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"e como que a experiência é a madre das cousas, por ela soubemos radicalmente a verdade" (Duarte Pacheco Pereira)
A Internacional
__ dementesim
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Do rio que tudo arrasta se diz que é violento
Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.
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Quem luta pelo comunismo
Deve saber lutar e não lutar,
Dizer a verdade e não dizer a verdade,
Prestar serviços e recusar serviços,
Ter fé e não ter fé,
Expor-se ao perigo e evitá-lo,
Ser reconhecido e não ser reconhecido.
Quem luta pelo comunismo
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Só tem uma verdade:
A de lutar pelo comunismo.
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Bertold Brecht
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sábado, dezembro 15, 2012
A situação social em Portugal
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segunda-feira, setembro 10, 2012
Portugal à luta com as classes sociais
Nas últimas décadas, o país cobriu-se de auto-estradas, rotundas e centros comerciais. O ensino superior massificou-se e compensa no salário ao fim do mês. As classes médias alargaram-se: mas houve mobilidade social ou melhorámos apenas as condições de vida? Leitores do PÚBLICO online voluntariaram-se para contar a sua experiência. Há quem ganhe hoje cinco vezes mais do que os pais, quem tenha visto as expectativas de subir um degrau serem defraudadas e quem, ao descer, tenha perdido a voz na família.
TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NA REVISTA 2 DE 5 DE AGOSTO DE 2012
Em casa não havia estantes com livros. Não havia férias em família. Não havia actividades extracurriculares. Não havia praticamente hipótese de fazer desporto. E durante muito tempo a única ligação com o mundo era um televisor “a preto e branco”, onde Sandra via documentários sobre vida selvagem, história, viagens. Ela pensava: “Quero conhecer aquilo que ali está.” Em casa, o incentivo para estudar era “mais pela negativa”: “Ou tiras boas notas, ou vais trabalhar”, diziam-lhe. Nunca soube o que era outra coisa: ter más notas, “perante o sacrifício que os pais faziam”, “era quase vergonhoso”. “Desde que me conheço como gente que ir trabalhar em vez de estudar não era sequer uma opção.”
A primeira vez que Sandra saiu de Portugal “a sério” tinha 21 anos. Hoje, aos 32, está em Inglaterra a trabalhar numa multinacional na área da engenharia eólica, uma das maiores do ramo. Escreve-nos a contar a sua história pedindo o anonimato, falamos depois ao telefone, e a imagem da mulher que, contra todas as expectativas, seguiu a sua determinação em aprender com os melhores e conhecer o mundo vai ficando mais nítida. A sua história, sabe-o, tem os ingredientes das histórias de sucesso. É o típico caso de quem venceu na vida. Ganha cinco vezes mais que os dois pais juntos.
Os pais são filhos de “pessoas pobres de ambiente rural” do interior Norte. Depois da morte do avô de Sandra, o pai foi criado por uma família em troca de trabalho. Tornou-se carpinteiro e não sabe ler (ela tem um livro de ficção publicado). A mãe saiu da escola quando terminou a 4.ª classe, para ajudar em casa. Foi costureira, casou-se “cedo de mais”, teve duas filhas.
Sandra, a mais nova, fez a universidade no Norte com o “dobro ou o triplo” do esforço que colegas “de background melhor”: nunca teve explicações, computador com Internet, alguém “próximo com quem discutir as opções de futuro”. “O meu percurso foi muito mais longo porque o ponto de partida é uma situação em que vivia em habitação social, com pais com muito pouca escolaridade, muito poucos recursos.”
Hoje diz que desde cedo os pais perceberam que ela “era diferente” e depositaram as esperanças de filha normal na irmã – professora, casada e com filhos, vive perto deles. “Em mim vêem a outra. Não me importo, é o que sou.”
Inês, de 36 anos, abre as portas de casa com um sorriso e uma sopa na mão, aquecida pelo marido antes de ele ir para o trabalho numa empresa gráfica. Arquitecta e designer de comunicação, mora no centro de Lisboa, num apartamento com luz, paredes da sala pintadas de azul-claro, desenhos da filha pendurados num armário, estantes de madeira com livros e dossiers, uma escada encostada para dar acesso às prateleiras mais altas.
A casa foi “emprestadada” pelos pais, que, diz a brincar, são de alguma forma os seus “cartões de crédito”. É a angústia com o que vai e não vai poder dar à sua filha de cinco anos que a motiva a participar na reportagem.
Conversamos numa mesa branca redonda, cadeiras a condizer. Há aparelhagem, computador, televisor de ecrã plano. Muitos dos gadgets foram coisas “recicladas” do pai, sublinha. No quarto da filha há imensas caixas coloridas como as paredes — e lá dentro, adivinha-se, brinquedos. Inês parece mais nova do que é quando se levanta para ir buscar um Nespresso à cozinha, divisão que dá para um quintal-jardim que será arranjado quando houver dinheiro.
Ao pôr o leite no frigorífico, diz-nos que agora bebe o de “marca branca”, metade do preço do que costumava comprar. É um dos cortes que fez para ajustar o orçamento. Na família há dois carros, mas ela anda a pensar que talvez faça sentido ter apenas um e começar a usar transportes públicos. Aos 21 anos, quando teve a carta, andava com uma “bomba”, um carro “com estofos de cabedal e todos os extras”.
Estudou em colégios. Viveu dois anos em África durante a adolescência. Tinha empregada todos os dias. Ficou em casa até aos 27 anos, fez o programa Erasmus em Roma durante um ano, com “condições excelentes”.Os avós paternos eram do ramo farmacêutico. Da parte da mãe, o avô era um empreendedor e a avó, apesar de ter saído da escola aos 14 anos por razões de saúde, era uma leitora e uma curiosa pelo mundo. O nível de vida dos pais foi melhorando, passando da classe média para a classe média-alta, descreve. “Os meus pais fizeram um esforço tremendo, apostas de separação de casal [a mãe ficou em Portugal, o pai saiu para trabalhar no estrangeiro] para poderem progredir e darem saltos mais rápidos. Estamos a falar daquilo que todos querem: casa, educação dos filhos e fundo de maneio.”
Agora, diz, voltou a descer um degrau. Não janta fora como dantes, não compra coisas de marca, não compra música, não vai ao cinema, não vai a centros comerciais, há coisas de que nem se aproxima.
Aprendeu a valorizar a educação acima de tudo e não tem espaço para ter um segundo filho, por enquanto, pois não poderia pagar duas mensalidades no colégio onde faz questão de ter a filha a estudar. “É uma escola onde se aprende a pensar por nós próprios, a participar e a não sermos mais um carneirinho.” O desinvestimento na educação da filha representaria o “descalabro completo”. Preferiu largar o atelier que partilhava com colegas e passar a trabalhar em casa. “Não é bom: falta companhia, falta discutir ideias, as pessoas isolam-se”. Hoje serve de plataforma entre os amigos para trocarem roupa, por exemplo. Nota, em relação aos seus “pares”, “uma dificuldade em estar à tona de água”. “O que me faz impressão é a falta de esperança.”
Não há estudos exaustivos recentes sobre mobilidade social que possam dizer com rigor se os percursos de subida e descida de Sandra e Inês são representativos de uma tendência X ou Y na sociedade portuguesa. Os sociólogos são unânimes: é um tema pouco estudado em Portugal. António Barreto diz mesmo que nunca foi analisado profunda e seriamente — a Fundação Francisco Manuel dos Santos, que dirige, está a preparar um longo estudo sobre o tema.
Há, no entanto, relatórios internacionais que, apesar de terem uma amostra pequena e não serem exaustivos sobre cada país, dão pistas. Um dos mais recentes é de 2010, foi feito pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), e coloca Portugal como tendo um dos piores índices de mobilidade entre gerações. Tomando a educação como factor determinante na mobilidade social, revela que o filho de alguém licenciado tem muito mais probabilidade de estar no topo da hierarquia em termos salariais. Em Portugal, a “penalização” para quem nasceu numa família com fracas habilitações é ainda mais alta no caso das mulheres.
Manuel Villaverde Cabral, autor de dois estudos sobre classes sociais — um de há 13 anos, outro, sobre as elites, de 2006 — caracteriza a mobilidade social portuguesa ascendente como normal até final do século passado porque está associada à modernização e à economia. Foi, porém, uma mobilidade de curto alcance: globalmente, houve mobilidade da classe trabalhadora para a média, mas não da média para as elites. Porém, “a estrutura socioeconómica e cultural é atrasada — temos muita gente no sector primário e secundário e um sector terciário sem qualidade. Portugal conheceu um processo de industrialização lento e um processo de terciarização menos lento, mas sem qualidade, pouco tecnológico”.
Mobilidade ascendente existiu, concorda Elísio Estanque, mas foi resultado de um processo estrutural de mudança na economia e na sociedade portuguesas, muito determinada pelo impacto das políticas públicas, do Estado social, da rápida concentração urbana e da forte terciarização da economia a partir dos anos 1960, e com mais força depois do 25 de Abril. Para existir mobilidade social, a passagem de uma classe social a outra teria que abranger mais do que uma geração, ressalva.Apesar de as suas opiniões se basearem em “intuições” porque dados não os tem, António Barreto acredita que até aos anos 1960-1970 a mobilidade social era “reduzidíssima”, depois houve um “enorme safanão” na sociedade portuguesa e “toda a gente quis ser melhor”. A questão é: “Será que sair do campo e ir para a cidade já é mobilidade social? Será que um pequeno camponês que deixa o campo para ir para a cidade ser assalariado está a subir na vida ou está a melhorar sem subir socialmente? Talvez viva melhor, tenha melhor casa, mais conforto, e, se ganha mais, tem mais bem-estar. Tem também mais acesso à cultura, à formação educativa, à formação tecnológica, à informação, e isto representa alguma mobilidade, mas não é mobilidade no sentido forte da palavra de se poder mudar de ambiente, de meio social e até de classe.”
Apesar disso, o paradoxo, acrescenta, é que quando se pergunta se Portugal é uma sociedade imóvel, Barreto responde que não. “Agora a posição relativa entre os ricos, os médios e os pobres, a sua vivência dentro de um meio social determinado, mantém-se relativamente mais estável.” Ou seja, as distâncias entre as diferentes classes mantêm-se.
Num artigo recente sobre classes e desigualdades, a investigadora do Observatório das Desigualdades (OD) Margarida Carvalho analisa a evolução de 1985 a 2009 em Portugal para concluir que as cinco classes sociais, definidas pela posição profissional, tiveram um aumento mensal de rendimento, mas que “a classe média está a ficar para trás” e com uma distância cada vez maior das mais ricas. De resto, o fosso entre os ricos e os pobres é agora maior, conclui. As classes dividiam-se assim em 2009, de acordo com dados de um inquérito do Gabinete de Estratégia e Planeamento às empresas em que se baseou: 4,1% de dirigentes e profissionais liberais (média mensal de salário quase 2300 euros), 17,8% de profissionais técnicos e de enquadramento (média mensal de cerca de 1600 euros), 42,3% de empregados executantes (média mensal de 777 euros), e 35,9% de operários e assalariados agrícolas (média mensal de 764 e 623 euros, respectivamente).
Esta distribuição de classes, que não é substancialmente diferente da que Villaverde Cabral analisou em 2006, mostra uma tendência “inversa” a sociedades com menos desigualdades como a sueca: tem quase o dobro na base do que no topo, quando na Suécia havia mais pessoas nas classes mais altas do que nas classes mais baixas. Idealmente, as classes seriam um cilindro, defende.
Lendo estes dados, Renato Miguel Carmo, sociólogo do OD, fala de uma mobilidade “parcial e inacabada”: a classe dos profissionais técnicos e de enquadramento engrossou (passou de 3,8% em 1985 para 17,8% em 2009) e qualificou-se, “mas essa mudança não inverteu os factores de persistência na sociedade portuguesa”, porque os empregados executantes e operários ainda representam uma larga fatia (76% no conjunto). É desqualificada, tem rendimentos baixos e 10% da população trabalhadora está em situação de pobreza, acima da média da União Europeia. “Ainda continuamos a ser uma sociedade dualista e isso reflecte-se ao nível das estruturas de poder porque a distância entre os mais e menos desfavorecidos ainda é muito grande. O que depois tem reflexos na prática da cidadania.”
