A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht
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sexta-feira, maio 02, 2014

Ser e não ser – Notas sobre a Revolução portuguesa de 74/75 no seu 40º aniversário


A democracia política em Portugal não foi uma outorga do poder. Foi uma conquista imposta ao poder. O mesmo quanto à democratização social, o direito à greve, a liberdade sindical, o salário mínimo, as férias pagas, a redução do horário do trabalho e os fundamentos de um sistema universal de segurança social. Artigo publicado no nº 5 da revista Vírus.
Foto Victor Valente/Direitos reservados.
  1. O movimento militar vitorioso a 25 de Abril de 1974 deu origem, desde o próprio dia, à explosão de um movimento revolucionário de massa, um verdadeiro abalo telúrico que subverteu a ordem estabelecida a todos os níveis da sociedade. Ele tentou criar e articular novas formas democráticas de organização e expressão da vontade popular em milhares de empresas, nos bairros populares das periferias das cidades, nos campos do sul, nas escolas, nos hospitais, nos órgãos locais e centrais do Estado e até nas Forças Armadas. Um movimento revolucionário de massas que no seu processo, nos seus distintos períodos ofensivos, ocupou fábricas, as terras do latifúndio, as casas de habitação devolutas, descobriu a autogestão e o controlo operário, impôs a nacionalização da banca e dos principais sectores estratégicos da economia, saneou patrões e administrações, criou Unidade Coletivas de Produção para a Reforma Agrária e geriu a vida de milhares de moradores pobres de Norte a Sul do país. Um movimento que no seu ímpeto impôs na rua, pela sua própria força e iniciativa, como conquistas suas, as liberdades públicas, a democratização política do Estado, a destruição do núcleo duro do aparelho repressivo do anterior regime e a perseguição dos seus responsáveis, o direito à greve, a liberdade sindical, as bases de uma nova justiça social. Um mundo voltado de pernas para o ar, os 19 meses em que o futura era agora, um curto e raro instante em que as mulheres e os homens comuns, o povo do trabalho e da exploração, sonhou poder tomar o destino nas suas próprias mãos. A isso se tem chamado, e a meu ver bem, a Revolução portuguesa de 1974/1975.
  2. Esta Revolução tem uma primeira e essencial particularidade a que normalmente se dá pouca atenção. É que ela é detonada por um golpe militar de características singulares na longa história dos golpes militares dos séculos XIX e XX em Portugal. Um movimento militar fruto do cansaço da guerra colonial que se arrastava há 13 anos, sem vitória possível e com graves derrotas à vista, travada contra os ventos da história, injusta e a prazo breve ruinosa. Num país impedido pela ditadura de se expressar e decidir livremente sobre este assunto, o descontentamento contra a guerra, numa dessas ironias em que a história é fértil, vai ser interpretado pelos jovens oficiais que a conduzem no terreno, os capitães e majores que comandavam as companhias, unidades matriciais da quadricula da ocupação militar colonial. Ou seja, não é um complot de generais, almirantes e coronéis (até ao fim fiéis ao regime e ao esforço de guerra, salvo raras exceções. É um movimento de oficiais intermédios a que, no processo, aderirão oficiais subalternos e milicianos. Uma conspiração que, no contexto de descontentamento popular crescente e no ambiente político e ideológico da época, rapidamente evolui dos objetivos corporativo-profissionais (que, aliás, o Governo satisfaz em Outubro de 1973) para um propósito político subversivo: de Setembro a Dezembro de 1973, dos plenários de oficiais de Évora ao de Óbidos, o movimento assumira claramente a consciência da necessidade de derrubar o regime. Sem democratização não haveria solução política para acabar com a guerra.
  3. A rápida extensão e politização da conspiração dos oficiais intermédios, o seu controlo ou neutralização da maioria das principais unidades operacionais dos três ramos das FA no país, criava, assim, uma situação não imediatamente percetível mas decisiva: privava drasticamente o Estado e a hierarquia de força militar, ou seja, transformava-a, na realidade, e ao seu juramento de obediência ao regime, numa patética e inútil “brigada do reumático”. Numa cabeça sem corpo e sem consciência de o não ter. Mas retirava esse poder operacional, também, aos raros generais dissidentes convencidos que tinham na mão um golpe militar. As primeiras horas do “25 de Abril” e do seu rescaldo foram uma amarga surpresa tanto para os comandantes hierárquicos como para o general Spínola e os oficiais que o seguiam.
  4. Disto decorre uma segunda característica central: a neutralização/anulação do papel tradicional das FA. A vitória do movimento dos oficiais intermédios, na realidade, rompe a cadeia hierárquica de comando das FA, subtrai-as ao controlo tradicional do Estado e das chefias por ele designadas, dessa forma paralisando a função das FA como órgão central da violência organizada do Estado. Nesse sentido, em rigor deixa de haver FA, sucedendo-lhe – o que era coisa bem distinta -, o MFA, que a breve trecho controlará o essencial do poder militar operacional mais relevante através do COPCON. Neste inicial período spinolista, até à sua derrota em 28 de Setembro de 1974, quando muito, há a luta desesperada dos restos da velha hierarquia (aliás largamente saneada na “noite dos generais” pelos oficiais do revoltosos, logo a 6 de Maio) para eliminar o MFA. A derrota do spinolismo consagra assim essa espécie de anulação das FA como espinha dorsal da violência do Estado.
  5. Convém acrescentar que essa circunstância tem ainda uma outra consequência relevante: a paralisação, pulverização e enfraquecimento geral do poder e autoridade do Estado. O que emerge do golpe militar é um poder poliédrico de competências conflituantes e debilitadas: uma Junta de Salvação Nacional sem poder real nas FA, um Governo provisório sem poderes sobre as FA e com as forças policiais e ministérios paralisados, um Conselho de Estado de competências largamente retóricas e, fora desta lógica institucional (ainda que representada no Conselho de Estado), a Coordenadora do Programa do MFA, única sede de poder efetivo, mas em forte disputa com a fação spinolista nas FA e nos demais órgãos. O velho poder caíra, já não ameaçava ninguém, e deixava um campo indefinido e vulnerável a uma drástica alteração da relação de forças no plano social e político.
  6. Finalmente, assunto que não desenvolverei aqui, o processo que se vem descrevendo tem um outro efeito: a cessação a curto prazo da guerra colonial nas três frentes e a formação, quer nos contingentes em África, quer na opinião pública portuguesa, de um forte movimento recusando novos embarques de tropas para as colónias, exigindo a litoralização do dispositivo militar e o regresso das tropas, pressionando pela imediata abertura de negociações com os movimentos de libertação nos termos por eles apresentados, ou, nas zonas de guerra, substituindo o combate pela confraternização com o “inimigo”. O exército colonial e a opinião pública recusavam-se a continuar a guerra. A descolonização irá ser negociada pelo MFA e o Governo Provisório, sem opinião pública, sem FA e sem apoio internacional para algo que não fosse a autodeterminação e a independência para os povos das colónias.
  7. A conjugação dos fatores acima indicados (o apagamento da função das FA como garante central da “ordem” e a deliquescência do poder do Estado) com a forte tensão política e social acumulada no período final do regime marcelista, origina a explosão revolucionária. O movimento de massas, largamente espontâneo, por virtude de um desses “mistérios” que caracterizam as situações revolucionárias maduras para a ação, teve, na própria manhã do golpe – o emblemático desenlace do confronto na Rua do Arsenal terá tido nisso o seu papel1 – a dupla intuição que podia e devia tomar a iniciativa. A intuição do momento e a intuição da força própria: “é agora, porque agora somos mais fortes do que eles”. A compreensão quase intuitiva de que a correlação de forças, naquele momento indesperdiçável, era favorável à iniciativa popular. E de espectador, o movimento de massas passa a actor principal. Antes do golpe militar, por si só, não obstante a sua força e radicalidade, não conseguiria derrubar o regime. Mas agora agarrava a oportunidade que esse particular movimento militar lhe facultava, entrando de rompante pelas “portas que Abril abriu”. O golpe, ao contrário do que pretendeu a tentativa de A. Cunhal o recuperar para a velha narrativa do “levantamento nacional”2, não era a expressão armada da “insurreição popular” (inicialmente quereria mesmo evitá-la…), não era a explosão revolucionária, todavia, pelas suas características particulares, contribuiria decisivamente para a desencadear.
  8. Na sua imparável dinâmica inicial, entre Maio e Setembro de 1974, o movimento popular revolucionário conquista na rua, nas fábricas, nos bairros populares, nas escolas, nas zonas rurais, muito do essencial: os fundamentos da democratização política, as liberdades fundamentais, a liquidação dos órgãos de repressão e censura política e das milícias fascistas, muito antes de tudo isso ter consagração legal. A democracia política em Portugal não foi uma outorga do poder. Foi uma conquista imposta ao poder. O mesmo quanto à democratização social, o direito à greve, a liberdade sindical, o salário mínimo, as férias pagas, a redução do horário do trabalho e os fundamentos de um sistema universal de segurança social. O movimento de massas fez tudo isso enfrentando com os seus órgãos de vontade popular eleitos em plenários de fábricas ou assembleias de moradores, a oposição sistemática da Junta de Salvação Nacional (JSN), do Governo Provisório (GP) e do PCP e da Intersindical nessa fase investidos em guardiões da “ordem democrática” contra o “esquerdismo irresponsável” (ao jeito da I República, chegaram a convocar manifestações contra as greves). No entanto, foi a força desse movimento que se mostrou decisiva na derrota da 1ª tentativa contra-revolucionária do spinolismo, em Setembro, de alguma forma impondo o MFA como força político-militar hegemónica no processo
  9. A partir de Outubro de 1974, a crise económica, o encerramento ou a pilhagem de muitas empresas pelos patrões em fuga, o disparar do desemprego, alteram e radicalizam os padrões de ação: os trabalhadores ocupam as empresas, e, a partir de Janeiro, as herdades dos agrários alentejanos e do Baixo Ribatejo, experimentam a autogestão ou exigem a intervenção do Estado ou do MFA, ensaiam várias formas de controlo operário e fazem-no através de Comissões de Trabalhadores ou de moradores por si eleitas. Manter as empresas a funcionar, derrotar a sabotagem económica, assegurar o emprego, cedo coloca a questão da nacionalização dos sectores estratégicos da economia (a começar pela banca). O propósito é conquistado no rescaldo da derrota da segunda tentativa contrarrevolucionária dos spinolistas, em 11 de Março de 1975. Aprova-se a nacionalização da banca (na prática dos grandes grupos financeiros) e legaliza-se a Reforma Agrária já em curso. O controlo operário está na ordem do dia. O processo revolucionário parecia dar um passo em frente. Na realidade, era o último.
