A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht
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sábado, novembro 07, 2009

Sessenta anos da Revolução Chinesa: Lições para a classe trabalhadora


Por John Chan
7 de outubro de 2009
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Publicado originalmente em inglês no WSWS no dia 1 de outubro de 2009
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No dia primeiro de outubro fez 60 anos que o Partido Comunista Chinês (PCC), liderado por Mao Zedong, tomou o poder e proclamou a República Popular da China.
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A agitação revolucionária na China fez parte de um levante mundial da classe trabalhadora e das massas oprimidas, após o fim da II Guerra Mundial. Como em outras partes da Ásia, América Latina e África, milhões de trabalhadores e camponeses estavam determinados a libertar-se das algemas do regime colonial, que na China, na década de 1930, assumiu a forma de uma brutal ocupação militar japonesa. Apesar da imensa escala da luta, no entanto, a revolução de 1949 não foi socialista ou comunista. Ela não trouxe a classe trabalhadora ao poder, mas sim, o exército camponês de Mao.
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Hoje, é óbvio que a China, apesar de suas pretensões "comunistas", está plenamente integrada à economia capitalista mundial assim como à sua plataforma de trabalho barato. De que outra forma se pode explicar as felicitações enviadas à Pequim por dois presidentes conservadores norte-americanos — Bush pai e Bush filho — no 60º aniversário da Revolução Chinesa, ou a decoração do Empire State em Nova York com luzes vermelhas e amarelas — as cores revolucionárias da China — para marcar o evento? Wall Street aprecia muito a contribuição do Estado policial chinês ao mobilizar milhões de trabalhadores para trabalhar para as corporações globais, para não mencionar suas enormes aquisições de títulos americanos.
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Estas celebrações não estão em desacordo com o maoísmo e a Revolução Chinesa de 1949, mas são o seu resultado lógico. O PCC foi formado em 1921, influenciado pela Revolução Russa de 1917 com base no marxismo. No entanto, foi rapidamente impactado pela ascensão do stalinismo na União Soviética. Sob condições em que o primeiro estado operário estava isolado, o grupo de Stalin, representando os interesses de um aparato burocrático conservador, usurpou o poder após a morte de Lenin, em 1924, com base na rejeição do internacionalismo socialista.
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Stalin atacou especificamente a "Teoria da Revolução Permanente" de Leon Trotsky, que considera que, em países de desenvolvimento capitalista atrasado como a Rússia e a China, apenas a classe trabalhadora seria capaz de cumprir as tarefas democráticas nacionais. Tendo tomado o poder como direção das massas oprimidas, o proletariado aplicaria medidas socialistas como parte de uma ampla luta pelo socialismo em nível internacional. Para Stalin, a "Revolução Permanente" de Trotsky, que tinha provado ser um guia de tal precisão teórica para os eventos de 1917, tornara-se uma ameaça intolerável para a posição privilegiada da burocracia, cujos interesses foram resumidos na teoria reacionária stalinista do "socialismo num só país".
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Na China, para continuar a sua própria aliança oportunista com o partido nacionalista Kuomintang (KMT), Stalin forçou o jovem PCC a juntar-se a esse partido burguês. Em um repúdio direto das lições da Revolução Russa, ele declarou que a revolução chinesa envolveria duas fases — primeiro, a realização das tarefas democráticas nacionais pela burguesia chinesa, depois, o socialismo, em um futuro distante. No decorrer da revolução de 1925-27, no entanto, a classe capitalista chinesa foi ainda mais mercenária do que a sua correspondente russa. Aterrorizado com o levante revolucionário, o KMT afogou o PCC e a classe trabalhadora em sangue — uma derrota que só fortaleceu a mão de ferro da burocracia em Moscou.
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Como resultado de 1927, surgiram duas tendências dentro do PCC. Uma virou-se para a Oposição de Esquerda, que tinha avisado sobre o desastre preparado por Stalin, e abraçou a "Revolução Permanente" de Trotsky. A outra, liderada por Mao, concluiu que o problema não era o stalinismo, mas a incapacidade orgânica da classe trabalhadora para dirigir a revolução. O PCC expulsou os trotskistas e, sob a liderança de Mao, abandonou a classe trabalhadora urbana e voltou-se para os camponeses e as guerras de guerrilha.
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Em um artigo notavelmente revelador de 1932, Trotsky assinalou que o "Exército Vermelho" de Mao foi um movimento de pequenos proprietários hostis à classe operária. Seu antagonismo estava enraizado na diferente perspectiva de classe existente entre proletariado e campesinato — o primeiro representa uma produção socializada em larga escala, o segundo, uma seção da "classe média" decadente, oposta à industria urbana e à cultura urbana. Ao entrar nas cidades, Trotsky advertiu, o exército camponês reprimiria qualquer movimento independente dos trabalhadores, com seções do comando, ao longo do tempo, tornando-se parte da burguesia.
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Esta análise foi confirmada em 1949. Assim como fizeram os partidos stalinistas internacionalmente depois da Segunda Guerra Mundial, o PCC inicialmente tentou formar um governo de coalizão com o KMT burguês, mas não conseguiu. Incentivado pelo aparecimento da Guerra Fria contra a União Soviética, o líder do KMT, Chiang Kai-shek lançou uma guerra civil desesperada contra o PCC. O resultado não foi determinado pela superestimada capacidade militar de Mao, mas pela profunda debilidade econômica e política do regime do KMT, que quase implodiu. Como Trotsky havia advertido, o novo governo “comunista” de Mao suprimiu toda e qualquer iniciativa independente da classe operária e protegeu a propriedade privada. Nada como os conselhos de trabalhadores eleitos democraticamente ou sovietes da revolução russa foi estabelecido. O medo permanente do regime da classe trabalhadora foi expresso na prisão de trotskistas chineses em 1952.
