A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht
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sábado, abril 19, 2014

Os rostos dos anos de brasa



Os rostos dos anos de brasa



Nunca tive dúvidas de que, na organização da exposição O Nascimento de Uma Democracia, o painel mais controverso seria o dos 200 "rostos". Na verdade, são 202, visto que se acrescentou uma foto de soldados anónimos e outra de civis manifestantes igualmente anónimos, tiradas no próprio dia 25 de Abril.
Havia várias razões pelas quais os "200 rostos" seriam polémicos. Porquê aqueles rostos e não outros? E depois, por que razão estavam associados ao "nascimento da democracia", sendo que muitos deles não desejavam à época que houvesse democracia parlamentar, e muitos lutaram contra a sua institucionalização? Ou seja, não se tratava de 200 "construtores" da democracia, mas sim de 200 pessoas que estavam lá, no processo conflitual de a fazer. Tal está explícito no texto que escrevi "explicando a exposição", mas tinha consciência de que seria assim interpretado e, por opção deliberada, aceitei que fosse essa a leitura. É uma leitura que altera a intenção original, mas não é uma leitura perversa, é uma leitura cujo debate interessa.
Porquê aqueles rostos e não outros? Em primeiro lugar, corrijam-se alguns erros técnicos, nomes que estavam na lista e não aparecem no painel, e uma gralha freudiana. Os erros ocorreram, não sei por que raio do destino, ou porque Deus desejaria que colocássemos na obra perfeita um azulejo errado para mostrar a imperfeição da acção humana. Nós não o fizemos e fomos punidos. Deus colocou lá o azulejo torto para nos ensinar humildade.
O azulejo errado é que da lista que fizemos desde o início, ainda quando eram apenas cem os nomes, constavam por pleno direito Francisco Pinto Balsemão, Costa Gomes e Jaime Neves. Balsemão e Costa Gomes aparecem noutras fotografias, mas deveriam estar na lista e não estão. No caso de Balsemão, levou-se à lista os três fundadores do PPD que estavam na foto de uma conferência de imprensa inicial: Sá Carneiro, Magalhães Mota e Balsemão. No dia da inauguração, um deputado do PSD veio perguntar-me por que razão não estava Balsemão e eu disse-lhe que procurasse por ordem alfabética em Francisco e, com grande espanto meu, não estava lá. O mesmo aconteceu com outros dois nomes desde sempre incluídos na lista, Costa Gomes e Jaime Neves, que também desapareceram entre a execução gráfica e a publicação, visto que constavam da lista dos cem iniciais e se sumiram. Já se pôde a tempo colocar uma errata no nome de Oliveira Dias, militante do CDS de Leiria e quinto presidente da Assembleia da República, que apareceu como Oliveira Costa. As minhas desculpas, mas ninguém deu por ela apesar de várias leituras nome a nome, e aqui deve haver uma maldição que atinge todos aqueles cujo nome começa por "Oliveira" e qualquer coisa a seguir. O dr. Freud tem um ensaio sobre isto. Tudo isto já está numa errata e será corrigido numa nova edição e no painel.
Agora, as omissões e os problemas que levantam. O trabalho de equipa de elaboração da exposição começou pelas fotografias dos eventos de 1974-6, retirando daí os nomes, em particular dos "construtores de partidos", até porque essa era uma intenção da narrativa da exposição: mostrar como, no meio da confusão de 1974-5, surgiu o sistema de partidos da nossa democracia. As fotos retratam o primeiro acto público genético de um novo partido, ou da passagem à legalidade de um partido clandestino, fosse uma conferência de imprensa ou um comício, e terminam no acto de legalização com a entrega das assinaturas no tribunal. No caso do MRPP começam e acabam do mesmo modo, porque o partido fez da entrega das assinaturas um pequeno comício com bandeiras e punhos erguidos nas instalações vetustas do tribunal.
Fizemos primeiro uma lista de cem nomes, mas deu-se um fenómeno típico dos fractais. Sempre que estabelecíamos um número-limite, era impossível fazer caber dentro desse número as pessoas com o mesmo ou semelhante grau de importância de modo a não haver injustiças. Se colocávamos Spínola, teria de estar Vasco Gonçalves; colocando Vasco Gonçalves, teria de vir o "grupo dos nove"; com os nomes do "grupo", teria de vir, do outro lado, Rosa Coutinho e Corvacho; com este par, tinha de entrar Pires Veloso e o cónego Melo, etc., etc. Resolveu-se dar mais espaço e colocar duzentos nomes, o que, de novo com o mesmo problema dos fractais, tornava necessário pela igualdade de critérios mais cem nomes, e por aí adiante. Travou-se nos duzentos pelos limites físicos do painel.
Entraram nomes, saíram nomes, até que a lista teve de ir para a tipografia, com plena consciência de que iriam aparecer logo a seguir outros nomes tão evidentes e inevitáveis como os que lá estavam. Passou-se a uma fase de teste, perguntando a pessoas do PSD, do PS, do CDS, do BE, dos militares de Abril, que dissessem nomes que deveriam lá estar pelo seu papel entre 1974 e 1976, e estavam todos.  Isto dava algum sossego, mas, mal a lista se fechou, vieram-me logo à memória quatro nomes que deveriam lá estar, obrigatoriamente. E não estavam. Tratava-se do padre Mário de Oliveira, o perseguido pároco de Macieira da Lixa; Vítor Cunha Rego, aventureiro, conspirador, intelectual exilado, "consiglieri" do PS e embaixador; Francisco Martins Rodrigues, sem o qual a extrema-esquerda portuguesa não seria o que foi; e José Luís Saldanha Sanches, cuja valentia pessoal atravessou estes anos complicados com todas as cadeias, preso e perseguido como membro do PCP e mais tarde do MRPP. E surgiram alguns desequilíbrios menos importantes, mas que implicavam alguma reflexão. Se, na sombra do PS, estava Bernardino Gomes, não deveria estar Rui Mateus? Deveria. E isto era apenas o intróito, porque mais nomes apareceriam.
Nos últimos dias, entre sugestões e críticas, mais nomes são levados à discussão com todo o sentido. Júlia Matos Silva chamou-me a atenção de duas omissões, a de Fernando Matos Silva e a de Álvaro Guerra. No caso do primeiro, escreveu: "O Fernando Matos Silva e a equipa partiram pelas ruas de Lisboa, captando as imagens grandiosas da expressão generosa de uma aliança entre as armas e o povo. E são muitas dessas imagens que ainda hoje prevalecem para documentar o gesto grandioso de um país que venceu a ditadura, sem lágrimas de sangue. O olhar e a câmara do Fernando Matos Silva - que tinha visto o seu primeiro filme, O Mal-Amado, totalmente proibido pela censura - hão-de ficar indelevelmente livres, testemunhando os actos e as emoções dos militares e do povo." Tem razão, até porque também lá estão Adelino Gomes, Joaquim Furtado e Eduardo Gageiro (e poderiam estar Alfredo Cunha e Miranda Castela), por razões idênticas.
Outros nomes surgirão, quer de militares do MFA (Manuel Monge, Carlos Azeredo, Hugo dos Santos, etc.), quer de civis como Álvaro Guerra, Pedro Batista  (fundador do Grito do Povo), Afonso de Barros (fundador do MES), Manuel Maria Múrias, Nuno Brederode, Adérito Sedas Nunes (que institucionalizou a sociologia em Portugal), e mesmo de alguns estrangeiros cuja presença em Portugal ou cujos escritos sobre a "revolução portuguesa" tiveram grande influência nesses anos, como Jean-Paul Sartre, Tony Cliff e Ernest Mandel. Talvez tenhamos mesmo de ir para os trezentos nomes, até porque assim o corpus biográfico ganha dimensão e significado.
Seja como for, esta lista pode ser acusada de tudo menos de sectarismo. Colocar lá Carlos Antunes e Kaulza de Arriaga, ou Cunhal e o cónego Melo, pode ser incómodo para os próprios, vivos ou mortos, e certamente o é, mas sem esta multiplicidade de nomes, projectos e atitudes não se percebe a democracia portuguesa na sua génese. Ela não se percebe sem os binómios mais intensos da época, socialismo "em liberdade" versus "democracia popular", comunismoversus anticomunismo, colonialismo "federalista" versusanticolonialismo radical, liberdades versus "conquistas da revolução", democracia parlamentar versus socialismo "militar", que são mais eficazes para explicar estes anos de 1974-6 do que o binómio 24 de Abril versus 25 de Abril. No fundo, ninguém estava do lado de Salazar e Caetano, ninguém entrou no debate conflitual desses anos para defender a PIDE ou a Censura. Por ironia do destino, hoje há mais complacência nefelibata com o regime do 24 de Abril do que a que havia na altura: a PIDE não era tão má como isso e não matava muita gente, a Censura afinal deixava passar imensa coisa, havia desenvolvimento e "paz social" num país sem corrupção nem criminalidade violenta, com elites respeitáveis e patrióticas, isentas e sacrificadas e mais seguro nas ruas. Apetece responder como o almirante Pinheiro de Azevedo respondeu quando lhe chamaram "fascista". Está lá na exposição.

