se pagar caro. Muitos tentaram fugir ao fisco? É verdade, muitos inclusive nunca pagaram impostos e vivem numa economia paralela, mas a sanha contra eles, que face ao fisco não tem direitos, nem defesa, nem advogados, contrasta com a complacência afrontosa com a fraude fiscal com os poderosos. É que também nisso, na perseguição aos pequenos, se revela o mundo totalitário de 1984 e do Triunfo dos Porcos, em que alguns são mais iguais do que outros. E pelo caminho, para garantir que os pequenos sejam apanhados na malha, pelo desespero de um fisco que quer sugar uma economia morta de recursos que ela não tem, é que se usa o número de contribuinte como número único, cruzado nos computadores das finanças, muito para além do que é necessário e equilibrado, numa ameaça às liberdades de cada português.

*

E, como em  Fahrenheit 451, de Ray Bradbury,  os perseguidos refugiam-se fora das cidades hiper-vigiadas, em locais de penumbra económica onde cada  um tem de decorar o livro da sua vida  patrimonial e financeira   antes que o Fisco o encontre, confisque e execute o portador .  Depois, sempre sem registos,  transmite o seu conteúdo a outros refugiados, que assim o preservam, até que, um dia, possuir tal livro escrito deixe de ser perigoso.

(Mário J. Heleno)

http://abrupto.blogspot.pt/2013/02/o-numero-que-esta-tatuado-nos-bracos.html 

quarta-feira, janeiro 23, 2013

José Pacheco Pereira - o "regresso aos mercados"


ABRUPTO

23.1.13



(Escrito em 14 de Janeiro de 2013, publicado a 17. E estava já no discurso para 2013, escrito ainda em 2012:  "Vamos fazer duas ou três emissões com sucesso em 2013, pequenas, a vários prazos, prudentes, e depois os alemães vão colocar-nos a mão por baixo e defender-nos dos mercados, porque com esse sucesso, já podemos ser apoiados pelo BCE. Foi o que nos prometeram, para podermos apresentar a saída da troika como um grande trunfo político." Há alturas em que não custa nada prever.)

“REGRESSAR AOS MERCADOS EM 2013”

 Vamos admitir que Portugal “regressa aos mercados” em 2013, cumprindo aquilo que já é o único objectivo da política governamental que os seus responsáveis pensam que é realisticamente atingível antes de eleições. O défice, a dívida, a recessão ou um crescimento larvar resultado apenas de que não se pode estar sempre a descer, o desemprego, a crise social em todo o seu esplendor, as falências, o aumento da pobreza, tudo isto parece estar para continuar e durar muito para além do actual ciclo eleitoral. Mas, com o abaixamento dos juros nos mercados, que favorecem Portugal, a Irlanda e mesmo a Grécia, pode ser possível fazer algumas pequenas emissões com sucesso para dar pretexto a que a mão protectora do BCE se estenda sobre Portugal. O que conta é a mão do BCE e não o sucesso das emissões, mas será sempre dito o contrário. É mau? Não é, é bom, mais vale isso do que nada. Mas vale muito menos do que o governo quer dar a entender. É verdadeiramente “voltar aos mercados”? Não é, porque sem o aval do BCE seria impossível. É sustentável? Não é de todo, mas o governo pensa apenas até 2015, porque o “que se lixem as eleições” foi dito em ingsoc e doublespeak, a linguagem orwelliana em que uma coisa significa exactamente o seu contrário 

É MAU? NÃO, É BOM, MAS…


Vamos de novo voltar à admissão principal de que Portugal “regressa aos mercados”. Significa isso que a troika se vai embora de vez? Errado, a troika fica cá mesmo sem cá estar. O Pacto Orçamental garante a continuidade da política da troika. “Bruxelas”, essa entidade mítica, passa a ter um direito de veto sobre os orçamentos, colocando o parlamento português sob tutela permanente naquela que foi a sua mais importante prerrogativa numa nação que era soberana. Os fundos comunitários já virão com a condição da obediência. E, depois, a mão benfazeja do BCE, e dos alemães que o controlam, só se estenderá se a política da troika se mantiver, e, em caso contrário, é que Portugal será mesmo “atirado” aos mercados, ou seja dura uma semana até pedir novo resgate. É verdade que a benevolência com Portugal se deve em grande parte ao facto de que para os decisores que contam nesta matéria, a começar por Angela Merkel, os actuais governantes tem-se esforçado em fazer o que lhes é pedido. Por isso Passos e Gaspar têm razão quando afirmam que Portugal, em particular a sua encarnação em Vítor Gaspar, tem aumentado a sua “credibilidade” junto dos mercados, porque estes sabem que enquanto a Alemanha e o BCE protegem Portugal, as emissões portuguesas, principalmente nos prazos mais curtos, são um bom investimento. 

