A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht
Mostrar mensagens com a etiqueta Marxismo. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Marxismo. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, março 25, 2013

Marx e O Capital: um debate esclarecedor

Página Inicial
 
25 de Março de 2013 - 15h13
 
Roberto Schwarz, João Quartim de Moraes, Sofia Manzano, Emir Sader e José Arthur Giannotti (Foto: Ana Yumi Kajiki)

Marx e O Capital: um debate esclarecedor


Na tarde da sexta-feira 22 de março de 2013, ocorreu o debate sobre os estudos d’O Capital no Brasil, no âmbito do seminário "Margem Esquerda — Marx e O Capital", com as presenças de Emir Sader (sociólogo), João Quartim de Moraes (filósofo), José Arthur Giannotti (filósofo) e Roberto Schwarz (crítico literário), mediado pela professora e pesquisadora Sofia Manzano.

Por Osvaldo Bertolino, do Portal Maurício Grabois
O evento, realizado pela Boitempo Editorial em parceria com o Sesc, com apoio da Fundação Maurício Grabois, Fundação Lauro Campos, Fundação Rosa Luxemburgo e FAU-USP, ocorreu no Sesc Pinheiros, na cidade de São Paulo.

Os debates começaram com a exposição de Roberto Schwarz. Ele disse que teve a sorte de participar de um momento de apreciação crítica do marxismo, referindo-se a um grupo que começou a estudar O Capital, a partir de 1958, na Faculdade de Filosofia. Segundo ele, o grupo deu vários professores, que escreveram livros de qualidade, fazendo com que em pouco tempo o ponto de vista marxista se tornasse uma presença forte na academia. Quando o seminário começou a se reunir, lembrou Roberto Schwarz, as figuras constantes eram José Arthur Giannotti, Fernando Novais, Paul Singer, Octavio Ianni, Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso. Ele elogiou o grande público presente no Sesc Pinheiros, interessado na obra de Marx.

O debate teve como ponto alto a polêmica entre José Arthur Giannotti e João Quartim de Moraes sobre a essência do pensamento de Karl Marx. A preocupação quanto à forma de ler Marx e por que estudar sua obra está sempre presente, na visão de Giannotti. Segundo ele, O Capital é fascinante; o leitor fica espantado ao ler, por exemplo, a parte sobre a acumulação de capital, também chamada de “acumulação primitiva”. São capítulos de uma grandeza de reconstrução histórica que espanta qualquer pessoa, enfatizou.
Vulgata marxista
No terceiro volume, disse Giannotti, o processo de alienação da mercadoria se explicita e o leitor fica extasiado diante da descrição de como o capital financeiro se desliga do movimento social e do próprio capital. Ele afirmou que teria de retomar o capítulo sobre o valor para se apoiar nele e desenvolver algumas ideais. Antes, ressalvou que era preciso não esquecer que O Capital é um livro inacabado, fechado por Friedrich Engels. E que está dentro da escrita de Marx uma ideia de história muito peculiar, adaptada do hegelianismo. Para Giannotti, houve uma simplificação dessa ideia pelo que ele chamou de “vulgata marxista” — uma alusão aos métodos de estudo e difusão da teoria de Marx com matriz na União Soviética.

Ele disse que para a “vulgata marxista” essa ideia partiria do comunismo primitivo, quando não haveria propriedade privada dos meios de produção, passaria por uma evolução que instalara a luta de classes e, finalmente, chegaria à configuração de uma contradição que seria superada por uma sociedade sem classes, terminando a pré-história para entrar na história de verdade. Trata-se, segundo Giannotti, de um esquema com uma parte conceitual hegeliana que está muito presente em vários momentos da escrita de Marx, um conceito formado por movimentos. Tanto que quando se quer pensar o conceito de Marx em Hegel, é bom pensar em gênero e espécie, exemplificou.

