
* Maria Ramos Silva, Marta Martins Silva, Bruno Contreiras Mateus e Isabel Ramos
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Passado e presente tocam-se apenas no essencial. O que tem a República implantada em 1910 – faz na sexta-feira 97 anos – a ver com o País que hoje o nosso corpo percorre?
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Para o historiador António Costa Pinto, “a República foi uma tentativa falhada de democratização do liberalismo e muita da sua concretização passa pela actual democracia. Reavivar velhas clivagens da República faz agora pouco sentido.” Tal como diversas personalidades da política e da cultura, o investigador aceitou o desafio de escolher um símbolo representativo da actual República. Elegeu a escola. O combate ao analfabetismo proclamado pelos republicanos perdura. No essencial.
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“Renovação” foi, há um ano, a palavra que norteou o discurso de Cavaco Silva nas celebrações da proclamação da República. “Uma nova atitude perante a República, da sua dimensão cívica e da sua dimensão ética, é algo que se torna premente no Portugal contemporâneo”. O civismo e a ética a que se referiu implica um País com opinião consciente.
Na mesma linha e aceitando o repto de eleger um símbolo que representa a actual República, Jorge Sampaio, anterior inquilino do Palácio de Belém, escolheu os portugueses. “Sem sombra de hesitação, para mim, são as pessoas, os cidadãos que fazem e vivem a República no quotidiano, que lhe dão expressão, rosto e sentido e para os quais a ‘res publica’ (coisa pública) verdadeiramente existe como espaço de participação, de cidadania e de comunidade de destino.”
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Não há como fugir à História. Nem é simples elaborar subjectivamente para além dos símbolos mais imediatos – o Hino e a Bandeira, para o presidente da Assembleia da República súmula do regime político actual. “Embora sublinhe que também gosta do busto da República”, acrescenta o seu assessor de imprensa Luís Nunes da Ponte.
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“O Hino e a Bandeira Nacional são os símbolos que nunca ninguém contestou. São unânimes”, sublinha António Costa Pinto. Está consagrado na Lei e bem patente no site da internet da Presidência. Aliás, a bandeira verde e rubra foi uma das prioridades instituídas pelo Governo Provisório logo após a implantação da República.
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Mas o busto inflama até os ânimos artísticos. É também a escolha do escultor João Cutileiro. Nunca lhe some a voz – e nada de surpresas – quando o descreve como o monumento símbolo da República contemporânea. Pedissem-lhe a ele que a representasse com as suas mãos e pouco inovaria. “Pegava na tradição.”
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O que o artista plástico não resiste a contar é uma história bem-disposta sobre Alfredo Keil do Amaral, compositor do hino nacional, ‘A Portuguesa’, com letra de Henrique Lopes Mendonça. “Uma vez, estava eu lá em casa, por ser muito amigo do filho dele, e ele disse-me: ‘tu tens uma profissão muito fácil porque, para ti, a Maternidade é uma mulher seminua com um bebé ao colo; a Justiça é uma mulher seminua com uma venda nos olhos e uma balança na mão; a República é uma mulher com os seios à mostra e um capacete!’”
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Pode não ter privado com Keil do Amaral, mas o encenador Filipe La Féria não regateia elogios à música que aquele imaginou para acompanhar o Hino. Keil foi oportuno. “Soube acompanhar o grito da revolta: contra os bretões marchar, marchar.” Não é este o registo que perdura e sim “contra os canhões marchar, marchar!”
O compositor, músico e poeta Keil do Amaral é o protagonista duma história ainda longe do palco. O percurso do homem que compôs o Hino Nacional serve de inspiração a uma peça que La Féria gostava de escrever – “Já tenho algumas cenas da peça escritas, com início no princípio da queda do Império.”
O encenador e empresário não foge ao repto de ‘reduzir’ a República moderna a um elemento – escolheu a Assembleia da República porque, “sendo agora democrática, os deputados são eleitos pelo povo, é preciso dignificá-la.” Há quem acredite, contudo, que nem três ou quatro musicais de La Féria podem valer ao Parlamento.
O arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles estranha que alguém se tenha lembrado de lhe perguntar pela República. “Então não sabe que eu sou monárquico?” Então e não pode alguém que vê numa monarquia moderna a única esperança de futuro associar um símbolo ao regime vigente em Portugal desde 5 de Outubro de 1910?
“Assembleia da República”, lá se decide o arquitecto, para quem o edifício guardado por leões de pedra significa “imobilidade e da falta de futuro”. Imobilidade que, prossegue, implica todos os órgãos de soberania – não só a AR mas também o Presidente da República, o Governo e os Tribunais.
O edifício é ainda simbólico da “falta de interesse dos portugueses pela intervenção pública.” Para Ribeiro Telles, assim não vamos lá. “Não acertamos com a nossa História, e sem o passado não há futuro.” Pelo menos, explica, futuro mantendo a independência. As alternativas são “ou a integração na Espanha, como defende o (José) Saramago, ou noutros países da Europa”.
O 5 de Outubro de 1910 deixou Portugal “sem rei nem roque”. Em tais bolandas e furor revolucionário, a Igreja não passou incólume. Não foram amigáveis as relações entre a Primeira República e a Igreja Católica. Não o foram ao ponto de a Santa Sé ter cortado relações diplomáticas com Portugal.
“No seguimento do modo como a República foi implantada houve necessidade de institucionalizar formas de respeito mútuo e cooperação entre o Estado e a Igreja, quer com a Concordata de 1940, de respeito mútuo, quer com a actual (2004), de cooperação.” É esta, a actual, que o padre franciscano Vítor Melícias elege como símbolo da moderna República Portuguesa.
“Foram encontrados modos de respeitar a laicidade do Estado – separação entre Estado e Igreja – e de ambas as instituições desenvolverem a sua missão específica em favor do bem comum dos portugueses.”
Quanto à Concordata de 1940, Vítor Melícias sublinha a importância prática, no âmbito daquele documento, do Acordo Missionário, que “permitiu a escolarização das antigas colónias”. Em 1910, “escola” e “escolarização” eram palavras republicanas.