PRESUMINDO QUE NÃO HÁ MILAGRES 


Mas, como Nossa Senhora, presume-se, não aparecerá em Wall Street, e muito menos em S. Bento, não há milagres que evitam que, mesmo com todas as protecções especiais, a “ida aos mercados”, se se der, seja artificial e acima de tudo muito frágil. Como, a continuar-se a mesma política da troika directamente na Grécia e em Portugal, e indirectamente na Espanha e na Itália, as crises são inevitáveis, quer no plano político, quer social, quer económico, como é que ficamos se de novo se der uma subida de juros em resposta a um agravamento da situação em qualquer país europeu? Ora esse agravamento é inevitável a prazo curto e a volatilidade dos mercados grande. Como é que faremos depois? Vamos de novo pedir o regresso da troika mais uma centena de milhar de milhões de euros de um novo resgate? Eu bem sei que para os responsáveis por esta política se isto acontecer depois de 2015, não é “culpa” deles, que fizeram sair nominalmente a troika de cá, mas de quem estiver no poder na altura. Mas a sua lavagem de mãos é como a de Sócrates em Paris: deixaram o menino no colo dos outros e foram-se à vida. 

 LÁ TEMOS QUE VOLTAR A UMA FRASE FEITA QUE TEM O INCONVENIENTE DE SER VERDADEIRA 


O que mais me espanta quando isto se discute e se saúda gloriosamente este “regresso” protegido e imperfeito aos mercados, é que quem lhe deita os foguetes antecipadamente tem mais que obrigação de saber que, no fundo, se trata apenas de ir pedir mais dinheiro, endividar-nos mais, e que é na aplicação desse dinheiro que está a chave. Ou seja, e cá vem a terrível frase feita, é a fragilidade estrutural da nossa economia, da nossa sociedade e da nossa política, que conta e isso não se resolve pedindo mais dinheiro, seja à troika seja aos mercados, mas sabendo como o aplicar bem, para depois o poder pagar. Superar estas fragilidades é que é a chave de qualquer regresso aos mercados que seja sustentável e sem crescimento não há nada para ninguém que seja sustentável. Sustentável, a palavra que mais entusiasma qualquer tecnocrata, mas com a qual eles têm uma mera relação platónica. 

ENTRA EM CENA A “IDEOLOGIA” 


Aqui as águas dividem-se e entra em cena o conjunto de ideias superficiais que passa por ser ideologia. A crença, porque não é mais do que uma crença, de que colocadas as pedras no sítio certo, défice quase zero, dívida a ser paga, salários em baixo e mão-de-obra barata, estado apenas para os muito pobres e vagamente regulador para tudo o resto, sociedade competitiva porque empobrecida, separação de águas entre os “preguiçosos” e os “empreendedores”, austeridade mais autoridade, se entra num boom económico imparável que resolverá tudo e mostrará a validade das receitas da troika. Há quem acredite nisso, alguns yuppies já fora de época que são muito activos nas redes sociais, e cujo pensamento cabe em 140 caracteres, mas há acima de tudo quem precise disto, quem tenha interesse nisto, mesmo que não acredite muito no seu desfecho. Se posso pagar muito menos em salários e despedir quem quiser, não me importo de ser neo-liberal durante meia semana e na outra, quando quero aceder a alguns dinheiros comunitários, sou keynesiano se for preciso. Mas enquanto os primeiros andam já à procura de inimigos externos, o “povo habituado a ser protegido” é o primeiro candidato e as “corporações”, o segundo; os pragmáticos esforçam-se por aproveitar o que podem, porque sabem aquela verdade que toda esta ilusão pretende esconder: isto não vai durar muito. Ou, dito de outra maneira mais precisa: se continuar a haver democracia isto não vai durar muito. E aproveitam enquanto podem, até porque o “Monte Branco” e as Caimões não estão assim tão longe.