Mas lembra que houve uma geração que conquistou mais habilitações literárias do que os pais e que isso se reflectiu nos rendimentos. Ainda que este processo esteja a desvanecer-se com a crise, atirando licenciados para o desemprego, estudar ainda compensa. De 1985 a 2009 a população trabalhadora com ensino superior passou de 3 para 15% e diminuiu o número dos que têm menos do que o ensino básico (de 9 para 1%). Quem é licenciado continua em grande vantagem: em 2009, ganhava três vezes mais do que quem não tinha a quarta classe, valor quase igual ao de 1985 (dados do OD).Porém, Barreto relativiza a questão da educação como ascensor social: “Nos anos 1960 o grande mito das oportunidades era a educação. Ao fim de 10 ou 20 anos, começou a ver-se que todos estavam mais educados, todos subiam, mas não havia passagem de umas camadas para outras: no final de contas, a educação melhora toda a gente, mas tem muito pouca influência na mudança da posição relativa.”
É verdade que a educação universal engrossou as classes médias, considera, só que o problema é que “as classes médias não têm definição”, são uma “enorme categoria, com enorme fluidez na análise”: “A classe média em Portugal são quantas pessoas: 70% da população? 50%? Ninguém sabe.”
Elísio Estanque, autor de A Classe Média: Ascensão e Declínio, reconhece a dificuldade em medir a classe média, mas defende que neste momento está em queda, consequência da degradação da situação económica das famílias, mas também das expectativas quanto ao futuro.
Fez a universidade — Cinema — com bolsa e viveu numa residência de estudantes. Cresceu numa vila no Alentejo, no Redondo, onde chegou a viver com a mãe em quartos alugados antes de terem casa própria. Não tinham carro e às vezes andavam à boleia, coisa que ela hoje diz que não faria com o seu filho. “Mas não éramos propriamente pobres”, lembra Aurora Ribeiro, de 27 anos, que vive nos Açores e hoje diz levar “uma vida burguesa, com uma boa casa, filho no colégio”, “respeitada”.
Sente que pertence à classe média e que subiu um degrau na escada social. A mãe, funcionária pública, fugiu de casa aos 18 anos, que é como quem diz fugiu de um projecto de vida “mais estandardizado”, em que era suposto estudar, casar, ter um emprego, estabilizar. A família materna, classifica, pertence à classe média “com pretensões a classe média-alta”.
Provavelmente pelo que lhe foi passado pela mãe e pelo estilo de vida de alguém que foi da cidade para o campo, uma mulher divorciada que não se inibia de sair à noite num ambiente em que isso só era permitido aos homens, Aurora Ribeiro sentiu-se socialmente diferente dos colegas na escola no Redondo. Em algumas coisas achava que pertencia a uma classe social mais baixa, noutras não. É o que os sociólogos chamam “inconsistência de estatuto social”: alguém com poder económico baixo pode ter poder cultural ou social elevado — ou vice-versa. Ela descreve a experiência assim: “A maior parte dos meus colegas não tinha interesse pelo que se passava noutros sítios, nos livros, nos jornais. Normalmente, associamos pobreza a ignorância e riqueza a conhecimento, mas isso está a mudar: há cada vez mais acesso à informação e isso depende menos das possibilidades económicas de cada um, depende mais do interesse e da educação.” No Redondo, não se identificava propriamente com os colegas das classes mais altas porque os interesses não eram os mesmos, porque os “colegas que tinham mais dinheiro interessavam-se mais por roupas, pelo aspecto, por demonstração de posses, e essas coisas.”
Quando chegou à Escola Superior de Teatro e Cinema, em Lisboa, as distinções sociais esbateram-se, “as pessoas identificavam-se mais pelos interesses”. A viver na Horta, de onde é originalmente o companheiro, arquitecto, sente-se hoje mais confortável financeira e socialmente. “Em geral, as pessoas levam-me mais a sério, têm mais respeito. É um pouco difícil explicar isto. Na vila onde vivíamos, uma mulher divorciada não era respeitada como uma mulher casada, havia uma visão castradora. Em relação ao respeito, sinto que o tratamento hoje é diferente por causa da classe social, mas também porque estou mais velha e me sinto mais segura. Claro que a minha incursão na ilha também foi facilitada pelo facto de a família do meu companheiro ser respeitada.”Vou com um trolley bordeux”, avisa-nos Eduardo Rodrigues, para o reconhecermos no café marcado em Lisboa. Com um pólo claro, sapatos de vela, vestido de maneira descontraída, apanhou um autocarro do aeroporto até ao centro da cidade. Há-de ir depois de camioneta até Setúbal, onde os pais têm um apartamento.
Advogado, de 37 anos, também vive numa ilha como Aurora, mas na Madeira, o que, de certa forma, não é muito diferente do sítio onde nasceu e cresceu, o Cercal. “O Alentejo também é uma ilha. Mas a mobilidade geográfica e social está mais limitada no Funchal: quem não tem poder económico, tem menos mobilidade e, por isso, menos oportunidades. O meio é pequeno e não é fácil ir a uma entrevista a Lisboa, por exemplo. Acaba por se viver num microcosmo e isso limita as expectativas e as aspirações”.
Fez o curso de Direito em Coimbra com o dinheiro que ganhava, depois de no 11.º ano ter desistido de estudar, ter aberto uma loja de produtos naturais no Cercal que geriu durante 16 anos, ter sido bancário e finalmente voltado à sala de aula à noite. Em 2007, foi fazer a segunda parte do estágio ao Funchal. Acabou por ficar e hoje tem um escritório com mais três colegas. Vem regularmente ao continente.
É o mais velho de três irmãos, ambos engenheiros. O pai tem a 4.ª classe, trabalhou na agricultura e em extracção de areias num terreno da família, foi treinador de futebol, presidente da direcção de bombeiros; a mãe foi professora no ensino básico, ambos estão reformados.
Classifica a família como pertencendo à classe média, “por uma questão de rendimentos”. “Nos anos 1980 o Alentejo não era o que é hoje em termos de desenvolvimento, não havia as oportunidades que há, os jovens não tinham acesso à informação”, lembra. Mas ele, devia andar pelos 12 anos, recebeu um computador, algo que os colegas não tinham — e isto vê como exemplo de que pertencia à classe média.
O incentivo para estudar não existia como hoje e nesse aspecto notava a diferença em relação aos colegas porque sempre foi motivado pela mãe, que “tinha a visão de que a escola era importante pelo interesse intelectual, para progredir e evoluir”.
Sabe que tem acesso a “outro tipo de coisas e de oportunidades” que os pais não tiveram, até porque “há os contactos com os clientes e amigos da área”. Que coisas? Mais conhecimento, mais informação, mais mobilidade geográfica.
Apesar de reconhecer avanços na escada social em relação à família, tem uma relação ambivalente com a ideia de “mobilidade social” ascendente. “Ter sido estudante de Coimbra fez com que tenha conhecido pessoas de toda a parte do país, da pessoa mais simples ao arquitecto e engenheiro. Quando se estuda em Coimbra há uma uniformização das classes sociais — a batina servia para isso mesmo, para apagar a diferenciação”.
A definição de classe social é aquilo a que António Barreto chama a resposta de “um milhão de libras”. Não há consenso, desde que a Sociologia foi fundada que é um dos temas clássicos. Em Portugal, diz Villaverde Cabral, a classe está associada à profissão, que, por sua vez, está ligada ao rendimento e a um padrão de comportamento, hoje atenuado. Porque muitos consideram que nas sociedades mais desenvolvidas as variáveis clássicas — profissão, rendimento, escolaridade — não chegam, um grande inquérito sobre as classes sociais na Grã-Bretanha (The Great British Class Survey, da BBC) usa três grandes categorias de análise: o capital económico, o capital social e o capital cultural.Depois há especificidades, como a portuguesa: segundo as conclusões de Villaverde Cabral, o patronato tem níveis de instrução muito baixo, por isso o filho de um patrão pode ter tirado um curso sem ter subido de classe, diz. As classes mais altas têm um nível de exercício de cidadania política mais baixo até do que o operariado da Suécia, sinal de que o nosso desenvolvimento cívico é fraco, acrescenta.
Por outro lado, será que podemos colocar o advogado do pequeno escritório na mesma classe social do advogado que gere 300 outros colegas? A pergunta é de António Barreto, que precisaria de saber também dados sobre a família: se os pais são proprietários, se têm bens, qual a sua formação cultural e profissional, por exemplo. E para saber se houve mobilidade, Barreto comparava estes dados com os dados da situação actual da pessoa: mudou? Onde mora? Foi progredindo profissionalmente ao longo da vida? Entrou numa experiência profissional mais complexa e trabalhou no estrangeiro?
Elísio Estanque associa a classe à redistribuição de recursos económicos e sociais, algo que pressupõe interdependências e que tem a ver com mecanismos de poder e de privilégio em que uns grupos têm acesso a eles e outros não — cada grupo tende a reforçar a sua posição ou então a lutar pela ascensão e as tensões geram-se pelos interesses contraditórios que defendem. A classe social está ligada à actividade profissional, sim, e, embora esteja relacionada, não é a mesma coisa que estatuto, algo que depende do prestígio e do reconhecimento que a sociedade atribui a determinadas categorias.
Mas há ainda outro factor que é o da autoclassificação, “importantíssimo”, “porque a vida em sociedade é composta também de representações e subjectividades”, diz Estanque: “O mundo em que vivo é o que está na minha cabeça, e é o facto de viver numa determinada cultura e país que me permite incorporar os códigos, os valores, os costumes e o significado dos comportamentos. A vida social tem muito de ficção e imaginação. E a posição subjectiva nunca deixa de ter em conta o grupo de referência.”
Em geral, as atitudes de quem desce e de quem sobe tendem a desenhar-se assim: quem sobe identifica-se e adopta padrões de vida da classe de destino, quem desce mantém a identificação com a posição social de origem. “Se se desce, pensa-se que se pode recuperar, que é uma situação transitória. Muitas vezes não se recupera, mas o investimento que se faz na educação e na qualificação dos filhos acaba por ajudar a que os seus próprios descendentes reponham o que eles perderam. Isso revela o potencial destas representações subjectivas. Quando o percurso é de ascensão, as pessoas tendem a ser mais optimistas, a valorizar o que está para a frente.”
Em Portugal, o facto de os processos de mudança terem sido muito rápidos fez com que as famílias fossem interclassistas, isto é, com que numa mesma família houvesse posições de status e situações socioprofissionais muito variadas — o que também contribuiu para atenuar os conflitos sociais, diz.
Estanque nota, porém, que as classes sociais se estão a recompor. Não por acaso, há já quem defenda que existe uma nova classe, o “precariado” — alusão ao trabalho precário —, sector indefinido, mas que é altamente qualificado, predominantemente jovem e tem uma familiaridade com o ciberactivismo. “Se a crise permanecer por muito tempo, é provável que o precariado se transforme num sujeito de acção colectiva que poderá introduzir rupturas e transformações sociais de novo tipo.” Quais, Elísio Estanque ainda não sabe.A precariedade pode, de resto, vir a ser factor de mobilidade descendente, diz Renato Carmo, até porque gera impacto na compressão dos salários, mas isso não significa automaticamente regressão na escada social, pois para isso teria que haver também desqualificação do trabalho.
Às vezes Graça Castro Ribeiro (não é familiar de Aurora), tradutora de inglês e francês, de 44 anos, duvida de que tenha feito a opção certa ao comprar, com empréstimo ao banco, o apartamento num prédio relativamente moderno em Arcozelo, perto de Vila Nova de Gaia. Saiu de casa dos pais já tarde, faz três anos, antes de a sua empresa de tradução ter fechado em 2010.
Por isso, quando entra na sala ampla, janelas ao fundo, passa-lhe pela cabeça que aquele espaço seja grande de mais para ela. A casa tem três divisões, duas casas de banho, uma cozinha de dimensão média, tudo impecavelmente arrumado. Na sala, os móveis, baixos, são de madeira clara e há, além do sofá, duas cadeiras de couro castanho. Não tem televisor.