Segundo Giannotti, Marx não queria apenas escrever um livro teórico. Basta ler a última “Teses sobre Feuerbach” para saber que ele queria transformar o mundo, lembrou. E esse momento de transformação foi realizado de uma maneira muito extraordinária, disse Giannotti, porque ele inspirou vários movimentos sociais e a Revolução Russa. E a partir dela, em particular depois que a Revolução se fechou na Terceira Internacional, o marxismo-hegelianismo de Marx e Engels se tornou o pai da Revolução, quando o marxismo se transformou em “vulgata”.
Manuais marxistas
De acordo com Giannotti, a partir dali a maioria dos que estudavam Marx liam manuais. Tiraram da análise de Marx a explicação sobre como funcionam os modos de produção e em particular como é o modo de produção capitalista, algo “substancial”, substituido por uma teoria do conhecimento. E, avaliou, quando o marxismo se tornou na “vulgata marxista”, uma teoria do conhecimento, foi um momento obscuro da inteligência do século XX. Em termos físicos, por exemplo, disse Giannotti, falando na concepção, Engels também entrou na “besteira” de pensar na dialética da natureza, para a qual a noção de contradição seria possível.

No Brasil, Giannotti citou o caso de Caio Prado Júnior, segundo ele um historiador extraordinário, que adotou o método da “vulgata marxista”. Para ele, esse método impediu a percepção de Marx como um clássico, que entraria para o patrimônio da humanidade. Giannotti afirmou que Marx sempre foi lido das mais diferentes maneiras. Citou que na passagem do século XIX para o século XX existiram leituras de Marx grandemente diferenciadas, como na Alemanha, onde Karl Kautsky e Rosa Luxemburgo tinham interpretações bem diferentes. Citou também a União Soviética, onde havia a leitura de Vladimir Lênin e a de Nikolai Bukharin. Na Itália e na França igualmente haveria leituras díspares. Mas todas elas recorriam a Hegel, de uma maneira diferente.

Segundo Giannotti, essa recorrência a Hegel é claramente percebida para quem se detém no primeiro capítulo d’O Capital. Do ponto de vista da economia, afirmou, o primeiro capítulo se refere basicamente à teoria do valor-trabalho. Ele explicou que Marx faz uma objeção a David Ricardo, de suma importância: o economista britânico não entendia que o valor é uma substância, não simplesmente um sistema de relação entre valor de troca e valor de uso. Há uma coisa a mais. Obviamente, disse Giannotti, Marx estava recorrendo à concepção hegeliana de substância.
Marxismo e comunismo
João Quartim de Moraes disse que o marxismo entrou no Brasil na bagagem do comunismo. Esse fenômeno, essa inversão, não foi exclusivo, mas uma peculiaridade da história das lutas sociais brasileiras, afirmou. Segundo ele, o mesmo não ocorreu, por exemplo, nos vizinhos do Cone Sul. Na Argentina, para citar o caso mais nítido, enfatizou, o pensamento marxista havia desembarcado bem antes. Na última década do século XIX, informou Quartim de Moraes, os socialistas de lá fundaram o seu próprio partido. E um desses fundadores foi o primeiro tradutor d’O Capital para o espanhol.

Dessa peculiaridade brasileira de que o comunismo veio antes do marxismo, disse Quartim de Moraes, decorre um período para que a obra de Marx começasse a ser estudada de modo aprofundado, quando O Capital começou a ser lido com rigor teórico. Não só por Caio Prado Júnior, mas também por Nelson Werneck Sodré e, um pouco mais adiante, por Jocob Gorender e outros, lembrou. Eles se serviram do aparelho conceitual marxista em debates importantes sobre o programa revolucionário brasileiro, observou João Quartim de Moares.

Ele citou como exemplo o V Congresso do Partido Comunista do Brasil (PCB), quando houve debates profundos sobre a questão agrária, que levou a um conhecimento, à própria apropriação teórica do marxismo por parte de muitos dos intelectuais comunistas que dele participaram. Essa experiência teórica, afirmou Quartim de Moares, depois seria limitada e bloqueada com a repressão dos anos de chumbo.

Quando ela retornou para o debate dos movimentos sociais era um momento em que os comunistas eram forças secundárias; o principal partido de esquerda era o Partido dos Trabalhadores (PT) que, embora nunca o tenha rejeitado, o marxismo não estava em sua prioridade teórica. Segundo Quartim de Moares, esse interregno não exerceu nenhum efeito de atrofia na leitura d’O Capital. Ele disse que via na nova geração um interesse muito grande na obra de Marx e sua leitura se espalhou, assim como a cultura marxista.
Filosofia em Lênin
Quartim de Moares lembrou a presença de Marx no mundo acadêmico, mas enfatizou que ao mesmo tempo há uma injustificável ausência de Lênin. A firmeza com que o líder da Revolução Russa defendeu a posição materialista em filosofia, embora não fosse filósofo profissional, merecia ser ressaltada, afirmou. E sem a teoria do imperialismo não se compreende o século 20, simplesmente, disse Quartim de Moraes.