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sábado, janeiro 12, 2013

José Paheco Pereira - as alternativas


ABRUPTO
12.1.13

ALTERNATIVAS 


 O pior discurso situacionista é o que está sempre a perguntar, quando se critica a governação, pelas alternativas. “Não apresentou alternativas” é a frase mágica que funciona como afirmação (a política do governo é a única possível), como negação (não há alternativas à política do governo) e como acusação (quem fala sem enunciar alternativas, que o poder reconheça como tal, não tem direito a falar). Nenhuma destas coisas é verdadeira, não só porque há alternativas, umas boas e outras más, mas nem por isso deixam de ser alternativas; como muita gente apresentou alternativas, mas foram e são recusadas de imediato, como a crítica, quando fundada, é ela mesmo um exercício que abre espaço a alternativas. 

ALTERNATIVAS E ESPAÇO POLÍTICO 


O principal problema das alternativas é haver espaço para existirem, espaço objectivo, espaço materializável, espaço realista, e o facto de o governo estar sempre a criar um esgotamento deste espaço, a diminui-lo, a inquina-lo, não é argumento a não ser contra o governo. Sem ser uma alternativa viável, como se vê pelos resultados, a acção do governo é destruidora das alternativas possíveis. É aliás mais eficaz em destruir essas alternativas, do que em se afirmar como possibilidade, e é por isso que aceitar acriticamente, como faz muita comunicação social, o discurso da “ausência de alternativas” é a forma mais acabada de situacionismo nos dias de hoje. Uma coisa é verdadeira: o facto de se governar de determinado modo diminui muito o campo das alternativas. Não é que não haja, ou não tenha havido alternativas, é que há também uma contínua destruição de alternativas, quer pelo governo, quer, em menor grau, pela oposição. Passos Coelho, Gaspar, Álvaro Santos Pereira, e António José Seguro têm vindo de forma consistente a diminuir o campo das alternativas ao afunilarem as possibilidades de acção. Um exemplo típico é a continuada destruição do próprio espaço político do governo, através do sistemático ignorar e maltratar da concertação social, um dos poucos campos de alargamento existentes, logo de legitimação, da acção política vinda do governo. O mesmo pode ser dito da contínua e sistemática política de ignorância do PS por parte do PSD e do CDS governamentais, que de há muito destruiu qualquer possibilidade de entendimentos alargados. 

 DESTRUIR AS ALTERNATIVAS


Outro factor de destruição de alternativas está na elaboração de legislação avulsa, mal feita, incompetente e muitas vezes ao lado dos problemas, quer para defender interesses, quer pura e simplesmente por ignorância. “Parece” que se defronta um problema, mas este fica na mesma ou pior. A maneira como o governo actuou com as fundações é um exemplo típico: vilipendiou a própria ideia de fundação, que continua a ser uma maneira válida da sociedade civil assumir funções em complemento do estado por genuína doação ao serviço do país de bens privados; deixou escapar aquilo que imediatamente devia acabar, as fundações criadas pelo estado destinadas a fazer desorçamentação; e deixou na mesma muitos dos abusos do estatuto de fundação que existiam e continuam a existir. O resultado é que tudo continua na mesma, mas é hoje mais difícil fazer uma política séria e alternativa de reforma das fundações. Parece que foi feita e não foi. 

