A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht
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terça-feira, maio 01, 2012

António Gervásio - 1962 - Ano de Lutas


As 8 horas de trabalho no campo!
Uma conquista histórica
do operariado agrícola do Sul 


Membro do Comité Central do PCP
Na história da luta revolucionária do operariado agrícola do Sul contra o fascismo, pelo pão e pelo trabalho, pela liberdade e progresso social estão registadas duas vitórias e realizações de um elevado significado político e histórico: uma, sob o fascismo, a extraordinária conquista vitoriosa do horário das 8 horas para o campo, em Maio de 1962; outra, na Revolução de Abril, o audacioso avanço para a Reforma Agrária, em 1975, sob a bandeira de "a terra a quem a trabalha!".
Uma e outra não foram oferecidas pelo poder dominante. Uma e outra foram conquistadas pela luta corajosa, combativa e organizada do proletariado agrícola do Sul. Uma e outra tiveram no seu centro, como motor impulsionador, a intervenção organizada e dirigente do PCP.
A conquista das 8 horas representou uma extraordinária melhoria das condições de vida e de trabalho de centenas de milhar de trabalhadores e suas famílias. A Reforma Agrária produziu profundas transformações qualitativas nas terras do latifúndio. Pôs as terras a produzir. Acabou com o desemprego. Abriu horizontes de uma nova vida e de uma nova esperança às populações do Sul. A Reforma Agrária foi travada e destruída pelos seus inimigos! Um crime que ficará para sempre ligado aos governos de direita ou com política de direita.
Realidades e razões da luta pelas 8 horas
Já passaram 40 anos. Abordar hoje a questão das 8 horas para a agricultura poderá parecer, sobretudo às gerações mais novas, um assunto de menor importância. Mas não o é. Falar da conquista das 8 horas pelo operariado agrícola do Sul é prestar homenagem a essa luta e aos seus obreiros. É relembrar uma das lutas mais magníficas dos assalariados agrícolas do Sul, uma vitória histórica arrancada ao poder fascista e aos grandes proprietários da terra, pela primeira vez em Portugal, por um poderoso movimento de massas, sob a influência e direcção do Partido, que envolveu cerca de 200.000 trabalhadores agrícolas do Sul.
Quando vemos os ideólogos do capital na guerra política e ideológica contra o PCP, passando certidões de óbito, mentindo e deturpando, silenciando o papel determinante do PCP na resistência antifascista e na luta dos nossos dias na defesa dos interesses dos trabalhadores e do povo, contra a política de direita, por uma alternativa de esquerda, é necessário falar a verdade, relembrar a história.
Relembrar que, até Maio de 1962, os assalariados agrícolas do Sul (com pequenas diferenças no Ribatejo e na Margem Esquerda do Guadiana) não conheceram outro horário de trabalho no campo que não fosse o escravizante horário de sol a sol, ou seja: pegar ao nascer do sol e despegar ao sol posto. Fazer o caminho de casa para o trabalho e vice-versa, a pé, uma, duas horas (e mais). Não havia transportes, raros eram aqueles que possuíam uma bicicleta a pedal!
Os assalariados agrícolas não tinham subsídio de desemprego, nem reforma, nem assistência médica, nem segurança social. Tinham salários de miséria, passavam fome, eram trabalhadores sem direitos! Em 1960 a 1962 o seu salário médio rondava os 25$00 a 30$00 para o homem e 13$00 a 17$00 para a mulher! O desemprego atormentava os trabalhadores longos meses sem ganharem um tostão para o seu sustento e das suas famílias.
Outra realidade que importa relembrar: nas décadas de 40 a 60 havia nos campos do Sul mais de duas centenas de milhar de assalariados agrícolas. Cada vila e aldeia constituía uma concentração de trabalhadores agrícolas, homens e mulheres, sem terra sua. A única fonte de subsistência, sua e da família, era a venda da sua força de trabalho, mão-de-obra sem direitos sujeita à exploração sem lei dos agrários.