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A perspectiva de orientação do novo regime não foi o socialismo, mas a "nova fase democrática" de Mao, que envolveu uma coligação com partidos capitalistas e figuras que não haviam fugido com Chiang para Taiwan. Suas reformas limitadas — a nacionalização da terra e a reforma agrária, medidas básicas de bem-estar e a proibição de males sociais como a prostituição e abuso de ópio — foram medidas burguesas. Do mesmo modo, a onda de nacionalizações em meio à crise econômica gerada pela Guerra da Coréia não foi "socialista", mas, equiparou-se às políticas de regulação econômica nacional em países como a Índia. O PCC simplesmente realizou de forma mais consistente o programa implementado por líderes burgueses do movimento anti-colonial como Nehru, da Índia.
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Nítidas divisões emergiram dentro do regime maoísta. O PCC foi obrigado a confiar em ex-capitalistas e profissionais urbanos para manter a indústria, visto que a maioria de seus quadros camponeses não sabia nada da produção moderna. Esse fato continha as sementes do futuro conflito entre o radicalismo de Mao — que refletia o antagonismo dos camponeses em relação à indústria e cultura urbanas e, sobretudo, à classe trabalhadora — e os chamados seguidores da via capitalista, que concluíram que a grande indústria e os mercado tinham que andar com a rédea solta. Ambas as facções permaneceram enraizadas no contexto nacionalista do "socialismo num só país" e foram organicamente hostis à alternativa socialista para superar o isolamento da China — voltar-se para a classe trabalhadora internacional sobre o programa da revolução socialista mundial.
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Os esquemas utópico de Mao para o socialismo rural, comunidades camponesas e indústrias familiares produziu um desastre após outro, culminando com a Grande Revolução Cultural Proletária, que lançou contra facções rivais em 1966. Quando os trabalhadores começaram a tomar os problemas em suas próprias mãos, uma burocracia aterrorizada rapidamente enterrou suas diferenças e colocou o exército para reprimir a classe trabalhadora. A partir de então, na medida em que a liderança do PCC expandiu enormemente um culto em torno de Mao para justificar suas medidas repressivas, o seu programa de radicalismo camponês foi enterrado. Depois que Mao morreu, em 1976, o regime prendeu o conhecido "Bando dos Quatro" e abandonou os slogans da Revolução Cultural.
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Enquanto os radicais de classe média dos anos 1960 e 1970 glorificaram a Revolução Cultural, os representantes mais conscientes do imperialismo americano reconheceram que o caráter de classe da "China Vermelha" e da União Soviética não foram os mesmos. Este último manteve-se um estado dos trabalhadores, ainda que degenerado. No auge da "Revolução Cultural", em Outubro de 1967, Richard Nixon escreveu na revista Foreign Affairs que sua presidência futura puxaria a "China de volta para a comunidade mundial, mas como uma grande e progressista nação, não como o epicentro da revolução mundial".
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Na mesma edição do Foreign Affairs, outro analista observou que o regime de Mao não era tão diferente de governos burgueses levados ao poder pelos movimentos anti-coloniais. A única diferença era "a eficácia superior do comunismo chinês em promover os objetivos historicamente associados ao modo de produção capitalista e da ordem social construída sobre ele (...) A originalidade do maoísmo reside nos métodos de mobilização de massas em nome do comunismo para a conquista dos objetivos inerentes a qualquer movimento nacional-revolucionário: a industrialização da China e a aquisição de meios militares (inclusive nucleares) adequados para a execução das políticas das grandes potências".
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Na sua essência, foi isso o que ocorreu nos últimos 30 anos. Nixon se encontrou com Mao, em 1972, estabelecendo as bases para uma aliança anti-soviética e abertura inicial da China ao capital estrangeiro. Em 1978, Deng Xiaoping acelerou os investimentos estrangeiros e o restabelecimento do mercado capitalista. Isso coincidiu com uma volta pelo capitalismo mundial na década de 1970 para a globalização da produção e a criação das plataformas de trabalho barato. A entrada de capital estrangeiro tornou-se uma inundação depois que o massacre da Praça Tiananmen, em 1989, demonstrou a vontade do regime em utilizar os métodos mais cruéis para reprimir a classe operária.
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Que resultados estão sendo comemorados hoje? As reformas limitadas da revolução de 1949 foram derrubadas, assim como o regime do PCC. A gananciosa burguesia chinesa que ele representa domina sobre um abismo aprofundado entre ricos e pobres. Mas, quando os burocratas do PCC deram as mãos aos representantes do capitalismo global para brindar a República Popular da China, eles estavam lançando um olhar nervoso sobre os ombros de uma classe trabalhadora chinesa que tem expandido enormemente e está intimamente integrada com os trabalhadores em todo o mundo.
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Acima de tudo, em meio à pior crise mundial do capitalismo desde a década de 1930, eles temem que a classe operária comece a tirar lições políticas da revolução de 1949, rejeitar o beco sem saída do stalinismo e do maoísmo e voltar-se para o caminho da revolução socialista mundial. Na China, isso significa construir a seção do Comitê Internacional da Quarta Internacional, o movimento trotskista mundial, para fortalecer a direção revolucionária.
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[traduzido por movimentonn.org]
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sábado, maio 09, 2009