  10. Efetivamente, o heteróclito campo da revolução iria sofrer, nos meses seguintes, três derrotas sucessivas e determinantes. A primeira, com as eleições de Abril de 1975 para a Assembleia Constituinte. Não são só os modestos resultados do PCP (12,5%), do MDP (4,1%) e da UDP (0,7%): é alteração do critério legitimador do poder em redefinição. Na realidade, com as eleições de Abril 1975 legitimidade eleitoral impõe-se definitivamente sobre a legitimidade revolucionária. E a verdade é que o PS vencera as eleições constituintes com 37,8% dos votos. A revolução não tivera nem a capacidade de as adiar/anular como na Rússia de 1917 (o que era difícil num país onde a oposição fizera das eleições livres a sua bandeira de sempre), nem a força de as ganhar (como o chavismo venezuelano dos nossos dias). É precisamente a partir daqui, desta crise de legitimidade que nem a retórica tutelar do I Pacto MFA/Partidos consegue minimizar, que se inicia a rotura dos sectores intermédios com o processo revolucionário, argumentando contra a hegemonia totalizante que nele tendia a assumir o papel do PCP. Rompe-se o Governo Provisório com a saída do PS e do PSD (unicidade sindical, caso República) e explicita-se a crescente e já indisfarçável desagregação do MFA. A extrema-direita terrorista passa à ação em todo o país contra as sedes e militantes de esquerda e a hierarquia católica distancia-se do PREC a pretexto da ocupação da Rádio Renascença. Inicia-se a mobilização de massa contra o processo revolucionário com os grandes comícios e manifestações convocados pelo PS a favor de uma democracia parlamentar e “europeia” e as concentrações de apoio ao episcopado no Norte e Centro do país. Na realidade, em Julho de 1975, com a formalização do “Grupo dos 9”, está constituído, tendo como eixo os “Nove” e o PS, um campo político-militar de oposição e alternativo ao dividido campo revolucionário que lhe vai disputar, palmo a palmo, as posições-chave no aparelho militar e no Governo, como primeiro passo para o derrotar no plano da mobilização social. Um campo apoiado abertamente pela direita política e dos interesses, por sectores maoistas que reificavam o perigo de um regime tutelado pelo PCP e, mais na sombra, pelas, sabemos hoje melhor, largas ramificações da extrema-direita fascista e terrorista do ELP/MDLP e grupos afins.
  11. Precisamente, a segunda derrota do campo da revolução socialista, em Agosto/Setembro de 1974, é o afastamento generalizado da “esquerda militar”, sobretudo da mais próxima de Vasco Gonçalves e do PCP, não só da liderança do Governo provisório como das fortes posições detidas no aparelho militar: é encerrada a v Divisão, Vasco Gonçalves é afastado de 1º Ministro e impedido de assumir o cargo de CEMGFA, Eurico Corvelo é demitido da chefia do RMN, os “gonçalvistas” são colocados em minoria no Conselho da Revolução perdendo 9 conselheiros, são readmitidos os conselheiros do “grupo dos 9”, o VI Governo é uma clara guinada à direita. Sobram Otelo e o COPCON, mas o cerco a este último núcleo do revolucionarismo militar começa de imediato. O que sai deste embate é uma substancial alteração da correlação de forças a nível político e militar: nas chefias e no Governo, instalam-se agora opositores ao curso revolucionário. Não era o fim, mas era o prefácio do fim
  12. Com o processo revolucionário em curso, deter as cúpulas do poder político e até das chefias militares não era resolver a situação. Havia um movimento de massas disposto a lutar pelo que tinha conquistado. A “contra ofensiva das lutas populares”, como lhe chamará o PCP, será forte e prolongada, mas representa já, não obstante a sua capacidade de mobilização entre Setembro e Novembro, um processo claramente defensivo contra o “avanço da reação” e a iminência de um golpe militar, na realidade, em preparação a partir do “grupo dos 9” e desde a” limpeza” desse Verão. Considerar essa radicalização terminal, quase desesperada e sem orientação clara, como o “momento insurrecional” ou o “assalto final” ao poder do Estado3, parece-me ser uma abordagem que nada tem a ver com a realidade. As importantes mobilizações desse período, de uma forma geral, não colocavam a questão da tomada do poder: reclamavam as posições perdidas (demissão de Corvacho, desativação do CICAP, silenciamento à bomba da Renascença, atentados bombistas…), denunciavam os planos político-militares, esses, sim, ofensivos, do campo contra-revolucionário, em suma, estavam à defesa e tentavam segurar o que tinham obtido. Isso não é incompatível, na ausência de um movimento de massas unificado e de uma direção política clara, com o deixar-se arrastar para a aventura golpista incipiente protagonizada pelos paraquedistas e as unidades do COPCON da Região Militar de Lisboa (RML) com o apoio de certos sectores sindicais afetos ao PCP e da militância da extrema-esquerda (ocupação das bases aéreas, de alguns pontos estratégicos da capital, da RTP e da EN). A 25 de Novembro, isso constituiu o pretexto há muito esperado para se desencadear o contra-golpe militar a sério. O que precisamente é revelador neste contexto é a surpreendente facilidade com que, praticamente sem resistência (excetuando o breve confronto na Polícia Militar), o Regimento dos Comandos subjugou, uma a uma, as unidades rebeldes. As escassas centenas de pessoas que as "defendiam" dispersaram e os seus chefes, disciplinadamente, se foram entregar ao Palácio de Belém. A terceira derrota era, agora, definitiva para o processo revolucionário.
  13. O novembrismo está para a contra-revolução, como o movimento militar de 25 de Abril estive para a revolução. Ele não era a contra-revolução, mas a alteração da correlação de forças que impôs, abriu o campo a que ela paulatina, progressiva e constitucionalmente se instalasse como política dominante da situação pós-revolucionária. Dissimulada e prudente ela entrava pelas portas que Novembro abrira. A 25 de Novembro, o golpe ordena a prisão de 118 militares, saneava da RTP e da EN 82 trabalhadores e demitia as administrações e direções da imprensa estatizada, substituídas por gente do PS e PSD ou militares afins. Ao contrário do que pretendiam a extrema direita e certos sectores da direita, não houve prisões massivas de “vermelhos”, anulação das liberdades públicas, dissolução de partidos ou encerramento de sindicatos ou das suas publicações, O PCP manteve-se no Governo Provisório e a Constituição de 1976 consagraria o objetivo do socialismo, a irreversibilidade das nacionalizações, a Reforma Agrária, o controlo operário e o papel das CT.
  14. Na realidade, o Grupo dos 9 negociara discretamente com o PCP uma contenção pactuadado processo revolucionário (o PCP travara no terreno os ativistas sindicais, os militantes civis e os militares arrastados para a aventura iniciada pelos paraquedistas) o que resultaria num processo obviamente distinto de uma clássica e violenta resposta contra-revolucionária. Um acordo que fazia a economia de uma contra-revolução sangrenta, mas em que os vencedores alteravam as regras do jogo em dois aspetos cruciais: impunham a consagração da legitimidade eleitoral sobre a legitimidade revolucionária e, sobretudo, liquidavam o MFA, repunham a hierarquia tradicional dos FA e, nesse sentido, anulavam a aliança essencial com esse braço armado de que dispusera o movimento popular no processo revolucionário. Regressavam as FA como espinha dorsal da violência legal do Estado. É certo que a revolução terminava. Mas deixava na democracia parlamentar que lhe sucedia a marca genética das suas conquistas políticas e sociais, dos direitos e liberdades que arrancara na luta revolucionária e cuja continuação impusera e defendia na nova situação política. É por isso que a equiparação esquemática que por vezes se faz entre a contra-revolução e a democracia parlamentar4 desconhece que, no caso português, ela é fruto do compromisso com um processo revolucionário que profundamente a marcou. Ao contrário do que afirma a direita política e historiográfica – em curiosa aproximação com o citado ponto de vista – a democracia política não existe em Portugal apesar da revolução, mas porque houve a revolução.
  15. Há, portanto, e um ser e um não ser na revolução portuguesa de 1974/75. Ela teve a força de subverter a ordem estabelecida atingindo os fundamentos do próprio sistema capitalista, mas não conseguiu segurar e, menos ainda, aprofundar essas aquisições num poder socialista durável. Foi travada a meio caminho e perdeu boa parte das suas conquistas mais avançadas na contrarrevolução mansa que se estabeleceu com a “normalização democrática”. Ou seja, foi derrotada pelas formidáveis reações que despertou tanto nacional como internacionalmente. O que conduz à necessidade de tentar analisar, ainda que sumariamente, algumas das suas principais dificuldades de fundo.
  16. Em primeiro lugar, a situação de “duplo poder” criada pelos milhares de órgãos de vontade popular eleitos nas empresas, nos bairros e nos campos do Sul pelos trabalhadores e moradores, nunca se constituiu numa organização nacional una e articulada. Muito menos, na sua dispersão, assumiu maioritariamente uma orientação política clara ou se colocou a questão da tomada do poder. Ao contrário do que acontece nos sovietes da Rússia de 1917 ou na revolução conselhista alemã de 1918/19, não há na revolução portuguesa um “poder popular” paralelo unificado, por isso se não colocou nunca, na prática, a questão de “todo o poder aos órgãos de vontade popular”. Até Julho de 1975 o PCP e a sua estrutura sindical opõem-se às CT e, antes e depois disso, cada grupo político da esquerda radical tem as “suas” CT e CM, as “suas” estruturas de articulação parcial, frequentemente guerreando-se entre si e com as que o PCP cria, finalmente, nesse Verão.
  17. Em segundo lugar, na revolução portuguesa, os órgãos de vontade popular não estão armados, novamente num contraste essencial com as citadas experiências soviética e conselhista. Eles são apoiados por um aliado externo a si próprios, um movimento militar, ou parte dele, ou até por algumas unidades dessa parte, à medida que a esquerda do MFA se vai dividindo e subdividindo. Não há operários, camponeses e soldados em armas como alguns sectores da esquerda radical reclamavam. Aliás, o PCP e as organizações radicais de esquerda mantiveram organizações nas FA mais para influenciar os oficiais do MFA do que para promover o insurrecionalismo dos soldados. Nestes termos, há um processo revolucionário dos trabalhadores externamente apoiado, quando foi, por um movimento de oficiais crescentemente dividido e debilitado. A vulnerabilidade era evidente: se e quando a reação ao processo revolucionário lograsse reenquadrar o MFA na cadeia de comando das FA, eliminando-o, o movimento de massas, mesmo se se mantivesse, perdia a sua indireta expressão armada e subversora, retomando a natureza de movimento reivindicativo sem capacidade de colocar a questão do poder. Passava à defesa. Foi precisamente isso o que aconteceu
  18. Em terceiro lugar, o campo político da revolução estava profundamente dividido sobre a natureza do poder a construir e os caminhos para lá chegar. E não houve, nem uma força claramente hegemónica susceptível de marginalizar as demais, nem a capacidade de encontrar uma plataforma mínima de ação comum (a própria FUP, Frente de Unidade Popular, constituída em 25 de Agosto de 1975 entre o PC e outros 7 grupos, já com propósitos claramente defensivos e sem parte dos maoistas, começa a desfazer-se 3 dias depois com a saída do PCP). A divergência central seria entre a estratégia cunhalista de progressiva ocupação do aparelho civil e militar do Estado, do MFA, das direções dos sindicatos e dos jornais/rádio/RTP, das autarquias, etc… quase sempre à margem de qualquer escrutínio democrático, de “cima para baixo”, e a orientação comum à esquerda radical de criar na luta de classes um “poder popular” capaz de partir ao assalto revolucionário do Estado. Mas mesmo no subcampo da extrema-esquerda, a guerra dos sectarismos em torno da “pureza” revolucionária era generalizada. E tudo isso, claro está, se reflete em cheio na coesão do MFA mais à esquerda, já em rotura com o “Grupo dos 9”.
  19. Na realidade, uma das singularidades da revolução portuguesa que o preconceito ideológico de boa parte da historiografia sobre este período tende a ocultar, é que a extrema-esquerda, mesmo pulverizada e em guerra interna, teve a força social e política suficiente para impedir a hegemonia político-ideológica do PCP no processo, sem, todavia, lograr impor um caminho alternativo. Este impasse no campo da revolução abriu uma guerra no seu seio onde a violência sectária, frequentemente, não foi só verbal, dando lugar a agressões, saneamentos, manipulações e até a repressões massivas na tentativa de eliminar politicamente o campo maoista mais hostil ao PCP5 Este conflituoso bloqueio afastou, naturalmente, aliados sociais instáveis ou desiludidos, evidenciou impotência na resposta, exprimiu desunião e fraqueza, isolou o campo em si mesmo, e nele se hão-de buscar algumas das razões que levam à incapacidade de resistir com sucesso a contra-ofensiva no Verão de 1975 e ao que se lhe seguiu.
  20. Concluindo, pode dizer-se com segurança que a revolução portuguesa não foi um assunto encerrado pelo novembrismo de 1975. A força telúrica que explodiu nesse “dia inicial inteiro e limpo” não bastou para vencer, mas permitiu-lhe, todavia, recuar lutando e condicionar fortemente o que se seguiu. É a partir da defesa, consolidação e alargamento desse património que ainda hoje se define a esquerda portuguesa.