A mais pequena luta era violentamente reprimida. Muitos milhares de trabalhadores agrícolas foram espancados, presos e alguns assassinados. Privado de direitos sindicais, o proletariado agrícola foi um baluarte de resistência contra a ditadura, uma classe combativa, com um elevado espírito de unidade e de organização. Através dos anos e da luta desenvolveram a sua organização unitária, como as Comissões de Unidade (comissões de tipo sindical, candestinas). Organizaram as Praças de Jorna (locais onde os trabalhadores se juntavam para combinar aumentos de salários e outras reivindicações, com intervenção das Comissões de Unidade).
Desenvolveram uma forma de organização muito importante: tornaram prática corrente, em muitas localidades, fazer reuniões ou plenários de trabalhadores antes de iniciar uma luta ou uma reivindicação. Por vezes essas reuniões ou plenários tinham 100, 150, 200 e mais participantes e várias delas com a participação de funcionários do Partido. De um modo geral, essas reuniões eram feitas de noite para fugir à vigilância policial. Mesmo nas condições da repressão fascista, era já uma forma de organização avançada da discussão unitária e democrática dos problemas dos trabalhadores.
A preparação da luta
A partir do começo dos anos 40 a implantação da organização e influência do Partido tem um desenvolvimento crescente nas vilas e aldeias do Sul, em particular no Alentejo. O PCP ganha forte influência e força organizada, grande confiança e credibilidade no seio dos trabalhadores agrícolas. O único partido que os trabalhadores sempre viram junto de si, na defesa dos seus legítimos interesses, contra o fascismo e a exploração dos agrários, no confronto com a repressão e nas cadeias, foi o PCP, os seus militantes.
Nas décadas de 50 a 60 o Partido tinha organização e ligações na maioria das localidades mais significativas do Sul, com maior peso nos três distritos do Alentejo. De um modo geral não havia uma luta com maior significado que não tivesse a intervenção ou a influência do PCP.
Em muitas dezenas de localidades o Partido contava com fortes organizações, ligadas às massas: Comités Locais, Comités de Zona, Células de Empresa, Comités Sub-Regionais e Regionais, etc.. O PCP gozava de grande confiança junto do proletariado agrícola.
A vitória das 8 horas tem atrás de si milhares de pequenas e grandes lutas (derrotas e vitórias) em torno de melhores salários e outras reivindicações: nas ceifas, tiradas de cortiça, debulhas, carvoarias, arrozais, mondas, apanha da azeitona, "esgalhas" e outras, lutas expressas em concentrações, abaixo-assinados, trabalho lento ("cera"), paralisações, greves e outras formas. Lutas contra o flagelo do desemprego, pelo pão e trabalho, com concentrações e manifestações junto das autoridades, caçadas às lebres e perdizes nas coutadas, bolota, azeitonas, carne nos rebanhos: "buscar o comer onde o houver".
Luta contra a repressão fascista e pela libertação dos presos, contra a guerra colonial e pela paz, pela liberdade e a democracia. Na história da luta do proletariado agrícola encontramos, em muitas reivindicações, a associação da luta económica com a luta política.
A partir de 1957-58
É a partir dos anos de 1957 e 1958 que a luta pelas 8 horas ganha um maior desenvolvimento com a multiplicação de reuniões e plenários com dezenas e centenas de trabalhadores por muitas localidades do Sul. Vilas e aldeias como Avis, Benavila, Alcórrego, Montargil, Sousel, Campo Maior, Montemor-o-Novo, Escoural, São Cristão, Lavre, Cabeção, Mora, Vendas Novas, Bencal, Montoito, Couço, Coruche, Alpiarça, Grândola, Alcácer, Palma e Comporta, Alvalade, Ermidas, Aljustrel, Ervidel, Baleizão, Pias, Vale de Vargo, Serpa, apenas para relembrar algumas, são vilas, aldeias e outras localidades que tiveram papel decisivo na discussão, na organização, no desenvolvimento e direcção da histórica luta das 8 horas.
Em 1957 foi elaborado um caderno reivindicativo com três pontos, a reivindicar junto do Instituto Nacional do Trabalho (INT) e dos agrários:

1 - Trabalho garantido;
2 - Salário mínimo de 30$00 para o homem e 20$00 para a mulher;
3 - Horário das 8 horas de trabalho.
Com o desenvolvimento da discussão e da luta, a exigência das 8 horas - a reivindicação mais sentida - ganha grande prioridade em relação aos pontos 1 e 2 do caderno.
Multiplicaram-se as reuniões e plenários, a formação de Comissões de Unidade. Em 1960 foi formada uma Comissão Coordenadora da luta com membros de outras comissões dos três distritos do Alentejo, do Litoral Alentejano e do Ribatejo
(Couço/Coruche). As condições amadureciam para o arranque final da luta.
O porquê da escolha do mês de Maio/1962
Muitos camaradas tinham dúvidas do êxito desta luta, incluindo responsáveis da Direcção do Partido, se não seria uma utopia a terminar num fracasso. Havia a noção de que arrancar as 8 horas aos agrários e ao fascismo seria uma luta muito difícil e dura. Era um grande desafio. Havia também da parte de muitos trabalhadores (mais nos ganadeiros) a ideia de que as 8 horas não se adaptavam aos trabalhos do campo.
A data não foi uma escolha arbitrária, foram ponderados vários factores e realidades. A luta tinha atingido um elevado ponto de amadurecimento. Havia uma forte vontade de sair para a rua. O mês de
Maio era falado, com a sua força por ser o Dia do Trabalhador, Março, Abril, Maio e Junho são meses de grande aperto das culturas agrícolas, um factor favorável para pressionar os agrários. Por outro lado, nos primeiros meses de 1962 galopa o movimento de massas contra a ditadura: cresce a luta operária nas empresas, a luta social nos campos, nas escolas, nos serviços, nos quartéis. Surgem as situações do Santa Maria, o assalto ao Quartel de Beja. Cresce o Movimento de Oposição Democrática. Rebenta a luta libertadora nas colónias e a guerra colonial. Aparece a Rádio Portugal Livre (Março/1962) com um papel destacado na informação da opinião pública. Acelera-se o isolamento e a crise interna do fascismo.
Portanto, o mês de Maio/1962 era a data, era a altura certa para arrancar para a rua com as 8 horas. Antes as condições não estavam maduras, depois poderia perder-se a oportunidade certa.
Nos começos de 1962, o Partido publica um número de "O Camponês" e uma separata com milhares de exemplares a distribuir pelo Alentejo e Ribatejo, fazendo um firme apelo dirigido aos trabalhadores agrícolas do Sul para que:
No dia 1º de Maio de 1962 ninguém trabalhe mais que as 8 horas! Que ninguém trabalhe mais de sol a sol! Que lá onde os capatazes se oponham sejam os trabalhadores a imporem as 8 horas!
E assim aconteceu em muitas localidades e herdades no dia 1 e 2 de Maio de 1962!
O apelo de "O Camponês" e das organizações do Partido tiveram uma forte adesão. Logo nos primeiros dias do mês de Maio dezenas de mlhares de trabalhadores conquistaram as 8 horas. Foi no Litoral Alentejano, onde o movimento arrancou com maior força (Grândola, Alcácer, Palma e outras), que mais de 30.000 trabalhadores conquistam, no dia 1 e 2 de Maio, as 8 horas. O poderoso movimento estende-se, nas primeiras semanas de Maio, aos três distritos do Alentejo, ao Ribatejo, por vários concelhos da Estremadura e do Algarve, envolvendo cerca de 200.000 trabalhadores, homens e mulheres.
As 8 horas não foram conquistadas logo nos primeiros dias de Maio. Os agrários e a ditadura ofereceram muita resistência, fizeram despedimentos, prisões e espancamentos, deixaram estragar culturas. Promoveram amplas reuniões com a participação dos governadores civis, INT, PIDE e GNR, em Alcácer do Sal, Grândola, Estremoz, Évora e outras, com o objectivo de esmagar a luta pelas 8 horas. Muitos agrários resistiram semanas e meses mas o movimento de massas também resistiu, era mais forte e venceu!
A luta pelas 8 horas tomou a forma de levantamento, com as Comissões de Unidade e outros grandes grupos de trabalhadores falando, de localidade em localidade e de rancho em rancho, com os trabalhadores e com os ranchos de fora (beirões e algarvios) no sentido de ou trabalhavam as 8 horas ou não poderiam continuar de sol a sol. Os ranchos de fora, uns aderiram à luta e outros abalaram.
A luta prolongou-se pelo Verão fora com greves, com a recusa de trabalhar sol a sol. As organizações locais tomaram as mais diversas iniciativas na organização da luta, contactando com os trabalhadores, divulgando propaganda e apelando à resistência. As mulheres e os jovens tiveram uma intervenção activa na luta das 8 horas, muitos deles foram espancados e presos. As localidades e ranchos onde havia maior atraso na organização foram arrastados pela onda do movimento.
No final de 1962 o horário das 8 horas estava praticamente implantado nos campos do Sul. Tinha acabado para sempre o horário escravizante de sol a sol. O fascismo não oficializou as 8 horas para o campo, os trabalhadores implantaram-nas! Passaram a ser aceites como uma coisa normal.
Estamos a falar de uma realidade de há 40-50 anos atrás. Hoje vivemos uma outra nova situação. Os campos do Sul, particularmente no Alentejo, sofreram profundas alterações económicas e sociais. Após a destruição da Reforma Agrária foram reconstituídos os latifúndios. As suas terras estão incultas, povoadas de coutadas e cercas de arame farpado, não havendo, praticamente, actividade produtiva. As terras não produzem e não dão emprego. Os campos do Sul sofreram a maior desertificação social da sua história. Ainda há alguns assalariados agrícolas, mas num quadro completamente novo, sem expressão. Hoje deixou de existir esse proletariado agrícola do Sul, concentrado, numeroso, organizado e combativo que existia nos anos de 1940 a 1970!
A vitória foi possível. A luta pela conquista das 8 horas no Sul não foi uma revolta espontânea. Não foi uma decisão voluntarista ou arbitrária. As 8 horas constituíam uma profunda aspiração dos trabalhadores agrícolas do Sul. Esta luta foi organizada e dirigida pela Partido desde o início até ao seu triunfo. Ela amadureceu e desenvolveu-se até à sua vitória.
Não basta as 8 horas serem uma reivindicação muito sentida. A experiência da luta das 8 horas ensina que, sem uma forte organização unitária dos trabalhadores agrícolas, sem uma longa experiência, combatividade e determinação, sem uma grande organização do Partido, com confiança dos trabalhadores, ligada aos seus problemas, a luta vitoriosa das 8 horas não teria sido possível em 1962!
«O Militante» - N.º 259 Julho /Agosto de 2002