Elogio das revoluções


Duzentos e vinte anos depois de 1789, o corpo da Revolução ainda mexe. Apesar de François Mitterrand ter convidado Margaret Thatcher e Joseph Mobutu para confirmarem o seu enterro, aquando das cerimónias do bicentenário. E porque esse ano das comemorações foi também o da queda do Muro de Berlim, Francis Fukuyama anunciou o «fim da história», ou seja, a eternidade da dominação liberal exercida sobre o mundo e o encerramento, a seu ver, do parêntesis revolucionário. Mas a crise do capitalismo está de novo a abalar a legitimidade das oligarquias no poder. O ar está agora mais ligeiro, ou mais pesado, segundo as preferências. Aludindo «aos intelectuais e artistas que apelam à revolta», o diário Le Figaro mostrou-se desolado: «François Furet parece ter-se enganado: a Revolução Francesa não terminou» [1].


No entanto, como muitos outros, o historiador em questão não se poupou a esforços para esconjurar a lembrança da Revolução e para que as tentações se afastassem dela. Outrora considerada expressão de uma necessidade histórica (Marx), de uma «nova era da história» (Goethe), de uma epopeia encetada pelos soldados do Ano II cantados por Victor Hugo – «E víamos marchar os soberbos maltrapilhos nesse mundo deslumbrado» –, dela já se mostrava apenas o sangue que tinha nas mãos. De Rousseau a Mao, uma utopia igualitária, terrorista e virtuosa, teria espezinhado as liberdades individuais, parido o gélido monstro do Estado totalitário. Depois, a «democracia», voltando a sentir-se senhora de si, vencera – jovial, pacífica, de mercado. Também ela herdeira de revoluções, mas de uma outra espécie, à inglesa ou à americana, mais políticas do que sociais, «descafeinadas» [2].