NÃO FOI POR FALTA DE AVISOS 


O mesmo se pode repetir em muita outra legislação feita à pressa para a troika ver e que criou caos e confusão, nalguns casos gerou monstros, e “queimou” por algum tempo a possibilidade de reformas efectivas em áreas vitais para a modernização do estado e da economia. O mais grave é que muita gente que sabia do que falava avisou o governo, mas, com enorme jactância, foram ignorados, mesmo quando depois se bateu com a cabeça numa parede. Não foi por não serem avisados, foi porque desprezaram os avisos, mesmo quando depois se lamentam dos efeitos. A meia hora suplementar é um típico exemplo, a TSU outro, o agravamento “enorme” dos impostos outro, o IVA da restauração, outro, o aumento do desemprego, outro. Um caso mais que flagrante é a política europeia, onde o grande destruidor de alternativas é o próprio governo. Em todos estes casos, a acção do governo seca o terreno como uma floresta de eucaliptos, e depois vem dizer que o deserto mostra que… nada lá cresce. O problema é que as alternativas são sensíveis ao tempo – há coisas que se podiam fazer diferente em 2011, outras que já não se podem fazer agora, outras ainda que agora continuam a poder-se fazer, mas com muitos mais custos e menor margem da manobra. 

OS GRANDES DESTRUIDORES DE ALTERNATIVAS 


O grande destruidor das alternativas é o governo, mas o grande destruidor da alternativa ao governo é o PS de Seguro. Mas essa história fica para outra altura, porque remete para o terreno onde menos de facto há alternativas: a erosão por parte dos aparelhos partidários das elites governativas capazes de unir capacidade politica e eleitoral, saber e patriotismo. E hoje, o PS e o PSD, não produzem tal espécie. Aqui sim, há um grave problema de alternativa.

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domingo, setembro 23, 2012

José Pacheco Pereira - QUANDO OS DE BAIXO JÁ NÃO QUEREM E OS DE CIMA JÁ NÃO PODEM

ABRUPTO
23.9.12

QUANDO OS DE BAIXO JÁ NÃO QUEREM E OS DE CIMA JÁ NÃO PODEM


Lenine, que era particularmente sensível à realidade do poder político, como tinham sido Maquiavel e Hobbes, escreveu que "a morte de uma organização acontece quando os de baixo já não querem e os de cima já não podem." A frase é muitas vezes usada para caracterizar uma "situação revolucionária", e tornou-se um truísmo que serve para tudo, até para Aguiar-Branco uma vez no Parlamento embasbacar os jornalistas com um discurso em que citou Lenine, Rosa Luxemburgo e Sérgio Godinho. Quase todas as citações eram abusivas, fora do contexto ou erradas - por exemplo, Rosa Luxemburgo era citada como tendo dito uma frase anos depois da data em que tinha morrido -, mas o efeito de embasbacamento verificou-se. No Parlamento os velhos esquerdistas, como eu, Rosas e Louçã, estávamos divertidos com aquilo tudo, mas que Aguiar-Branco citou Lenine para épater les journalistes, lá isso citou. Devia agora voltar à frase que citou e lê-la em Conselho de Ministros, para ilustração de Passos Coelho e dos seus colegas de governação, porque talvez assim o que essa frase diz sobre o poder político e o seu ocaso ganhe uma dimensão mais concreta.

Uma das vantagens desta frase é que ela é antitecnocrática pela sua natureza, remete para factores subjectivos que costumam ser completamente ignorados por aqueles para quem a realidade é apenas feita de coisas materiais e objectivas, em particular números, estatísticas, projecções, modelos, cuja eficácia fica garantida enquanto apenas se tratar de exercícios abstractos. Ao confundirem modelos com a realidade, eles fazem má economia e péssima política. Dir-me-ão que os melhores modelos incorporam exactamente variáveis "subjectivas", e nenhum economista ignora o papel das expectativas e o natural "ruído" do mundo, que também pode ser expresso em números, só que com equações um pouco mais complicadas e modelos mais complexos.

Porém, o forte traço tecnocrático que atravessa algumas personagens deste Governo não é o problema de fundo que emerge nos nossos dias. Não ignoro que a consciência de que muitos erros foram cometidos no âmbito da decisão política, que originaram desperdícios e "regabofe", iriam gerar o movimento contrário: chamai os técnicos, correi com os políticos. Não é nada de novo, já aconteceu muitas vezes, na I República, no início do Estado Novo, no período pós-25 de Abril. Mas seria errado considerar que o que se passa se deve apenas a um conflito entre "pessoas" e "números", a vida e os modelos, a ignorância dos factores subjectivos em detrimento da crença de que os factores objectivos são tão "incontornáveis" como o diamante é duro. Os partidários desta escola costumam lembrar-nos que os factos são duros e não adianta ignorá-los que eles batem-nos sempre à porta, com tanta maior surpresa quanto os pretendemos ignorar com lirismo verbal e florinhas cor-de-rosa sobre "primeiro as pessoas". Têm razão. Os factos batem sempre à porta de quem os ignora, e foi isso que aconteceu na última semana, mas os responsáveis são os políticos e não os tecnocratas se os deixam à solta.