http://www.publico.pt/opiniao/jornal/os-rostos-dos-anos-de-brasa-28167578

sexta-feira, abril 18, 2014

Portugal 1974-1976: o nascimento de uma democracia







Portugal 1974-1976: o nascimento de uma democracia

No dia em que é inaugurada, na Assembleia da República, a exposição O nascimento de uma democracia, o PÚBLICO antecipa o texto que fundamenta a exposição, adaptado pelo seu autor, José Pacheco Pereira.

1. A exposição que podem ver na Assembleia da República não é sobre o dia 25 de Abril de 1974, cujo 40.º aniversário se comemora este ano. É sobre o que esse dia permitiu, fez nascer, “abriu”, é sobre o nascimento da democracia portuguesa no meio da turbulência de um país que saía de 48 anos de ditadura.
2. Nos 40 anos do 25 de Abril de 1974, muitas das comemorações vão centrar-se no que aconteceu nesse dia. As interpretações variam: golpe de Estado, revolução, golpe de Estado seguido de uma revolução, etc. Mas uma coisa é incontroversa: no dia 25 de Abril começou a nascer uma democracia e ela apenas foi possível pelo que aconteceu nesse dia. O que aconteceu em 25 de Abril com a ação do MFA foi de facto o “dia lustral”. O dia do começo. Mas, a partir desse dia, o nascimento de uma democracia fez-se na sociedade e com a sociedade, com os portugueses. Como se passa em todas as democracias, foi um processo essencialmente civil, e numa democracia que nasceu de uma ação militar, foram os civis que se revelaram fundamentais para a sua construção.
3. Como se retrata o nascimento de uma democracia? Em primeiro lugar, pela diferença em relação ao que havia. Pelo tempo de acabar, da PIDE, da Censura, da União Nacional, da ditadura. Depois, e esse é um dos objetivos desta exposição, começar, mostrar como se começa: o direito e o exercício de vir à rua manifestar-se, o direito e o exercício de organizar-se, a passagem à legalidade dos partidos clandestinos e a génese de novos partidos, o direito de falar e escrever livremente, o direito de votar em liberdade e escolher quem nos representa e quem nos governa. A democracia faz-se com política em liberdade, instituições e representação com génese eleitoral, partidos, participação cívica numa miríade de organizações, discurso público e propaganda política. No nascimento da nossa democracia, os sinais da sua pujança revelaram-se em todos estes símbolos, com uma nova iconografia, paisagem sonora e visual: cartazes, autocolantes, emblemas, faixas, panfletos, brochuras e livros, fotografias, imagens, filmes e sons. O objetivo desta exposição é  mostrar o rastro que no nosso olhar ficou desses tempos. Privilegia o que nos envolve, imagens e sons, valoriza o retorno ao passado pela recriação da sua paisagem.
4. A democracia significou direitos. Nenhum destes direitos foi concedido, todos foram conquistados. Foi um processo difícil, caótico, com avanços e recuos, que durou muito mais do que alguns anos. Em bom rigor, é um processo que continua em curso. Todos os dias. Não foi um nascimento fácil, nem o poderia ser, devido à longa duração da ditadura, ímpar na história da Europa ocidental. Não o podia ser também no meio de uma guerra colonial ativa, com três frentes distintas em África. Mas foi nessa turbulência que tudo começou, marcada pelos eventos, quer em Portugal, quer nas colónias, pela vontade muitas vezes contraditória dos seus fundadores, pelo “ruído” inerente à democracia, dos conflitos culturais, sociais e políticos. Aliás, o primeiro sinal de que Portugal estava a mudar foi exatamente o facto de podermos, pela primeira vez, ouvir sem censura, nem polícia política, nem partido único, e acima de tudo sem medo, esse “ruído” sem o qual não há democracia.
5. Na elaboração desta exposição não se partiu do presente para o passado, nem se projetou sobre o passado qualquer interpretação programática sobre o que neste período foi “bom” ou “mau” para a génese da nossa democracia. Há interpretação que se revela na própria escolha de tratar o aniversário do 25 de Abril não a partir dos eventos nesse dia, mas da génese do regime democrático, cuja casa primordial é o local onde se realiza a exposição, o Parlamento. No entanto, tentou evitar-se uma seleção de eventos, rostos e sinais, que chegaram aos nossos dias como os “politicamente corretos”. A história foi o que aconteceu e não o que muitos dos seus atores queriam que acontecesse, e o que aconteceu foi que Portugal vive em democracia nos últimos 40 anos.
6. Quando olhamos para os atores desses anos de génese, em que há quem tivesse lutado pela democracia e quem desejasse outras formas de poder não democráticas, vemos bem, pelas biografias a posterioride todos, o enorme poder de “normalização” que teve a democracia portuguesa. Não foi perfeito, nada é perfeito nos negócios humanos, mas foi muito eficaz. A democracia impôs-se em termos racionais, éticos e afetivos na vida de todos e tornou-os parte dela, deixando de haver “democratas imperfeitos” ou “não democratas”, e atirando para as trevas exteriores quem continua a combatê-la. Quarenta anos depois, mesmo para esses, a democracia venceu. Não sabemos como vai ser no futuro, mas sabemos que foi assim neste passado que nos é ainda íntimo, dos 40 anos depois do 25 de Abril.
7. A nossa democracia conheceu uma primeira fase de moldagem com os processos eleitorais de 1975 e 1976, que nos deram a Assembleia Constituinte, a primeira Assembleia legislativa, as eleições autárquicas e presidenciais. A essa moldagem soma-se a ação dos governos provisórios, ainda num período de transição política, que foi também fundamental para criar práticas de governação que depois se institucionalizaram nos governos constitucionais. De novo, convém lembrar que nenhum dos atores deste período, fossem políticos vindos da oposição, fossem políticos gerados pela democracia, fossem militares, fossem profissionais liberais, estudantes, padres, operários, trabalhadores rurais, empregados, funcionários, revolucionários e conservadores, agitadores e institucionalistas, nenhum tinha qualquer experiência de fazer política em liberdade, porque entre 1926 e o 25 de Abril de 1974 não houvera um dia de liberdade. Governar era uma experiência nova.
8. Usou-se o ano de 1976 como termo, sendo só excecionalmente utilizados materiais de data posterior, mas sem com isso significar que a consolidação da nossa democracia tivesse sido adquirida nessa data. Bem pelo contrário, o acolhimento pacífico dos “retornados”, o acesso ao governo por eleições de partidos representando posições políticas muito distintas, as sucessivas revisões constitucionais, o fim da tutela do MFA, a entrada na União Europeia, profundas mudanças no enquadramento legal da economia e da sociedade, a possibilidade de haver governos de coligação e de maioria absoluta, a consolidação do poder local, a construção de autonomias regionais, tudo foram passos na estabilização da democracia.
9. Nem tudo correu bem, nem tudo corre bem. A prevalência de fenómenos de corrupção deslegitima a imagem do poder político, o crescimento da partidocracia, a ineficácia no combate às desigualdades e à pobreza, as fragilidades da nossa independência financeira, um alarmante divórcio entre os portugueses e a sua representação política são sinais de que nenhuma democracia pode ser considerada adquirida sem um contínuo esforço com uma dimensão política, mas também cultural, económica e social. A democracia não é um regime “natural”, não existe inscrito na natureza das coisas, mas é uma escolha cultural, no sentido lato, que só sobrevive quando os homens e mulheres que fizeram essa escolha não duvidam dela e estão dispostos a defendê-la. Olhando os anos de génese da nossa democracia, é muito nítido que é assim, quer para estes anos de brasa, quer para os dias de hoje.
10. A democracia portuguesa é de génese revolucionária e não admira que a “rua” tenha tido um papel decisivo. Na exposição é nítido esse papel, como palco de manifestações, protestos, incidentes, golpes e contragolpes. Logo no próprio dia do 25 de Abril, milhares de portugueses desceram à rua e definiram o sentido de uma revolução, tornando a ação dos militares em algo mais do que um golpe de Estado corporativo. Tal seria sempre uma impossibilidade nos seus termos, como, aliás, os mais clarividentes dos “capitães de abril” sabiam e desejavam. Depois, indo à “rua” com liberdade, não mais de lá saíram, em múltiplas encarnações a favor de tudo e contra tudo, fazendo a democracia, ou mesmo tentando evitá-la. As imagens de manifestações que podem ser vistas na exposição incluem esse mundo contraditório, desde as grandes manifestações iniciais do 1.º de Maio, passando pelo “cerco” à Assembleia, pelas manifestações pela liberdade de informação ou pelas lutas laborais e camponesas.
11. Dessa “rua” saía uma nuvem de mensagens contraditórias, mas irmanadas pela liberdade de poderem ser ditas. Parte da cacofonia destes tempos encontra-se retratada em múltiplas palavras de ordem, frases e falsos slogans irónicos, que preenchem um painel da exposição e que também aparecem na “paisagem” sonora que a acompanha. Pretendeu-se dar deste tempo a mesma visão que revelam as fotografias e os cartazes, um emaranhado de vozes, sérias e menos sérias, puras asneiras e apelos dramáticos, falando ao mesmo tempo, dizendo coisas muito diferentes, com nexo e sem nexo, até porque tinham passado 48 anos sem poderem falar com liberdade. Pode considerar-se que o “abaixo a guerra colonial” é infinitamente mais sério do que a “promoção imediata do leitão a porco” ou o “nem mais um anticiclone para os Açores”, mas o que une estas frases é sublinharem a mesma vontade de liberdade e de fim da opressão e um antiautoritarismo que tinha força porque a canga tinha sido pesada.
12. Este aspeto de “explosão” icónica, sonora, verbal, na qual está presente uma nova força vital de Portugal e dos portugueses, é um dos que pode dar aos visitantes do presente, que não viveram este tempo, essa alegria da liberdade que, felizmente para eles, pela sua juventude, não podem contrastar com a vil tristeza claustrofóbica de um regime de violência institucionalizada.
13. Quando olhamos para trás, como se víssemos aquele “país estrangeiro” que é o passado, por estranho que tal possa parecer, percebemos como a nossa democracia nasceu nos anos a que chamamos, muitas vezes pejorativamente, de “processo revolucionário em curso”, o “prec”, um momento em que muitos não a desejavam, mas em que outros lutaram por ela com imenso risco. Não foi um processo linear, higiénico, “limpo”, deixando para trás o “dia lustral”, mas seria da ordem dos milagres se o fosse. Não foi um processo sem custos, enormes custos, a começar pelos custos em vidas humanas ocorrido nas antigas colónias portuguesas, onde deixamos como herança conflitos e guerras, com o pano de fundo de uma longa guerra colonial, de um colonialismo tardio e mergulhado na violência e de uma descolonização feita sem instrumentos de poder militar para ser controlada. Tudo isto pode “explicar”, mas não lhe tira a dimensão trágica. Uma ideia benévola do 25 de Abril esquece muitas vezes esta dimensão trágica dos eventos que desencadeou.
14. Tratando-se do nascimento de uma democracia, é normal que cada vez menos apareçam nas suas imagens militares, e cada vez haja mais civis. A dívida que todos temos aos homens que fizeram o 25 de Abril, que ninguém pretende nem minimizar, nem ignorar, nem esconder, é uma coisa de natureza diferente do processo de construção de uma democracia em que o retorno dos militares aos quartéis, o apagamento progressivo da sua dimensão como agentes da “revolução”, é fundamental. Também não foi um processo simples e isento de avanços e recuos.
15. Numa parte que será provavelmente a mais controversa da exposição, escolhemos 200 rostos daquilo que hoje chamaríamos, por influência crescente do marketing, os “protagonistas” desse nascimento de uma democracia. De novo, não fizemos qualquer julgamento a posteriori  sobre o seu papel nestes anos, sobre os méritos ou deméritos da sua ação no futuro. Sabemos apenas que, nestes anos da génese, todos foram “parte” do processo, todos estiveram lá. Nem todos foram importantes no futuro, mas todos a seu modo foram importantes no presente que durou de 1974 a 1976. Estão lá, nas fotografias e na ação, criando partidos políticos, organizando e intervindo, manifestando-se, planeando resistências e reações, golpes e contragolpes, violências e tolerâncias.
16. Estão presentes entre esses rostos lutadores quase tolstoianos pela democracia e opositores violentos da democracia, gente que matou e que foi morta, gente que lutou nas ruas pela liberdade e gente que desejava que não houvesse democracia “parlamentar”, ou seja, que não houvesse democracia. Pode parecer estranho que todos apareçam no mesmo painel, mas o tempo juntá-los-á numa mesma história, mesmo que lhes dê papéis diferentes. No entanto, no início e no fim desses 200 rostos, há dois grupos de anónimos: alguns militares do 25 de Abril, sem patente nem protagonismo, e alguns civis nas manifestações de risco desse mesmo dia, também sem nome e sem fama. Sabemos que foi deles que veio a força vital que transformou uma ditadura numa democracia.