Artigo publicado na revista Vírus nº 5
  • 1.
    Na manhã do dia 25 de Abril de 1974, na Rua do Arsenal, em Lisboa, tanques da Escola Prática de Cavalaria, de Santarém, aderente ao movimento militar, enfrentou os da Cavalaria 7, comandados pelo brigadeiro Junqueira dos Reis, fiel ao regime. Depois de várias tentativas de conversações, o brigadeiro dá ordem de fogo contra o capitão Salgueiro Maia que comandava a força do RC7. O alferes que chefiava a guarnição do tanque recusa-se a obedecer e recebe voz de prisão. O cabo que, em seguida, recebe ordem idêntica, também desobedece. Parte da força passa-se para os revoltosos e os outros voltam para trás. Tornou-se claro que o regime não tinha força militar que o defendesse.
  • 2.
    Cf. Álvaro Cunhal, A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril (a contra-revolução confessa-se), ed Avante, Lx, 1999, pag. 101 e segs
  • 3.
    Cf. Raquel Varela, História do Povo na Revolução Portuguesa (1974-1975), Bertrand editora, Lx, 2014, pag. 421 e segs e pags 496 a 498.
  • 4.
    Ibidem, pag. 482 e segs.
  • 5.
    A 28 de Maio de 1975, forças do COPCON, sob proposta dos oficiais mais próximos do PCP no MFA, ataca as sedes do movimento maoista MRPP na Região Militar de Lisboa e prende várias centenas de militantes e ativistas, encerrados nas cadeias de Caxias e Pinheiro da Cruz onde serão sujeitos a um tratamento brutal, denunciado pela opinião pública. Serão libertados progressivamente até 18 de Julho de 1975.
http://www.esquerda.net/artigo/ser-e-nao-ser-notas-sobre-revolucao-portuguesa-de-7475-no-seu-40o-aniversario/32360