segunda-feira, abril 30, 2012

O 1.º de Maio de 1962 nas colunas do DIÁRIO DE NOTÍCIAS


Memórias do PREC, da resistência anti-salazarista e outras crónicas históricas

Sexta-feira, 1 de Maio de 2009

O 1.º de Maio de 1962 nas colunas do DIÁRIO DE NOTÍCIAS

O ano de 1962 culmina a grave crise política do regime de Salazar, mais atanazado das pulgas, iniciada com o terramoto de Humberto Delgado em 1958, umas nuvens negras a marcar a ronceira agonia do salazarismo. Aquele ano inicia-se com o assalto ao Quartel de Beja, logo na madrugada de 1 de Janeiro de 1962 sob mando do capitão João Varela Gomes, coadjuvado por um grupo civil liderado por Manuel Serra.

Toda esta agitação de massas originada a partir da campanha eleitoral de Humberto Delgado, leva, em si, à reorganização do Partido Comunista Português e a um crescendo de influência dos comunistas, que culminou em Janeiro de 1960 com a espectacular fuga de Peniche empreendida por vários dirigentes do partido, à cabeça dos quais estava Álvaro Cunhal
[1].

O ano de 1962 marca de sobremaneira um pico da radicalização da luta antifascista, em especial junto das camadas mais politizadas dos operários, trabalhadores agrícolas e dos estudantes das zonas urbanas.

A 8 de Março desse ano a polícia reprime uma manifestação popular no Porto, e, a 24 de Março a proibição da comemoração do Dia do Estudante vai despertar a“crise académica de 1962”, marcada por uma série de lutas estudantis nas Universidades de Lisboa e Coimbra, em permanência de Março até Junho, sucessivas manifestações de rua e recontros com a polícia, suscitando mais uma onda repressiva de prisões.