Num armário encarnado, com portas de vidro, ela guarda memórias: um serviço de copos que era dos pais, um mealheiro que tem desde pequena e que representa o início da sua ascensão social — lembra-lhe a escola e a luta por um emprego melhor —, uma chávena em tons azuis e brancos que será asiática e que foi a peça mais cara que alguma vez comprou, 125 euros, um luxo que não poderá repetir, prevê. Há talheres, caixinhas, copos pequenos — e muitos livros em baixo, alguns de arte.
Graça Ribeiro passa os dias no escritório, e raramente cozinha (é a mãe que o faz para a ajudar). O gosto pela leitura veio do pai, que não fez mais que a escola primária, mas era um curioso pela leitura, sobretudo por autores portugueses — mais tarde foi influenciada pelo irmão mais velho, hoje quadro numa grande empresa portuguesa. Estudou durante seis meses em Inglaterra, ao abrigo do programa Erasmus, com ajuda dos pais e do irmão do meio, tornou-se tradutora e melhorou o seu inglês a um nível que não seria possível se tivesse ficado em Portugal.
O pai era filho de lavradores, a mãe de um carpinteiro. Ambos têm a 4.ª classe, apesar de o pai ser considerado patronato e classe média porque tinha uma carpintaria e empregados por sua conta — mas foi obrigado a fechar o “micronegócio” com a crise na construção civil. A sorte é que têm um quintal, terreno e saúde para o cultivar, diz.
Num tempo em que “tirar um curso era garantia de melhor emprego”, a família apostou na educação dos filhos, por vezes com alguns sacrifícios. Teoricamente, houve um salto na escada social. Na prática, “não é bem assim”. “Até determinado período da vida, a evolução socioeconómica dos meus pais foi mais constante do que está a ser a minha. A deles foi gradual, pequena, mas eu na melhor das hipóteses estagnei. Classe média? Só se for por estar entre ricos e pobres.”
Além da tradução, Graça foi gestora durante cerca de 14 anos. Em 2011, primeiro ano como trabalhadora independente, o seu rendimento foi de 8700 euros, perdendo 50% de salário em relação aos anos anteriores “com tudo o que isso acarreta”: a cultura e a ocupação de tempos livres foram cortadas ao “limite mínimo” e isso era “um contributo muito importante” na sua vida. “Prezava muito, e agora faz-me sentir mais desclassificada do que realmente sou”, diz com uma voz tranquila e pausada. Olhamos à volta e percebemos: há postais e cartazes de espectáculos e exposições a decorar um pouco toda a casa, há catálogos em várias estantes. “O trabalho não me realiza muito e tudo o que fazia fora era importante. Abdicar disso contribuiu para uma sensação de falhanço, de descida social.”Viagens, que nunca foram hábito na família e pelas quais ela própria começou a adquirir o gosto tarde, nem sonhando. Também não vai ter férias, à excepção de “uns quatro dias, incluindo fim-de-semana”. “A reviravolta” na sua vida, acha, transformou-a na “preocupação dos pais” e num “pequeno grande encargo”, criando-lhes “ansiedade”. “Sinto uma grande tristeza em relação aos meus pais, tenho a sensação de que falhei e os deixei ficar mal. Esperavam que tivesse emprego para a vida, não tanto que houvesse uma subida social, mas que mantivesse o nível de vida que eles proporcionaram.” Não está agora a ser o caso.
No Montijo, João é, para gente mais antiga da cidade, o filho de X ou o neto de Y. Com um curso de Direito, passagem por um escritório de advogados, pós-graduações e formações profissionais no currículo e uma carreira de mais de dez anos nos seguros, é filho único.
O pai era serralheiro mecânico até se reformar. A mãe sempre trabalhou na Câmara Municipal de Alcochete, fazendo progressão na carreira. É uma mulher na casa dos 60 anos, mas parece bem mais nova quando deixa João, de 37 anos, de carro, à porta de casa. Blazer de linho bege, camisa aos quadrados, sapatos de vela, jornais e revistas debaixo do braço, conduz-nos ao prédio moderno, parecido com os que fazem fileira atrás e à frente. A mulher, professora de Matemática e de Ciências no ensino básico, e a filha, de pouco mais de um ano, estão lá dentro a fazer a sesta. São 17h40, hora a que normalmente João chega.
Entramos pé ante pé no apartamento, chão e portas de madeira clara, móveis mais escuros, mas modernos: a sala está por conta da filha, com brinquedos arrumados em vários cantos, até na estante com livros. Sentamo-nos à mesa de jantar. À nossa frente um sofá e o móvel rectangular baixo que suporta o televisor de ecrã plano.
Fez o curso em universidades privadas, com propinas pagas pelos pais, ia de férias para o Algarve em casa alugada, primeiro em Portimão, depois em Armação de Pêra. De vez em quando ainda vai de fim-de-semana com eles: o último foi em Óbidos e ficaram no Bom Sucesso, um resort desenhado por arquitectos como “o [Gonçalo] Byrne”.
Lê desde muito novo, de Ernest Hemingway ou Somerset Maugham. Os pais sempre lhe “passaram a informação boa”, incentivando-o a estudar; discutia política com o avô, comunista. Quando entrou para o mercado de trabalho, “já não era líquido que uma licenciatura arranjasse emprego”. “Na altura, diziam: ‘Se não estudares, vais lavar escadas.’ Hoje faz-se um curso e vai lavar-se escadas na mesma.”
O curso foi importante do “ponto de vista intelectual” — “sempre que posso, faço formações e o primeiro requisito é se me vai dar satisfação mental”. Diz-se “viciado” em História e Política e ao longo da conversa vai citando autores e opinion makers e tem o hábito de recortar e digitalizar “as colunas de pensadores” dos jornais. “Faço a minha vida dignamente. Se me dissessem: ‘Gostavas de ganhar o dobro?’ Claro, em vez de ir de férias para o Algarve ia para a Florida.”
Não nota, confessa, grandes diferenças no nível de vida que hoje tem com o que que tinha quando vivia com os pais. Almoça fora todos os dias, quando lhe apetece compra presentes à filha, quando lhe apetece vai de fim-de-semana. Vem de uma família da classe média, classifica — e na classe média ficou. Mas, tendo “um percurso de empenho, seria expectável que chegasse a um patamar mais além”. Como materializaria isso? “Em termos de progressão, não tenho para onde ir acima. Passar a um quadro de chefia era expectável, mas há quadros técnicos e superiores a mais. A bitola para mim é a intelectual, é uma satisfação que não tenho em termos profissionais. Se tivesse uma crónica num jornal, aí teria chegado a um patamar que os meus pais não chegaram. Em termos de prestígio social, não tenho nem mais nem menos do que eles. Uns são socialmente designados por sra. e por sr., enquanto eu posso ser por dr., mas isso não se traduz em nada mais do que no mero aspecto de cortesia social.”Por razões óbvias, valoriza-se a ascensão social, desvaloriza-se a descida. O que é que a mudança de classe social traz exactamente em termos de perdas e ganhos? “Tempo”, responde Inês, que o perdeu. Tempo de descompressão, qualidade de vida. “Quando podemos comprar, compramos tempo: eu compro o tempo de uma empregada, de uma baby-sitter, de uma carrinha que me leva a filha à escola e me faz ganhar tempo para outras coisas. Sem tempo, perde-se capacidade de pensar.”
Graça Ribeiro, que vê a descida social como “a aprovação e a maneira com os outros olham para nós”, sente-se “diminuída”. Na família, “perdeu a voz” e a sensação do “direito a falar”. As relações mudaram. “A ideia de que me tenho que reduzir à minha insignificância, colocar-me no meu devido lugar faz com que deixe de ser um elemento tão participativo na família.”
Aurora nota que “quanto mais se sobe, mais regras existem”: “Mas isto é uma coisa que sinto mais emocionalmente do que em termos materiais.” E há também “pressões” nas classes mais altas porque, explica, “os pais pressionam um filho para ter um percurso que não o faça perder aquilo que já foi conquistado por eles”.
O percurso de alguém que está numa classe média-alta “tem regras, não é livre”, sendo que, ao mesmo tempo, o poder financeiro “também abre muitas oportunidades”. Por outro lado, vê o meio profissional onde se move — artístico — como “menos rígido” em termos de regras sociais: “As classes, embora existam, não estão tão bem definidas, e não dependem propriamente do poder, mas de um certo prestígio e certificação”.
Eduardo Rodrigues não fez um corte com o meio de onde veio e continua a ter os mesmos amigos. Porém, sente, às vezes, que “há um olhar diferente, não diria que de inveja”, “talvez seja das pessoas notarem diferença em mim”. Há temas de conversa que já não lhe interessam, e há outros, como “os problemas do mercado financeiro e a influência das agências de cotação nos ratings nas dívidas soberanas do Estado”, que não aborda com metade desses amigos de infância. Do que se sente mais distante? “Ir no fim-de-semana para Albufeira para o Aquasplash não me seduz. Em contraponto, se convidar um desses amigos para ir a um concerto de música clássica na Gulbenkian, ele talvez franza o nariz”.
Sandra tem uma resposta mais emocional, provavelmente por o seu salto ter sido o maior dos entrevistados. Está, de resto, literalmente entre dois mundos. Sente-se distante dos colegas, que acha que “nunca a iam entender” — “tinham amas para tomar conta deles”. Sente-se distante da família, com quem tem que fazer um esforço enorme para estabelecer pontes de conversa. Quando a pergunta é feita de forma directa — mas o que é que se perde? — Sandra faz um longo silêncio. “A família. Ela continua lá. Mas não somos tão próximos.”
Entre Sandra e os pais, houve uma “tremenda evolução”, mas desde que foi viver para Inglaterra que reavaliou a posição social a que julgava ter conseguido chegar. Em Portugal, achava que pertencia à classe média, e que teria hipóteses de subir ainda mais um degrau. Depois, reconsiderou, achando que afinal era da classe trabalhadora, como os pais. “Não sou nem serei classe média à escala de outros países da Europa ocidental. Vir para aqui mudou a minha mentalidade e fez-me perceber que não vejo as coisas como uma pessoa da classe média, que é também uma maneira de olhar o mundo. Eu própria tenho que combater isso. Durante estes anos fui imprimindo no meu subconsciente que o objectivo era ter um emprego certinho e estável, e, mesmo que não gostasse, punha a comida na mesa, isso é que interessava. Esse é o objectivo de alguém de classe trabalhadora. Não nos aventuramos porque simplesmente não podemos falhar. Não podemos falhar porque não temos uma rede que nos apoie.”Somos uma sociedade em que a classe social determina as oportunidades? Uma das conclusões a que Villaverde Cabral chegou num dos seus estudos foi que a sociedade portuguesa é “altamente estratificada porque é atrasada e é atrasada porque é estratificada”: “As elites controlam o país ao milímetro. Neste momento as posições de topo são para quem já lá está. Para que exista mobilidade é preciso que abram mais posições do que aquelas que seriam ocupadas pelos filhos de quem estava nas posições de topo. Se há 1000 médicos em Portugal, a probabilidade de que os próximos médicos sejam filhos de médicos é altíssima. Para que isso mude, é preciso que se criem mais posições de médicos: em vez das mil, umas cinco mil.”
“Se fosse filho de A ou B, se calhar estaria noutra posição”, afirma João. Aurora Ribeiro diz que “as oportunidades são criadas através de contactos e os contactos são feitos através das relações pessoais”. Portugal é um país de oligarquias, responde Sandra. Inês não tem dúvidas: “Somos o povo. Mas não podemos mudar as coisas? Podemos, podemos. Podemos sempre refilar e dizer que não aceitamos. Podemos votar, nem que seja em branco. A capacidade de mudar, de interpelar, parte de nós. ”
Nota: as pessoas que não têm apelido pediram reserva de identidade
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segunda-feira, setembro 06, 2010
PCP promete dar luta ao OE
José Sena Goulão/Lusa
O líder do PCP, Jerónimo de Sousa, falou 55 minutos sem interrupções na Festa do Avante
Festa do Avante: Discurso de encerramento de Jerónimo de sousa
PCP promete dar luta ao OE
Cinquenta e cinco minutos de discurso serviram a Jerónimo de Sousa ontem para prometer manter acesa a luta contra o plano de austeridade e avisar o Governo de que o PCP não troca a estabilidade governativa pela instabilidade social. Ou seja, o PS não deverá contar com os comunistas para viabilizar o Orçamento do Estado de 2011.