sexta-feira, outubro 25, 2013

José Pacheco Pereira - O DESPREZO PELOS MANIFESTANTES DA CGTP

O DESPREZO PELOS MANIFESTANTES DA CGTP 

Uma coisa que mostra como quem está do lado do poder não percebe (ou melhor não quer perceber), o que está a acontecer em Portugal, é o modo como exibem um racismo social com os manifestantes da CGTP, tão patente nos comentários à saga da ponte. Pode não ser deliberado, mas sai-lhes do fundo, naturalmente. Os filhos dos comentadores e opinadores podem ir às manifestações dos “indignados”, que são aceitáveis, engraçadas e chiques, e que tem muita cultura e imaginação, mas nenhum irá às da CGTP. Eles “são sempre o mesmo”, ou “mais do mesmo”, eles são “pouco criativos” que insistem em fazer manifestações “que não adiantam nada”. Eles são “os feios, os porcos e os maus”. 

http://ephemerajpp.files.wordpress.com/2013/10/dsc_4706.jpg Os manifestantes da CGTP não são da classe social certa, não ambicionam ir tomar chá com Ricardo Salgado, ou ir comer aos restaurantes da moda, não são frequentáveis e, ainda pior, não se deixam frequentar. Têm, muitos deles, uma vida inteira de trabalho e de muitas dificuldades. Tem um curso, uma pós-graduação e um doutoramento em dificuldades. São velhos, um anátema nos nossos dias. Tiveram ou tem profissões sobre as quais os jornalistas da capital não sabem nada, foram corticeiros, mineiros, soldadores, torneiros, mecânicos, condutores de máquinas, pedreiros, ensacadores, motoristas, afinadores, estivadores, marinheiros, operários têxteis, ourives, estofadores, cortadores de carnes, empregados de mesa, auxiliares educativos, empregadas de limpeza, etc., etc. Foram e são cozinheiros e cozinheiras em cantinas, e nãochefs. E foram ou são, professores, funcionários públicos, enfermeiros, contabilistas. 

 Este desprezo social é chocante quando é feito por quem tem acesso ao espaço público e que trata os portugueses que se manifestam, - e, seja por que critério, são muitos, pelo menos muitos mais, muitíssimos mais dos que estariam dispostos a vir para rua pelo governo, – como uma “massa de manobra” do PCP, que merece uma espécie de enjoo distanciado, umas ironias de mau gosto e um gueto intelectual. Façam vocês o que fizerem, “não contam”. Vocês são umas centenas de milhares, vocês são “activistas” e por isso se vêem muito (quem não se vê nada são os do “outro lado”), mas “não contam” para nada. Existirem ou desaparecerem é a mesma coisa, nenhum dos “de cima” se pode ou deve preocupar convosco. Votam em partidos anacrónicos, têm hábitos plebeus, vão fazer campismo de férias, fazem excursões organizadas pelas autarquias, jogam a sueca, as mulheres passam-se pelo Tony Carreira e todos acham que tem direitos. Vejam lá, imaginem lá o abuso, acham que tem direitos… Eles são os maus portugueses, os que estão de fora do “arco governativo”, os que não percebem o "estado de emergência financeira", aqueles cujos "interesses" bloqueiam o nosso radioso empreendedorismo.

 Tudo isso é verdade, e tudo isso é mentira. Estes portugueses fora de moda e fora das modas, pelo menos tem o enorme mérito de sentirem um agudo sentimento de injustiça, eles que sabem mais da vida real, concreta, vivida do que todos os seus críticos juntos. Não é a eles que se pode dar lições de trabalho, nem de esbanjamento, nem de perseverança, nem de sacrifício. Pode-se discordar deles, mas merecem respeito. Pelo que foram, pelo que são e porque não se ficam.

terça-feira, julho 30, 2013

Portugal não é a Grécia. Nem o Egipto. Nem a Tunísia. Nem o Brasil. Nem a Turquia.