http://www.publico.pt/politica/noticia/portugal-19741976-o-nascimento-de-uma-democracia-1632346

 Comissariada por José Pacheco Pereira,  a exposição "O nascimento de uma democracia (1974-1976)" integra cartazes, materiais de propaganda e reproduções fotográficas do período de 1974-1976. Esta mostra pretende, nas palavras do comissário, “retratar o nascimento da democracia portuguesa: o direito e o exercício de vir à rua manifestar-se, o direito e o exercício de organizar-se, a passagem à legalidade dos partidos clandestinos e a génese de novos partidos, o direito de falar e escrever livremente”.

sexta-feira, outubro 25, 2013

José Pacheco Pereira - O DESPREZO PELOS MANIFESTANTES DA CGTP

O DESPREZO PELOS MANIFESTANTES DA CGTP 

Uma coisa que mostra como quem está do lado do poder não percebe (ou melhor não quer perceber), o que está a acontecer em Portugal, é o modo como exibem um racismo social com os manifestantes da CGTP, tão patente nos comentários à saga da ponte. Pode não ser deliberado, mas sai-lhes do fundo, naturalmente. Os filhos dos comentadores e opinadores podem ir às manifestações dos “indignados”, que são aceitáveis, engraçadas e chiques, e que tem muita cultura e imaginação, mas nenhum irá às da CGTP. Eles “são sempre o mesmo”, ou “mais do mesmo”, eles são “pouco criativos” que insistem em fazer manifestações “que não adiantam nada”. Eles são “os feios, os porcos e os maus”. 

http://ephemerajpp.files.wordpress.com/2013/10/dsc_4706.jpg Os manifestantes da CGTP não são da classe social certa, não ambicionam ir tomar chá com Ricardo Salgado, ou ir comer aos restaurantes da moda, não são frequentáveis e, ainda pior, não se deixam frequentar. Têm, muitos deles, uma vida inteira de trabalho e de muitas dificuldades. Tem um curso, uma pós-graduação e um doutoramento em dificuldades. São velhos, um anátema nos nossos dias. Tiveram ou tem profissões sobre as quais os jornalistas da capital não sabem nada, foram corticeiros, mineiros, soldadores, torneiros, mecânicos, condutores de máquinas, pedreiros, ensacadores, motoristas, afinadores, estivadores, marinheiros, operários têxteis, ourives, estofadores, cortadores de carnes, empregados de mesa, auxiliares educativos, empregadas de limpeza, etc., etc. Foram e são cozinheiros e cozinheiras em cantinas, e nãochefs. E foram ou são, professores, funcionários públicos, enfermeiros, contabilistas. 