- 0h30 - Correio da Manhã 2010.09.06
Por:Cristina Rita com Lusa
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A promessa de "empenho militante" no apoio a Francisco Lopes, candidato presidencial do partido no encerramento da Festa do Avante, na Quinta da Atalaia, fechou a rentrée dos partidos.
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Ao primeiro-ministro ficou o aviso: "Dizia Sócrates ontem que quem não aprovar o seu orçamento está a fazer desestabilização governativa. Pois fique sabendo, nós não aceitamos que se promova a instabilidade social e as injustiças em nome da salvação da estabilidade governativa em Portugal", adiantou. Acusou ainda o PS e o PSD de terem uma aliança ou até um programa comum. "Afirmámos, no ano passado, nesta tribuna, que PS e PSD tinham uma agenda escondida. Não nos enganámos", declarou Jerónimo.
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Sobre as presidenciais, Jerónimo deixou uma palavra ao candidato do PCP: "O camarada Francisco Lopes vai contar com o nosso empenho militante." O responsável do PCP atacou ainda a Banca por pagar poucos impostos.
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Discurso de Jerónimo de Sousa
PCP recusa "instabilidade social" em nome da "estabilidade governativa" 
05.09.2010 - 20:21 Por Lusa
O secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa, avisou hoje o primeiro-ministro, José Sócrates, que os comunistas recusarão a "instabilidade social" em nome da "estabilidade governativa", a propósito do Orçamento de Estado para 2011.
Jerónimo de Sousa (Foto: Raquel Esperança/arquivo)
O líder comunista falava durante um discurso de quase uma hora no comício de encerramento da Festa do Avante, perante milhares de apoiantes, respondendo ao secretário-geral do PS, que no comício de sábado em Matosinhos desafiou quem pretende abrir uma crise política a pretexto do debate orçamental a assumir claramente essa posição.
A preparação do próximo orçamento motivou "uma espécie de jogos florais de Verão entre PS e PSD", com os dois partidos a "encenarem uma crise política, para melhor camuflar as suas conivências e acordos para manter aberto o caminho do rotativismo", considerou ainda o líder comunista.
Jerónimo de Sousa pediu aos militantes comunistas para não terem ilusões.
"Se com o PS nada mudou na vida difícil dos portugueses, ao contrário, tudo piorou, com o PSD, com ou sem o CDS, nada mudaria e tudo continuaria a agravar-se. É a política ao serviço dos grandes interesses que continua, é a política das injustiças sociais e da concentração da riqueza que permanece", sustentou.
Sobre o Orçamento do Estado (OE) para o próximo ano, Jerónimo de Sousa afirmou que é marcado "pela suicida e inaceitável decisão da antecipação do calendário da redução do défice" e que vai criar "mais gravosas medidas de austeridade e novos cortes nos direitos sociais".
O líder do PCP anunciou que os comunistas vão voltar a propor, no âmbito da discussão para o próximo OE, a revogação da taxação adicional do IRS, "que constitui um verdadeiro roubo nos salários"; o aumento do salário nacional para 600 euros até 2013; um aumento salarial para os trabalhadores da administração pública; e o alargamento do acesso ao subsídio de desemprego.
"Apresentaremos as iniciativas urgentes para que os cortes no acesso às prestações sociais não se concretizem da forma que o Governo pretende", anunciou Jerónimo de Sousa, prometendo ainda retomar as propostas comunistas em matéria fiscal, nomeadamente um novo imposto sobre as transações em bolsa e transferências financeiras para os paraísos fiscais, o fim dos benefícios fiscais no offshore da Madeira, entre outras.
"Eles dizem que não há dinheiro, camaradas. Há dinheiro, é preciso é ir buscá-lo onde há e não aos bolsos de quem já tem pouco ou não tem nada", sublinhou.
A preparação do próximo orçamento motivou "uma espécie de jogos florais de Verão entre PS e PSD", com os dois partidos a "encenarem uma crise política, para melhor camuflar as suas conivências e acordos para manter aberto o caminho do rotativismo", considerou ainda o líder comunista.
Jerónimo de Sousa pediu aos militantes comunistas para não terem ilusões.
"Se com o PS nada mudou na vida difícil dos portugueses, ao contrário, tudo piorou, com o PSD, com ou sem o CDS, nada mudaria e tudo continuaria a agravar-se. É a política ao serviço dos grandes interesses que continua, é a política das injustiças sociais e da concentração da riqueza que permanece", sustentou.
Sobre o Orçamento do Estado (OE) para o próximo ano, Jerónimo de Sousa afirmou que é marcado "pela suicida e inaceitável decisão da antecipação do calendário da redução do défice" e que vai criar "mais gravosas medidas de austeridade e novos cortes nos direitos sociais".
O líder do PCP anunciou que os comunistas vão voltar a propor, no âmbito da discussão para o próximo OE, a revogação da taxação adicional do IRS, "que constitui um verdadeiro roubo nos salários"; o aumento do salário nacional para 600 euros até 2013; um aumento salarial para os trabalhadores da administração pública; e o alargamento do acesso ao subsídio de desemprego.
"Apresentaremos as iniciativas urgentes para que os cortes no acesso às prestações sociais não se concretizem da forma que o Governo pretende", anunciou Jerónimo de Sousa, prometendo ainda retomar as propostas comunistas em matéria fiscal, nomeadamente um novo imposto sobre as transações em bolsa e transferências financeiras para os paraísos fiscais, o fim dos benefícios fiscais no offshore da Madeira, entre outras.
"Eles dizem que não há dinheiro, camaradas. Há dinheiro, é preciso é ir buscá-lo onde há e não aos bolsos de quem já tem pouco ou não tem nada", sublinhou.
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Avante!
"Só aqui consigo sentar-me com pessoas 30 anos mais velhas como se fôssemos iguais" 
05.09.2010 - 10:09 Por Cláudia Sobral
José Godinho não é militante. Ao jornal que traz debaixo do braço já roubou uma folha para improvisar um chapéu como um barquinho de papel não acabado. Está muito sol no segundo dia da Festa do Avante!. Vem todos os anos? "Desde sempre." Pede um caldo de carne e uma sangria. "Posso comer aqui ao balcão?", pergunta. "Claro."
Foi um dia de calor em que a música substituiu a política no palco principal (Carlos Lopes (arquivo))
Aos 72 anos, já nem se recorda se terá falhado alguma festa. Terão sido apenas uma ou duas, assegura. Porque a festa "é um centro de convívio, onde há muitas actividades para além da música. Como é só uma vez por ano, faço questão de vir." Provavelmente ter-se-á cruzado algumas vezes por ali com José Saramago, lembrado no primeiro Avante! depois da sua morte, numa das paredes do pavilhão central. Como Nobel, como camarada, como uma das pessoas que ajudaram a montar as tendas da festa nos primeiros anos.
Ainda é início de tarde mas o recinto já está cheio. Os concertos começaram às 14h00. E ainda há muita gente lá fora. Há um parque de campismo com lugares limitados, mas há quem vá plantando a sua tenda onde der. Nuno Pinto, de 20 anos, veio de Viana do Castelo. Calções verdes, tronco nu - muito calor. "Estamos a fazer campismo selvagem ali junto ao rio." O rio vê-se para lá do palco principal, a que chamaram 25 de Abril. "É o tirar as boinas e as T-shirts do Che Guevara da gaveta." Em cada canto se encontra alguém de boina e se ouve um "então, camarada?".
Há outros palcos, mesmo para além dos secundários. Em cada tenda de cada distrito se passa muita coisa. Actuações, encontros de velhos camaradas. Junto à tenda dedicada aos imigrantes há um grupo de jovens que dança, de chapéus mexicanos. Bruno Amorim, de 13 anos, acompanha o pai pela primeira vez. Que boina é esta que traz? Não sabe bem. "É igual à do Che Guevara, um médico que ajudou os outros e que foi muito importante." A boina é verde e tem uma estrela. Foi uma amiga do pai que lhe ofereceu.
Dentro do pavilhão central e nas tendas do partido de cada distrito há gente diferente da que está lá fora. São mais velhos e interessam-se pelas palestras, pelos debates. Alguns dormem sentados até. A tarde ainda não vai longa. Não são destas pessoas que andam ao sol, pelos palcos. Lá fora, os troncos nus e os biquínis ajudam a enfrentar o calor. Os lagos que há pelo recinto estão repletos como uma piscina pública numa tarde de Agosto. Uns de fato de banho, outros vestidos. Há lugar para todos se refrescarem.
Ao Avante! vem de tudo. Gente de todos os estilos, de todas as idades. Mães passeiam carrinhos de bebé ao lado de gente que deverá ter netos - alguns bisnetos, talvez. Gente de todo o país, ouvem-se muitas pronúncias diferentes. Vem gente militante e simpatizante, mas também quem nem pense em política. Maria Luísa Mendonça, de 65 anos, é militante e não vê mal nisso. "Eu venho pela política, mas há muitos jovens que não", diz. "Se a festa fosse só política, não havia tanta gente." Um grupo de adolescentes descansa, recostado na parede de uma das tendas. "Eu venho pelo convívio, pela música", confirma Sara Caldas, de 17 anos. "Nós", e fala pelo grupo de amigos, "não vimos pela política."
Quem também andava pela Quinta da Atalaia misturado na multidão era Francisco Lopes. Sem qualquer intervenção prevista nos comícios, o candidato do PCP às presidenciais ia falando com os jornalistas e garantindo que a sua candidatura é para levar às urnas.
Os que se sentavam para ouvir falar de política ao início da tarde são os mesmos, agora que o tempo arrefeceu. Não exactamente as mesmas pessoas. Mas os mesmos. A diferença é que se multiplicaram entretanto. Um dos senhores de camisa desabotoada que aqui dormitava ao início da tarde continua assim. No mesmo lugar.
A música mistura-se com as vozes que discursam e debatem no pavilhão central. E com os sons de todas as tendas. Num dos intervalos ouve-se Zeca Afonso, muito lá ao longe. Ouvem-se cantares alentejanos, esses bem mais perto. E toda esta amálgama de gente e de sons é esta festa que os que vêm dizem ser única. "Posso não ser comunista mas aqui encontro um espírito que não encontro em mais lado nenhum", diz Telmo Parreira, de 21 anos, vindo do Porto. "Só neste festival consigo sentar-me à mesa com pessoas trinta anos mais velhas do que eu e falar com elas como se fôssemos iguais."
Ainda é início de tarde mas o recinto já está cheio. Os concertos começaram às 14h00. E ainda há muita gente lá fora. Há um parque de campismo com lugares limitados, mas há quem vá plantando a sua tenda onde der. Nuno Pinto, de 20 anos, veio de Viana do Castelo. Calções verdes, tronco nu - muito calor. "Estamos a fazer campismo selvagem ali junto ao rio." O rio vê-se para lá do palco principal, a que chamaram 25 de Abril. "É o tirar as boinas e as T-shirts do Che Guevara da gaveta." Em cada canto se encontra alguém de boina e se ouve um "então, camarada?".
Há outros palcos, mesmo para além dos secundários. Em cada tenda de cada distrito se passa muita coisa. Actuações, encontros de velhos camaradas. Junto à tenda dedicada aos imigrantes há um grupo de jovens que dança, de chapéus mexicanos. Bruno Amorim, de 13 anos, acompanha o pai pela primeira vez. Que boina é esta que traz? Não sabe bem. "É igual à do Che Guevara, um médico que ajudou os outros e que foi muito importante." A boina é verde e tem uma estrela. Foi uma amiga do pai que lhe ofereceu.