O governo de Passos Coelho e Portas – e Cavaco -, é provavelmente o governo que enfrentou mais contestação pública desde a constituição da Assembleia da República. Greves gerais, greves sectoriais, manifestações sindicais, manifestações de outros movimentos sociais, manifestações de partidos, concentrações, acções, protestos em plena A.R., esperas públicas, invasão de palestras, tem sido este o variado menu de protesto e de proposta de alternativas de Esquerda. Precisamos de o manter e de o alargar, quer na quantidade quer na qualidade.
A coisa só se dá com união, ponderação e determinação. Têm sido muitos a pedir a união das “esquerdas” – coloquem o PS dentro ou fora disto, conforme vos apeteça ideologicamente – e têm sido muitos a trabalhar para essa desunião, muitas das vezes têm sido os mesmos a fazer as duas coisas em paralelo. A bandeira da unidade é frágil, tem um pano enorme e um pau muito pesado, não se ergue com palavras, segura-se com actos.
A crítica costuma rondar sempre a mesma questão: a CGTP e os partidos da esquerda parlamentar não mantêm as pessoas na rua.
 A CGTP e a esquerda parlamentar têm os seus percursos, as suas ideias, as suas formas de fazer e os seus caminhos. Durante anos – décadas no caso da CGTP e do PCP – deram luta ao fascismo, ao “soarismo”, ao “cavaquismo” e agora ao liberalismo económico. Estas lutas não lhes dão autoridade moral em relação aos mais novos e menos experientes, dão-lhes apenas História e maior organização. Em todos esses anos deram passos em frente e passos atrás, reinventaram-se, bem umas vezes e mal outras. Quem está com eles em muitas das suas reivindicações e ideais mas não concorda com os seus planos de acção só tem uma coisa a fazer: meter as mãos à obra e criar o seu espaço.
É preciso coerência e consequência. Disse a Rita Veloso que os críticos das acções da CGTP e da esquerda parlamentar, «curiosamente, nas suas críticas incluem portentos como “deviam era ter convocado assim, ou mobilizado assado”. Ou seja, censuram, censuram, mas continuam à espera de que os outros tomem a iniciativa. Será porque sozinhos a sua capacidade de mobilização é quase nula? Deveriam talvez interrogar-se sobre as razões pelas quais os outros têm a capacidade de mobilização que têm…» Disse e disse bem.
As pessoas deviam, provavelmente, estar todos os dias na rua como o fazem e fizeram no Egipto, na Tunísia, no Brasil e na Turquia. E porque não ir buscar o exemplo de Ghandi? Ou o exemplo de Simon Bolívar? Ou o exemplo do homem que iventou a roda e que, à sua maneira, revolucionou o Mundo? Mas Portugal é Portugal, com as suas qualidades e defeitos, e com a sua rua muito própria e sui generis.
Também estes países são inimitáveis, pela sua cultura, pelos diferentes problemas vividos pelas suas populações, pela influência da religião nos aspectos políticos, pelos tipos de regime e de organização políticia e social dos seus estados e a diversidade infindável de partidos políticos. Especificando as conquistas que naqueles países foram alcançadas com os protestos diários, e de forma resumidíssima, vemos que:
- no Egipto e na Tunísia caíram duas ditaduras. Neste momento, no Egipto, as ruas já fizeram caír o suposto governo da mudança, substituído por um governo marcadamente liberal e pró-imperialista, que tem chacinado os apoiantes de Morsi. Na Tunísia continuam a assassinar-se líderes da oposição;
- na Turquia conservou-se um parque, mas Erdogan continua no poder e sem sinais de o abandonar;
- no Brasil, e porque no poder está um governo teoricamente mais inclinado à Esquerda e que tem como obrigação mínima ouvir as pessoas, o aumento dos transportes foi parado e algumas medidas exigidas pelas ruas podem vir a ser aplicadas. No entanto continuamos em stand-by, à espera de ver Dilma cumprir o pouco que prometeu.
Tivemos revoluções não concretizadas ou que tardam em concretizar-se, tivemos a manutenção de poderes altamente e violentamente criticados e temos um povo posto na expectativa e com uma rua constante mas cada vez menos ruidosa. Parecem-me pequenas conquistas para tão grandes e contínuos protestos, principalmente quando em nenhum deles se atingiu o mais importante: a melhoria inquestionável das condições de vida das suas populações e a implementação de regimes solidamente democráticos.
Se olharmos para Portugal e para a proporcionalidade das massas nos protestos podemos ficar contentes, porque, apesar de não em continuidade, num só dia, 2 de Março de 2013, mais de 20% da população nas ruas, façam as contas e comparem com os outros. Dezenas de outras manifestações tiveram das maiores participações das últimas décadas.
Se olharmos para a proporcionalidade do resultados obtidos, vemos que eles não são muito diferentes dos alcançados nos outros quatro países. Também a nossa rua teve conquistas, umas maiores que outras, mas não atingiu o objectivo mais importante: a melhoria inquestionável das condições de vida das suas populações e a implementação de um regime solidamente democrático.
Para juntar a esta equação temos o nosso país vizinho, a Espanha. Por nos ser mais próximo geográfica e politicamente, a comparação é mais simples. Uma enorme e longa acampada e as gigantescas manifestações semanais que se lhe seguiram tiveram um efeito: colocar no poder um governo ainda mais autoritário que o anterior. Neste momento, esse mesmo governo, demonstra ser um poço de corrupção que as ruas não estão a conseguir guilhotinar e que é surdo a todas as suas reivindicações.
Parece-me provado que não é a constância ou a inconstância da rua que faz ou não a Revolução, é a força que está por detrás dela, a força da sua união em prol de um objectivo comum e concreto, ou, em alternativa, a força das armas que a querem concretizar. Se viajarmos entre Faro e Bragança, percebemos que a “união nacional”, a nossa, a que quer a Revolução está longe de existir. Em muitos pontos do país há até quem suspire pela “união nacional”, mas a outra, a que quer o regresso ao passado.
O governo continua “alive and kicking”. No parlamento, hoje mesmo, conseguiram ver aprovadas uma série de medidas que pioram drasticamente os direitos laborais dos funcionários públicos e das suas famílias. Continua a ser preciso parar este governo. A única hipótese é dar-lhe luta, enfrentá-lo olhos nos olhos e onde lhe dói mais: na rua, no parlamento, nos locais de trabalho, ou seja, em todo o lado. E a CGTP, hoje, esteve à porta da A.R.
E foram a CGTP e também o Que Se Lixe a Troika os dois grupos que mais chamaram a rua e que a tentaram trazer para o nosso lado, cada um com a sua forma de actuar. A rua possível respondeu sempre e esteve e está com eles. Dê um passo convicto à frente quem acha que a estocada final na besta se dá de outra maneira. Convoquem a rua, tirem a limpo se ela está convosco.
André Albuquerque (roubado aqui)

Serena o ser

crónicas de ser e não ser num sereno ser

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segunda-feira, março 25, 2013

Raquel Varela - 25 de Abril: Revolução ou Transição?

 

25 de Abril: Revolução ou Transição?

Por ocasião do bicentenário da revolução francesa uma polémica marcou a historiografia mundial. No debate destacou-se François Furet que na obra Pensando a Revolução Francesa[1], caracterizava a revolução de 1789 como um «acidente histórico» e procurava separar o processo iniciado em 1789 das revoluções posteriores, sobretudo da russa de 1917. Do outro lado da controvérsia, Eric Hobsbawm publicou uma série de ensaios, reunidos na obra Ecos da Marselhesa[2], onde defendia que a posição de François Furet e de outros historiadores com esta visão resultava de pressões ideológicas (no sentido de falsa consciência) revisionistas e não de uma investigação renovada da revolução francesa: «(…) O revisionismo na história da Revolução Francesa é, simplesmente, um aspecto de um revisionismo muito maior sobre o processo do desenvolvimento ocidental – e mais tarde global – na era do capitalismo e em seu interior (…)»[3].
Uma polémica semelhante deu-se em Portugal quase 15 anos depois, também a propósito de um aniversário, o trigésimo da revolução portuguesa, em Abril de 2004. Embora já houvesse uma discussão em torno da caracterização da mudança de regime – Medeiros Ferreira, por exemplo, discute a questão no texto «25 de Abril, uma revolução?»[4] –, é a partir de 2004 que a questão se avoluma. No seguimento da escolha do cartaz oficial comemorativo para a celebração ter a inscrição «Abril é Evolução», uma polémica chegou às páginas dos jornais sobre o que tinha sido a revolução portuguesa. O debate rapidamente se centrou na questão sobre que deveria ser salientado em Portugal depois do fim da ditadura: a revolução ou a evolução do País no período pós-revolucionário.