 Este desprezo social é chocante quando é feito por quem tem acesso ao espaço público e que trata os portugueses que se manifestam, - e, seja por que critério, são muitos, pelo menos muitos mais, muitíssimos mais dos que estariam dispostos a vir para rua pelo governo, – como uma “massa de manobra” do PCP, que merece uma espécie de enjoo distanciado, umas ironias de mau gosto e um gueto intelectual. Façam vocês o que fizerem, “não contam”. Vocês são umas centenas de milhares, vocês são “activistas” e por isso se vêem muito (quem não se vê nada são os do “outro lado”), mas “não contam” para nada. Existirem ou desaparecerem é a mesma coisa, nenhum dos “de cima” se pode ou deve preocupar convosco. Votam em partidos anacrónicos, têm hábitos plebeus, vão fazer campismo de férias, fazem excursões organizadas pelas autarquias, jogam a sueca, as mulheres passam-se pelo Tony Carreira e todos acham que tem direitos. Vejam lá, imaginem lá o abuso, acham que tem direitos… Eles são os maus portugueses, os que estão de fora do “arco governativo”, os que não percebem o "estado de emergência financeira", aqueles cujos "interesses" bloqueiam o nosso radioso empreendedorismo.

 Tudo isso é verdade, e tudo isso é mentira. Estes portugueses fora de moda e fora das modas, pelo menos tem o enorme mérito de sentirem um agudo sentimento de injustiça, eles que sabem mais da vida real, concreta, vivida do que todos os seus críticos juntos. Não é a eles que se pode dar lições de trabalho, nem de esbanjamento, nem de perseverança, nem de sacrifício. Pode-se discordar deles, mas merecem respeito. Pelo que foram, pelo que são e porque não se ficam.

sábado, julho 27, 2013

josé pacheco pereira - A CRISE POR DETRÁS DA "CRISE"

ABRUPTO

A CRISE POR DETRÁS DA "CRISE"


Andamos tempo de mais a esquecer-nos de que Portugal ainda é uma democracia. Esquecemo-nos também de que Portugal ainda é um país soberano e independente. Há demasiadas pessoas a dizerem-nos que tudo isto é só nominal, porque não podemos viver em democracia sob o jugo da “economia” e não há soberania, enquanto houver Memorando. Aceitem e calem-se, porque o país deve ser governado sem lei, nem Constituição, e submetam-se a tudo que a troika nos diz, porque os nossos soberanos são os “credores”. Isto, dizem-nos, é indiscutível, é a “realidade”, no dizer do primeiro-ministro, e a “realidade” não se discute.
Daqui resulta uma enorme perturbação, como se vê nos filmes de ficção científica quando o Sol resolve destruir-nos, ou surge do fundo do Pacífico o grande lagarto Godzilla, ou as plantas resolvem matar-nos. O ministro dos Negócios Estrangeiros acha normal descrever o seu país como um protectorado. Como eram Marrocos, a Manchúria, a Boémia e Morávia, a Basotulândia, ou as ilhas Tonga. Repito: eu posso dizê-lo, ele não. O facto de o ministro usar essa classificação (ele não é analista, é ministro, pelo que a sua voz é aceite pelas diplomacias estrangeiras como sendo a descrição legítima, não só de facto mas de jure, da situação portuguesa) não tem origem em nenhum acto do Parlamento, nenhuma rendição de tropas, nenhum Pétain a assinar a submissão a Hitler, em nome da “salvação nacional”. Se somos um protectorado, devemos organizar a resistência ou ser “colaboracionistas”?

O que é significativo é que a existência de um Memorando, do teor do que foi assinado há dois anos, é considerado pela nossa elite do poder como uma cedência total da soberania, e uma suspensão da democracia, comportando-se em consequência com a maior das naturalidades. Não é apenas uma medida de emergência financeira, pactuada com entidades de que Portugal faz parte (Portugal é membro do FMI, do BCE e da UE), mas uma rendição que põe em causa tudo, a começar pela independência e a acabar na democracia.

Na verdade, a questão mais de fundo é que a política definida no Memorando era para uma elite económica-financeira-política muito mais do que um plano de emergência financeira, era o programa salvífico para “nos comportarmos bem”, e para que “o país nunca mais seja o mesmo”. Era uma oportunidade única e foi defendida com tropas em batalha, como se fosse uma guerra. E era, era e é, uma guerra social.

Ou seja, o Memorando foi não só uma emergência, mas também uma salvação divina. Deu aos seus colaboracionistas um bordão político que ia muito para além do seu cumprimento, tornando-se o programa de regeneração nacional que poria em ordem os preguiçosos gastadores dos portugueses que “viviam acima das suas posses”, reduzindo-os punitivamente à sua condição de pobres de que nunca deveriam ter saído, ainda por cima com dinheiro emprestado e encostados ao Estado. Quem eram esses portugueses? Os trabalhadores, os funcionários, os pequenos empresários, os reformados, os pensionistas, os “de baixo”.

Os de cima pagavam uma taxa, uma portagem, mas reforçavam o seu mando e ficavam com um país de mão-de-obra barata, assente no “estabilizador” do desemprego e na perda quase total de direitos laborais. Asseguravam que Portugal continuaria a pagar as suas reparações de guerra aos “credores”, na guerra em que o país tinha ficado um protectorado e, colaborando no presente, apostavam no futuro. No seu futuro. Para eles, a “salvação nacional” é a manutenção da hierarquia social e o reforço da sua desigualdade. Sabem os de cima e sabem os de baixo.

Não foi a idiossincrasia histérica de Portas, nem a autocrítica de Gaspar que abriram esta crise, foram os efeitos da “fadiga fiscal”, da “usura social”, do “cansaço social”, da “erosão significativa no apoio da opinião pública”, da “profunda crise (…) social e política”, ou seja, de tudo o que se passa fora dos gabinetes, e que foi considerado sempre irrelevante, menor, dano colateral. Os jornalistas e comentadores preferem valorizar as tricas políticas, dizendo que o Governo só caiu ou só podia cair por dentro. Na verdade, não podem admitir que aquilo que estão sempre a desvalorizar possa ter este papel. Mas, se não fosse a agitação social, essas coisas como greves, manifestações, protestos, Grândolas, insultos e quadra-costas, etc., como é que se sabia que havia “erosão significativa no apoio da opinião pública”? É, as causas exógenas actuam pelas causas endógenas.

Gaspar percebeu bem que a inflexão que o Governo estava a conhecer, e que se manifestou nas suas dificuldades para encerrar a sétima avaliação, se devia à entrada em cena, com toda a sua glória, do eleitoralismo. Passos e Portas são homens de partido, vieram de todas as jotas para o poder, Passos da JCP, via JSD, Portas da JSD. São muito diferentes, mas em muita coisa são iguais como políticos profissionais no actual sistema partidário. Sabem melhor do que ninguém que nos partidos que lideram, há, principalmente no PSD, milhares de pessoas cujo emprego depende do partido, nas autarquias, nas administrações regionais, no Parlamento, nas zonas empresariais ligadas ao poder político, na administração central e no Governo. De motoristas a funcionários dos grupos parlamentares, deputados, administradores hospitalares, membros dos conselhos de supervisão das grandes empresas, escritórios de advogados e consultoras financeiras onde o conúbio com o poder político é altamente lucrativo. E essas pessoas percebem bem de mais que podem ver o seu pool de empregabilidade e de acesso ao poder reduzido para metade num desastre eleitoral. Também aqui a aceleração da crise no interior do Governo vem de fora, da mesma “usura social” que ninguém quer admitir, aqui pelos seus efeitos eleitorais no poder dos partidos.