Que "os de baixo já não querem" é uma evidência, mas quem criou esta situação não foram os números de Gaspar, mas a política de Passos Coelho, o continuado e sistemático desprezo pela realidade a favor de meia dúzia de ideias simples e erradas que cobrem os exercícios de Excel dos tecnocratas por um programa em que as "empresas" são boas e os trabalhadores são maus, os diligentes empreendedores querem "democracia económica" sem direitos e os "piegas" querem manter prebendas a que chamam direitos. Desde o primeiro dia até à Nini cantada, Passos Coelho deu lições de moral que eram a preto, o que as de Louçã eram a branco. Só que Passos manda e Louçã não. E a mistura de ignorância, ideias feitas, incompetência e completa falta de sentido de justiça, e de empatia pela dor alheia, veio desaguar na TSU, como se fosse uma colectiva bofetada na esmagadora maioria dos portugueses. E eles são cristãos, mas não gostam. E estão agora a retribuir.

Olhando do Governo e do poder político para "baixo", o que é que desapareceu? Margem de manobra, a fabulosa e raríssima margem de manobra que este Governo teve em 2011 e 2012, e que se traduzia na existência de um forte consenso de que era necessário haver sacrifícios. Não se pode menosprezar este facto: numa democracia, praticamente todos estavam dispostos a perderem parte do seu rendimento e regalias, para "ajudar" o país a resolver a crise que provocara a intervenção externa. Nem todos concordavam com as medidas, nem todos as achavam justas, nem todos entendiam que estavam a ser tratados com equidade, mas todos sabiam que tinha que haver austeridade. Foi isto que o Governo desbaratou, e nunca mais vai recuperar. E desbaratou-o porque confundiu perda de rendimentos com perda de direitos, perda de regalias, com aumento de desigualdade, e porque praticou um acto de completa injustiça, que virou todos os factores subjectivos contra ele, com a proposta da TSU. 

E por que é que isso é dramático? Porque o Governo está longe de conseguir gerir a situação económica e financeira, quer pela sua dificuldade, quer pelos erros que cometeu. Como é que neste ambiente e contexto o Governo pode esperar exigir pelo menos mais três novas vagas de austeridade, sobre as já existentes, entre hoje e 2014? É que o Governo sabe bem de mais que vai ser preciso tomar novas medidas para garantir os 5% do défice este ano (apesar de o Tribunal lhe ter consentido o duplo corte em 2012), a passagem de 5, se os conseguir, para os 4,5% do próximo ano, aí já tendo que resolver o problema da inconstitucionalidade do duplo corte, e, por fim, que ferro e fogo de austeridade nos vão fazer passar em 2014 de 4,5 para 2,5%, um objectivo absurdo de tão zeloso que é. E isto sem contar com a TSU, que tem pouco impacto no défice.

Não vão conseguir, porque aí Portugal será mesmo a Grécia, sem disfarces. O problema é que de há uma semana para cá, já o sabem, que "os de cima já não podem". Talvez seja por isso que, cheio de patriotismo, Paulo Portas quis abandonar o barco e Passos Coelho, sozinho, teria posto a hipótese de se demitir. Que acabou a margem de manobra, sabe-o Passos Coelho, sabe-o Portas, que deve estar tão furioso com a forma pueril como isto aconteceu, sabe-o Ricardo Salgado, que esse sabe tudo, sabe Cavaco Silva, sabe-o Seguro, com pasmo e terror, e até Borges começa a perceber que afinal "o ajustamento não vai correr tão depressa" como desejava. Sabem os blogues ligados ao poder, que forneceram a Passos Coelho um ersatzsimplista de vulgata liberal e receberam em troca lugares de assessoria, onde, ou se rabia em desespero, ou se foge por todas as cordas possíveis. Daqui a uns dias, vão almoçar ou jantar com Seguro num evento directo nas redes sociais, para descobrir que "afinal não é tão mau como parecia". É um espectáculo triste, mas já vi vários e o padrão é sempre o mesmo.