António Costa Pinto, na altura comissário para as comemorações dos 30 anos do 25 de Abril, escreveu no calor da polémica que: «No panorama habitualmente morno das comemorações de datas históricas, algumas dimensões das celebrações dos 30 anos do 25 de Abril provocaram pelo menos um esboço de debate. O trogloditismo saudosista, com a excepção dos escassos defensores de uma história ao serviço da ‘revolução hoje e sempre’, teve escassa visibilidade. (…) Comemorar os 30 anos de evolução para a democracia e o desenvolvimento que se seguiu à Revolução de 1974 não agradou a uma parte da esquerda, o que é natural. Ver o centro-direita de cravos a comemorar o 25 de Abril foi-lhe desagradável»[5]. O historiador Fernando Rosas criticou o envolvimento de António Costa Pinto naquilo que considerou ser uma «pseudocientificidade»: «Abril não foi evolução porque as direitas portuguesas foram historicamente incapazes de realizar um processo de transição, isto é, de levar a cabo, a partir do próprio regime, um processo endógeno e sustentado de reformas»[6]. Outros cientistas sociais, como António Borges Coelho, Manuel Villaverde Cabral e Luís Salgado de Matos, envolveram-se no debate[7].
Hoje, o termo revolução convive, na academia, para designar exactamente o mesmo período, com termos como «transição», «processo de democratização» ou ainda «normalização democrática», «transição por ruptura». Cientistas sociais e historiadores de inspiração marxista que estudaram a revolução portuguesa, como Loren Goldner, Valério Arcary ou John Hammond, não questionam o termo revolução e contra-revolução, embora controvertam se se tratou de uma situação revolucionária ou pré-revolucionária e qual o grau de radicalização da mesma[8]. Mas mesmo fora do campo do marxismo muitas obras mantiveram o uso do conceito de revolução e contra-revolução, como é o caso dos estudos de Boaventura Sousa Santos e Medeiros Ferreira[9]; e/ou distinguiram claramente o período da revolução (1974-75) do período de transição para a democracia, que se inicia em 1976, como nas obras de João Medina e Fernando Rosas[10]. Outros autores, porém, usam indiferentemente os dois conceitos. Josep Sanchez Cervelló em «O Processo democrático português 1974-75»[11], Maria Inácia Rezola em Os Militares na Revolução de Abril. O Conselho da Revolução e a Transição para a Democracia em Portugal (1974-76)[12] e Tiago Moreira de Sá em Carlucci vs. Kissinger[13] usam indistintamente, para falar do mesmo período, o termo revolução e transição. É na área da ciência política que se destacam os trabalhos que tendem a usar exclusivamente o conceito de «transição» para a mudança de regime ocorrida em Portugal, tendo como influências determinantes as obras de Philippe Schmitter[14] e António Costa Pinto[15].
Na verdade, dificilmente se pode afirmar que em todos os casos os termos são usados tendo por base uma discussão teórica prévia e uma opção científica teórico-metodológica, desde logo porque o debate teórico entre a historiografia portuguesa é amiúde desprezado. Mas a indefinição terminológica tem consequências epistemológicas. A polémica é incontornável porque revela, mais do que um conceito, uma visão histórica sobre o que é uma revolução, os seus sujeitos, as suas consequências, os seus derrotados e vencedores.
Em primeiro lugar, o conceito de revolução tem um significado histórico que podemos e devemos debater, mas que de forma alguma se confunde com uma visão teleológica que associa uma mudança de regime revolucionária à consolidação de um regime democrático liberal. O período após a década de 70 do século XX viu surgir no Mundo uma vaga de novos regimes de democracia representativa que inspiraram um paradigma na ciência política, de tradição fortemente ligada ao pensamento liberal, como argumenta Ronald Chilcote[16], que é simultaneamente teleológico – as sociedades caminhariam inevitavelmente para um tipo de regime, a democracia liberal – e ideológico – na medida em que todas essas análises, como assinala Matheus Silva, ou propõem «o aprofundamento do modelo neoliberal como forma de solucionar os problemas da democracia contemporânea» ou procuram a «melhoria da democracia dentro do âmbito da democracia liberal actualmente existentes»[17].
Esta análise tem sido alvo de críticas mesmo em Espanha, o modelo deste paradigma, onde a mudança de regime se deu por negociação entre a classe dominante e as direcções das organizações operárias e de trabalhadores (PCE, PSOE, CCOO). Encarnación Lemus por exemplo, lembra que a democracia não era o desenlace obrigatório da luta política e social que ocorreu em Espanha em 1975: «Por um lado, em 1975, o socialismo como princípio ideológico e como sistema social não estava desautorizado; a via socialista estava a ser tentada em Portugal; por outro lado, ainda existia o Governo republicano no exílio, que reclamava a legalidade, e os partidos da oposição, tanto os socialistas como o PCE, eram republicanos»[18]. Carlos Taibo escreve que «boa parte da literatura sobre transições «não se limita a analisar as transições, mas agrega a estas um destino final desejado: a democracia»[19]. Com um efeito a jusante, que é o próprio estudo das democratizações estar inquinado por visões que desprezam as variáveis sociais, como lembra o cientista político Gabriel Vitullo: «A necessidade de resgatar e dar maior atenção às variáveis estritamente políticas – antes não tidas em conta – não pode autorizar que a democratização seja vista apenas como o resultado de uma eleição ou opção estratégica das elites dirigentes, omitindo o restante da sociedade, os sectores populares e a própria história, como fica manifesto na colectânea de Higley e Gunther (1992)[20], cujo objectivo primordial parece ser o de adoptar o compromisso das elites como pré-condição fundamental para a consolidação da democracia. Como criteriosamente argumenta Bunce (2000, p. 635)[21], ficar nesse único plano de análise implica dizer que são as elites e não a sociedade, a política e não a economia, os processos internos e não as influências internacionais, os que constituem os factores cruciais da democratização e que, portanto, agregaríamos, a democracia pode ser confeccionada ou desmontada de acordo com as opções ou decisões tomadas por um reduzido grupo de lideranças políticas»[22].
A democracia, nos termos em que se consolidou em Portugal, foi o resultado da luta de classes, da revolução e da contra-revolução, mas não foi o seu resultado inevitável, o que pode legitimamente ser deduzido dos estudos que analisam as transições para a democracia na Europa do Sul. Poder-se-á ponderar, no caso português, os factores que pendiam a favor da consolidação de Portugal como uma democracia liberal – geograficamente inserido na Europa Ocidental e portanto, no quadro da divisão de Ialta e Potsdam, na esfera de influência da NATO; peso das classes médias portuguesas; qualidade da direcção da contra-revolução, que repousou em grandes dirigentes políticos como Mário Soares, etc. – e também os factores que faziam perigar essa hipótese – a existência de uma revolução; a profunda crise económica e militar do País; o prestígio, ainda nesta altura, das sociedades onde a burguesia tinha sido expropriada e que representavam 2/3 da humanidade; a existência de países onde a contrario dos factores internacionais, a expropriação se deu, como Cuba; a «onda revolucionária» aberta com o Maio de 68 em França[23]. A ponderação de uns e outros factores – só citámos alguns – é parte do trabalho de historiador. Mas não autoriza argumentos contra-factuais. A democracia não era, não se pode afirmar que era, inevitável.
Mas um outro argumento desconceitua o termo «transição para a democracia» para designar o período revolucionário. A revolução é um período distinto do regime democrático que se seguiu à contra-revolução e portanto não é correcto inserir processos distintos numa única noção de «transição para a democracia». Houve de facto duas rupturas em Portugal entre 1974 e 1976: passou-se do regime fascista para um período revolucionário (que aliás se pode dividir em dois subtipos, um essencialmente democrático até 11 de Março de 1975 e outro de disputa objectivamente socialista a partir dessa data) e desse para outro democrático liberal, que se começa a formar a partir de Novembro de 1975. O novo nasce do velho. Mas é necessário recordar que a revolução portuguesa não foi o «acidente» que deu origem à democracia. Foi uma situação distinta do regime democrático liberal que se lhe seguiu – e cuja matriz genética é a própria revolução[24] – mas que assenta em dois pressupostos radicalmente distintos do período revolucionário: a democracia representativa e o respeito pela propriedade privada dos meios de produção.
O termo «transição por ruptura» também não elimina esta omissão, uma vez que houve duas rupturas muito bem delimitadas cronologicamente, em termos de direcção política, e em termos da organização das forças armadas em Portugal: o golpe militar de 25 de Abril de 1974, que iniciou a revolução, e o golpe militar de 25 de Novembro, que iniciou a contra-revolução e o regime democrático-liberal. A única fronteira que não é clara na mudança ocorrida em 25 de Novembro é precisamente no campo das lutas sociais (as ocupações de terras, por exemplo, prosseguiram para lá de Novembro de 1975). Uma vez que a contra-revolução também é ela própria um processo (que começa num golpe militar, mas a ele não se resume) e vai-se dar num curto e médio prazo (os bancos serão desnacionalizados uma década depois). Mas do ponto de vista de regime a mudança foi clara, com o fim da “indisciplina” nos quartéis logo a partir de 25 de Novembro 1975 e a realização de eleições legislativas em Abril de 1976.
Um outro argumento ainda lembra que o próprio conceito de revolução tem uma história. Carlos Taibo lembra, a propósito das mudanças de regime da Europa de Leste (1989), que os conceitos de revolução e de transição dificilmente são compatíveis[25]. Norberto Bobbio assinala que a terminologia revolução tem uma história e significação própria, que o cientista político italiano opõe a reforma e não a transição[26]. O conceito de revolução, inclusive, é para este politólogo menos controverso que a extensão da radicalidade da mudança numa revolução: «Afirmemos desde já que a dificuldade para emitir um juízo sobre a radicalidade da mudança é bem maior do que a dificuldade para definir o evento revolucionário em relação à natureza do movimento»[27] (Bobbio, 2000: 606).
O termo transição é, finalmente, desajustado porque a ele está associado um “como” – negociação entre “elites”, ou seja, acordo entre dirigentes das classes em conflito –, mas não está explicado “porquê”, o que em última análise faz repousar sobre a vontade individual dos dirigentes a razão de tal negociação.
Em resumo, verifica-se entre um sector da investigação histórica e política uma tendência para considerar a revolução portuguesa como uma doença que surge num momento em que já se estava a dar uma transição no País no sentido da democratização, ou seja, tende a dominar uma visão de que a revolução interrompeu, como que despropositadamente, uma transição/modernização que já estaria em curso e que permitiria assegurar a mudança e simultaneamente a estabilidade do Estado. O uso do conceito de “transição” não é, neste caso, uma escolha inconsciente, porque o próprio conceito ergue uma visão historiográfica, acarretando consigo uma visão teleológica das sociedades: o regime democrático como fim da história. É aliás esta mundivisão ideológica que justifica que algumas obras sobre a revolução portuguesa, que não se ancoram nas teorias da transitologia e têm por base um levantamento histórico rigoroso, não se tenham inibido de classificar a revolução como uma patologia, como é o caso da obra Portugal em Transe, de José Medeiros Ferreira[28] ou Os Dias Loucos do PREC, dos jornalistas José Pedro Castanheira e Adelino Gomes[29].
Parece-nos que este debate é assim incontornável e o seu aprofundamento, para o qual damos aqui apenas um contributo, é proveitoso e desejável. Porém, erguer uma historiografia competente, rigorosa e capaz de resistir às pressões do poder político implica muito mais do que o debate da terminologia. Implicará porventura, entre outros caminhos, a rejeição das teorias filosóficas pós-modernas que desvalorizam o labor da própria história em detrimento de disciplinas mais especulativas; e exigirá um retorno inovado à história social e à centralidade dos conflitos sociais para explicar o processo histórico. No caso do estudo da revolução portuguesa, este esforço levar-nos-á à centralidade das revoluções anticoloniais contra o império português e ao levantamento amplo dos conflitos operários e populares durante a revolução.
Raquel Varela é autora de História do PCP na Revolução dos Cravos (Bertrand, 2011) e Revolução ou Transição?. História e Memória da Revolução dos Cravos (Bertrand, 2012).
Artigo 8 – Este artigo faz parte de uma  série: 25 Artigos para 25 Dias, 2013. Publicado também em http://raquelcardeiravarela.wordpress.com/