PRIMEIRA REPÚBLICA
O ataque da Primeira República à Igreja, com raízes profundas nos corações dos portugueses, foi entendido como chão permissivo do golpe militar de 28 de Maio de 1926, que deu origem à Ditadura Nacional e, após a aprovação do Constituição de 1933, ao Estado Novo. Durou até 25 de Abril de 1974.
Noventa e sete anos após a instauração da República e 33 passados sobre o 25 de Abril, “a democracia, constitucionalmente social e política, já não oligárquica, alarga a democracia da Primeira República”, sustenta o historiador e militante do Bloco de Esquerda Fernando Rosas, para quem o cravo é o símbolo da República.
“O cravo do 25 de Abril que floriu na ponta das espingardas da revolução fundadora da democracia” é, ainda assim, uma segunda escolha. Um símbolo institucional do nosso regime – a Assembleia da República – é a primeira. Fernando Rosas lembra que também a moeda de escudo, mesmo se já não circula, fez parte da simbologia nacional.
SÍMBOLO DA REPÚBLICA
Não é a pensar em escudos que o seleccionador nacional de râguebi faz a sua escolha. Pede um tempo para pensar e, entre um telefonema e outro, em directo nas emoções da saída do Mundial da modalidade, Tomaz Morais elege como símbolo da República moderna o euro. Não foi uma decisão fácil.
Lançou primeiro a ideia de produtividade – “aquilo que estão sempre a exigir-nos”. Foi-lhe pedido que desse rosto e concretizasse a sua escolha. “E a moeda, pode ser?”, questionou, embora neste caso o euro represente bastante mais do que dinheiro. Ele explica: “Precisamos sempre de uma enorme coragem para responder a todas as exigências e, acima de tudo, de iniciativa, muita iniciativa”. Pronto, está decidido – “a moeda, fica a moeda”, conclui, convencido pelas suas próprias palavras.
O euro até pode dar jeito, mas o que os portugueses decerto não vão esquecer tão cedo – agora que já olvidaram as derrotas sucessivas da Selecção, a única amadora, no Mundial de Râguebi – é do tratamento que os portentosos atletas deram ao Hino Nacional, símbolo unânime da República. No início dos jogos cantaram-no de tal maneira que nem o Presidente lhes ficou indiferente. “Faz parte a emoção, nunca sabemos quando voltamos a jogar pela Selecção – é sempre uma sensação única, daí a garra, a vontade”.
JOSÉ GIL
O ensaísta José Gil, autor do inesperado best-seller filosófico “Portugal, Medo de Existir”, desculpa-se “por não satisfazer o desejo” de precisão na escolha mas satisfaz com “o que lhe vem à cabeça”. E na dele pensar em República é situá-la num “espaço público como objecto do cidadão, um espaço citadino em permanente expansão”. Não distingue nenhuma cidade em particular.
Os dilemas filosóficos da síntese não afligem Marcelo Rebelo de Sousa, que foi contactado por fax e deixou resposta no voice mail do telemóvel. Foi uma resposta clara e precisa, sem hesitações ou palavras desnecessárias, pois tempo a perder é coisa que o professor de Direito e comentador político não tem.
Quem, para Marcelo, simboliza a moderna República portuguesa é o poeta Miguel Torga, cujo centenário se celebra precisamente este ano. “Foi um republicano e simultaneamente alguém que conheceu, que viveu, vibrou com e descreveu o País no que ele tem de mais essencial. É esta a minha escolha.” Despediu-se, deixou cumprimentos e desligou. Simples e directo.
Em valores Joe Berardo também é rápido no gatilho, “Democracia”. Mas a República tornada objecto merece hesitação. Imediato, um “ai, ai, ai...” de quem precisa de tempo para materializar a resposta. No final, o comendador/empresário madeirense decide-se por um elenco com cunho tecnológico. A República de hoje e de amanhã escreve-se com os “meios de transporte, como o avião”, o “telefone e a televisão” e, claro, com os “computadores”. “Representam a nova era da nossa República. Imagine o País sem estas coisas!”
Maçon, António Arnaut, fundador do PS e antigo grão-mestre do Grande Oriente Lusitano, sublinha a relação entre a ordem maçónica e o advento da República. Tal associação, bem como entre a Maçonaria e todas revoluções liberais, é imediata. Já escolher uma única imagem capaz de traduzir a República que hoje somos revela-se mais difícil. “... direitos das mulheres, libertação do Homem, educação...”.
Arnaut decide-se pela força simbólica da árvore, até porque “o Dia da Árvore foi instituído pela República.” Mas tem que se lhe diga este símbolo. Em tempo de preocupação com o (des)equilíbrio da Natureza, é absolutamente moderno, sem perder o sentido original que remete para “um regime com raízes no coração do povo português, tronco sólido e ramos lançados para o céu, que significam esperança no futuro e nos valores da liberdade, igualdade e fraternidade.”
Havia outros símbolos – “um triângulo, um círculo...” – que o antigo ministro dos Assuntos Sociais e impulsionador do Serviço Nacional de Saúde não se importava de associar à República mas fica-se pela árvore.
No final das contas, o músico João Gil também há-de primar pela modernidade. Tudo começa em tom de brincadeira. Pede para pensar alto. Sucedem-se as tentativas e a questão “mas será que existe uma República moderna?” também dá um ar da sua graça.
Pelo meio, o músico balança entre “uma bela mulher portuguesa como símbolo de modernidade da aniversariante República”. Mas é a ausência de fronteiras que acaba por cativá-lo. “Já sei! O símbolo que escolho é o Planeta Terra, pois só faz sentido que a República moderna sobreviva fora das fronteiras impostas”. Entusiasma-se. Pega na ideia de viagem e remata com a saudade, “tão presente na expressão da língua portuguesa”. Faz o elo com o passado e um desabafo divertido termina a conversa: “Precisamos de um País maior, mas somos poucos.”