Para ele, colonialismo e imperialismo são termos chaves para a história do século 20 e começo do século 21. Por iniciativa de um nome que “não posso citar aqui”, destacou, o famoso dístico “Proletários do mundo inteiro uni-vos!” se transformou em “Proletários e povos coloniais do mundo inteiro uni-vos!”. Essa foi uma mudança fantástica, avaliou.

A União Soviética, apesar de vitoriosa em muitas questões, acabou destruída e os soviéticos derrotaram o nazismo, comentando que a versão dominante propagada por Hollywood dá conta da derrota da Alemanha nazista com o desembarque das tropas ocidentais na Normandia em 1944, uma falsificação da história. Naquele tempo, a União Soviética já havia destroçados os nazistas em Stalingrado e na batalha de Kursk, a maior de toda a história, informou. “De modo que com todos os defeitos da União Soviética, eu acho que foi um desastre para a humanidade o desastre que a destruiu”, concluiu.
Desequilíbrio do capitalismo
Emir Sader retomou o argumento de Quartim de Moraes para dizer que sua visão coincidia com o conceito de imperialismo teorizado por Lênin. A hegemonia americana e a modalidade exacerbada do capitalismo neoliberal constituem outro elemento essencial para entender o mundo de hoje, disse ele. Com o fim da Guerra Fria, afirmou, Marx foi assassinado novamente. Por uma quantidade enorme de razões, bem ou mal historicamente ele estava identificado com aquele socialismo que naufragou, disse Emir Sader. Difundiu-se que a partir dali o capitalismo não teria crise e estava identificado com dinamismo, eficácia, bem-estar etc.

Foi necessário chegar a crise de 2008 para que outra palavra fundamental identificada com Marx voltasse à baila, e que descreve o capitalismo como nenhuma outra: crise. Já no Manifesto do Partido Comunista Marx e Elgels fizeram o reconhecimento formidável da capacidade extraordinária do capitalismo de desenvolver as forças produtivas e demonstrou sua incapacidade de distribuir renda para absorver a produção, comentou. A crise do capitalismo é estrutural, porque há um desequilíbrio entre produção e consumo, como demonstrou Marx e Engels, e foi isso que voltou a acontecer com a crise atual.

Emir Sader comentou também que em geral o neoliberalismo dizia que a economia deixou de crescer pelas excessivas regulamentações. Todo ideário neoliberal pode ser unificado na defesa da desregulamentação, afirmou, com a ideia de que o capital voltaria a investir e a economia cresceria para beneficiar a todos. Mas esqueceram da tese de Marx de que o capital não foi feito para produzir, mas para acumular, destacou. Desregulamentar significa transferir uma quantidade gigantesca de capitais do setor produtivo para o setor especulativo, o setor financeiro, observou.
Crítica científica
Com esse dado, aparece a força extraordinária de Marx, sua explicação dos mecanismos clássicos de acumulação para as finanças, afirmou Sader. Para ele, o único aspecto permanente do marxismo é o método; sua readequação histórica é diferenciada, comentou, complementando que o horizonte de reflexão do marxismo hoje em dia é muito mais claro pela característica que assume o papel do Estado. Ele citou o caso da destruição do Estado de bem-estar social na Europa — a maior construção civilizatória da história dos “trinta anos gloriosos da Europa” —, que está sendo formalizada pela crise atual, destruindo direitos fundamentais.
Michael Heinrich
À noite, ocorreu a conferência “Os manuscritos de Karl Marx e Friedrich Engels”, com Michael Heinrich (MEGA, Alemanha), mediada por Augusto Buonicore, da Fundação Maurício Grabois.

Heinrich disse que Marx negava ter criado um sistema final, fechado. Ele sempre foi um cientista e deixou registrado no prefácio do primeiro volume d’O capital que cada crítica científica seria bem-vinda. Marx era um cientista aberto a críticas, afirmou. Michael Heinrich disse ainda que nos anos 1960 Marx foi redescoberto por ativistas e jovens estudantes fora dos partidos comunistas tradicionais, pelo menos da Europa ocidental e nos Estados Unidos.

domingo, março 17, 2013

Domenico Losurdo e o “retorno” da luta de classes

Página Inicial

17 de Março de 2013 - 7h56         

Acaba de ser publicado na Itália, pela Editora Laterza o novo livro do filósofo político marxista Domenico Losurdo: A luta de classes - Uma história política e filosófica. Em mais um trabalho de fôlego, de 388 páginas, o filósofo marxista italiano enfrenta polêmicas sobre temas instigantes contra as correntes oportunistas que negam a luta de classes ou distorcem seu sentido. A entrevista foi realizada por Paolo Ercolari, para a revista italiana Critica Liberale.