É por isso que a crise política em que estamos mergulhados tem tudo a ver com a democracia, no bom e no mau sentido. Só pode ser resolvida pelo desbloqueamento da situação política e isso só se consegue com eleições e, por outro lado, essas eleições são vistas com pânico pelos partidos da coligação, o PSD e o CDS. O Presidente queria esse desbloqueamento, a troika quer esse desbloqueamento, ambos sabem que sem o PS não há solidez nem continuidade nas medidas que desejam.

O PS, por seu lado, podia ter assinado de cruz, e assinaria de cruz, se o tempo andasse para trás. Ora o tempo nunca pode andar para trás, porque a razão que levou à exclusão do PS da governabilidade foi a arrogância utópica do “troikismo” radical, que queria fazer uma revolução e não queria “consensos”. Ir agora buscar o PS quando tudo está a ruir viola o princípio de autoperservação que em Seguro é da mesma natureza de Passos Coelho. Tempo errado, senhor Presidente, se querem que Seguro assine o que for preciso coloquem-no no poder por eleições, inseguro e frágil, e nessa altura ele entende-se bem com um PSD humilhado pelas urnas. É tudo muito mau, mas é assim.

Mas a crise não vai passar e irá piorar se não houver eleições. Queira o Presidente ou não, se dá ao Governo a remodelação que ele deseja — ela própria a melhor garantia de que vai continuar a haver instabilidade governativa —, e os dois anos até 2015, reforça a arrogância que Passos Coelho já mostrou na crise ao afrontá-lo na Assembleia. O Presidente volta ao contexto do seu discurso de 25 de Abril, mas numa situação muito mais frágil. É só uma questão de tempo até toda a gente perguntar se era para isto, por que perdeu todos estes dias? É que o argumento dos mercados não serve só para aterrorizar os indígenas com as eleições, serve também para Portas, Passos e Cavaco.

Mas há uma razão ainda mais funda, estrutural, para que a crise não se vá embora e ela traduziu-se na grande omissão destes dias, no enorme silêncio absurdo e cego com que se discute tudo e três tostões como se as pessoas comuns fossem mera paisagem, os portugueses súbditos sem voz — as eleições não servem para nada, dizem-lhes — e colonizados pelos colaboradores dos “credores” de um protectorado consentido sem revolta. Se nada disto mudar, é só esperar pelos próximos episódios.

http://abrupto.blogspot.pt/2013/07/a-crise-por-detras-da-crise-andamos.html

domingo, fevereiro 24, 2013

José Pacheco Pereira - o nº que está tatuado nos braços dos prtugueses: o ñº de contribuinte

 
ABRUPTO
 
 
23.2.13


O NÚMERO QUE ESTÁ TATUADO NOS BRAÇOS DOS PORTUGUESES: 
O NÚMERO DO CONTRIBUINTE


Aqui há uns anos houve uma discussão sobre o número único a propósito do cartão do cidadão. É uma matéria pouco popular, tida como importando apenas aos intelectuais e aos políticos, que as pessoas comuns vêem com muita indiferença. Se lhes parece mais eficaz que cada um tenha um número único que sirva para o identificar num bilhete de identidade, para reconhecer uma assinatura, na Segurança Social, no fisco, numa ficha médica, num cartão de crédito ou de débito, qual é o problema? Se isso lhe poupa tempo e papéis, qual é a desvantagem? Se isso permitir perseguir um criminoso, que importa existir uma base de dados com o ADN das pessoas? E se as tecnologias o permitirem, como permitem, qual o mal em podermos vir a ter um chip como os cães, ou uma etiqueta electrónica como as crianças à nascença, por que razão é que nós não podemos ser numerados por um qualquer código de barras tatuado no braço?
 
A maioria das pessoas é indiferente ao abuso do Estado nestas matérias se daí vier uma aparente maior eficácia e menor burocracia. E os proponentes destas medidas, uns tecnocratas, outros fascinados pelos tecnocratas, outros ainda gente mais perigosa e securitária cujo ideal de sociedade perfeita é o 1984 de Orwell, todos manipulam a opinião contra os antiquados defensores dos "direitos cívicos", que continuam a achar que não se deve ter número único, chip, ou código de barras, em nome dessas coisas tão de "velhos do Restelo" como sejam as liberdades e o direito do indivíduo em ter uma reserva da sua vida íntima e privada, sem intromissão indevida do Estado onde ele não deve estar.


Infelizmente, insisto, a indiferença cívica é o pano de fundo de muitos abusos e a sociedade e o Estado que estamos a construir são os ideais para uma sociedade totalitária. Se uma nova polícia política aparecer - e para quem preza a liberdade esse risco existe sempre -, não precisa de fazer nenhuma lei nova, basta usar os recursos já disponíveis para obter toda a informação sobre um cidadão que queira perseguir. 


A promessa que nos é feita é de que os dados "não são cruzados". Mas esta afirmação não só não é verdadeira como não garante nada. Não impede um serviço de informações que queira abusar, de obter cumplicidades e "cruzar" dados, não impede uma polícia de fazer o mesmo (o episódio do acesso da PSP às filmagens não editadas sem ordem judicial é um exemplo de práticas costumeiras que só são escrutinadas depois de um acidente de percurso), não impede a utilização de software mais sofisticado para fazer buscas na Internet, muito para além da informação já vasta que se pode obter no Google. E se somarmos as câmaras de vigilância e outros meios cada vez mais generalizados de controlo dos cidadãos, mais nos preocupamos com as liberdades no mundo orwelliano em que já vivemos. 


E quanto ao "cruzamento de dados" a partir de um número único com informação indevida, tudo isso já existe e chama-se NIF, número de identificação fiscal, ou mais prosaicamente, "número de contribuinte". De há dez anos para cá, o Governo Sócrates e depois o Governo Passos Coelho transformaram o fisco no mais parecido que existe com uma polícia global, e uma polícia global é também política, e o número de contribuinte no verdadeiro número único dos portugueses, cujo acesso permite todos os cruzamentos de dados e uma violação sem limites da privacidade de cada cidadão. Se somarmos a isso o facto de o fisco ser a única área da lei em que a presunção da inocência não existe e o ónus da prova cai no cidadão, temos um retrato de um Estado de excepção dentro de um Estado que se pretende de direito.


E não preciso de estar a recitar a litania do combate à evasão fiscal, porque este caminho de abuso tem sido trilhado exactamente porque o combate à evasão fiscal tem sido ineficaz onde deveria ser. O furor do Estado volta-se contra as cabeleireiras, os mecânicos de automóveis e as tabernas, mas ignora os esquecimentos de declaração de milhões de euros, que só são declarados quando descobertos e não merecem uma palavra de condenação nem do ministro das Finanças, nem do Banco de Portugal, nem de ninguém dos indignados com a factura dos cafés. E é exactamente porque o combate à evasão fiscal falha, ou porque a economia está morta, ou porque os Monte Brancos são mais numerosos do que todas as montanhas dos Alpes, dos Andes, do Himalaia, que se assiste a uma espécie de desespero fiscal que leva o Estado (os governos) a entrar pela liberdade e individualidade dos cidadãos comuns de forma abusiva e totalitária. Digo totalitária, mais do que autoritária, porque a tentação utópica de "conhecer" e controlar a sociedade e os indivíduos através da monotorização de todas as transacções económicas é de facto resultado de mente como a do Big Brother