Como é que se vai sair disto? Não vai. Vai haver primeiro um ainda maior apodrecimento da situação, semelhante ao modelo de resposta à crise Relvas, ceder na TSU, fazer de conta que não aconteceu nada, incensar a manifestação para a tornar inócua e, mais tarde do que cedo, remodelar. Só que os quadros de Excel de Gaspar vão continuar a piorar e virão próximos pacotes de austeridade em clima de desespero. E aí a crise vai atingir o âmago da democracia, onde aliás já está.
(Versão do Público de 22 de Setembro de 2012.)

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segunda-feira, setembro 17, 2012

José Pacheco Pereira - ÀS VEZES APETECE LEMBRAR, por que razão não tenho surpresas...


ABRUPTO

17.9.12

ÀS VEZES APETECE LEMBRAR, por que razão não tenho surpresas...

Em Setembro, todos os actores do poder, da oposição e das diferentes forças políticas, económicas e sociais estarão encostados à parede num quarto cada vez mais pequeno. Encostados a um canto. Uns sabem, outros não. Uns vão saber a mal, outros vão tentar abrir um buraco na parede.
(...)

Já escrevi e repito que nesse canto da casa onde estamos, a raiva vai ser a resposta mais comum. A raiva é um sentimento complicado, que nem sempre transparece na violência pública, seja contra os familiares, os colegas, os polícias, a montra de um banco, ou um carro preto do Governo. George Santayana escreveu que "a depressão era uma raiva espalhada fina" e, numa das melhores descrições da raiva "espalhada grossa", Melville falava do capitão Ahab que descarregava sobre a baleia branca "a raiva e ódio sentido por toda a raça humana de Adão até aos nossos dias". E como se não chegasse tão monumental violência ainda diz que se "o peito [de Ahab] fosse um morteiro, faria explodir a granada do seu coração em brasa sobre ela", a baleia. Já temos baleia, temos o morteiro e temos o capitão Ahab. 

Não há segredo nenhum sobre a pretensa passividade e "aquiescência" dos "pacientes" e "pacíficos" portugueses face ao "ajustamento". E não há segredo nenhum porque não há qualquer dessas atitudes, nem paciência, nem passividade, e muito menos aquiescência. (...)

É na pedrada na rua que se vê a raiva? Não, não é. Não olhem para a raiva de baixo, olham para a raiva de cima. É que não são só os de baixo que percebem que estão a ficar encostados a um canto, são também os de cima. Os de cima já perceberam que os melhores tempos já estão no passado, que o Governo já está mais estragado e hesitante do que o que eles desejavam, que já não está intacto e forte, mas que uma mistura de Relvas, mais o défice incontrolado, mais, espantem-se, a proximidade de eleições, está a dar second thoughtsàqueles que queriam apenas como "bons alunos" e executores. O magma da "política", que os de cima tanto desprezam, começa a vir à superfície e será o "ruído" que não desejam. Ou, como diz o FMI de forma certeira, há "fadiga do ajustamento". (...)  Começam a ter a sensação de que foi uma oportunidade única, ainda é uma oportunidade única, mas que está a acabar, começa a faltar o espaço. O canto começa a ficar apertado. Daí a raiva crescente. 

(...)  No meio disto tudo, Passos Coelho fornece outro produto, mais à sua dimensão de executante, mas que também transporta alguma desta raiva. É quando Passos Coelho diz que "não estamos a exigir de mais", como se fosse pouco o que se está a "exigir" e ainda não levaram em cima com a dose toda. É quando avança com mais uma comparação moral que mostra o imaginário onde estamos metidos; não podemos correr o risco de nos cruzar com os nossos credores "nos bons restaurantes e boas lojas". É mesmo isso que os portugueses andaram a fazer nos últimos anos, a comprar malas Vuitton e sapatos Jimmy Choo! 