Mais cá de casa, ou seja, pouco dado a universalismos, mostra-se Jaime Nogueira Pinto, professor universitário e ‘advogado’ de Oliveira Salazar no programa “Grandes Portugueses”. “Habituei-me sempre a pensar Portugal, não como regime – monárquico, republicano, autoritário, democrático – mas como Pátria e Nação. É para Portugal que vai a minha lealdade para além e independentemente dos regimes.”
JAIME NOGUEIRA PINTO
Diz Jaime Nogueira Pinto que, “se é pensar a ‘República’ como regime histórico, como imagem político-literária”, então pensa “numa dessas alegorias do 5 de Outubro, com bustos da República, marinheiros de baioneta-calada, uns políticos de óculos, pêra e barbicha, como o Teófilo Braga e o Afonso Costa, em medalha ao canto”. Para o pensador, que não esconde as suas simpatias políticas, a República “é a própria contradição dessas imagens: patriota e sectária, generosa e brutal, popular e jacobina, libertária e intolerante”.
Nogueira Pinto não esquece o mau fim da Primeira República.
Quem teve um grande desgosto ao saber que o filho, José Relvas, era republicano foi Carlos Relvas, proprietário rural e apaixonado pela fotografia. Incompatibilizou-se de tal maneira com ele que acabou por abandonar a casa de família e mudar-se para o ateliê fotográfico onde morreu em 1894. O filho seria ministro das Finanças da Primeira República. Foi ele, José Relvas, quem, a 5 de Outubro de 1910, a proclamou da varanda da Câmara Municipal de Lisboa.
O publicitário Américo Guerreiro não sabe se por influência da mãe – que nasceu em Alpiarça, onde Relvas terminou os seus dias – mas é precisamente a figura do republicano que causou desgosto ao pai que mais o impressiona e acaba por escolher como símbolo da República moderna. “Foi um republicano a quem a República correu mal. Vinha de uma família com uma vida desgraçada, com suicídios, emparedamentos, adultérios, noivados contrariados... Representa muito o fado, o espírito português de que ‘a bota não joga com a perdigota’.”
Não, afinal o que leva o antigo dirigente da Associação Portuguesa de Empresas de Publicidade a escolhê-lo como símbolo da República moderna não é a afinidade familiar com Alpiarça. É antes a impressão que lhe causa a “vida de desgraça e a influência cultural de José Relvas”.
“Olhe, só consigo associar a construções.” São as palavras de Lídia Jorge segundos depois da pergunta. Pode ser, e a escritora premiada pelo romance ‘O Vento Assobiando nas Gruas’ dá assim corpo de pedra e cimento à República.
Não hesita sequer, como se sempre tivesse pensado nisso e esta fosse apenas a oportunidade de dizê-lo. Poeticamente, como sempre. Entre todas as construções, Lídia Jorge escolhe a Ponte Vasco da Gama, que associa à democracia. “A ponte deu modernidade a Lisboa, uniu o Norte e o Sul, franqueou as portas da interioridade”, diz a mulher de letras com raízes no Algarve.
Lídia canta as palavras em voz baixa. Continua. “A Ponte Vasco da Gama ajudou a destruir a separação, aparece como a ideia de uma retoma de esperança do País, uma retoma da força da terra”. Não termina sem um elogio ao Tejo: “A ponte é símbolo também porque dá uma perspectiva do rio como um ante-oceano, como se fosse um abrir dos braços até ao verdadeiro oceano.” O que faz desta uma República à beira-mar plantada. Para o que der e vier.
97 ANOS SOBRE A PROCLAMAÇÃO
A República faz anos na próxima sexta-feira. Passam 97 sobre a sua proclamação em Lisboa, a 5 de Outubro de 1910. Nesse mesmo dia, a organização do Governo Provisório, presidido por Teófilo Braga, ocupa-se da administração do país. A Assembleia Constituinte reúne-se, pela primeira vez, em 19 de Junho de 1911, sanciona a revolução republicana e elege uma comissão para elaborar o projecto-base do novo texto constitucional. Em Agosto do mesmo ano, Manuel de Arriaga é eleito Presidente. A Bandeira Nacional, símbolo da soberania da República, da independência, unidade e integridade de Portugal, adoptada pela República instaurada pela Revolução de 5 de Outubro de 1910, e o Hino Nacional, A Portuguesa, são os dois símbolos nacionais definidos no artigo 11.º da Constituição da República Portuguesa.