Num computador do fisco está toda a nossa vida já inventariada e cruzada através do número de contribuinte e dos poderes discricionários da Autoridade Tributária. Se de manhã ao pequeno-almoço não pedir factura do café, pode vir um fiscal e multar-me (não pode porque é ilegal, impossível de facto, e o Governo anda a mentir-nos a dizer que já o fez quando se devem contar pelos dedos da mão as contra-ordenações realizadas, se é que há alguma à data do anúncio), e para lavrar o "auto" terá de dizer onde estou, o que consumi sem factura e informar o Estado sobre se tomo chá, café ou chocolate, doces ou salgados, etc. Depois passo por uma livraria e na factura estão os livros que comprei e está o número de contribuinte. Hum! Este anda a ler livros subversivos, ou quer saber coisas sobre a Tabela de Mendeleev (a química é sempre perigosa), ou uma história sexualmente bizarra como a Lolita, (diga aí ao assessor do senhor ministro que um boato de pedofilia é sempre mortífero e o homem lê livros sobre isso), ou o Vox do Nicholson Baker (uma história de sexo por telefone que o procurador Starr queria usar como prova contra Clinton, pedindo à livraria que lhe confirmasse a compra do livro por Monica Lewinsky, o que a livraria recusou e bem). Depois foi almoçar, e pelo número de contribuinte verifico que almoça muitas vezes a dois, e dois é um número suspeito. Coloque lá no mapa o sítio do pequeno-almoço, mais a livraria, mais o restaurante, e as horas. E depois? A Via Verde cujo recibo tem o número de contribuinte mostra que entrou na portagem X e saiu na portagem Y. Interessante, o que é que ele foi fazer ao Entroncamento? E levantou dinheiro no Multibanco. Muito ou pouco? Bastante. Veja lá as facturas que ele pagou no Entroncamento. Aqui está, comprou uma mala de viagem. Então a factura? Não há, comprou nuns chineses, mas foi visto com a mala na câmara de vigilância de um banco. Anote aí para mandar uma inspecção do fisco e da ASAE aos chineses, imagine o que seria se nós não tivéssemos as imagens do banco! O que é que ele vai fazer com a mala? E por aí adiante.


A nossa indiferença colectiva face ao continuo abuso do Estado, que nada melhor nos dias de hoje revela do que o fisco, vai acabar por se pagar caro. Muitos tentaram fugir ao fisco? É verdade, muitos inclusive nunca pagaram impostos e vivem numa economia paralela, mas a sanha contra eles, que face ao fisco não tem direitos, nem defesa, nem advogados, contrasta com a complacência afrontosa com a fraude fiscal com os poderosos. É que também nisso, na perseguição aos pequenos, se revela o mundo totalitário de 1984 e do Triunfo dos Porcos, em que alguns são mais iguais do que outros. E pelo caminho, para garantir que os pequenos sejam apanhados na malha, pelo desespero de um fisco que quer sugar uma economia morta de recursos que ela não tem, é que se usa o número de contribuinte como número único, cruzado nos computadores das finanças, muito para além do que é necessário e equilibrado, numa ameaça às liberdades de cada português.

*

E, como em  Fahrenheit 451, de Ray Bradbury,  os perseguidos refugiam-se fora das cidades hiper-vigiadas, em locais de penumbra económica onde cada  um tem de decorar o livro da sua vida  patrimonial e financeira   antes que o Fisco o encontre, confisque e execute o portador .  Depois, sempre sem registos,  transmite o seu conteúdo a outros refugiados, que assim o preservam, até que, um dia, possuir tal livro escrito deixe de ser perigoso.

(Mário J. Heleno)

http://abrupto.blogspot.pt/2013/02/o-numero-que-esta-tatuado-nos-bracos.html 

quarta-feira, janeiro 23, 2013

José Pacheco Pereira - o "regresso aos mercados"


ABRUPTO

23.1.13



(Escrito em 14 de Janeiro de 2013, publicado a 17. E estava já no discurso para 2013, escrito ainda em 2012:  "Vamos fazer duas ou três emissões com sucesso em 2013, pequenas, a vários prazos, prudentes, e depois os alemães vão colocar-nos a mão por baixo e defender-nos dos mercados, porque com esse sucesso, já podemos ser apoiados pelo BCE. Foi o que nos prometeram, para podermos apresentar a saída da troika como um grande trunfo político." Há alturas em que não custa nada prever.)

“REGRESSAR AOS MERCADOS EM 2013”

 Vamos admitir que Portugal “regressa aos mercados” em 2013, cumprindo aquilo que já é o único objectivo da política governamental que os seus responsáveis pensam que é realisticamente atingível antes de eleições. O défice, a dívida, a recessão ou um crescimento larvar resultado apenas de que não se pode estar sempre a descer, o desemprego, a crise social em todo o seu esplendor, as falências, o aumento da pobreza, tudo isto parece estar para continuar e durar muito para além do actual ciclo eleitoral. Mas, com o abaixamento dos juros nos mercados, que favorecem Portugal, a Irlanda e mesmo a Grécia, pode ser possível fazer algumas pequenas emissões com sucesso para dar pretexto a que a mão protectora do BCE se estenda sobre Portugal. O que conta é a mão do BCE e não o sucesso das emissões, mas será sempre dito o contrário. É mau? Não é, é bom, mais vale isso do que nada. Mas vale muito menos do que o governo quer dar a entender. É verdadeiramente “voltar aos mercados”? Não é, porque sem o aval do BCE seria impossível. É sustentável? Não é de todo, mas o governo pensa apenas até 2015, porque o “que se lixem as eleições” foi dito em ingsoc e doublespeak, a linguagem orwelliana em que uma coisa significa exactamente o seu contrário 

É MAU? NÃO, É BOM, MAS…


Vamos de novo voltar à admissão principal de que Portugal “regressa aos mercados”. Significa isso que a troika se vai embora de vez? Errado, a troika fica cá mesmo sem cá estar. O Pacto Orçamental garante a continuidade da política da troika. “Bruxelas”, essa entidade mítica, passa a ter um direito de veto sobre os orçamentos, colocando o parlamento português sob tutela permanente naquela que foi a sua mais importante prerrogativa numa nação que era soberana. Os fundos comunitários já virão com a condição da obediência. E, depois, a mão benfazeja do BCE, e dos alemães que o controlam, só se estenderá se a política da troika se mantiver, e, em caso contrário, é que Portugal será mesmo “atirado” aos mercados, ou seja dura uma semana até pedir novo resgate. É verdade que a benevolência com Portugal se deve em grande parte ao facto de que para os decisores que contam nesta matéria, a começar por Angela Merkel, os actuais governantes tem-se esforçado em fazer o que lhes é pedido. Por isso Passos e Gaspar têm razão quando afirmam que Portugal, em particular a sua encarnação em Vítor Gaspar, tem aumentado a sua “credibilidade” junto dos mercados, porque estes sabem que enquanto a Alemanha e o BCE protegem Portugal, as emissões portuguesas, principalmente nos prazos mais curtos, são um bom investimento. 

PRESUMINDO QUE NÃO HÁ MILAGRES 


Mas, como Nossa Senhora, presume-se, não aparecerá em Wall Street, e muito menos em S. Bento, não há milagres que evitam que, mesmo com todas as protecções especiais, a “ida aos mercados”, se se der, seja artificial e acima de tudo muito frágil. Como, a continuar-se a mesma política da troika directamente na Grécia e em Portugal, e indirectamente na Espanha e na Itália, as crises são inevitáveis, quer no plano político, quer social, quer económico, como é que ficamos se de novo se der uma subida de juros em resposta a um agravamento da situação em qualquer país europeu? Ora esse agravamento é inevitável a prazo curto e a volatilidade dos mercados grande. Como é que faremos depois? Vamos de novo pedir o regresso da troika mais uma centena de milhar de milhões de euros de um novo resgate? Eu bem sei que para os responsáveis por esta política se isto acontecer depois de 2015, não é “culpa” deles, que fizeram sair nominalmente a troika de cá, mas de quem estiver no poder na altura. Mas a sua lavagem de mãos é como a de Sócrates em Paris: deixaram o menino no colo dos outros e foram-se à vida. 