Dentro do pavilhão central e nas tendas do partido de cada distrito há gente diferente da que está lá fora. São mais velhos e interessam-se pelas palestras, pelos debates. Alguns dormem sentados até. A tarde ainda não vai longa. Não são destas pessoas que andam ao sol, pelos palcos. Lá fora, os troncos nus e os biquínis ajudam a enfrentar o calor. Os lagos que há pelo recinto estão repletos como uma piscina pública numa tarde de Agosto. Uns de fato de banho, outros vestidos. Há lugar para todos se refrescarem.
Ao Avante! vem de tudo. Gente de todos os estilos, de todas as idades. Mães passeiam carrinhos de bebé ao lado de gente que deverá ter netos - alguns bisnetos, talvez. Gente de todo o país, ouvem-se muitas pronúncias diferentes. Vem gente militante e simpatizante, mas também quem nem pense em política. Maria Luísa Mendonça, de 65 anos, é militante e não vê mal nisso. "Eu venho pela política, mas há muitos jovens que não", diz. "Se a festa fosse só política, não havia tanta gente." Um grupo de adolescentes descansa, recostado na parede de uma das tendas. "Eu venho pelo convívio, pela música", confirma Sara Caldas, de 17 anos. "Nós", e fala pelo grupo de amigos, "não vimos pela política."
Quem também andava pela Quinta da Atalaia misturado na multidão era Francisco Lopes. Sem qualquer intervenção prevista nos comícios, o candidato do PCP às presidenciais ia falando com os jornalistas e garantindo que a sua candidatura é para levar às urnas.
Os que se sentavam para ouvir falar de política ao início da tarde são os mesmos, agora que o tempo arrefeceu. Não exactamente as mesmas pessoas. Mas os mesmos. A diferença é que se multiplicaram entretanto. Um dos senhores de camisa desabotoada que aqui dormitava ao início da tarde continua assim. No mesmo lugar.
A música mistura-se com as vozes que discursam e debatem no pavilhão central. E com os sons de todas as tendas. Num dos intervalos ouve-se Zeca Afonso, muito lá ao longe. Ouvem-se cantares alentejanos, esses bem mais perto. E toda esta amálgama de gente e de sons é esta festa que os que vêm dizem ser única. "Posso não ser comunista mas aqui encontro um espírito que não encontro em mais lado nenhum", diz Telmo Parreira, de 21 anos, vindo do Porto. "Só neste festival consigo sentar-me à mesa com pessoas trinta anos mais velhas do que eu e falar com elas como se fôssemos iguais."
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Vejo a Festa do Avante na televisão e não deixo de me comover com a quantidade de gente que, vivendo em Portugal, preferiria viver em Cuba, ou na China, ou no Vietname, ou no Laos, ou na não sei mesmo se não será uma democracia Coreia do Norte. Aquilo é coragem, da boa, tal e qual o domador que mete a cabeça dentro da boca do leão. Aplaudamos. .
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A Festa do Avante
Encontros imediatos do terceiro grau
Lourenço Cordeiro
21:31 Domingo, 5 de Setembro de 2010
Vejo a Festa do Avante na televisão e não deixo de me comover com a quantidade de gente que, vivendo em Portugal, preferiria viver em Cuba, ou na China, ou no Vietname, ou no Laos, ou na não sei mesmo se não será uma democracia Coreia do Norte. Aquilo é coragem, da boa, tal e qual o domador que mete a cabeça dentro da boca do leão. Aplaudamos.
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JBCRosa (seguir utilizador), 1 ponto , hoje às 1:42
Sim, preferia viver em Cuba, apesar do embargo capitalista. Não, não preferia viver na China, com o seu híbrido esquisito de comuno-capitalismo. Se preferia viver no Vietname? Antes ou depois dos americanos e da sua fobia (pelos vistos partilhada pelo camarada Lourenço Cordeiro) terem dado cabo daquilo numa guerra que, aliás, perderam? Não preferia viver na Coreia do Norte pelo simples facto de que não vejo um pingo que seja de marxismo-leninismo lá. Pode já ter havido, mas desafio vosselência e toda a sua sabedoria reaccionária a encontrar, sem contradições, uma ponta qualquer de socialismo ou comunismo lá. Sim, é coragem. É a coragem de um povo e de uma classe trabalhadora (sabe o que é ou sempre escreveu textos ridículos para viver?) que sabe dizer não ao roubo e à ameaça dos seus direitos. É um povo que não quer mais que a felicidade. É um povo que luta todos os dias por um mundo melhor. Enfim, é o povo comunista português que, quando o senhor se der ao trabalho de conhecer sem lançar essas diarreias verbais e clichés indignos de um jornalista ou de um cronista, vai ver que é muito mais do que Cuba, Laos, Vietname ou URSS. Até lá, enquanto não se dignar vosselência a conhecer o comunismo no geral, e o PCP em particular, escusa de arrotar essas coisas a que chama textos e de responder a estas linhas. Quando se informar mais e melhor, depois falamos.
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sábado, julho 10, 2010
A Terra e a Gula - Correia da Fonseca
Correia da Fonseca*
03.Jul.10 :: Editores
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Uma reportagem do National Geographic Magazine, canal distribuído por cabo, traz-nos notícias da Amazónia. Más notícias, como bem se poderia esperar, mas não pelo motivo habitual que é a desflorestação imposta pelo comércio de madeiras: desta vez trata-se da plantação hiperintensiva de soja, propiciadora de fartos lucros mas devastadora dos solos e com consequências verdadeiramente assassinas para as populações.
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Expondo as razões concretas de uma espécie de anunciado apocalipse local, a reportagem de origem obviamente insuspeita explica-nos que a fúria inescrupulosa dos plantadores de soja vai provocar o que pode ser designado por morte ecológica do rio, e que daí até à destruição de uma enorme e fundamental parcela da própria Amazónia não vai nenhuma distância significativa. Acrescenta que os poderes públicos não parecem interessados nas medidas inevitavelmente drásticas que poderiam suster a catástrofe, ou talvez que não têm efectiva vocação para tanto, decerto porque, ali como em muitos outros lugares, entre o poder político e a ganância comercial não há efectiva fronteira mas, pelo contrário, coincidência e sobreposição.
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Quanto aos autóctones que tentam resistir ao desastre, não faltam os que são abatidos sem que os matadores sejam punidos ou sequer formalmente identificados, o que também não surpreende: é sabido que no Brasil é uma sinistra tradição o assassínio dos que defendem a terra contra as pilhagens.
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A reportagem é, naturalmente, consternante: vagas notícias haviam dito que a destruição da Amazónia tinha sido travada ou pelo menos reduzida, que alguma pressão internacional em defesa do «pulmão do mundo» conseguira consequências positivas, e até se admitira que talvez seja assim no que se refere ao comércio madeireiro.
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A verdade é que o telespectador vulgar não sabe dessas coisas, do Brasil sabe o que lhe contam as telenovelas, sabe do futebol e do samba, por aí se fica aliás presumivelmente satisfeito. Vem agora esta informação acerca da destruição provocada pelas plantações de soja e para quem tenha calhado vê-la terá sido um desapontamento. Mas não uma surpresa.
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A verdade é que até os mais distraídos, até muitos dos rendidos aos benefícios de um progresso material que quase todos os meses nos oferece telemóveis mais sofisticados, o que é fascinante, sabem que a gloriosa e libérrima iniciativa privada tem os seus inconvenientes. Talvez porque já ouviram falar do risco de esgotamento ou perversão de alguns bens de utilização colectiva e global (água, ar, matérias-primas), do saque de algumas regiões.
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O derrame de crude que prossegue algures no Atlântico ao largo da costa norte-americana terá sacudido um poucochinho a apatia generalizada. Mas é de crer que a maioria dos inquietados tenda a encolher os ombros e a esquecer, porque «não há-de ser nada».
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O terrível, porém, é que ao invés de «não ser nada» pode ser tudo. A questão é que a sobreexploração sem limites e anárquica, verdadeiro motor do capitalismo ultraliberal que domina o mundo, contém em si própria sementes de uma dinâmica de carácter verdadeiramente apocalíptico. É certo que o planeta já provou que suporta e perdoa muita coisa, mas é de uma leviandade criminosa e suicida presumir que perdoa tudo. Pelo que, naturalmente, é preciso e urgente travar a cavalgada para a autodestruição e, para tanto, ter o lúcido conhecimento do contexto em que ela mergulha as suas raízes. São raízes poderosas, mas a opção é simples: ou a gula insaciável do empresariado transnacional ou a viabilização do futuro. A reportagem do Nacional Geographic Magazine veio, à sua discreta escala, lembrar que é preciso escolher.
* Correia da Fonseca é amigo e colaborador de odiario.info.
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http://www.odiario.info/?p=1657.
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domingo, fevereiro 28, 2010
Madeira - Cada um tem a casa naquilo que é seu e Água que mata
Madeira
Cada um tem a casa naquilo que é seu
A maior parte das vítimas mortais das enxurradas de sábado passado na Madeira são das terras altas. De povoações como o Caminho do Moinho, ou o Pico do Cardo de Dentro, onde cada um constrói a sua casa no terreno que herdou, sem autorização ou quaisquer condições de segurança. Por Paulo Moura (texto) e Enric Vives-Rubio (fotos)O Rex e a Violeta estão sozinhos em casa. Estão sozinhos no bairro, fechados no quintal. Ladram se alguém se aproxima, o que é raro. Desde a tempestade que ninguém aqui vem, excepto para retirar das casas alguns objectos de valor, ou para alimentar os animais. Não é fácil chegar cá. Depois de atravessar a pequena ponte de ferro que cruza a ribeira, é preciso enterrar os pés na lama até aos tornozelos, num equilíbrio difícil por entre os troncos e os pedregulhos.
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Antes de chegar a casa da D. Inês, passa-se pelo pátio da senhora Mena e da filha, mesmo por baixo do alpendre da D. Cecília, que morreu junto a esta pedra. Ainda se vê a marca do corpo, retirado pelos bombeiros. Cecília de Fátima da Câmara. O funeral foi segunda-feira, às 16h. E aqui, neste pátio onde a lama ainda está mole, é onde ficaram soterrados cinco dos sete filhos da D. Inês. "Sobreterrados", como dizem as pessoas deste "casal", como que para dar mais expressão ao peso da lama. Por milagre, todas as crianças se salvaram. As casas estão cravadas na encosta íngreme, em socalcos, ou nem isso. Estão penduradas, equilibradas, encaixadas umas nas outras e na terra, suspensas.
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A casa de cima é a maior e mais luxuosa. Dentro, tem escadarias de mármore. Nunca ninguém lá viveu. É do filho do compadre do Carlos, marido da D. Inês. Acabou de ser construída há menos de um ano, com o dinheiro que o proprietário vai ganhando na ilha de Jersey, e que ainda não chegou para a mobília. A casa está vazia. Por dentro, só mármores e esmaltes. O filho do compadre do Carlos precisa de trabalhar mais uns anos em Jersey, até ganhar o suficiente para mobilar a casa. Então poderá voltar. Eram esses os planos, disse aos vizinhos, antes da tempestade.
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Logo abaixo da sua casa fica a dos pais, que são compadres do Carlos e da D. Inês, cuja casa fica abaixo da daqueles. A encosta é tão íngreme que, vistas da estrada do outro lado da ribeira, as casas parecem estar umas em cima das outras, como um sinuoso arranha-céus.
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Está tudo coberto de lama, troncos de eucalipto atravessaram os telhados como lanças, enormes pedaços de terra desabaram ou estão prestes a transformar-se em avalanchas. Em baixo passa a ribeira, furiosa.
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A porta da casa da D. Inês está aberta. Ao entrar está-se na sala de estar, que não tem mais de dez metros quadrados. Quer dizer, o quarto. Quer dizer, a sala de jantar. O chão está coberto de colchões e de montanhas de roupa muito suja, numa desarrumação que se percebe anterior à tempestade e à lama. A família de nove pessoas dormia nesta divisão. Só há mais duas: uma cozinha e uma casa de banho, minúsculas. Com as derrocadas, a terra em que assentava descolou-se do ângulo posterior direito do edifício, deixando o chão da casa de banho pendente no vazio. As paredes apresentam rachas frescas. "Se este lado da casa cair, o resto não se aguenta", diz o namorado da Telma, de 16 anos, uma das filhas da D. Inês. Com as chuvas que estão previstas, isso pode acontecer hoje, ou amanhã.