Em plena maré da luta estudantil, ocorrem as grandiosas manifestações populares do 1.º de Maio em Lisboa, Almada e no Barreiro. As artérias da Baixa de Lisboa, entre o Martim Moniz e o Terreiro do Paço, encheram-se de povo, naquela que foi a maior manifestação de rua contra o regime desde 1958, com a presença de 100.000 manifestantes, segundo a propaganda do PCP.

A ferocidade repressiva foi enorme, e da mesma se fizeram eco os jornais da época, uma cantilena melada
[2]. Uma imensa multidão a vozear bem alto contra a repressão fascista, em sucessivas vagas, aproveitando as actividades quotidianas, em especial a hora do almoço e o princípio da noite.

«O dia 1.º de Maio foi assinalado em Lisboa por desagradáveis acontecimentos», noticiava então a imprensa, salientando as loucas «correrias e muito alarido» «lançando a confusão». O articulista chamava particular atenção para o facto dos «elementos subversivos» terem escolhido as horas de ponta da circulação diária da populaça, aquele «constante vaivém», a fim de manifestarem «os seus criminosos fins e também com o propósito de suscitar entre o povo sentimentos de hostilidade» contra as «forças encarregadas de zelar pela ordem pública». Para o jornal não havia falso nem verdadeiro.

A organização da manifestação utilizara, dizia enfaticamente, «uma intensa propaganda por meio de panfletos clandestinos espalhados pela cidade e distribuídos de formas ilícitas», acicatando «as classes trabalhadoras a concentrarem-se» para apresentarem «certas reivindicações» contra a falta de liberdade, a miséria e a guerra colonial emergente e instigando também «a faltar ao trabalho». Um estendal de agravos.

No intuito de manter o povoléu «na ordem, na paz e no trabalho», pois claro,«as entidades governativas», sempre a “bem da Nação”«ordenaram medidas especiais de segurança», e, devido a «aconselháveis precauções», até os«automóveis das brigadas móveis» de choque foram colocados de alerta e bastão em punho, para além de serem «montados serviços de vigilância» nas estações ferroviárias e fluviais, não fosse o diabo tecê-las…

O pormenor dessa sanha repressora era de truz. Para facilitar «o serviço de vigilância da polícia» – porém decerto complicar a vida aos trabalhadores que regressavam ao domicílio depois duma jornada de trabalho – foram «mudadas várias paragens de eléctricos e de autocarros».

Na oportunidade de malhar nos assalariados, o regime duro e impiedoso que não professava grande estima pela arraia-miúda, nada deixava ao acaso. Até na ordem para impedir «paragens e ajuntamentos», havendo o necessário recurso a umas traulitadas para convencer os «recalcitrantes», e calabouço para «três desobedientes».

Quando «tudo parecia decorrer na devida ordem», estas prisões na Praça do Comércio, assegura o noticiário que seguimos par e passo, deram origem ao«pretexto» de diversos «grupos de indivíduos», em alta grita a «injuriaram e vaiaram a Polícia, tentando rodear um carro patrulha». Do pé para a mão,«os grupos de desordeiros engrossavam», enquanto «a força policial tentou afastar a multidão que então se formara num ápice». Toque-se a rebate!

Como «as pessoas ordeiras» entraram em horda de franca «desobediência» e até resistiam à intimação dos «potentes altifalantes portáteis» no sentido de se afastarem, foi usada a dialéctica da força bruta e espancamento para afastar a canalha e «fazer evacuar a praça». Assim, a autoridade, certamente pouco contrariada, e zás, «viu-se obrigada a carregar de bastão em riste, no meio de gritaria e insultos dos manifestantes, sucedendo-se as correrias», ofensa gravíssima.

A confusão e as cargas policiais alastraram às ruas Augusta, do Ouro, da Prata, dos Fanqueiros, da Madalena, ao Largo da Sé, ao Rossio e Restauradores, e os manifestantes recebiam tratamento diferenciado de «díscolos»«desordeiros»,«provocadores» e outros mimos na pena servil do redactor, e, claro, bordoada e remetidas dos cívicos, naquela missão patriótica de rachar cabeças à bastonada, mais um crivo de pontapés e coronhadas.