Marx e O Capital: um debate esclarecedor

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25 de Março de 2013 - 15h13
 
Roberto Schwarz, João Quartim de Moraes, Sofia Manzano, Emir Sader e José Arthur Giannotti (Foto: Ana Yumi Kajiki)

Marx e O Capital: um debate esclarecedor


Na tarde da sexta-feira 22 de março de 2013, ocorreu o debate sobre os estudos d’O Capital no Brasil, no âmbito do seminário "Margem Esquerda — Marx e O Capital", com as presenças de Emir Sader (sociólogo), João Quartim de Moraes (filósofo), José Arthur Giannotti (filósofo) e Roberto Schwarz (crítico literário), mediado pela professora e pesquisadora Sofia Manzano.

Por Osvaldo Bertolino, do Portal Maurício Grabois
O evento, realizado pela Boitempo Editorial em parceria com o Sesc, com apoio da Fundação Maurício Grabois, Fundação Lauro Campos, Fundação Rosa Luxemburgo e FAU-USP, ocorreu no Sesc Pinheiros, na cidade de São Paulo.

Os debates começaram com a exposição de Roberto Schwarz. Ele disse que teve a sorte de participar de um momento de apreciação crítica do marxismo, referindo-se a um grupo que começou a estudar O Capital, a partir de 1958, na Faculdade de Filosofia. Segundo ele, o grupo deu vários professores, que escreveram livros de qualidade, fazendo com que em pouco tempo o ponto de vista marxista se tornasse uma presença forte na academia. Quando o seminário começou a se reunir, lembrou Roberto Schwarz, as figuras constantes eram José Arthur Giannotti, Fernando Novais, Paul Singer, Octavio Ianni, Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso. Ele elogiou o grande público presente no Sesc Pinheiros, interessado na obra de Marx.

O debate teve como ponto alto a polêmica entre José Arthur Giannotti e João Quartim de Moraes sobre a essência do pensamento de Karl Marx. A preocupação quanto à forma de ler Marx e por que estudar sua obra está sempre presente, na visão de Giannotti. Segundo ele, O Capital é fascinante; o leitor fica espantado ao ler, por exemplo, a parte sobre a acumulação de capital, também chamada de “acumulação primitiva”. São capítulos de uma grandeza de reconstrução histórica que espanta qualquer pessoa, enfatizou.
Vulgata marxista
No terceiro volume, disse Giannotti, o processo de alienação da mercadoria se explicita e o leitor fica extasiado diante da descrição de como o capital financeiro se desliga do movimento social e do próprio capital. Ele afirmou que teria de retomar o capítulo sobre o valor para se apoiar nele e desenvolver algumas ideais. Antes, ressalvou que era preciso não esquecer que O Capital é um livro inacabado, fechado por Friedrich Engels. E que está dentro da escrita de Marx uma ideia de história muito peculiar, adaptada do hegelianismo. Para Giannotti, houve uma simplificação dessa ideia pelo que ele chamou de “vulgata marxista” — uma alusão aos métodos de estudo e difusão da teoria de Marx com matriz na União Soviética.

Ele disse que para a “vulgata marxista” essa ideia partiria do comunismo primitivo, quando não haveria propriedade privada dos meios de produção, passaria por uma evolução que instalara a luta de classes e, finalmente, chegaria à configuração de uma contradição que seria superada por uma sociedade sem classes, terminando a pré-história para entrar na história de verdade. Trata-se, segundo Giannotti, de um esquema com uma parte conceitual hegeliana que está muito presente em vários momentos da escrita de Marx, um conceito formado por movimentos. Tanto que quando se quer pensar o conceito de Marx em Hegel, é bom pensar em gênero e espécie, exemplificou.

Segundo Giannotti, Marx não queria apenas escrever um livro teórico. Basta ler a última “Teses sobre Feuerbach” para saber que ele queria transformar o mundo, lembrou. E esse momento de transformação foi realizado de uma maneira muito extraordinária, disse Giannotti, porque ele inspirou vários movimentos sociais e a Revolução Russa. E a partir dela, em particular depois que a Revolução se fechou na Terceira Internacional, o marxismo-hegelianismo de Marx e Engels se tornou o pai da Revolução, quando o marxismo se transformou em “vulgata”.
Manuais marxistas
De acordo com Giannotti, a partir dali a maioria dos que estudavam Marx liam manuais. Tiraram da análise de Marx a explicação sobre como funcionam os modos de produção e em particular como é o modo de produção capitalista, algo “substancial”, substituido por uma teoria do conhecimento. E, avaliou, quando o marxismo se tornou na “vulgata marxista”, uma teoria do conhecimento, foi um momento obscuro da inteligência do século XX. Em termos físicos, por exemplo, disse Giannotti, falando na concepção, Engels também entrou na “besteira” de pensar na dialética da natureza, para a qual a noção de contradição seria possível.