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Há 16 anos que a família andava a pedir uma casa. No mês passado, uma assistente social fez-lhe uma visita. Veredicto: poderiam viver mais algum tempo na miséria e na promiscuidade. "Eles eram pobres, mas muito felizes", diz o namorado da Telma. "Podiam ser remediados, mas o que a gente se divertia!" Dava-se bem com o pai da namorada, por isso passava cá muito tempo. Com ele, a família eram dez. "Faziam churrascos aqui neste pátio, convidavam-me. Ríamo-nos durante a tarde inteira." É o pátio onde a máquina de lavar nova sobreviveu, porque Carlos lhe construiu uma protecção especial em cimento, e onde as crianças ficaram soterradas. A mais nova tem três anos.
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"Eu vi o que eles corriam, aos gritos, coitadinhos", diz Bebiana, uma das vizinhas do "casal" da encosta em frente, do outro lado da ribeira. Os dois aglomerados de casas constituem um "sítio", chamado Caminho do Moinho, pertencente à freguesia de Santo António, a poucos quilómetros do Funchal. As casas da margem direita foram destruídas pelas enxurradas, as da esquerda não sofreram nada. "Fiquei aflita, mas o que é que podia fazer? Pensei que iam morrer todos." Tiago, o neto de Bebiana, também viu, da varanda. "Houve uns rapazes daqui que tentaram ir lá salvá-los, mas ficaram com a lama até à cintura. Tiveram de voltar para trás."
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Tiago, que tem 12 anos, vive na última casa do "carreiro", mais perto da estrada e da ribeira. Bebiana Andrade, que tem 50, vive na casa a seguir, num socalco mais alto da encosta. Não é por acaso. O "carreiro" vai descendo em degraus, com as gerações. No cimo da encosta situa-se a casa dos avós de Bebiana. Logo abaixo desta, a dos pais. Depois vem a casa dela, e a seguir a da filha, com o respectivo marido e filhos.
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"Isto era tudo um terreno que o meu avô comprou, há 33 anos", explica Bebiana. "Ele construiu a sua casa lá em cima, e depois deu uma parcela do terreno ao filho, que também construiu uma casa." Foi aí que Bebiana viveu até se casar, aos 16 anos. Nessa altura, o avô ofereceu-lhe também um terreno, para construir. Ofereceu outro à irmã.
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O "carreiro" tem hoje seis casas, onde vivem 20 pessoas, todas da mesma família. As mais novas vivem mais abaixo, as mais velhas mais acima. Ao lado deste "carreiro" há mais quatro, com histórias idênticas. Todas as casas têm pequenos pátios e quintais com cães, galinhas e porcos, que estão agora sozinhos, pelo menos durante a noite. Não há ninguém, em todo o Caminho do Moinho, que esteja a dormir em casa. Passam aqui o dia, mas pernoitam em casa de familiares noutras zonas, ou no quartel do regimento de Guarnição 3, ou num dos outros abrigos disponibilizados pelas autoridades.
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Nenhuma das casas sofreu danos com o temporal da semana passada. Mas os habitantes têm medo. De quê? Da parede.
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Obras de risco e imaginação
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Bebiana aponta para o topo da encosta. Um muro, ainda com andaimes, está a ser construído num local sobranceiro a todos os "carreiros". "Dizem que eles tiveram autorização para construir uma parede de quatro metros, mas já vai em 12. É para segurar uma plataforma onde vão construir quatro casas. Toda a gente acha que aquilo vai cair em cima de nós", diz.
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Todas as casas do Caminho do Moinho foram construídas ilegalmente, sem qualquer fiscalização. "A câmara diz que não dá licenças, porque isto é Zona Verde", explica Bebiana. Por isso constrói-se sem licença. Ninguém proíbe ou fiscaliza. "O meu avô construiu a casa ele próprio, com a ajuda de amigos. E toda a gente faz o mesmo. Só os mais ricos contratam um empreiteiro."
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O local e a forma de construção são decididos pelos proprietários. Em alguns casos, são obras de risco e imaginação. Há casas em lugares impossíveis, onde nem se percebe como assentam as fundações, onde o terreno é íngreme, o espaço exíguo, o solo instável. "Há sítios em que é difícil acreditar que vão conseguir construir uma casa", diz Bebiana. "Muitas vezes penso: "Não era eu que dormia ali"", acrescenta ela, olhando para a encosta em frente. Mas a verdade é que se constrói em virtualmente todo o lado, e as casas lá iam resistindo, o que encorajava a arriscar ainda mais. Mas agora essa confiança irracional sofreu um abalo. O maior número de vítimas mortais da tempestade surgiu aqui, nas terras altas. Muitas das casas situadas ao lado de ribeiras, no trajecto de enxurradas, em terrenos instáveis, ficaram destruídas. E aquilo que surgia aos olhos das pessoas como uma paisagem normal parece-lhes agora altamente perigoso. A parede de 12 metros, por exemplo. Nem Bebiana nem nenhum dos vizinhos consegue agora dormir sob aquela ameaça. "Ninguém confia naquela parede. Se chover muito outra vez, ela vai cair-nos em cima."
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Proibido construir
.
Seguindo a estrada alguns quilómetros para cima, chega-se a outra povoação, o Pico do Cardo de Dentro, onde a destruição foi ainda maior do que no Caminho do Moinho. É lá que tem o seu estaleiro um conhecido empreiteiro da zona.
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"Aquela parede está muito bem construída, não oferece perigo nenhum", garante ele. "Tem fundações na encosta, sapatas no terreno. É feita com betão que vem de fora, mais resistente do que o que temos cá. Aquilo nunca vai cair. Pelo contrário, se não existisse a parede, aqueles terrenos teriam provavelmente desabado."
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No sítio do Pico do Cardo de Dentro poucas casas ficaram inteiras. Das primeiras casas da rua quase não há vestígios, enterradas que ficaram no solo. De uma delas foi retirado quarta-feira o corpo de um homem de 28 anos, ainda enrolado no cobertor onde dormia. As casas seguintes rolaram pela encosta, até se desfazerem na ribeira que corre ao fundo, ou desapareceram, ou ficaram reduzidas a pedaços de parede, sem tecto. Uma das casas era nova e tinha três andares. O próprio estaleiro do empreiteiro foi derrubado pelo tronco de um eucalipto que caiu da encosta superior.
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"O problema disto são os eucaliptos", é a teoria dele. "Não foi a água que fez nada desta desgraça. Olhe para ali. Há eucaliptos de dez, de 20 toneladas. E com mais de 70 metros de comprimento. Vieram a voar por aí abaixo."
.
Com efeito, o cenário da destruição está pejado de eucaliptos gigantes. Vêm com as raízes e são visíveis, nos terrenos sobranceiros, os buracos de onde foram arrancados. Quase todas as casas se situavam do lado de baixo da estrada. Para cima, há uma encosta íngreme, de onde veio a enxurrada. À passagem, arrancou os eucaliptos, que se abateram contra a povoação.
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"Se não houvesse eucaliptos, nada disto teria ficado destruído. Nestas zonas de construção, isto deveria ser tudo limpo de eucaliptos. O problema é que a Guarda Florestal não deixa. E os tipos da Quercus." É um facto que a zona estava toda construída, mas não é propriamente uma zona de construção. Aliás, teoricamente, é proibido construir aqui.
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"Se não se pode construir, então porque fizeram a estrada?", argumenta o empreiteiro, que quer manter o anonimato, com receio de que deixem de lhe dar trabalho. "O Alberto João está sempre a dizer: "Construam naquilo que é vosso.""
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As pessoas compraram terrenos nestas zonas, com autorização apenas para o cultivo agrícola. "Mas a agricultura aqui não dá nada", queixa-se o empreiteiro. "Eu tive ali uma horta. Mas quando tentava vender os produtos no mercado, havia sempre outros mais baratos, vindos do continente. É impossível viver disso. As pessoas constroem aqui as suas casas, porque não têm outro lugar."
.
Constroem onde têm os seus terrenos, e não onde seria mais seguro construir. "Mas se fôssemos só a construir onde há segurança, então não se poderia construir nada na Madeira", diz o empreiteiro. "Mas é claro que é preciso fazer as coisas bem feitas. E nós fazemos com todas as condições."
.
Um colega do empreiteiro, que também já teve a sua própria empresa e agora trabalha para o primeiro, explica: "Todas as casas têm fundações, têm sapatas, que as fixam ao terreno. São todas seguras."
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Mas o que parece evidente é que é o próprio terreno que não é seguro. "Há sítios muito piores do que este, onde se fartaram de construir apartamentos", diz o empreiteiro, coberto de lama, à frente da casa de onde foi retirado o homem enrolado no cobertor.
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"Isto é um terreno seguro!", acrescenta ele, apontando para a encosta completamente revirada, coberta de lama negra, esfolada e marcada pelos buracos dos eucaliptos desentranhados.
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Aqui no sítio do Pico do Cardo de Dentro praticamente todos os habitantes se dedicam à indústria da construção. O seu negócio é fazer casas em locais improváveis.
..
"Eu pensava sempre: como é que é possível, naquele lugar? Um dia vai haver uma desgraça", diz Bebiana, a olhar para a encosta em frente. O neto Tiago não diz nada, mas tem passado os dias a olhar para a encosta em frente. Mostra-se tranquilo e confiante, mas percebe-se-lhe no sorriso uma grande insegurança. Está ansioso por que recomecem as aulas, apesar de, para chegar à escola, ter de percorrer vários quilómetros a pé, e mais uns tantos de camioneta. Diz que quando for grande quer ser arquitecto.
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Antes de chegar a casa da D. Inês, passa-se pelo pátio da senhora Mena e da filha, mesmo por baixo do alpendre da D. Cecília, que morreu junto a esta pedra. Ainda se vê a marca do corpo, retirado pelos bombeiros. Cecília de Fátima da Câmara. O funeral foi segunda-feira, às 16h. E aqui, neste pátio onde a lama ainda está mole, é onde ficaram soterrados cinco dos sete filhos da D. Inês. "Sobreterrados", como dizem as pessoas deste "casal", como que para dar mais expressão ao peso da lama. Por milagre, todas as crianças se salvaram. As casas estão cravadas na encosta íngreme, em socalcos, ou nem isso. Estão penduradas, equilibradas, encaixadas umas nas outras e na terra, suspensas.
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A casa de cima é a maior e mais luxuosa. Dentro, tem escadarias de mármore. Nunca ninguém lá viveu. É do filho do compadre do Carlos, marido da D. Inês. Acabou de ser construída há menos de um ano, com o dinheiro que o proprietário vai ganhando na ilha de Jersey, e que ainda não chegou para a mobília. A casa está vazia. Por dentro, só mármores e esmaltes. O filho do compadre do Carlos precisa de trabalhar mais uns anos em Jersey, até ganhar o suficiente para mobilar a casa. Então poderá voltar. Eram esses os planos, disse aos vizinhos, antes da tempestade.
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Logo abaixo da sua casa fica a dos pais, que são compadres do Carlos e da D. Inês, cuja casa fica abaixo da daqueles. A encosta é tão íngreme que, vistas da estrada do outro lado da ribeira, as casas parecem estar umas em cima das outras, como um sinuoso arranha-céus.
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Está tudo coberto de lama, troncos de eucalipto atravessaram os telhados como lanças, enormes pedaços de terra desabaram ou estão prestes a transformar-se em avalanchas. Em baixo passa a ribeira, furiosa.
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A porta da casa da D. Inês está aberta. Ao entrar está-se na sala de estar, que não tem mais de dez metros quadrados. Quer dizer, o quarto. Quer dizer, a sala de jantar. O chão está coberto de colchões e de montanhas de roupa muito suja, numa desarrumação que se percebe anterior à tempestade e à lama. A família de nove pessoas dormia nesta divisão. Só há mais duas: uma cozinha e uma casa de banho, minúsculas. Com as derrocadas, a terra em que assentava descolou-se do ângulo posterior direito do edifício, deixando o chão da casa de banho pendente no vazio. As paredes apresentam rachas frescas. "Se este lado da casa cair, o resto não se aguenta", diz o namorado da Telma, de 16 anos, uma das filhas da D. Inês. Com as chuvas que estão previstas, isso pode acontecer hoje, ou amanhã.