Passos dizia que as pessoas "simples" percebiam isto, porque de facto para ele as coisas são assim simples. Então como é que nos devemos "cruzar com os nossos credores"? De alpergatas, vestidos de chita, trabalhando dez horas por um salário de miséria? É que não é preciso andar muito tempo para trás para ter sido assim. Ainda há quem se lembre. Deve ser por isso que é preciso "ajustar".

(...)  Em alturas de mudança social profunda, neste caso associada à destruição da classe média e ao empobrecimento generalizado, quem não percebe isto, não percebe nada. Em Setembro, acordará do seu sono percebendo o canto a que está encostado. Ou em Agosto, ou em Outubro. Porque estas coisas, uma vez maduras, não escolhem nem dia nem hora.

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domingo, setembro 09, 2012

José Pacheco Pereira - A MUDANÇA DO TEMPO POLÍTICO

ABRUPTO


A MUDANÇA DO TEMPO POLÍTICO

(Escrito antes da derrocada destes dias, sem surpresa.)



Foram anunciadas "novas medidas de austeridade". Apesar de nas últimas semanas o primeiro-ministro ter admitido que podia ter que haver novas medidas de austeridade, há uns meses o discurso oficial era de que "não iriam ser necessárias mais medidas", a não ser que houvesse um cataclismo europeu. Ora as últimas notícias europeias do BCE são boas para Portugal. A não ser que o Governo que criticou, em uníssono com os alemães, a possibilidade da compra de dívida soberana pelo banco, considere que é esse o cataclismo. Não me parece. O cataclismo está é por cá.

A evidente mudança de tempo político começou. Começou há dois ou três meses, com a queda de Relvas, o incumprimento do défice, os discursos vazios do Pontal e da Universidade de Verão, as crescentes dificuldades de fazer "passar" as políticas, como se vê com a privatização da televisão ou a legislação autárquica, a decisão do Tribunal Constitucional, as desavenças públicas na coligação, as disfunções no Governo. A estes factores políticos somam-se os sucessivos números negativos da conjuntura económico-social, a quebra do produto, a descida no ranking da competitividade, o aumento sempre crescente do desemprego, e das falências de empresas e de famílias.

No conjunto, todos estes factos mostram que se está a entrar num tempo político novo, em que a dominante da "culpa" na vida política nacional que era a rejeição de Sócrates, associada ao consenso sobre a inevitabilidade da austeridade, estão a esvanecer-se e a colocar o Governo de Passos Coelho e as suas políticas como alvo privilegiado da culpabilização dos cidadãos. Não é pequena a mudança, nem as suas consequências. Antes era possível fazer praticamente tudo, em nome do "regabofe" de Sócrates e das imposições da troika, hoje há cada vez menos margem de manobra para fazer alguma coisa, sem os efeitos perversos e o "ruído" serem maiores do que os resultados desejados. Ora, o primeiro-ministro e o Governo estão especialmente impreparados para defrontar esta situação.

Analisando alguns dos factores que revelam esta mudança do tempo político percebe-se como eles são reveladores dessa fragilidade. Veja-se o efeito do incumprimento do défice. Aqui o Governo só é vítima de si próprio, porque fez a cama em que se deitou: mesmo que haja o incumprimento do défice exigido no acordo com a troika, nem por isso deixa de haver uma descida muito significativa. Os propagandistas do Governo vêm-nos lembrar desse facto, que é verdadeiro, só que não foi isso que o Governo prometeu para justificar as medidas de choque que tomou. Não foi para diminuir o défice, foi para cumprir o acordado com a troika, e foi esse o cerne do discurso governativo. Foi para acertar e não para falhar, e algumas das mais assertivas afirmações do primeiro-ministro eram nessa matéria, como também a recusa arrogante e cheia de certezas das prevenções de todos os que disseram que isso era impossível, exactamente pelas razões que se vieram a verificar: em particular, a quebra das receitas devido aos excessos fiscais, ao desemprego e ao empobrecimento e o aumento das despesas sociais. A razão por que existe uma quebra de legitimidade no discurso do Governo sobre o défice é que tudo rondava à sua volta, tudo se justificava com o número mágico.