DEPOIMENTOS
"IMOBILIDADE E FALTA DE FUTURO" Gonçalo Ribeiro Telles (arquitecto e monárquico)
"TORGA VIVEU, VIBROU E DESCREVEU O PAÍS" Marcelo Rebelo de Sousa (professor catedrático e comentador político)
"ÁRVORE COM RAMOS LANÇADOS PARA O CÉU, A ESPERANÇA" António Arnaut (ex-ministo dos Assuntos Sociais)
"GOSTO MUITO DO BUSTO E O HINO E A BANDEIRA SÃO SÍMBOLOS UNÂNIMES" Jaime GAma (presidente da Assembleia da República)
"A PONTE APARECE COMO RETOMA DA ESPERANÇA" Lídia Jorge (escritora)
"A REPÚBLICA É UM ESPAÇO CIITADINO EM PERMANENTE EXPANSÃO" José Gil (filósofo e ensaísta)
"PRODUTIVIDADE PARA RESPONDER A TODAS EXIGÊNCIAS" Tomaz Morais (seleccionador de râguebi)
"COM A CONCORDATA, QUE A DE 1940, QUER A ACTUAL. FOI POSSÍVEL À IGREJA E AO ESTADO DESENVOLVEREM A SUA MISSÃO ESPECÍFICA EM FAVOR DO BEM COMUM DOS PORTUGUESES" Vítor Melícias (padre franciscano)
"SENDO AGORA DEMOCRÁTICA, TEMOS DE DIGNIFICAR A ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA" Filipe La Féria (encenador e empresário)
"O CRAVO DO 25 DE ABRIL, REVOLUÇÃO FUNDADORA DA DEMOCRACIA" Fernando Rosas (historiador e militante do Bloco de Esquerda)
"REPÚBLICA DEVE SOBREVIVER FORA DAS FRONTEIRAS IMPOSTAS" João Gil, (músico)
"A REPÚBLICA É A ESCOLA, O SISTEM ESCOLAR E O ALRGAMENTO DA ESCOLARIDADE DOS PORTUGUESES" António Costa Pinho (historiador)
"A REPÚBLICA É UMA MULHER COM OS SEIOS À MOSTRA E UM CAPACETE" João Cutileiro (artista plástico)
"IMAGINE-SE O PAÍS SEM COMPUTADORES "Joe Berado (empresário)
"POLÍTICOS DE ÓCULOS E BARBICHA" Jaime Nogueira Pinto (historiador e pensador político)
"JOSÉ RELVAS, O ESPÍRITO DO FADO PORTUGUÊS" Américo Guerreiro (publicitário)
A REPÚBLICA, ESSA BELA MULHER
A República é uma mulher. Mulher no género do nome. Mulher nas muitas caras que lhe dão rosto ao longo dos anos. Em Portugal, Maria Puga foi uma das modelos que serviram de inspiração para representar o busto da República. Morreu no início da década de 90. O busto da República, atribuído ao escultor João da Nova, foi inaugurado por Afonso Costa em Outubro de 1911. Em França, a representação da mãe pátria, guerreira e pacífica, fogosa e protectora, coube a Brigitte Bardot (1970), Mireille Mathieu (1978), Catherine Deneuve (1985) e Inès de La Fressange (1989) que inspiraram o busto de Marianne, incarnação dos valores republicanos da divisa ‘Liberdade, Igualdade, Fraternidade’. No ano 2000, a escolha recaiu sobre a modelo Laetitia Casta, numa votação inédita e polémica aberta às câmaras municipais do país. Pouco tempo depois, o ícone da República mudava-se para Londres, sob acusação de tentar fugir aos impostos. Em 2003, sucedeu-lhe Évelyne Thomas, animadora de um popular programa de televisão.
O compositor, músico e poeta Keil do Amaral é o protagonista duma história ainda longe do palco. O percurso do homem que compôs o Hino Nacional serve de inspiração a uma peça que La Féria gostava de escrever – “Já tenho algumas cenas da peça escritas, com início no princípio da queda do Império.”
O encenador e empresário não foge ao repto de ‘reduzir’ a República moderna a um elemento – escolheu a Assembleia da República porque, “sendo agora democrática, os deputados são eleitos pelo povo, é preciso dignificá-la.” Há quem acredite, contudo, que nem três ou quatro musicais de La Féria podem valer ao Parlamento.
O arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles estranha que alguém se tenha lembrado de lhe perguntar pela República. “Então não sabe que eu sou monárquico?” Então e não pode alguém que vê numa monarquia moderna a única esperança de futuro associar um símbolo ao regime vigente em Portugal desde 5 de Outubro de 1910?
“Assembleia da República”, lá se decide o arquitecto, para quem o edifício guardado por leões de pedra significa “imobilidade e da falta de futuro”. Imobilidade que, prossegue, implica todos os órgãos de soberania – não só a AR mas também o Presidente da República, o Governo e os Tribunais.
O edifício é ainda simbólico da “falta de interesse dos portugueses pela intervenção pública.” Para Ribeiro Telles, assim não vamos lá. “Não acertamos com a nossa História, e sem o passado não há futuro.” Pelo menos, explica, futuro mantendo a independência. As alternativas são “ou a integração na Espanha, como defende o (José) Saramago, ou noutros países da Europa”.
O 5 de Outubro de 1910 deixou Portugal “sem rei nem roque”. Em tais bolandas e furor revolucionário, a Igreja não passou incólume. Não foram amigáveis as relações entre a Primeira República e a Igreja Católica. Não o foram ao ponto de a Santa Sé ter cortado relações diplomáticas com Portugal.
“No seguimento do modo como a República foi implantada houve necessidade de institucionalizar formas de respeito mútuo e cooperação entre o Estado e a Igreja, quer com a Concordata de 1940, de respeito mútuo, quer com a actual (2004), de cooperação.” É esta, a actual, que o padre franciscano Vítor Melícias elege como símbolo da moderna República Portuguesa.
“Foram encontrados modos de respeitar a laicidade do Estado – separação entre Estado e Igreja – e de ambas as instituições desenvolverem a sua missão específica em favor do bem comum dos portugueses.”
Quanto à Concordata de 1940, Vítor Melícias sublinha a importância prática, no âmbito daquele documento, do Acordo Missionário, que “permitiu a escolarização das antigas colónias”. Em 1910, “escola” e “escolarização” eram palavras republicanas.
PRIMEIRA REPÚBLICA
O ataque da Primeira República à Igreja, com raízes profundas nos corações dos portugueses, foi entendido como chão permissivo do golpe militar de 28 de Maio de 1926, que deu origem à Ditadura Nacional e, após a aprovação do Constituição de 1933, ao Estado Novo. Durou até 25 de Abril de 1974.
Noventa e sete anos após a instauração da República e 33 passados sobre o 25 de Abril, “a democracia, constitucionalmente social e política, já não oligárquica, alarga a democracia da Primeira República”, sustenta o historiador e militante do Bloco de Esquerda Fernando Rosas, para quem o cravo é o símbolo da República.
“O cravo do 25 de Abril que floriu na ponta das espingardas da revolução fundadora da democracia” é, ainda assim, uma segunda escolha. Um símbolo institucional do nosso regime – a Assembleia da República – é a primeira. Fernando Rosas lembra que também a moeda de escudo, mesmo se já não circula, fez parte da simbologia nacional.