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Há 16 anos que a família andava a pedir uma casa. No mês passado, uma assistente social fez-lhe uma visita. Veredicto: poderiam viver mais algum tempo na miséria e na promiscuidade. "Eles eram pobres, mas muito felizes", diz o namorado da Telma. "Podiam ser remediados, mas o que a gente se divertia!" Dava-se bem com o pai da namorada, por isso passava cá muito tempo. Com ele, a família eram dez. "Faziam churrascos aqui neste pátio, convidavam-me. Ríamo-nos durante a tarde inteira." É o pátio onde a máquina de lavar nova sobreviveu, porque Carlos lhe construiu uma protecção especial em cimento, e onde as crianças ficaram soterradas. A mais nova tem três anos.
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"Eu vi o que eles corriam, aos gritos, coitadinhos", diz Bebiana, uma das vizinhas do "casal" da encosta em frente, do outro lado da ribeira. Os dois aglomerados de casas constituem um "sítio", chamado Caminho do Moinho, pertencente à freguesia de Santo António, a poucos quilómetros do Funchal. As casas da margem direita foram destruídas pelas enxurradas, as da esquerda não sofreram nada. "Fiquei aflita, mas o que é que podia fazer? Pensei que iam morrer todos." Tiago, o neto de Bebiana, também viu, da varanda. "Houve uns rapazes daqui que tentaram ir lá salvá-los, mas ficaram com a lama até à cintura. Tiveram de voltar para trás."
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Tiago, que tem 12 anos, vive na última casa do "carreiro", mais perto da estrada e da ribeira. Bebiana Andrade, que tem 50, vive na casa a seguir, num socalco mais alto da encosta. Não é por acaso. O "carreiro" vai descendo em degraus, com as gerações. No cimo da encosta situa-se a casa dos avós de Bebiana. Logo abaixo desta, a dos pais. Depois vem a casa dela, e a seguir a da filha, com o respectivo marido e filhos.
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"Isto era tudo um terreno que o meu avô comprou, há 33 anos", explica Bebiana. "Ele construiu a sua casa lá em cima, e depois deu uma parcela do terreno ao filho, que também construiu uma casa." Foi aí que Bebiana viveu até se casar, aos 16 anos. Nessa altura, o avô ofereceu-lhe também um terreno, para construir. Ofereceu outro à irmã.
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O "carreiro" tem hoje seis casas, onde vivem 20 pessoas, todas da mesma família. As mais novas vivem mais abaixo, as mais velhas mais acima. Ao lado deste "carreiro" há mais quatro, com histórias idênticas. Todas as casas têm pequenos pátios e quintais com cães, galinhas e porcos, que estão agora sozinhos, pelo menos durante a noite. Não há ninguém, em todo o Caminho do Moinho, que esteja a dormir em casa. Passam aqui o dia, mas pernoitam em casa de familiares noutras zonas, ou no quartel do regimento de Guarnição 3, ou num dos outros abrigos disponibilizados pelas autoridades.
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Nenhuma das casas sofreu danos com o temporal da semana passada. Mas os habitantes têm medo. De quê? Da parede.
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Obras de risco e imaginação
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Bebiana aponta para o topo da encosta. Um muro, ainda com andaimes, está a ser construído num local sobranceiro a todos os "carreiros". "Dizem que eles tiveram autorização para construir uma parede de quatro metros, mas já vai em 12. É para segurar uma plataforma onde vão construir quatro casas. Toda a gente acha que aquilo vai cair em cima de nós", diz.
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Todas as casas do Caminho do Moinho foram construídas ilegalmente, sem qualquer fiscalização. "A câmara diz que não dá licenças, porque isto é Zona Verde", explica Bebiana. Por isso constrói-se sem licença. Ninguém proíbe ou fiscaliza. "O meu avô construiu a casa ele próprio, com a ajuda de amigos. E toda a gente faz o mesmo. Só os mais ricos contratam um empreiteiro."
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O local e a forma de construção são decididos pelos proprietários. Em alguns casos, são obras de risco e imaginação. Há casas em lugares impossíveis, onde nem se percebe como assentam as fundações, onde o terreno é íngreme, o espaço exíguo, o solo instável. "Há sítios em que é difícil acreditar que vão conseguir construir uma casa", diz Bebiana. "Muitas vezes penso: "Não era eu que dormia ali"", acrescenta ela, olhando para a encosta em frente. Mas a verdade é que se constrói em virtualmente todo o lado, e as casas lá iam resistindo, o que encorajava a arriscar ainda mais. Mas agora essa confiança irracional sofreu um abalo. O maior número de vítimas mortais da tempestade surgiu aqui, nas terras altas. Muitas das casas situadas ao lado de ribeiras, no trajecto de enxurradas, em terrenos instáveis, ficaram destruídas. E aquilo que surgia aos olhos das pessoas como uma paisagem normal parece-lhes agora altamente perigoso. A parede de 12 metros, por exemplo. Nem Bebiana nem nenhum dos vizinhos consegue agora dormir sob aquela ameaça. "Ninguém confia naquela parede. Se chover muito outra vez, ela vai cair-nos em cima."
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Proibido construir
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Seguindo a estrada alguns quilómetros para cima, chega-se a outra povoação, o Pico do Cardo de Dentro, onde a destruição foi ainda maior do que no Caminho do Moinho. É lá que tem o seu estaleiro um conhecido empreiteiro da zona.
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"Aquela parede está muito bem construída, não oferece perigo nenhum", garante ele. "Tem fundações na encosta, sapatas no terreno. É feita com betão que vem de fora, mais resistente do que o que temos cá. Aquilo nunca vai cair. Pelo contrário, se não existisse a parede, aqueles terrenos teriam provavelmente desabado."
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No sítio do Pico do Cardo de Dentro poucas casas ficaram inteiras. Das primeiras casas da rua quase não há vestígios, enterradas que ficaram no solo. De uma delas foi retirado quarta-feira o corpo de um homem de 28 anos, ainda enrolado no cobertor onde dormia. As casas seguintes rolaram pela encosta, até se desfazerem na ribeira que corre ao fundo, ou desapareceram, ou ficaram reduzidas a pedaços de parede, sem tecto. Uma das casas era nova e tinha três andares. O próprio estaleiro do empreiteiro foi derrubado pelo tronco de um eucalipto que caiu da encosta superior.
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"O problema disto são os eucaliptos", é a teoria dele. "Não foi a água que fez nada desta desgraça. Olhe para ali. Há eucaliptos de dez, de 20 toneladas. E com mais de 70 metros de comprimento. Vieram a voar por aí abaixo."
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Com efeito, o cenário da destruição está pejado de eucaliptos gigantes. Vêm com as raízes e são visíveis, nos terrenos sobranceiros, os buracos de onde foram arrancados. Quase todas as casas se situavam do lado de baixo da estrada. Para cima, há uma encosta íngreme, de onde veio a enxurrada. À passagem, arrancou os eucaliptos, que se abateram contra a povoação.
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"Se não houvesse eucaliptos, nada disto teria ficado destruído. Nestas zonas de construção, isto deveria ser tudo limpo de eucaliptos. O problema é que a Guarda Florestal não deixa. E os tipos da Quercus." É um facto que a zona estava toda construída, mas não é propriamente uma zona de construção. Aliás, teoricamente, é proibido construir aqui.
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"Se não se pode construir, então porque fizeram a estrada?", argumenta o empreiteiro, que quer manter o anonimato, com receio de que deixem de lhe dar trabalho. "O Alberto João está sempre a dizer: "Construam naquilo que é vosso.""
.
As pessoas compraram terrenos nestas zonas, com autorização apenas para o cultivo agrícola. "Mas a agricultura aqui não dá nada", queixa-se o empreiteiro. "Eu tive ali uma horta. Mas quando tentava vender os produtos no mercado, havia sempre outros mais baratos, vindos do continente. É impossível viver disso. As pessoas constroem aqui as suas casas, porque não têm outro lugar."
.
Constroem onde têm os seus terrenos, e não onde seria mais seguro construir. "Mas se fôssemos só a construir onde há segurança, então não se poderia construir nada na Madeira", diz o empreiteiro. "Mas é claro que é preciso fazer as coisas bem feitas. E nós fazemos com todas as condições."
.
Um colega do empreiteiro, que também já teve a sua própria empresa e agora trabalha para o primeiro, explica: "Todas as casas têm fundações, têm sapatas, que as fixam ao terreno. São todas seguras."
.
Mas o que parece evidente é que é o próprio terreno que não é seguro. "Há sítios muito piores do que este, onde se fartaram de construir apartamentos", diz o empreiteiro, coberto de lama, à frente da casa de onde foi retirado o homem enrolado no cobertor.
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"Isto é um terreno seguro!", acrescenta ele, apontando para a encosta completamente revirada, coberta de lama negra, esfolada e marcada pelos buracos dos eucaliptos desentranhados.
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Aqui no sítio do Pico do Cardo de Dentro praticamente todos os habitantes se dedicam à indústria da construção. O seu negócio é fazer casas em locais improváveis.
..
"Eu pensava sempre: como é que é possível, naquele lugar? Um dia vai haver uma desgraça", diz Bebiana, a olhar para a encosta em frente. O neto Tiago não diz nada, mas tem passado os dias a olhar para a encosta em frente. Mostra-se tranquilo e confiante, mas percebe-se-lhe no sorriso uma grande insegurança. Está ansioso por que recomecem as aulas, apesar de, para chegar à escola, ter de percorrer vários quilómetros a pé, e mais uns tantos de camioneta. Diz que quando for grande quer ser arquitecto.
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. Todos apontam o dedo acusatório às ribeiras, mas há outros culpados na tragédia da Madeira. Um deles: o desconhecimento da população urbana em como reduzir o risco dos maus humores da natureza
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Elas vêm lá de cima. A de Santa Luzia nasce nas franjas do Pico do Arieiro, a quase 1800 metros de altitude, e num piscar de olhos já está cá em baixo. As duas outras - a de João Gomes e a de São João - também correm da mesma maneira, ao longo de vales que começam a 1500, 1700 metros, para desaguar no oceano, junto à cidade, pouco mais de dez quilómetros adiante. O Tejo, por comparação, percorre mil quilómetros para vencer o mesmo desnível.
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.As imagens daquelas três ribeiras enfurecidas a rasgar a cidade do Funchal, com as águas turvas em jorros revoltos de inacreditável velocidade, talvez tenham sido as mais marcantes da catástrofe de há uma semana na ilha da Madeira. Não admira por isso que, na busca de um único responsável, o dedo da acusação lhes seja apontado.
.
O desastre da Madeira, porém, foi muito mais complexo. A chuva excepcional que caiu no sábado passado mexeu com tudo. A água subjugou a ilha a um poder incontrolável. Desestabilizou os seus solos, entupiu os seus cursos de água e, sobretudo, surpreendeu a sua gente. "Apresentar como principal factor as ribeiras é redutor", afirma o geólogo Domingos Rodrigues, da Universidade da Madeira.
.
Algumas pessoas morreram por terem sido arrastadas pela água. Outras foram apanhadas por fluxos de lama e detritos que escoaram directamente das encostas. Há vítimas que sucumbiram a aluimentos. Houve quem morresse dentro do seu automóvel.
.
Domingos Rodrigues chama a atenção para a participação humana no resultado da tragédia. "Um factor decisivo foi o comportamento das pessoas", diz o especialista. Essencialmente, pouca gente que vive na cidade sabe o que fazer numa situação como aquela - se o melhor é ficar dentro do carro, ou dentro de casa, ou fugir para a rua. Domingos Rodrigues exaspera-se ao recordar as imagens de cidadãos a cruzarem correntes da água rasas mas fortes, sujeitos a que qualquer objecto sólido em grande velocidade - uma pedra, um tronco de árvore, um automóvel - os derrube e os mate.
.