Em Inglaterra também tinham decapitado um rei. Mas, como a resistência da aristocracia ali fora menos vigorosa do que em França, a burguesia, para assentar o seu domínio, não sentiu necessidade de fazer uma aliança com o povo. Nos meios favorecidos, um tal modelo, sem maltrapilhos nem revolucionários radicais, parecia mais distinto e menos arriscado do que o outro. Assim sendo, Laurence Parisot, presidente do patronato francês, não traiu o sentimento dos seus constituintes ao confidenciar a um jornalista do Financial Times: «Adoro a História de França, mas não gosto muito da Revolução. Foi um acto de extrema violência, de que ainda hoje padecemos. Obrigou cada um de nós a situar-se num determinado campo». Acrescentando: «Nós não praticamos a democracia com tanto sucesso como a Inglaterra» [3].



É pois uma lamentável polarização social isso de as pessoas se «situarem num campo», porque todos deveriam, pelo contrário, mostrar-se solidários com a sua empresa, com o seu patrão, com a sua marca – nunca saindo, é claro, cada qual do seu lugar. O que a revolução tem de mais errado, para quem a encara com maus olhos, não é a violência, fenómeno tristemente banal na história – é uma outra coisa, infinitamente mais rara: a convulsão da ordem social que irrompe ao ocorrer uma guerra entre ricos e proletários. Em 1988, em busca de um argumento de grande peso, o presidente George Herbert Bush admoestou assim o seu adversário democrata, Michael Dukakis, um tecnocrata perfeitamente inofensivo: «O que ele quer é dividir-nos em classes. Isso é bom para a Europa, mas não existe na América». Classes, na América! Imagine-se o horror de semelhante acusação! Vinte anos depois, quando o estado da economia americana parecia impor sacrifícios tão desigualmente repartidos como os benefícios que os haviam antecedido – um verso da Internacional reclama que «o ladrão restitua pela força aquilo de que se apoderou de forma indevida»… –, o actual ocupante da Casa Branca considerou urgente neutralizar a fúria popular: «Uma das lições mais importantes a tirar desta crise é que a nossa economia só funciona se estivermos todos unidos. (…) Não podemos dar-nos ao luxo de ver um demónio em cada investidor ou empresário que tenta obter lucros» [4]. Contrariamente ao que afirmam alguns dos seus adversários republicanos, Barack Obama não é um revolucionário…


«A revolução é antes de mais nada uma ruptura. Quem não aceite esta ruptura com a ordem estabelecida, com a sociedade capitalista, não pode aderir ao Partido Socialista.» Assim falava François Mitterrand em 1971. Desde então, as condições de adesão ao Partido Socialista (PS) francês tornaram‑se menos draconianas, visto não repugnarem ao director‑geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Dominique Strauss‑Kahn, nem ao da Organização Mundial do Comércio (OMC), Pascal Lamy. A ideia de uma revolução também refluiu por outras bandas, inclusive nas formações mais radicais. O que levou a direita a apoderar‑se da palavra, aparentemente ainda portadora de esperança, para a transformar num sinónimo de restauração, de aniquilamento das protecções sociais conquistadas, ou arrancadas, à «ordem estabelecida».


Censura‑se, contudo, a violência das grandes revoluções. Há quem se choque, por exemplo, com o massacre dos guardas suíços na altura da tomada das Tulherias, em Agosto de 1792, ou com o da família imperial russa, em Julho de 1918, em Ekaterinburgo, ou com a liquidação dos oficiais do exército de Chang Kai‑Chek, após a tomada do poder pelos comunistas chineses em 1949. Nesse caso, teria sido melhor não haverem anteriormente ocultado as fomes do Antigo Regime sobre o pano de fundo dos bailes em Versalhes ou do dízimo que os padres extorquiam; as centenas de manifestantes pacíficos de Petrogrado massacrados pelos soldados de Nicolau II, num certo «domingo vermelho» de Janeiro de 1905; os revolucionários de Cantão e de Xangai atirados vivos, em 1927, para dentro das caldeiras das locomotivas. Sem falar das violências quotidianas exercidas pela ordem social que outrora se pretendia derrubar.


O episódio dos revolucionários queimados vivos não marcou apenas quem se interessa pela história da China, é conhecido dos milhões de leitores do romance de André Malraux, A Condição Humana. Porque, durante décadas, os maiores escritores e os maiores artistas formaram um conjunto indissolúvel com o movimento operário, celebrando as revoluções, os amanhãs que cantam. Inclusive – é certo – menorizando as decepções, as tragédias, as lívidas madrugadas (polícia política, culto da personalidade, nepotismo familiar, campos de trabalho, execuções).