 LÁ TEMOS QUE VOLTAR A UMA FRASE FEITA QUE TEM O INCONVENIENTE DE SER VERDADEIRA 


O que mais me espanta quando isto se discute e se saúda gloriosamente este “regresso” protegido e imperfeito aos mercados, é que quem lhe deita os foguetes antecipadamente tem mais que obrigação de saber que, no fundo, se trata apenas de ir pedir mais dinheiro, endividar-nos mais, e que é na aplicação desse dinheiro que está a chave. Ou seja, e cá vem a terrível frase feita, é a fragilidade estrutural da nossa economia, da nossa sociedade e da nossa política, que conta e isso não se resolve pedindo mais dinheiro, seja à troika seja aos mercados, mas sabendo como o aplicar bem, para depois o poder pagar. Superar estas fragilidades é que é a chave de qualquer regresso aos mercados que seja sustentável e sem crescimento não há nada para ninguém que seja sustentável. Sustentável, a palavra que mais entusiasma qualquer tecnocrata, mas com a qual eles têm uma mera relação platónica. 

ENTRA EM CENA A “IDEOLOGIA” 


Aqui as águas dividem-se e entra em cena o conjunto de ideias superficiais que passa por ser ideologia. A crença, porque não é mais do que uma crença, de que colocadas as pedras no sítio certo, défice quase zero, dívida a ser paga, salários em baixo e mão-de-obra barata, estado apenas para os muito pobres e vagamente regulador para tudo o resto, sociedade competitiva porque empobrecida, separação de águas entre os “preguiçosos” e os “empreendedores”, austeridade mais autoridade, se entra num boom económico imparável que resolverá tudo e mostrará a validade das receitas da troika. Há quem acredite nisso, alguns yuppies já fora de época que são muito activos nas redes sociais, e cujo pensamento cabe em 140 caracteres, mas há acima de tudo quem precise disto, quem tenha interesse nisto, mesmo que não acredite muito no seu desfecho. Se posso pagar muito menos em salários e despedir quem quiser, não me importo de ser neo-liberal durante meia semana e na outra, quando quero aceder a alguns dinheiros comunitários, sou keynesiano se for preciso. Mas enquanto os primeiros andam já à procura de inimigos externos, o “povo habituado a ser protegido” é o primeiro candidato e as “corporações”, o segundo; os pragmáticos esforçam-se por aproveitar o que podem, porque sabem aquela verdade que toda esta ilusão pretende esconder: isto não vai durar muito. Ou, dito de outra maneira mais precisa: se continuar a haver democracia isto não vai durar muito. E aproveitam enquanto podem, até porque o “Monte Branco” e as Caimões não estão assim tão longe.

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sábado, janeiro 12, 2013

José Paheco Pereira - as alternativas


ABRUPTO
12.1.13

ALTERNATIVAS 


 O pior discurso situacionista é o que está sempre a perguntar, quando se critica a governação, pelas alternativas. “Não apresentou alternativas” é a frase mágica que funciona como afirmação (a política do governo é a única possível), como negação (não há alternativas à política do governo) e como acusação (quem fala sem enunciar alternativas, que o poder reconheça como tal, não tem direito a falar). Nenhuma destas coisas é verdadeira, não só porque há alternativas, umas boas e outras más, mas nem por isso deixam de ser alternativas; como muita gente apresentou alternativas, mas foram e são recusadas de imediato, como a crítica, quando fundada, é ela mesmo um exercício que abre espaço a alternativas. 

ALTERNATIVAS E ESPAÇO POLÍTICO 


O principal problema das alternativas é haver espaço para existirem, espaço objectivo, espaço materializável, espaço realista, e o facto de o governo estar sempre a criar um esgotamento deste espaço, a diminui-lo, a inquina-lo, não é argumento a não ser contra o governo. Sem ser uma alternativa viável, como se vê pelos resultados, a acção do governo é destruidora das alternativas possíveis. É aliás mais eficaz em destruir essas alternativas, do que em se afirmar como possibilidade, e é por isso que aceitar acriticamente, como faz muita comunicação social, o discurso da “ausência de alternativas” é a forma mais acabada de situacionismo nos dias de hoje. Uma coisa é verdadeira: o facto de se governar de determinado modo diminui muito o campo das alternativas. Não é que não haja, ou não tenha havido alternativas, é que há também uma contínua destruição de alternativas, quer pelo governo, quer, em menor grau, pela oposição. Passos Coelho, Gaspar, Álvaro Santos Pereira, e António José Seguro têm vindo de forma consistente a diminuir o campo das alternativas ao afunilarem as possibilidades de acção. Um exemplo típico é a continuada destruição do próprio espaço político do governo, através do sistemático ignorar e maltratar da concertação social, um dos poucos campos de alargamento existentes, logo de legitimação, da acção política vinda do governo. O mesmo pode ser dito da contínua e sistemática política de ignorância do PS por parte do PSD e do CDS governamentais, que de há muito destruiu qualquer possibilidade de entendimentos alargados. 

 DESTRUIR AS ALTERNATIVAS


Outro factor de destruição de alternativas está na elaboração de legislação avulsa, mal feita, incompetente e muitas vezes ao lado dos problemas, quer para defender interesses, quer pura e simplesmente por ignorância. “Parece” que se defronta um problema, mas este fica na mesma ou pior. A maneira como o governo actuou com as fundações é um exemplo típico: vilipendiou a própria ideia de fundação, que continua a ser uma maneira válida da sociedade civil assumir funções em complemento do estado por genuína doação ao serviço do país de bens privados; deixou escapar aquilo que imediatamente devia acabar, as fundações criadas pelo estado destinadas a fazer desorçamentação; e deixou na mesma muitos dos abusos do estatuto de fundação que existiam e continuam a existir. O resultado é que tudo continua na mesma, mas é hoje mais difícil fazer uma política séria e alternativa de reforma das fundações. Parece que foi feita e não foi. 

NÃO FOI POR FALTA DE AVISOS 


O mesmo se pode repetir em muita outra legislação feita à pressa para a troika ver e que criou caos e confusão, nalguns casos gerou monstros, e “queimou” por algum tempo a possibilidade de reformas efectivas em áreas vitais para a modernização do estado e da economia. O mais grave é que muita gente que sabia do que falava avisou o governo, mas, com enorme jactância, foram ignorados, mesmo quando depois se bateu com a cabeça numa parede. Não foi por não serem avisados, foi porque desprezaram os avisos, mesmo quando depois se lamentam dos efeitos. A meia hora suplementar é um típico exemplo, a TSU outro, o agravamento “enorme” dos impostos outro, o IVA da restauração, outro, o aumento do desemprego, outro. Um caso mais que flagrante é a política europeia, onde o grande destruidor de alternativas é o próprio governo. Em todos estes casos, a acção do governo seca o terreno como uma floresta de eucaliptos, e depois vem dizer que o deserto mostra que… nada lá cresce. O problema é que as alternativas são sensíveis ao tempo – há coisas que se podiam fazer diferente em 2011, outras que já não se podem fazer agora, outras ainda que agora continuam a poder-se fazer, mas com muitos mais custos e menor margem da manobra. 

OS GRANDES DESTRUIDORES DE ALTERNATIVAS 


O grande destruidor das alternativas é o governo, mas o grande destruidor da alternativa ao governo é o PS de Seguro. Mas essa história fica para outra altura, porque remete para o terreno onde menos de facto há alternativas: a erosão por parte dos aparelhos partidários das elites governativas capazes de unir capacidade politica e eleitoral, saber e patriotismo. E hoje, o PS e o PSD, não produzem tal espécie. Aqui sim, há um grave problema de alternativa.

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segunda-feira, janeiro 07, 2013

José Pacheco Pereira - OS CONVIDADOS DA MESA DE NATAL DOS PORTUGUESES


ABRUPTO

OS CONVIDADOS DA MESA DE NATAL DOS PORTUGUESES
 
 
O discurso do "economês", que é hoje uma parte importante do discurso do poder, é uma espécie de marxismo pobre e rudimentar, que acredita a seu modo que a "infraestrutura" condiciona a "superestrutura", ou seja, que é a "economia" que determina a "política". Marx ainda falava da "acção recíproca" e, quando teve que defrontar a questão da arte e da literatura, ainda abriu caminho a uma autonomia complexa da "superestrutura", mas isso é muito complicado para mentes simples educadas por manuais escolares que estavam igualmente impregnados deste marxismo vulgar. Depois, com as modas mediáticas e os blogues, este marxismo vulgar virou uma vulgata liberal com muita facilidade. 