No Brasil, Giannotti citou o caso de Caio Prado Júnior, segundo ele um historiador extraordinário, que adotou o método da “vulgata marxista”. Para ele, esse método impediu a percepção de Marx como um clássico, que entraria para o patrimônio da humanidade. Giannotti afirmou que Marx sempre foi lido das mais diferentes maneiras. Citou que na passagem do século XIX para o século XX existiram leituras de Marx grandemente diferenciadas, como na Alemanha, onde Karl Kautsky e Rosa Luxemburgo tinham interpretações bem diferentes. Citou também a União Soviética, onde havia a leitura de Vladimir Lênin e a de Nikolai Bukharin. Na Itália e na França igualmente haveria leituras díspares. Mas todas elas recorriam a Hegel, de uma maneira diferente.

Segundo Giannotti, essa recorrência a Hegel é claramente percebida para quem se detém no primeiro capítulo d’O Capital. Do ponto de vista da economia, afirmou, o primeiro capítulo se refere basicamente à teoria do valor-trabalho. Ele explicou que Marx faz uma objeção a David Ricardo, de suma importância: o economista britânico não entendia que o valor é uma substância, não simplesmente um sistema de relação entre valor de troca e valor de uso. Há uma coisa a mais. Obviamente, disse Giannotti, Marx estava recorrendo à concepção hegeliana de substância.
Marxismo e comunismo
João Quartim de Moraes disse que o marxismo entrou no Brasil na bagagem do comunismo. Esse fenômeno, essa inversão, não foi exclusivo, mas uma peculiaridade da história das lutas sociais brasileiras, afirmou. Segundo ele, o mesmo não ocorreu, por exemplo, nos vizinhos do Cone Sul. Na Argentina, para citar o caso mais nítido, enfatizou, o pensamento marxista havia desembarcado bem antes. Na última década do século XIX, informou Quartim de Moraes, os socialistas de lá fundaram o seu próprio partido. E um desses fundadores foi o primeiro tradutor d’O Capital para o espanhol.

Dessa peculiaridade brasileira de que o comunismo veio antes do marxismo, disse Quartim de Moraes, decorre um período para que a obra de Marx começasse a ser estudada de modo aprofundado, quando O Capital começou a ser lido com rigor teórico. Não só por Caio Prado Júnior, mas também por Nelson Werneck Sodré e, um pouco mais adiante, por Jocob Gorender e outros, lembrou. Eles se serviram do aparelho conceitual marxista em debates importantes sobre o programa revolucionário brasileiro, observou João Quartim de Moares.

Ele citou como exemplo o V Congresso do Partido Comunista do Brasil (PCB), quando houve debates profundos sobre a questão agrária, que levou a um conhecimento, à própria apropriação teórica do marxismo por parte de muitos dos intelectuais comunistas que dele participaram. Essa experiência teórica, afirmou Quartim de Moares, depois seria limitada e bloqueada com a repressão dos anos de chumbo.

Quando ela retornou para o debate dos movimentos sociais era um momento em que os comunistas eram forças secundárias; o principal partido de esquerda era o Partido dos Trabalhadores (PT) que, embora nunca o tenha rejeitado, o marxismo não estava em sua prioridade teórica. Segundo Quartim de Moares, esse interregno não exerceu nenhum efeito de atrofia na leitura d’O Capital. Ele disse que via na nova geração um interesse muito grande na obra de Marx e sua leitura se espalhou, assim como a cultura marxista.
Filosofia em Lênin
Quartim de Moares lembrou a presença de Marx no mundo acadêmico, mas enfatizou que ao mesmo tempo há uma injustificável ausência de Lênin. A firmeza com que o líder da Revolução Russa defendeu a posição materialista em filosofia, embora não fosse filósofo profissional, merecia ser ressaltada, afirmou. E sem a teoria do imperialismo não se compreende o século 20, simplesmente, disse Quartim de Moraes.

Para ele, colonialismo e imperialismo são termos chaves para a história do século 20 e começo do século 21. Por iniciativa de um nome que “não posso citar aqui”, destacou, o famoso dístico “Proletários do mundo inteiro uni-vos!” se transformou em “Proletários e povos coloniais do mundo inteiro uni-vos!”. Essa foi uma mudança fantástica, avaliou.

A União Soviética, apesar de vitoriosa em muitas questões, acabou destruída e os soviéticos derrotaram o nazismo, comentando que a versão dominante propagada por Hollywood dá conta da derrota da Alemanha nazista com o desembarque das tropas ocidentais na Normandia em 1944, uma falsificação da história. Naquele tempo, a União Soviética já havia destroçados os nazistas em Stalingrado e na batalha de Kursk, a maior de toda a história, informou. “De modo que com todos os defeitos da União Soviética, eu acho que foi um desastre para a humanidade o desastre que a destruiu”, concluiu.
Desequilíbrio do capitalismo
Emir Sader retomou o argumento de Quartim de Moraes para dizer que sua visão coincidia com o conceito de imperialismo teorizado por Lênin. A hegemonia americana e a modalidade exacerbada do capitalismo neoliberal constituem outro elemento essencial para entender o mundo de hoje, disse ele. Com o fim da Guerra Fria, afirmou, Marx foi assassinado novamente. Por uma quantidade enorme de razões, bem ou mal historicamente ele estava identificado com aquele socialismo que naufragou, disse Emir Sader. Difundiu-se que a partir dali o capitalismo não teria crise e estava identificado com dinamismo, eficácia, bem-estar etc.

Foi necessário chegar a crise de 2008 para que outra palavra fundamental identificada com Marx voltasse à baila, e que descreve o capitalismo como nenhuma outra: crise. Já no Manifesto do Partido Comunista Marx e Elgels fizeram o reconhecimento formidável da capacidade extraordinária do capitalismo de desenvolver as forças produtivas e demonstrou sua incapacidade de distribuir renda para absorver a produção, comentou. A crise do capitalismo é estrutural, porque há um desequilíbrio entre produção e consumo, como demonstrou Marx e Engels, e foi isso que voltou a acontecer com a crise atual.

Emir Sader comentou também que em geral o neoliberalismo dizia que a economia deixou de crescer pelas excessivas regulamentações. Todo ideário neoliberal pode ser unificado na defesa da desregulamentação, afirmou, com a ideia de que o capital voltaria a investir e a economia cresceria para beneficiar a todos. Mas esqueceram da tese de Marx de que o capital não foi feito para produzir, mas para acumular, destacou. Desregulamentar significa transferir uma quantidade gigantesca de capitais do setor produtivo para o setor especulativo, o setor financeiro, observou.
Crítica científica
Com esse dado, aparece a força extraordinária de Marx, sua explicação dos mecanismos clássicos de acumulação para as finanças, afirmou Sader. Para ele, o único aspecto permanente do marxismo é o método; sua readequação histórica é diferenciada, comentou, complementando que o horizonte de reflexão do marxismo hoje em dia é muito mais claro pela característica que assume o papel do Estado. Ele citou o caso da destruição do Estado de bem-estar social na Europa — a maior construção civilizatória da história dos “trinta anos gloriosos da Europa” —, que está sendo formalizada pela crise atual, destruindo direitos fundamentais.
Michael Heinrich
À noite, ocorreu a conferência “Os manuscritos de Karl Marx e Friedrich Engels”, com Michael Heinrich (MEGA, Alemanha), mediada por Augusto Buonicore, da Fundação Maurício Grabois.

Heinrich disse que Marx negava ter criado um sistema final, fechado. Ele sempre foi um cientista e deixou registrado no prefácio do primeiro volume d’O capital que cada crítica científica seria bem-vinda. Marx era um cientista aberto a críticas, afirmou. Michael Heinrich disse ainda que nos anos 1960 Marx foi redescoberto por ativistas e jovens estudantes fora dos partidos comunistas tradicionais, pelo menos da Europa ocidental e nos Estados Unidos.