Em contrapartida, desde há trinta anos, só se fala disso; é mesmo recomendado a quem queira ter êxito na universidade e na imprensa, ou para brilhar na Academia. «Quem diz revolução, diz irrupção da violência», assevera Max Gallo. «As nossas sociedades são extremamente frágeis. A maior responsabilidade de quem tem acesso à palavra pública é advertir contra essa irrupção. » [5] François Furet, por seu lado, considerava que qualquer tentativa de transformação radical era totalitária ou terrorista, que «a ideia de uma outra sociedade tornou‑se quase impensável». Sendo pois esta a sua conclusão: «Estamos condenados a viver no mundo em que vivemos» [6]. Não é difícil imaginar que um tal destino correspondia às expectativas dos seus leitores, em geral protegidos das tormentas por uma existência agradável de jantares e de debates.


A fobia às revoluções e o seu corolário, a legitimação da ordem estabelecida, encontraram muitos outros retransmissores, além de Max Gallo e François Furet. Basta pensarmos nas opções dos media, incluindo o cinema. Desde há trinta anos, os media pretenderam demonstrar que fora da democracia liberal só havia regimes tirânicos e conivência entre eles. A importância dedicada ao Pacto Germano‑Sovietico foi pois muito maior do que a atribuída a outras alianças contranatura, como os Acordos de Munique e o aperto de mão de Adolf Hitler e Neville Chamberlain. O nazi e o conservador comungavam, pelo menos, no ódio às frentes populares. Esse mesmo medo de classe inspirou os aristocratas de Ferrara e os donos da siderurgia da região do Ruhr, quando favoreceram a ascensão ao poder de Mussolini e do III Reich [7]. Ainda será permitido lembrar estas coisas?

Nesse caso, podemos ir mais longe… Embora Léon Blum tenha teorizado com clamor a sua rejeição de uma revolução de tipo soviético, classificada por um dos seus amigos como «blanquismo com molho tártaro», essa figura socialista, tão respeitada pelos professores de virtude, reflectiu sobre os limites de uma transformação social cujo único talismã seria o sufrágio universal. «Não estamos muito seguros», preveniu ele em 1924, «de que os representantes e dirigentes da sociedade actual não saiam eles próprios da legalidade quando os seus princípios essenciais lhes parecerem muito gravemente ameaçados». Com efeito, desde então, as transgressões desse género não têm faltado, do pronunciamento de Franco em 1936 ao golpe de Estado de Augusto Pinochet em 1973, sem esquecer o derrube de Mohammad Mossadegh no Irão, em 1953. Sublinhava então o dirigente socialista que «nunca a República foi proclamada em França pela virtude de um voto legal, exprimido segundo as formas constitucionais. Ela sempre foi estabelecida, contra a legalidade existente, pela vontade do povo insurrecto» [8].


Evitar as restaurações conservadoras oriundas do saber



Deste modo, o sufrágio universal, agora invocado para desqualificar as outras formas de intervenção colectiva (entre as quais as greves nos serviços públicos, assimiladas a sequestros de reféns), teria passado a ser o princípio e o fim de toda a acção política. Mas as questões que Léon Blum levantou a este respeito não envelheceram nada: «Será hoje (o sufrágio universal) uma realidade plena? Não pesará sobre os eleitores a influência do patrão e do proprietário, juntamente com as pressões das forças do dinheiro e da grande imprensa? Será todo o eleitor livre no sufrágio que exprime, livre pela cultura do seu pensamento, livre pela independência da sua pessoa? Para o libertar, não será justamente necessária uma revolução» [9] Murmura‑se agora, todavia, que o veredicto das urnas fez abortar, em três países europeus – Holanda, França e Irlanda –, as pressões conjugadas do patronato, das forças do dinheiro e da imprensa. Mas, precisamente por isso, esse veredicto não foi tido em conta…