A polícia, coitada, botava-se de corrida e lá «teve de carregar novamente» sobre «os desordeiros, muito aumentados» no número, que«fugiam dum lado, para logo aparecerem e se reagruparem noutro», desalmados desconformes que não ficavam quietos a levar pancada de criar bicho como mandava a lei…

A coisa foi de tal monta, imaginem, «em dada altura a situação piorou por motivo de alguns amotinados começarem a apedrejar os agentes da autoridade», e assim, os «motins aumentaram» de intensidade. Para pôr fim a tal despautério, e mais a meia dúzia de pedradas, «agressão praticada pelos desordeiros», a polícia «viu-se na necessidade de empunhar armas de fogo para impor respeito e intimidar».

Aqui se prova que o povo português é dos mais altos do mundo – ou tinha a polícia pouca pontaria –, pois tão-somente atirou umas «descargas» de «armas automáticas», dando «alguns tiros para o ar», as balas a uivar, mesmo assim, cortavam a carne, num banho de sangue e rasto de vítimas.

Apesar do tiroteio à carga cerrada, «durante algum tempo», os elementos«provocadores não cessaram» a actividade, sendo necessário recorrer a frenéticas cargas de «um esquadrão de cavalaria da GNR». O jornal, narração feito para crédulos e tolos, realçava uns parágrafos à frente, que «a despeito de a Polícia haver feito as descargas para o ar, com a preocupação de não atirar para a multidão, alguns projécteis» atingiram «seis dos manifestantes». A ordem salazarista, assim pintada, parecia alma dócil e piedade cristã.

«Dos desordeiros atingidos, um deles teve morte imediata, pois um projéctil atravessou-lhe o crânio», relatava dando um ar cândido à tirânica morte de Estêvão José Dangue Giro, caiu cerce aos 25 anos, servente de tipografia, natural e residente em Alcochete. Os maltratados, afinal veio a constatar-se serem muitos mais, foram transportados para o banco de urgência do Hospital de S. José e o posto de socorros do Terreiro do Paço.

Entrementes, o teatro das operações mudava-se para o Rossio, onde a polícia utilizou «o chamado carro de água», e com «fortes jactos» de «água colorida de azul» lá «dispersou os desordeiros», tingindo também «paredes, portas e o pavimento». Dias de muita bicheza!

O resto, para não saturar a moleirinha, vai o relato do tamanho dum mantéu, foi respingo de violência, com a «força pública» a «agir com energia» na Praça da Figueira e no Martim Moniz. Mais cacetadas da polícia na Rua da Palma, uso de«bombas lacrimogéneas» por todo o lado, açoitando além, rompendo adiante, desde o Rossio ao Largo do Duque de Cadaval, intercalados por galopes de quadrúpedes da cavalaria e «tiros de advertência» para o ar.

E ainda outras «desordens» de «menor importância» nas zonas do Largo do Carmo, Chiado e Escola de Veiga Beirão, «facilmente dominadas pela GNR e pela Polícia». Os tumultos com os «grupos de desordeiros» reacenderam-se à noite «depois de terminarem os espectáculos», levando a lesta e desembaraçadas intervenções dos pelotões da PSP e GNR no Rossio, Largo de D. João da Câmara, Praça da Figueira, S. Domingos e ruas do Ouro e Augusta. Nova carga de disparos e rajadas de metralhadora sobre a multidão, a turbamulta em carne viva, os pimpões a calcar em pé de guerra.

Nessa ocasião a polícia mandou «encerrar os cafés e as casas de pasto» entre o Rossio e o Terreiro do Paço. A situação amainou lá para a 1h30, altura em que a «cidade voltou à normalidade», embora debaixo de «intenso patrulhamento» das forças policiais, dormitando com um olho, o trabuco aperrado para a fuzilaria, o bastão da vergalhada à mão de semear.

No decorrer dos «acontecimentos da tarde e da noite» foram detidos na esquadra vizinha ao Teatro Nacional cerca de 150 indivíduos, «entregues à PIDE» para «apurar as responsabilidades que lhes competem». Entre as detenções, a notícia faz relevo para duas senhoras por «injuriaram e ameaçaram a Polícia», um perigo público eminente, certamente.