Outro sinal da mudança do tempo político é a sensação de que tudo o que era possível fazer há um ano não foi feito como devia, e hoje já não é possível de fazer sem grandes convulsões. O Governo esgotou o tempo psicológico das possibilidades excepcionais, para passar para o tempo psicológico do cansaço com a excepcionalidade. Sem ter cumprido o seu objectivo central, nem ter feito qualquer reforma estrutural, o Governo começa a defrontar um misto de realidade e "estado de alma", o "cansaço da austeridade". O Governo entende que a austeridade pura e dura ainda só começou, as pessoas que já durou tempo de mais. O Governo acha que o "ajustamento" ainda está na infância, mas já percebeu que não vai ter os efeitos de milagre económico que esperava. As pessoas acham que o Governo teve a sua oportunidade e que a perdeu e não estão dispostas a mais sacrifícios a não ser à força e atribuem-nos cada vez mais às asneiras de Passos Coelho, a somar aos desmandos de Sócrates.

Neste novo tempo, o factor constitucional também se tornou uma preocupação central da governação. Até ao momento em que o Tribunal Constitucional "chumbou" os cortes na função pública, o Governo não mostrava ter muita preocupação com a legalidade constitucional das suas medidas. Embalado pela consciência colectiva de que era necessário tomar medidas de austeridade (o maior património que o Governo está a desbaratar), sentia que podia fazer o que queria. que o Tribunal iria dar cobertura a medidas inconstitucionais em nome da "emergência nacional". E foi assim com muitas medidas, até um dia. Hoje, o problema da constitucionalidade, que era a última preocupação do Governo, tornou-se premente em muitas áreas, quer na privatização da RTP, quer na legislação autárquica e laboral, quer em medidas na área da justiça, o Tribunal deixou de se apagar em nome da "emergência nacional".

Mas onde é mais evidente a deterioração do tempo político do Governo é no órgão, mais do que na função. É o Governo que está muito mal. Na verdade, o menosprezo, ou impotência, revelado pelo primeiro-ministro no tratamento do "caso Relvas", está a corroer o Governo. Ao tornar a "coordenação política" do Governo - um termo eufemístico, mas que é habitualmente usado - fantasmática, o primeiro-ministro criou um gigantesco vazio que todos se estão a apressar a ocupar: o CDS, o PSD, os lóbis da RTP, o PS, os outros ministros. A natureza da política é a de ter horror ao vácuo, e um vácuo ambulante só reforça todos os que com ele contactam.

Aliás poucas coisas revelavam melhor, desde início, as fragilidades políticas do Governo, que a ideia que Relvas pudesse ter o papel que lhe era dado, isso sim mostrando como Passos pensava que os métodos do aparelhismo partidário resultavam num governo, como resultam numa distrital do PSD ou da jota. "Coordenação política" é o que faz Portas, para o PP, entre o seu cargo de ministro e os "seus" ministros, "coordenação política" é o que fazia Vítor Gaspar, até embater contra o muro do défice. "Coordenação política" é o que não faz Passos Coelho e isso percebe-se cada vez mais, e o que Relvas fazia tem outros nomes.

A fragilidade que anda no ar teria que inevitavelmente dar origem a uma crise da coligação, ou melhor, ao desequilíbrio entre parceiros de coligação, com maior margem de manobra para o CDS e menor para o PSD. Ambos os partidos estão condenados a manter a coligação, que não penso estar em causa, mas quando um deles pensa que pode sair "melhor", ou exibir-se como "melhor", face às fragilidades do parceiro, o papel do primeiro-ministro é posto em causa, e o Governo perde força no conjunto.

O Governo só por costume se pode chamar Governo: não é "coordenado", nem tem chefia, é constituído por uma entidade coesa e autogerida, o CDS, e por uma amálgama de ministros díspares, uns independentes, outros do PSD, que não se entendem entre si, uns com graves problemas de afirmação, como o da Economia, outros tendo que lidar com estruturas governativas que a demagogia dos primeiros dias varreu de chefias e substituiu por assessores, consultores, em ministérios disformes. O ministro Gaspar é vítima dos seus resultados serem medidos em números e os números falharem e o proto-ministro Borges é vítima de não ser primeiro-ministro, que é o que ele acha que devia ser.

Não é um espectáculo bonito de se ver e vamos vê-lo cada vez mais nos próximos tempos.

(Versão do Público de 8 de Setembro de 2012.)

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