«Perdemos todas as batalhas, mas éramos nós que tínhamos as mais belas canções.» Esta declaração, cujo autor terá sido um combatente republicano espanhol que procurou refúgio em França após a vitória de Franco, resume à sua maneira o problema dos conservadores e da sua lancinante pedagogia da submissão. Ditas estas coisas simplesmente, as revoluções deixam na história e na consciência humana um vestígio indelével, inclusive quando falharam, inclusive quando foram aviltadas. Com efeito, elas incarnam o momento, tão raro, em que a fatalidade se subleva, em que o povo ganha vantagem. Daí a sua ressonância universal. Porque, cada qual à sua maneira, os amotinados do Potemkin, os sobreviventes da Longa Marcha ou os barbudos da Sierra Maestra ressuscitaram o gesto dos soldados do Ano II, esse gesto que levou o historiador britânico Eric Hobsbawm a dizer que «a Revolução Francesa revelou a força do povo de uma forma que nunca nenhum governo pôde dar‑se ao luxo de esquecer – quanto mais não seja por terem de se lembrar do improvisado exército de recrutas que venceu, sem preparação militar, a poderosa coligação constituída pelas mais experimentadas tropas de elite das monarquias europeias» E [10].


Não se trata apenas de uma «lembrança»: o vocabulário político moderno e metade dos sistemas jurídicos existentes no mundo inspiram‑se no Código que a Revolução Francesa inventou. Quem pensar no «terceiro‑mundismo» da década de 1960 bem pode perguntar‑se se uma parte da sua popularidade na Europa não terá vindo da sensação de reconhecimento (no duplo sentido da palavra) que ele fez nascer. De facto, o ideal revolucionário das Luzes, igualitário e emancipador, pareceu renascer no Sul, em parte graças a vietnamitas, argelinos, chineses e chilenos que tinham passado pelo Velho Continente.


Nesse tempo, o Império empastava‑se, antigas colónias revezavam‑se, a revolução prosseguia. A situação actual é diferente. A emancipação da China ou da Índia, a sua afirmação na cena internacional, suscitam aqui e ali curiosidade e simpatia, mas não remetem para nenhuma esperança «universal», ligada, por exemplo, à igualdade, ao direito dos oprimidos, a um outro modelo de desenvolvimento, à preocupação de evitar as restaurações conservadoras oriundas do saber e da distinção.


Se é maior o entusiasmo internacional que a América Latina suscita, é porque ali a orientação política se revela simultaneamente democrática e social. Desde há vinte anos, uma certa esquerda europeia tem justificado a prioridade que atribui às solicitações das classes médias teorizando o fim do «parêntesis revolucionário», o apagamento político das camadas populares. Ora, pelo contrário, os governantes da Venezuela ou da Bolívia mobilizam de novo estas últimas provando‑lhes que a sua existência é tida em conta, que o seu destino histórico não está encerrado, que, em suma, a luta continua.


Por mais desejáveis que continuem a ser, as revoluções são raras. Elas pressupõem, ao mesmo tempo, uma massa de descontentes prontos a agir, um Estado cujas legitimidade e autoridade são contestadas por uma fracção dos seus defensores habituais (devido à sua imperícia económica, à sua incúria militar ou a divisões internas que o paralisam e desmembram) e, por último, a preexistência de ideias radicais que ponham em causa a ordem social, extremamente minoritárias à partida mas às quais poderão apegar‑se todas as pessoas cujas antigas crenças ou lealdades se dissolveram [11].


A historiadora norte‑americana Victoria Bonnell estudou os operários de Moscovo e São Petersburgo nas vésperas da Primeira Guerra Mundial. Como se trata do único caso em que este grupo social foi o actor mais importante de uma revolução «bem sucedida», merece ser referida a sua conclusão: «O que caracteriza a consciência revolucionária é a convicção de que as queixas só podem ser satisfeitas transformando as instituições existentes e estabelecendo uma outra organização social» [12]. Ou seja, essa consciência não surge de forma espontânea, sem uma mobilização política e uma ebulição intelectual prévias.


Tanto mais que em geral, e é a isso que actualmente assistimos, as exigências dos movimentos sociais começam por ser defensivas, desejando restabelecer um contrato social que consideram ter sido violado pelos patrões, pelos proprietários de terras, pelos banqueiros, pelos governantes. Ficam na ordem do dia o pão, o trabalho, a habitação, a escolaridade, um projecto de vida – não (ainda) um «futuro radioso», apenas «a imagem de um presente liberto dos seus aspectos mais dolorosos» [13]. Só depois, quando se torna manifesta a incapacidade dos dominantes para cumprir as obrigações que legitimam o seu poder e os seus privilégios, é por vezes levantada a questão, extravasando os círculos militantes, de saber «se os reis, os capitalistas, os padres, os generais e os burocratas continuam a ter utilidade social» [14]. Pode então falar‑se de revolução. Podendo a transição de uma etapa para a outra ocorrer rapidamente – dois anos em 1789, uns meses em 1917 – ou nunca acontecer.