Uma educação específica para as situações de perigo ajudaria a reduzir a vulnerabilidade das populações, diz o geólogo. A isto somam-se outras medidas, como as que procuram minimizar a fúria das ribeiras, cujos efeitos devastadores pontuam a história recente do arquipélago. Há registos de cheias e aluviões pelo menos desde 1611. O pior episódio de que se tem memória são as cheias de 1803, que terão matado mais de mil pessoas.
.
Foi na sequência desta catástrofe que se fizeram obras de fundo para ajudar a conter as ribeiras na cidade. Sucessivamente melhoradas ao longo do tempo, o que lá está hoje parece correcto a Rui Rodrigues, director dos serviços de monitorização dos recursos hídricos no Instituto da Água (Inag). "Do que tenho visto, acho que grande parte daquelas regularizações está bem feita", afirma, referindo-se aos canais que correm abertos, impermeabilizados no fundo de modo a evitar a erosão do leito.
.
O encanamento por baixo das ruas, na parte final de algumas ribeiras, não é, porém, visto da mesma forma. A capacidade de vazão fica mais limitada e a possibilidade de entupimento com pedras e detritos aumenta - "Quando se fecha [uma ribeira], ocorrem milhões de problemas", resume Rui Rodrigues.
.
Mas ali não estará senão uma pequena parte da culpa pelo que aconteceu. Os maiores problemas ocorrem antes, mais acima. As enxurradas da Madeira não trazem só água, mas arrastam consigo terra, pedras, troncos de árvores. Mesmo obras de engenharia hidráulica calculadas para suportar grandes cheias podem não ser suficientes quando o que corre pelos canais é um fluido de detritos. "A cheia líquida, isto a engenharia resolveria", afirma António Betâmio de Almeida, professor catedrático do Instituto Superior Técnico, em Lisboa. "O problema é a carga sólida que é transportada.
."
Onda de cheia
.
Sendo difícil contê-la, o que se pode é evitar que seja agravada por outros factores, como o afunilamento nos canais ou a construção de pontes com pilares na água, que entulham facilmente, formando pequenas barragens. Quando essas acabam por ceder, liberta-se uma onda de cheia suplementar, capaz de surpreender fatalmente qualquer pessoa que julgue estar segura. "Isso é o que mata", afirma António Valério, coordenador do Projecto de Controlo de Cheias da Região de Lisboa, do Inag.
.
Segundo Valério, não foi diferente o que aconteceu em outras cheias em Portugal. As de 1967, na região de Lisboa, fizeram cerca de 500 mortos. Outras voltaram a matar em 1981 (30 mortos), 1983 (19) e 1997 (11).
.
Para controlar o risco de cheias súbitas, provocadas por muita chuva concentrada num curto espaço de tempo, várias obras têm sido feitas pelo projecto do Inag. A capacidade de vazão de algumas ribeiras foi aumentada, pontes foram substituídas e nalguns casos foram construídas bacias de amortecimento - pequenas estruturas para conter a água.
.
Mas ainda há muito por fazer. O risco de novas cheias em Cascais - fortemente afectada em 1983 - mantém-se. Uma ribeira, a das Vinhas, corre encanada no seu troço final, com uma vazão de apenas 30 metros cúbicos de água por segundo.
.
Em cada período de cem anos, é expectável que a ribeira receba um fluxo seis vezes superior. Só agora, quase três décadas depois, está a ser lançado um projecto de uma bacia de retenção, para reduzir parte do risco. "Já é o terceiro que fazemos", diz António Valério.
.
Na Madeira, uma série detalhada de medidas para reduzir o risco de cheias foi identificada no seu Plano Regional de Água, concluído em 2003 mas aprovado só em 2008. Miguel Gamboa da Silva, especialista do Instituto Superior Técnico e responsável pelo capítulo das cheias no plano, diz que se deve "atacar o problema na cabeceira das linhas de água". Proibir o pastoreio nas terras altas e evitar que troncos de árvores sejam deixados no terreno quando se corta uma floresta de produção são exemplos de medidas que podem reduzir o transporte de sólidos para os cursos de água.
.
O plano, na verdade, aponta para um conjunto muito mais vasto de medidas, desde a cabeceira até à foz das ribeiras, bem como em outras áreas.
.
Estudos precisam-se
.
Incluída está a sugestão de se realizarem estudos sobre as cheias na região, algo que alguns defendem que seja feito já para o episódio da semana passada. "Era útil avançar para o terreno", diz o especialistas em hidrologia Rodrigo Proença de Oliveira, que quando era estudante no Instituto Superior Técnico, em 1983, foi mobilizado, juntamente com meia centena de colegas, para recolher dados sobre as cheias de Cascais.
.
Betâmio de Almeida concorda e também vê utilidade na formação de uma equipa interdisciplinar para avaliar o que se passou. Mas, à margem da compreensão detalhada das cheias - um elemento fundamental para planos de emergência -, Betâmio de Almeida também identifica no comportamento das pessoas um dos cernes do problema. "Estamos predispostos a achar que as cidades são cem por cento seguras", afirma. "Vivemos na sociedade do risco zero."
.
Domingos Rodrigues, que tem percorrido a ilha todos os dias desde há uma semana para documentar o que ocorreu, diz que em algumas zonas mais afastadas, mesmo que varridas por grandes deslizamentos, não houve mortos. "Essas pessoas não são urbanas, conhecem os sítios onde vivem, sabem onde está o perigo", afirma.
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Segundo Rodrigues, as cheias mostraram mesmo isso: muitos dos mortos terão sido vítimas da incapacidade da sociedade urbana em avaliar o risco. "Essa para mim é a grande lição."
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O desastre da Madeira, porém, foi muito mais complexo. A chuva excepcional que caiu no sábado passado mexeu com tudo. A água subjugou a ilha a um poder incontrolável. Desestabilizou os seus solos, entupiu os seus cursos de água e, sobretudo, surpreendeu a sua gente. "Apresentar como principal factor as ribeiras é redutor", afirma o geólogo Domingos Rodrigues, da Universidade da Madeira.
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Algumas pessoas morreram por terem sido arrastadas pela água. Outras foram apanhadas por fluxos de lama e detritos que escoaram directamente das encostas. Há vítimas que sucumbiram a aluimentos. Houve quem morresse dentro do seu automóvel.
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Domingos Rodrigues chama a atenção para a participação humana no resultado da tragédia. "Um factor decisivo foi o comportamento das pessoas", diz o especialista. Essencialmente, pouca gente que vive na cidade sabe o que fazer numa situação como aquela - se o melhor é ficar dentro do carro, ou dentro de casa, ou fugir para a rua. Domingos Rodrigues exaspera-se ao recordar as imagens de cidadãos a cruzarem correntes da água rasas mas fortes, sujeitos a que qualquer objecto sólido em grande velocidade - uma pedra, um tronco de árvore, um automóvel - os derrube e os mate.
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Uma educação específica para as situações de perigo ajudaria a reduzir a vulnerabilidade das populações, diz o geólogo. A isto somam-se outras medidas, como as que procuram minimizar a fúria das ribeiras, cujos efeitos devastadores pontuam a história recente do arquipélago. Há registos de cheias e aluviões pelo menos desde 1611. O pior episódio de que se tem memória são as cheias de 1803, que terão matado mais de mil pessoas.
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Foi na sequência desta catástrofe que se fizeram obras de fundo para ajudar a conter as ribeiras na cidade. Sucessivamente melhoradas ao longo do tempo, o que lá está hoje parece correcto a Rui Rodrigues, director dos serviços de monitorização dos recursos hídricos no Instituto da Água (Inag). "Do que tenho visto, acho que grande parte daquelas regularizações está bem feita", afirma, referindo-se aos canais que correm abertos, impermeabilizados no fundo de modo a evitar a erosão do leito.
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O encanamento por baixo das ruas, na parte final de algumas ribeiras, não é, porém, visto da mesma forma. A capacidade de vazão fica mais limitada e a possibilidade de entupimento com pedras e detritos aumenta - "Quando se fecha [uma ribeira], ocorrem milhões de problemas", resume Rui Rodrigues.
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Mas ali não estará senão uma pequena parte da culpa pelo que aconteceu. Os maiores problemas ocorrem antes, mais acima. As enxurradas da Madeira não trazem só água, mas arrastam consigo terra, pedras, troncos de árvores. Mesmo obras de engenharia hidráulica calculadas para suportar grandes cheias podem não ser suficientes quando o que corre pelos canais é um fluido de detritos. "A cheia líquida, isto a engenharia resolveria", afirma António Betâmio de Almeida, professor catedrático do Instituto Superior Técnico, em Lisboa. "O problema é a carga sólida que é transportada.
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Onda de cheia
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Sendo difícil contê-la, o que se pode é evitar que seja agravada por outros factores, como o afunilamento nos canais ou a construção de pontes com pilares na água, que entulham facilmente, formando pequenas barragens. Quando essas acabam por ceder, liberta-se uma onda de cheia suplementar, capaz de surpreender fatalmente qualquer pessoa que julgue estar segura. "Isso é o que mata", afirma António Valério, coordenador do Projecto de Controlo de Cheias da Região de Lisboa, do Inag.
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Segundo Valério, não foi diferente o que aconteceu em outras cheias em Portugal. As de 1967, na região de Lisboa, fizeram cerca de 500 mortos. Outras voltaram a matar em 1981 (30 mortos), 1983 (19) e 1997 (11).
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Para controlar o risco de cheias súbitas, provocadas por muita chuva concentrada num curto espaço de tempo, várias obras têm sido feitas pelo projecto do Inag. A capacidade de vazão de algumas ribeiras foi aumentada, pontes foram substituídas e nalguns casos foram construídas bacias de amortecimento - pequenas estruturas para conter a água.
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Mas ainda há muito por fazer. O risco de novas cheias em Cascais - fortemente afectada em 1983 - mantém-se. Uma ribeira, a das Vinhas, corre encanada no seu troço final, com uma vazão de apenas 30 metros cúbicos de água por segundo.
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Em cada período de cem anos, é expectável que a ribeira receba um fluxo seis vezes superior. Só agora, quase três décadas depois, está a ser lançado um projecto de uma bacia de retenção, para reduzir parte do risco. "Já é o terceiro que fazemos", diz António Valério.
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Na Madeira, uma série detalhada de medidas para reduzir o risco de cheias foi identificada no seu Plano Regional de Água, concluído em 2003 mas aprovado só em 2008. Miguel Gamboa da Silva, especialista do Instituto Superior Técnico e responsável pelo capítulo das cheias no plano, diz que se deve "atacar o problema na cabeceira das linhas de água". Proibir o pastoreio nas terras altas e evitar que troncos de árvores sejam deixados no terreno quando se corta uma floresta de produção são exemplos de medidas que podem reduzir o transporte de sólidos para os cursos de água.
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O plano, na verdade, aponta para um conjunto muito mais vasto de medidas, desde a cabeceira até à foz das ribeiras, bem como em outras áreas.
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Estudos precisam-se
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Incluída está a sugestão de se realizarem estudos sobre as cheias na região, algo que alguns defendem que seja feito já para o episódio da semana passada. "Era útil avançar para o terreno", diz o especialistas em hidrologia Rodrigo Proença de Oliveira, que quando era estudante no Instituto Superior Técnico, em 1983, foi mobilizado, juntamente com meia centena de colegas, para recolher dados sobre as cheias de Cascais.
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Betâmio de Almeida concorda e também vê utilidade na formação de uma equipa interdisciplinar para avaliar o que se passou. Mas, à margem da compreensão detalhada das cheias - um elemento fundamental para planos de emergência -, Betâmio de Almeida também identifica no comportamento das pessoas um dos cernes do problema. "Estamos predispostos a achar que as cidades são cem por cento seguras", afirma. "Vivemos na sociedade do risco zero."
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Domingos Rodrigues, que tem percorrido a ilha todos os dias desde há uma semana para documentar o que ocorreu, diz que em algumas zonas mais afastadas, mesmo que varridas por grandes deslizamentos, não houve mortos. "Essas pessoas não são urbanas, conhecem os sítios onde vivem, sabem onde está o perigo", afirma.
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Segundo Rodrigues, as cheias mostraram mesmo isso: muitos dos mortos terão sido vítimas da incapacidade da sociedade urbana em avaliar o risco. "Essa para mim é a grande lição."
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