Um dos trincafiados, lata suprema, fora detido pela lesa-nação de atirar «pedras a um esquadrão de cavalaria» que espezinhava os manifestantes, e ao mesmo tempo «foram-lhe apreendidos numerosos panfletos de propaganda subversiva».

Dos feridos, a rebolarem pelo chão, seis ficaram hospitalizados no Hospital de S. José, cinco dos quais «feridos a tiro»
[3]. Entre eles, um elemento da polícia[4]atingido por “fogo amigo” das próprias forças repressivas.

Na sua santa indignação de virgem melindrada o jornal destacava que, para além do cívico baleado, ficaram feridos mais um guarda da PSP
[5], um agente da PIDE[6], um guarda prisional[7] e um oficial do Exército[8]. Os restantes 28 indivíduos feridos receberam tratamento hospitalar e passaram de imediato para o calabouço do Governo Civil, detidos à ordem da PIDE, velhaca e traiçoeira.

No dia seguinte, a 2 de Maio de 1962, o ministro do Interior, o finório dr. Santos Júnior
[9], percorreu as ruas de Lisboa onde se deram os«lamentáveis acontecimentos da alteração da ordem pública», certamente com ar consternado, dada a dimensão dos estragos, mas soberbo da sua força.

Para outra oportunidade ficará o relato que o AVANTE! fez dos mesmos acontecimentos, assim como as demais manifestações que ocorreram no Porto, Setúbal, Alentejo e de novo em Lisboa. Aqui e agora, fica a exposição duma jornada antifascista que o regime salazarista, gente desvairada, tentou esmagar por entre clamores, tiros e bordoadas de partir tudo. Tudo, menos a vontade dum povo em grito de revolta a sair do peito.


[1] Do Forte de Peniche fugiram os seguintes elementos, numa das fugas mais espectaculares: Álvaro Barreirinhas CunhalJoaquim Gomes dos Santos, Jaimedos Santos SerraCarlos Campos Rodrigues da CostaFrancisco Miguel Duarte (“Chico Sapateiro”), José CarlosPedro dos Santos SoaresGuilherme da Costa CarvalhoRogério Rodrigues de Carvalho e Francisco Martins Rodrigues (“Chico Martins”). A comissão de fuga do interior era composta por Álvaro Cunhal, Jaime Serra e Joaquim Gomes, e do exterior organizaram a fuga Joaquim Pires Jorge, António Dias Lourenço, Octávio Pato e Rogério Paulo.
[2] Cf. DIÁRIO DE NOTÍCIAS, de 3 de Maio de 1962. Todas citações são tiradas deste periódico.
[3] Ficaram internados e detidos no Hospital de São José: Eugénio Baptista, 64 anos, carpinteiro; José Augusto Rosendo, 42 anos, marinheiro; António José Mendes de Andrade, 16 anos, empregado de livraria; Armando Correia de Carvalho, 30 anos, maleiro; António Bernardino Poças Lopes, 27 anos, torneiro mecânico.
[4] Manuel Antunes Jacinto, de 22 anos, guarda da PSP, no quartel da Parede.
[5] António Maia de Morais, 25 anos, agente da PSP do quartel da Parede.
[6] Luís Martins Ferreira, 46 anos, agente da PIDE, morador na Amadora.
[7] José da Costa Quebrada, 37 anos, guarda dos Serviços Prisionais do Reduto Sul de Caxias.
[8] Jorge Marques Ferreira, tenente do Exército, de 49 anos.
[9] Alfredo Rodrigues do Santos Júnior (1908+1990), formado em Medicina pela Universidade de Coimbra, foi presidente do Centro Académico de Democracia Cristã (1933-1934), médico do Hospital de Gouveia, director do posto médico da Caixa de Previdência dos Lanifícios de Gouveia, presidente da Câmara Municipal de Gouveia (1946-1959), subdelegado regional da Mocidade Portuguesa em Gouveia, presidente da Comissão Distrital da Guarda da União Nacional (1952), deputado da Nação pelo distrito da Guarda (1957-1960), governador civil do distrito da Guarda (1960-1961) e Ministro do Interior (1961-1968). Foi condecorado como oficial da Ordem de Cristo. A sua actuação no Ministério do Interior ficou marcada pelo notório reforço da acção repressiva do regime.