Desde há quase dois séculos, milhões de militantes políticos ou sindicais, de historiadores e sociólogos, têm examinado as variáveis que determinam esse desenlace. Está a classe dirigente dividida e desmoralizada? Está o seu aparelho repressivo intacto? Estão as forças sociais que aspiram à mudança organizadas e capazes de se entenderem? Curiosamente, onde estes estudos têm sido mais abundantes é nos Estados Unidos, onde muitas vezes se tratou de compreender as revoluções, de admitir todos os seus contributos, para esconjurar melhor a sua pavorosa perspectiva.


Mas a fiabilidade desses estudos tem‑se revelado… aleatória. Em 1977, por exemplo, a maior preocupação era ali a «ingovernabilidade» das sociedades capitalistas. Surgindo, por contraste, esta pergunta: por que motivo é a URSS tão estável? Neste último caso, sucediam‑se as explicações: preferência dos dirigentes e da população soviética pela ordem e pela estabilidade; socialização colectiva fortalecedora dos valores do regime; natureza não cumulativa dos problemas a resolver, podendo assim o partido único ter campo de manobra; bons resultados económicos que contribuíam para a estabilidade desejada; melhoria do nível de vida; estatuto de grande potência; etc. [15]. Já então imensamente célebre, o politólogo Samuel Huntington, da Universidade de Yale, concluía da seguinte maneira essa enxurrada de índices concordantes: «Nenhum dos desafios previstos para os próximos anos parece ser qualitativamente diferente daqueles a que o sistema soviético já conseguiu dar resposta» [16].


Todos sabemos o que veio depois…

quinta-feira 7 de Maio de 2009

Notas

[1] Le Figaro, Paris, 9 de Abril de 2009.

[2] «Em suma, o que a sensibilidade liberal exige é uma revolução descafeinada, uma revolução que não tenha o sabor da revolução», resume Slavoj Zizek em Robespierre: entre vertu et terreur, Stock, Paris, 2008, p. 10.

[3] Financial Times Magazine, Londres, 7‑8 de Outubro de 2006.

[4] Conferência de imprensa de 24 de Março de 2009.

[5] Le Point, Paris, 25 de Fevereiro de 2009.

[6] François Furet, Le Passé d’une illusion, Robert Laffont/Calman‑Levy, 1995, p. 572 (O Passado de uma Ilusão, Presença, Lisboa, 1996).

[7] Em 1970, este assunto foi abordado pelos realizadores Vittorio de Sica (Il giardino dei Finzi‑Contini, O Jardim dos Finzi‑Contini) e Luchino Visconti (La caduta degli dei, Os Deuses Malditos).

[8] Léon Blum, «L’idéal socialiste», La Revue de Paris, Maio de 1924.

[9] Ibid.

[10] ric J. Hobsbawm, Aux armes, historiens. Deux siècles d’histoire de la Révolution française, La Découverte, Paris, 2007, p. 123 (Ecos da Marselhesa. Dois Séculos Revêem a Revolução Francesa, Companhia das Letras, São Paulo, 1996).

[11] Ler Jack A. Goldstone, Revolution, Wadsworth Publishing, Belmont (Califórnia), 2002, e Theda Skocpol, States and Social Revolutions, Cambridge University Press, 1979.

[12] Victoria Bonnell, The Roots of Rebellion. Workers’ Politics and Organizations in St. Petersburg and Moscow, 1900‑1914, University of California Press, Berkeley, 1984, p. 7.

[13] Barington Moore, Injustice. The Social Bases of Obedience and Revolt, Sharpe, White Plains (Nova Iorque), 1978, p. 209.

[14] Ibidem, p. 84.

[15] Cf. Seweryn Bialer, Stalin’s Successors. Leadership, Stability, and Change in the Soviet Union, Cambridge University Press, 1977.

[16] Samuel Huntington, «Remarks on the Meaning of Stability in the Modern Era», Seweryn Bialer e Sophia Sluzar (ed.), Radicalism in the Contemporary Age. 3 – Strategies and Impact of Contemporary Radicalism, Westview Press, Boulder (Colorado), 1977, p. 277.

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in Le Monde Diplomatique - Maio 2009

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