SÍMBOLO DA REPÚBLICA
Não é a pensar em escudos que o seleccionador nacional de râguebi faz a sua escolha. Pede um tempo para pensar e, entre um telefonema e outro, em directo nas emoções da saída do Mundial da modalidade, Tomaz Morais elege como símbolo da República moderna o euro. Não foi uma decisão fácil.
Lançou primeiro a ideia de produtividade – “aquilo que estão sempre a exigir-nos”. Foi-lhe pedido que desse rosto e concretizasse a sua escolha. “E a moeda, pode ser?”, questionou, embora neste caso o euro represente bastante mais do que dinheiro. Ele explica: “Precisamos sempre de uma enorme coragem para responder a todas as exigências e, acima de tudo, de iniciativa, muita iniciativa”. Pronto, está decidido – “a moeda, fica a moeda”, conclui, convencido pelas suas próprias palavras.
O euro até pode dar jeito, mas o que os portugueses decerto não vão esquecer tão cedo – agora que já olvidaram as derrotas sucessivas da Selecção, a única amadora, no Mundial de Râguebi – é do tratamento que os portentosos atletas deram ao Hino Nacional, símbolo unânime da República. No início dos jogos cantaram-no de tal maneira que nem o Presidente lhes ficou indiferente. “Faz parte a emoção, nunca sabemos quando voltamos a jogar pela Selecção – é sempre uma sensação única, daí a garra, a vontade”.
JOSÉ GIL
O ensaísta José Gil, autor do inesperado best-seller filosófico “Portugal, Medo de Existir”, desculpa-se “por não satisfazer o desejo” de precisão na escolha mas satisfaz com “o que lhe vem à cabeça”. E na dele pensar em República é situá-la num “espaço público como objecto do cidadão, um espaço citadino em permanente expansão”. Não distingue nenhuma cidade em particular.
Os dilemas filosóficos da síntese não afligem Marcelo Rebelo de Sousa, que foi contactado por fax e deixou resposta no voice mail do telemóvel. Foi uma resposta clara e precisa, sem hesitações ou palavras desnecessárias, pois tempo a perder é coisa que o professor de Direito e comentador político não tem.
Quem, para Marcelo, simboliza a moderna República portuguesa é o poeta Miguel Torga, cujo centenário se celebra precisamente este ano. “Foi um republicano e simultaneamente alguém que conheceu, que viveu, vibrou com e descreveu o País no que ele tem de mais essencial. É esta a minha escolha.” Despediu-se, deixou cumprimentos e desligou. Simples e directo.
Em valores Joe Berardo também é rápido no gatilho, “Democracia”. Mas a República tornada objecto merece hesitação. Imediato, um “ai, ai, ai...” de quem precisa de tempo para materializar a resposta. No final, o comendador/empresário madeirense decide-se por um elenco com cunho tecnológico. A República de hoje e de amanhã escreve-se com os “meios de transporte, como o avião”, o “telefone e a televisão” e, claro, com os “computadores”. “Representam a nova era da nossa República. Imagine o País sem estas coisas!”
Maçon, António Arnaut, fundador do PS e antigo grão-mestre do Grande Oriente Lusitano, sublinha a relação entre a ordem maçónica e o advento da República. Tal associação, bem como entre a Maçonaria e todas revoluções liberais, é imediata. Já escolher uma única imagem capaz de traduzir a República que hoje somos revela-se mais difícil. “... direitos das mulheres, libertação do Homem, educação...”.
Arnaut decide-se pela força simbólica da árvore, até porque “o Dia da Árvore foi instituído pela República.” Mas tem que se lhe diga este símbolo. Em tempo de preocupação com o (des)equilíbrio da Natureza, é absolutamente moderno, sem perder o sentido original que remete para “um regime com raízes no coração do povo português, tronco sólido e ramos lançados para o céu, que significam esperança no futuro e nos valores da liberdade, igualdade e fraternidade.”
Havia outros símbolos – “um triângulo, um círculo...” – que o antigo ministro dos Assuntos Sociais e impulsionador do Serviço Nacional de Saúde não se importava de associar à República mas fica-se pela árvore.
No final das contas, o músico João Gil também há-de primar pela modernidade. Tudo começa em tom de brincadeira. Pede para pensar alto. Sucedem-se as tentativas e a questão “mas será que existe uma República moderna?” também dá um ar da sua graça.
Pelo meio, o músico balança entre “uma bela mulher portuguesa como símbolo de modernidade da aniversariante República”. Mas é a ausência de fronteiras que acaba por cativá-lo. “Já sei! O símbolo que escolho é o Planeta Terra, pois só faz sentido que a República moderna sobreviva fora das fronteiras impostas”. Entusiasma-se. Pega na ideia de viagem e remata com a saudade, “tão presente na expressão da língua portuguesa”. Faz o elo com o passado e um desabafo divertido termina a conversa: “Precisamos de um País maior, mas somos poucos.”
Mais cá de casa, ou seja, pouco dado a universalismos, mostra-se Jaime Nogueira Pinto, professor universitário e ‘advogado’ de Oliveira Salazar no programa “Grandes Portugueses”. “Habituei-me sempre a pensar Portugal, não como regime – monárquico, republicano, autoritário, democrático – mas como Pátria e Nação. É para Portugal que vai a minha lealdade para além e independentemente dos regimes.”
JAIME NOGUEIRA PINTO
Diz Jaime Nogueira Pinto que, “se é pensar a ‘República’ como regime histórico, como imagem político-literária”, então pensa “numa dessas alegorias do 5 de Outubro, com bustos da República, marinheiros de baioneta-calada, uns políticos de óculos, pêra e barbicha, como o Teófilo Braga e o Afonso Costa, em medalha ao canto”. Para o pensador, que não esconde as suas simpatias políticas, a República “é a própria contradição dessas imagens: patriota e sectária, generosa e brutal, popular e jacobina, libertária e intolerante”.
Nogueira Pinto não esquece o mau fim da Primeira República.