Vai tudo com muitas aspas, porque a "economia" é aqui sinónimo de meia dúzia de ideias simples sobre as empresas, mais preconceitos do que ideias, e a "política" é uma gestão técnica condicionada pela "economia" que gere rendimentos, subsídios, impostos, gastos e poupanças, e cujo valor é "libertar" a "economia" das suas baias na Constituição, nas leis, nos sindicatos, nos "direitos adquiridos", nas "ideias antiquadas", no "Portugal do passado" que precisa de ser desmantelado por um "projecto de futuro" com ajuda de muita "coragem" autoproclamada e do memorando salvífico da troika. Parece um programa de uma "jota", e é um programa de uma "jota": ideias feitas, retórica grandiloquente, palavras cheias de "projecto geracional", de "Portugal de futuro", de "amanhãs que cantam" em versão reaccionária. A isto soma-se alguma presunção adâmica e um milenarismo profético - "estamos a mudar Portugal" - que, se tudo não estivesse já tão gasto e mole, mataria de ridículo quem o enunciasse.


Não se pode pois esperar destas pessoas que saiam do conforto das suas abstracções escolares e juvenis, para o mundo que não cabe num qualquer "trabalho de casa". É por isso que o marxismo vulgar, que, sem saberem, lhes molda o pensamento, os faz falar da crise e da pobreza de forma meramente "infraestrutural": pobreza é fome, é não ter casa, é dormir na rua, é tudo aquilo que exige assistência. A pobreza para eles é apenas grande escassez material e remete para um universo assistencialista, com imagens de sopa dos pobres modernizadas, de IPSS que dão pão, roupa e cobertores, da benemerência severa e moralizadora do Estado apenas para os "mais pobres e necessitados". Tudo o resto é perdulário.


Saliente-se que esta forma de ver a pobreza não é muito diferente da que aparece nas reportagens televisivas, porque o universo de experiência e mentalidade de muitos políticos não difere do dos jornalistas. Andaram 30 anos sem ver um pobre, e agora que se fala deles procuram-no com a força do estereótipo. Um pobre, acham eles, é pouco mais do que um mendigo que não pede, mas que se pode perceber pelo modo, tom, face, roupa, que é pobre. Depois há todo um conjunto de reportagens sobre a "pobreza envergonhada", mas elas são casuísticas e por definição feitas com quem não "se envergonha" da sua pobreza. Na pobreza procuram o espectáculo mediático, nada mais.


Estes pobres do estereótipo aliam a sua pobreza a serem humildes e amochados: não protestam, agradecem. Os pobres que aparecem no imaginário discursivo dos políticos e de jornalistas nunca são os pobres perigosos, não vivem em Setúbal, nem no Cerco do Porto, porque nesses a condição de perigosos oculta a de pobres e estão incluídos numa categoria particular, a dos que não querem trabalhar, ou que são subsídio-dependentes, ou drogados e traficantes, mais as suas famílias, ou que são grupos criminosos oriundo de minorias de que não se pode falar, como os ciganos ou os negros dos subúrbios. Não é que não haja alguma verdade nestas caraterizações, mas elas são mais um ecrã de ocultação do que um conhecimento da realidade.


O marxismo vulgar e rudimentar desta visão da pobreza encontra-se na sua descrição assente apenas nos sinais de miséria evidente, acantonando a pobreza em segmentos da população que de há muito vivem na miséria, por causas anteriores à crise actual. Estes pobres, muitos e demais, mas mesmo assim poucos no balanço geral dos dias de hoje, são usados para ocultar os que estão a empobrecer, os "novos pobres", quer porque só agora é que são pobres, ou porque são pobres de maneira diferente. Uma imagem excessiva da pobreza, dos que nada têm, serve para evitar falar do empobrecimento, dos que, para o poder, têm apenas "problemas" a que "sobreviverão". O Governo cuida dos primeiros, os outros que "aguentem".
Ora, é o empobrecimento que caracteriza os tempos de hoje, é o empobrecimento o principal efeito social da crise, e, para o perceber, não serve a visão dos que já estão na miséria, até porque não é entre eles que a crise faz mais estragos. É que os que já estavam na pobreza e na miséria não são os mais atingidos pela crise, mas os que tinham dela escapada nas últimas décadas. O Governo e o discurso do poder usa os muito pobres e alguma protecção que têm tido face à crise como sinal de justiça social, ao mesmo tempo que ignora, fecha os olhos, não faz nada, e fustiga com o moralismo do "viver acima das suas posses" os que estão a empobrecer. Fá-lo de uma maneira perversa, colocando muito abaixo a fasquia dos que para o discurso governamental são "quase ricos", ou seja, um alvo de "ajustamento". 


O desdém pela "classe média" vem deste moralismo punitivo sobre os portugueses que melhoraram a sua condição desde o 25 de Abril, fossem operários ou filhos de operários, camponeses ou filhos de camponeses, comerciantes ou filhos de comerciantes, funcionários ou filhos de funcionários. Muitos fizeram uns cursos que não valem nada para serem doutores, mas pela primeira vez na esmagadora maioria das famílias portugueses havia estudantes universitários, muitos foram à República Dominicana ou a Cuba em programas de férias baratas, fazer patetices a crédito, muitos compraram sofás e plasmas e vários telemóveis, mas, tiremos o folclore, o kitsch do gosto, e o que fica é uma real melhoria da vida de muitos portugueses. 


O ataque à classe média é um remake do ódio à "burguesia", quer na versão esquerdista, quer na visão direitista, a que tinha, por exemplo, O Independente, que adorava a "velha riqueza" e escarnecia dos que tinham "peúgas brancas", ou, como Macário Correia, tinham pais pobres e isso "via-se". Como sempre acontece, os melhores intérpretes desta sanha são eles próprios típicos membros e representantes dos grupos que escarnecem, falsos senhoritos com pretensões monárquicas, pequeno-burgueses que acham que, como falam o telefone com Ricardo Salgado, estão noutro escalão social, gente que gostava mesmo de ir a Marbella, mas hoje faz de conta que nunca fez nada disso. Os caminhos do Senhor são de facto tortuosos.

A mensagem do "Pedro e da Laura" no Facebook, um casal que resolveu falar-nos no Natal com uma proximidade forçada que incomoda, é um exemplo típico deste marxismo vulgar da "infraestrutura". A pobreza é não ter "na Consoada os pratos que se habituaram", em vez de não ter emprego; é "não poderem dar aos filhos um simples presente", em vez de estarem deprimidos por terem que em Janeiro despedir os seus empregados amigos de sempre; é "não conseguiram ter a família toda à mesa", em vez de terem vergonha por não poderem pagar o que devem. 


A todos eles o "Pedro e a Laura" aconselham que não tenham "pesar", por estarem falidos, ou desempregados, ou endividados, ou terem perdido a casa, ou não terem dinheiro para a renda, ou terem que dizer ao filho que não há dinheiro para continuar a estudar, ou que já não podem mais ajudar os pais reformados, ou por estarem tão zangados com a vida que todos à volta pagam um preço elevado em violência verbal e não só. O "Pedro e a Laura" pedem-lhes para terem "orgulho" na sua nova condição de pobres sem futuro e destino, porque, ao tirarem os filhos da escola, ao perderem o emprego, ao caírem na condição de párias sociais, porque não podem pagar ao fisco, ao perderem todos os seus bens, estão a garantir "que os nossos filhos tenham no futuro um Natal melhor". 


Não, "Pedro e Laura", na mesa de Natal de muitos portugueses o que preocupa não é a falta de rabanadas, nem brinquedos, nem pessoas, mas sim o facto de lá estar sentado o medo, a indignidade, a vergonha e o desespero, coisas que não vêm em estatística nenhuma. E isso não garante futuro nenhum que valha a pena viver, nem aos pais, nem aos filhos, nem aos netos.

(Versão do Público de 29 de Dezembro de 2012.)

http://abrupto.blogspot.pt/2013/01/os-convidados-da-mesa-de-natal-dos.html