Quem teve um grande desgosto ao saber que o filho, José Relvas, era republicano foi Carlos Relvas, proprietário rural e apaixonado pela fotografia. Incompatibilizou-se de tal maneira com ele que acabou por abandonar a casa de família e mudar-se para o ateliê fotográfico onde morreu em 1894. O filho seria ministro das Finanças da Primeira República. Foi ele, José Relvas, quem, a 5 de Outubro de 1910, a proclamou da varanda da Câmara Municipal de Lisboa.
O publicitário Américo Guerreiro não sabe se por influência da mãe – que nasceu em Alpiarça, onde Relvas terminou os seus dias – mas é precisamente a figura do republicano que causou desgosto ao pai que mais o impressiona e acaba por escolher como símbolo da República moderna. “Foi um republicano a quem a República correu mal. Vinha de uma família com uma vida desgraçada, com suicídios, emparedamentos, adultérios, noivados contrariados... Representa muito o fado, o espírito português de que ‘a bota não joga com a perdigota’.”
Não, afinal o que leva o antigo dirigente da Associação Portuguesa de Empresas de Publicidade a escolhê-lo como símbolo da República moderna não é a afinidade familiar com Alpiarça. É antes a impressão que lhe causa a “vida de desgraça e a influência cultural de José Relvas”.
“Olhe, só consigo associar a construções.” São as palavras de Lídia Jorge segundos depois da pergunta. Pode ser, e a escritora premiada pelo romance ‘O Vento Assobiando nas Gruas’ dá assim corpo de pedra e cimento à República.
Não hesita sequer, como se sempre tivesse pensado nisso e esta fosse apenas a oportunidade de dizê-lo. Poeticamente, como sempre. Entre todas as construções, Lídia Jorge escolhe a Ponte Vasco da Gama, que associa à democracia. “A ponte deu modernidade a Lisboa, uniu o Norte e o Sul, franqueou as portas da interioridade”, diz a mulher de letras com raízes no Algarve.
Lídia canta as palavras em voz baixa. Continua. “A Ponte Vasco da Gama ajudou a destruir a separação, aparece como a ideia de uma retoma de esperança do País, uma retoma da força da terra”. Não termina sem um elogio ao Tejo: “A ponte é símbolo também porque dá uma perspectiva do rio como um ante-oceano, como se fosse um abrir dos braços até ao verdadeiro oceano.” O que faz desta uma República à beira-mar plantada. Para o que der e vier.
97 ANOS SOBRE A PROCLAMAÇÃO
A República faz anos na próxima sexta-feira. Passam 97 sobre a sua proclamação em Lisboa, a 5 de Outubro de 1910. Nesse mesmo dia, a organização do Governo Provisório, presidido por Teófilo Braga, ocupa-se da administração do país. A Assembleia Constituinte reúne-se, pela primeira vez, em 19 de Junho de 1911, sanciona a revolução republicana e elege uma comissão para elaborar o projecto-base do novo texto constitucional. Em Agosto do mesmo ano, Manuel de Arriaga é eleito Presidente. A Bandeira Nacional, símbolo da soberania da República, da independência, unidade e integridade de Portugal, adoptada pela República instaurada pela Revolução de 5 de Outubro de 1910, e o Hino Nacional, A Portuguesa, são os dois símbolos nacionais definidos no artigo 11.º da Constituição da República Portuguesa.
DEPOIMENTOS
"IMOBILIDADE E FALTA DE FUTURO" Gonçalo Ribeiro Telles (arquitecto e monárquico)
"TORGA VIVEU, VIBROU E DESCREVEU O PAÍS" Marcelo Rebelo de Sousa (professor catedrático e comentador político)
"ÁRVORE COM RAMOS LANÇADOS PARA O CÉU, A ESPERANÇA" António Arnaut (ex-ministo dos Assuntos Sociais)
"GOSTO MUITO DO BUSTO E O HINO E A BANDEIRA SÃO SÍMBOLOS UNÂNIMES" Jaime GAma (presidente da Assembleia da República)
"A PONTE APARECE COMO RETOMA DA ESPERANÇA" Lídia Jorge (escritora)
"A REPÚBLICA É UM ESPAÇO CIITADINO EM PERMANENTE EXPANSÃO" José Gil (filósofo e ensaísta)
"PRODUTIVIDADE PARA RESPONDER A TODAS EXIGÊNCIAS" Tomaz Morais (seleccionador de râguebi)
"COM A CONCORDATA, QUE A DE 1940, QUER A ACTUAL. FOI POSSÍVEL À IGREJA E AO ESTADO DESENVOLVEREM A SUA MISSÃO ESPECÍFICA EM FAVOR DO BEM COMUM DOS PORTUGUESES" Vítor Melícias (padre franciscano)
"SENDO AGORA DEMOCRÁTICA, TEMOS DE DIGNIFICAR A ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA" Filipe La Féria (encenador e empresário)
"O CRAVO DO 25 DE ABRIL, REVOLUÇÃO FUNDADORA DA DEMOCRACIA" Fernando Rosas (historiador e militante do Bloco de Esquerda)
"REPÚBLICA DEVE SOBREVIVER FORA DAS FRONTEIRAS IMPOSTAS" João Gil, (músico)
"A REPÚBLICA É A ESCOLA, O SISTEM ESCOLAR E O ALRGAMENTO DA ESCOLARIDADE DOS PORTUGUESES" António Costa Pinho (historiador)
"A REPÚBLICA É UMA MULHER COM OS SEIOS À MOSTRA E UM CAPACETE" João Cutileiro (artista plástico)
"IMAGINE-SE O PAÍS SEM COMPUTADORES "Joe Berado (empresário)
"POLÍTICOS DE ÓCULOS E BARBICHA" Jaime Nogueira Pinto (historiador e pensador político)
"JOSÉ RELVAS, O ESPÍRITO DO FADO PORTUGUÊS" Américo Guerreiro (publicitário)
A REPÚBLICA, ESSA BELA MULHER
A República é uma mulher. Mulher no género do nome. Mulher nas muitas caras que lhe dão rosto ao longo dos anos. Em Portugal, Maria Puga foi uma das modelos que serviram de inspiração para representar o busto da República. Morreu no início da década de 90. O busto da República, atribuído ao escultor João da Nova, foi inaugurado por Afonso Costa em Outubro de 1911. Em França, a representação da mãe pátria, guerreira e pacífica, fogosa e protectora, coube a Brigitte Bardot (1970), Mireille Mathieu (1978), Catherine Deneuve (1985) e Inès de La Fressange (1989) que inspiraram o busto de Marianne, incarnação dos valores republicanos da divisa ‘Liberdade, Igualdade, Fraternidade’. No ano 2000, a escolha recaiu sobre a modelo Laetitia Casta, numa votação inédita e polémica aberta às câmaras municipais do país. Pouco tempo depois, o ícone da República mudava-se para Londres, sob acusação de tentar fugir aos impostos. Em 2003, sucedeu-lhe Évelyne Thomas, animadora de um popular programa de televisão.
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Pediram tempo. Que era assunto sério pensar sobre o que significa, quase um século depois, a República, disseram. Houve gente ligada à política, às artes, à publicidade que se assustou com a responsabilidade.
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in Correio da Manhã 2007.09.30

Poesia
Como se liberta a poesia atrás de umas grades
* Maria Ramos Silva
terça-feira, julho 10, 2007

Poesia
Como se liberta a poesia atrás de umas grades
* Maria Ramos Silva
Não há fuga possível, mas escape, em forma de poesia. Uma bebedeira de letras com menos efeitos secundários que outros vícios que os conduziram às celas.
45 minutos de evasão do sistema de siglas e designações protocolares. Da Ala A da UDL, ou Unidade Livre de Drogas, e da numeração que lhes furtou o nome de baptismo. Hoje, são 50. Arrumados nos assentos de uma das salas do Estabelecimento Prisional de Lisboa, consoante a cedência a aparecer no retrato ou a intransigência na protecção da identidade.
“Ah, isto é que é a poesia!” A constatação que dá título à iniciativa cai-lhes no goto e com ela caem os mitos à medida que conhecem os autores para além das capas dos livros. A desconfiança também baixa a guarda. Os braços vão desfazendo as cruzes defensivas e os sorrisos começam a viajar de orelha a orelha quando as palavras fazem sentido. “A poesia é expressão de liberdade, não obedece às regras de outros textos”, lembra Filipe Lopes, o contador de histórias que as tem levado às escolas, bibliotecas e cadeias de Norte a Sul do País. “Efectivamente a poesia não tem grades. Quando lemos, conseguimos abrir janelas lá para fora. A poesia nunca nos aprisiona a capacidade de imaginar.
” A ementa da sessão de animação cultural é ecléctica: Camões, Sophia de Mello Breyner, António Gedeão, Eugénio de Andrade, José Luís Peixoto, António Lobo Antunes, Fernando Pessoa, Alexandre O’Neill, Mário Henrique Leiria. É com ela e por ela que Filipe responde aos ‘porquês?’ que os rostos da plateia escondem. “Sempre gostei muito de ler e em casa sempre houve muitos livros. Um dia, um texto mudou a minha vida. Tinha vinte e poucos anos e não sabia que direcção tomar na minha vida.
A diferença entre estar aqui ou no outro lado é mínima”, confessa o ‘moderador’, no arranque desta “conversa com versos”. “Quem gosta de ler?”, arremessa para a esquerda e para a direita. Apenas 4 tímidas mãos se erguem a medo. “E quem gosta de poesia?” – menos ainda dão sinal de vida. “E de futebol?” – levantam-se orgulhosas em número esmagador. “E de música?” – fazem o pleno. “Fico muito satisfeito. Afinal, todos gostam de poesia!”, aponta Filipe. Seguramente porque deve muito à omnipresença e encontra-se – e encontra-nos – em todo o lado, ainda que as barreiras físicas se interponham.
“O livro é uma riqueza. Quando entramos num de que gostamos muito, vamos para outro lugar. Temos a possibilidade infinita de chegar a montes de sítios”, confirma Maria Cabral, do Instituto do Livro. O grupo não pode arredar pé. Mas a pena, cumprida entre quatro paredes, pode ser abrandada graças a uma esperança que não definha.
“A receptividade é boa. O pior que tive foi apatia, mas nunca uma reacção agressiva ou violenta. As prisões e as suas estruturas são diferentes. As penas também são diferentes, o que os influencia tremendamente na visão da prisão e do mundo lá ora. Há sítios mais deprimentes do que outros. Mas acho sempre que mesmo aos 60 anos eles podem ser tocados por alguma coisa. Nunca se deve desistir. Para mim, este é um trabalho cívico.”
A poesia é água mole nesta pedra que dura. A de Yuri, que se prontifica a saltar da cadeira para recitar Camões, já tem cinco anos. Longe da vida e da filha que deixou cá fora. Perto da rotina de “sufoco”, preenchida pela responsabilidade sobre a secção de arraiolos, uma das ocupações lá dentro. Estuda as linhas convocadas com uma leitura silenciosa. Depois desaperta a voz. Segura, como Leonor a caminho da fonte. “Ele deu um passo em frente para vir ler e fê-lo da melhor maneira que sabia”, elogia Filipe.
O ‘cherne’ de O’Neill entra em cena. E a ‘Bunda’ com gosto tropical de Carlos Drummond de Andrade. Bem como a música. A dos Trovante, repescada das linhas de Florbela Espanca, ou a de Bonga, que enxugou a Lágrima de Preta de Gedeão.
O MÉTODO DE FILIPE
É a descontracção, semelhante à aplicada entre os adolescentes nas escolas. Dispensa guião e espectáculo para desvirginar quem nunca leu poesia. Até aqui. “Os reclusos são convidados a participar. Só vêm os que querem”, explica. Eles quiseram. E deram o tempo por bem empregue. “Já tínhamos sessões de leitura, mas como esta foi a primeira vez. Gostei mais, desperta a atenção”, comenta Yuri, um português com direito a alcunha de Leste de tanto insistir em arranhar ucraniano.
E não é que se arranham boas pilhas de versos?! Sobretudo por meio da escrita. “Alguns de nós fizemos poesias também”, interrompem de um dos lados. As folhas que o atestam já lhes queimam as mãos, que as querem revelar ao mundo. Os mais destemidos chegam-se à frente e dizem de sua justiça e sina. Ainda que as palavras não cheguem para descarregar o espírito. “Vivemos situações na cadeia que é complicado passar para o papel. É frustrante estar aqui “, diz João Gomes, 25 anos, a meio caminho de uma sentença de oito, aliviada pelo estudo, pelo trabalho e pelo desporto no seio da cadeia.
Lembra-se de ‘Frei Luís de Sousa’, sabido “de obriga” nos tempos de escola.
A última obra desfolhada foi assunto quente que agitou as águas até nos calabouços: ‘Eu, Carolina’. “Tinha muito para dizer sobre esse livro!”, brinca João, que remata a sua biografia atrás das grades com uma linha mais séria: “Choro porque sei que o medo sou eu.” O desafio espreita lá fora. “Todos nós temos um projecto. É preciso é construí-lo cá dentro. Entramos como toxicodependentes e começamos a projectar um futuro melhor.”
A incumbência da récita toca a ‘Filipe’, mas o companheiro passa a batata quente. “É uma coisa pessoal”, defende. Sem fronteiras, a poesia recebe a visita da Ala D de braços abertos. É de lá que vem um rap. O autor das rimas está ausente, mas o beatbox já ferve na boca da assistência que lhe quer dar alma. A dupla de voluntários não dá a cara mas empresta a voz. E a poesia sobre os dias de quem se arrasta nos corredores da prisão acontece e arrebata. “Isto não é um rap, é melhor do que a Bíblia!”, riem, no final de uma actuação de se lhe tirar o chapéu.
Por aqui, a missão – e a ferroada do bichinho – parecem cumpridas .“Tenho uma abordagem muito próxima deles. Não tenho o objectivo de explicar a importância do autor, mas sim dar-lhes a possibilidade de ouvirem e de se exporem ao contágio do prazer da leitura. Não há receita milagrosa, é preciso é pô-los em contacto”, esclarece o Contador de Histórias.
Com o início da chamada para as visitas e a extinção dos aplausos que brindaram o desfecho, Filipe improvisa mais umas linhas. “O vosso livro ainda está aberto. Estão a meio caminho de escrever os capítulos finais”. São as últimas do dia. E as primeiras do resto dos dias das vidas deles.
ENCONTRO COM AS LETRAS
É difícil explicar por palavras, mas as linhas que escrevem apaziguam a dor. João, ‘Yuri’ e ‘Joaquim’ Vinagre investem na poesia para matar o tempo no Estabelecimento Prisional de Lisboa. Vinagre é um dos que encabeçam a coordenação da biblioteca. “Não funciona tanto como nós gostaríamos. O pessoal não tem esse estímulo. Cerca de 30% lê”, explica. Mais banda desenhada e policiais”, acrescenta Yuri. Temos um grupo de tertúlia poética. A ideia é um estímulo para a escrita e a leitura”, confia ‘Joaquim’
CONTOS PARA CRIANÇAS E IDOSOS
Recitais para crianças e jovens, oficinas para adolescentes, espectáculos e outras acções de sensibilização, são algumas actividades que o divulgador cultural Filipe Lopes, formado em psicopedagogia, leva há uma década a todo o país. O projecto ‘O contador de histórias’ surgiu como grupo artístico em 97, depois de uma série de recitais em locais diversos e inesperados (a sala de um convento, um átrio de hotel, uma sinagoga, etc). Revelando frequentemente textos pouco conhecidos, o grupo de quatro elementos enveredou pela vertente pedagógica, em resposta a solicitações para públicos escolares. Filipe é ainda coordenador da ‘Hora do Conto’ da Fundação do Gil. Saiba mais em www.ocontadordehistorias.com
PARA DAR ASAS AO GOSTO PELA POESIA
Iniciado em 2004, o projecto ‘A Poesia Não Tem Grades’ é apoiado pela Direcção Geral do Livro e das Bibliotecas (antigo IPLB) e pela Direcção Geral dos Serviços Prisionais, tendo como objectivos principais a promoção da leitura junto dos reclusos e a sua integração social. As sessões, desenvolvidas de forma continuada ou esporádica, são ocupadas com a leitura partilhada de diversos textos de autores nacionais e estrangeiros, numa escolha ecléctica que vai dos clássicos até aos autores mais modernos, com especial destaque para o surrealismo.
Palavras-chave como ‘Liberdade’ ou ‘Justiça’ são apresentadas em diversos contextos para que os participantes possam reflectir nos seus mais diversos sentidos. Esta foi a quinta sessão, depois da passagem por três estabelecimentos prisionais açorianos e pela cadeia de vale de Judeus. A caravana ruma agora ao Norte.
DADOS
- 45 minutos é a duração aproximada de cada sessão coordenada por Filipe Lopes. A hora das visitas antecipou a saída de alguns elementos. A maioria permaneceu ainda mais tempo.
- 30 era o número inicial de inscritos na sessão, e o limite que o próprio Contador de Histórias estabelece para poder trabalhar. Excepcionalmente, a sala acolheu 50 reclusos.
- 15 é a média de autores abordados em cada iniciativa. Ao longo de dez anos de actividade, Filipe tem recorrido a nomes tão diversos como Camões, Alexandre O’Neill, Mário Henrique Leiria ou José Luís Peixoto.
- 120 mil quilómetros já percorridos com o seu carro desde há apenas dois anos. Os encontros de Norte a Sul do País obrigam a deslocações permanentes, que incluem ainda muitas milhas de avião, para chegar aos arquipélagos.
in Correio da Manhã 2007.07.08
Foto - Pedro Catarino
VER TAMBÉM: http://osolaosquadradinhos.blogspot.com/
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