Domenico Losurdo é um dos estudiosos italianos de filosofia mais traduzidos no mundo. Todos os seus livros tiveram de fato edições em inglês, britânico e estadunidense, alemão, francês, espanhol e também em português, chinês, japonês e grego. Seguramente, esquecemos de mencionar algum idioma. Os jornais Financial Times e Frankfurter Allgmeine Zeitung, entre outros, lhe dedicaram páginas inteiras. Um tratamento que contrasta com o que lhe é reservado no próprio país, onde frequentemente, de maneira deliberada, os seus trabalhos são objeto de um silêncio bem estudado. O que, entretanto, não incide sobre suas vendas, tendo em conta as reiteradas edições dos seus livros.

Nos últimos dias veio à luz o seu novo trabalho intitulado A luta de classes - Uma história política e filosófica (388 páginas, Ed. Laterza). Por esta razão, Critica Liberale o entrevistou na sua casa/biblioteca, situada numa colina no entorno da cidade italiana de Urbino. (Paolo Ercolari)
 
Critica Liberale: Professor Losurdo, como explica esta ideia de escrever um livro sobre a luta de classes, conceito tido por muitos como morto?Domenico Losurdo: Enquanto grassa a crise econômica, engrossam os ensaios que evocam o “retorno da luta de classe”. Tinha desaparecido? Na realidade, os intelectuais e os políticos que proclamavam o crepúsculo da teoria marxista da luta de classe cometiam um duplo erro. Por um lado, embelezavam a realidade do capitalismo. Nos anos 1950, Ralf Dahrendorf afirmava que se estava verificando um “nivelamento das diferenças sociais” e que aquelas mesmas modestas “diferenças” eram somente o resultado do mérito escolástico; contudo, bastava ler a imprensa estadunidense, até a mais alinhada, para dar-se conta de que mesmo nos países-guia do Ocidente subsistiam pavorosos bolsões de uma miséria que se transmitia hereditariamente de uma geração a outra. Ainda mais grave era o segundo erro, de caráter mais propriamente teórico. Eram os anos em que se desenvolvia a revolução anticolonial no Vietnã, em Cuba, no Terceiro Mundo; nos Estados Unidos os negros lutavam para pôr fim à supremacia branca, ao sistema de segregação, discriminação e opressão racial que ainda pesava sobre eles. Os teóricos da superação da luta de classes estavam cegos ante as ásperas lutas de classes que se desenvolviam sob seus olhos.

Critica Liberale: Se não entendemos mal, você amplia bastante o campo semântico da expressão “luta de classes”, compreendendo em seu interior uma gama de problemas e questões muito mais amplas?
DL: Sim, Marx e Engels chamavam a atenção não somente para a exploração que tem lugar no âmbito de um país singular, mas também para a “exploração de uma nação por parte de outra”. Outrossim, nesse segundo caso temos a ver com uma luta de classe. Na Irlanda, onde os camponeses eram sistematicamente expropriados pelos colonos ingleses, a “questão social” assumia a forma de “questão nacional”, e a luta de libertação nacional do povo irlandês não só era uma luta de classes, mas uma luta de classes de particular relevância: é nas colônias de fato – observa Marx – que “a intrínseca barbárie da civilização burguesa” se revela na sua nudez e em toda a sua repugnância.

Critica Liberale: Pode-se explicar melhor a gênese histórico-filosófica desta sua leitura tão incomum a respeito de categorias tradicionais?DL: A cultura do século 19 era chamada a responder a três desafios teóricos. Em primeiro lugar, de que modo explicar a marcha irresistível do Ocidente, que com o seu expansionismo colonial subordinava todo o planeta, esmagando até mesmo países de antiquíssima civilização como a China? Em segundo lugar, enquanto triunfava no plano internacional, o Ocidente se via ameaçado internamente pela revolta das massas populares que pela primeira vez irrompiam, e de maneira avassaladora, na cena da história. Pois bem, quais eram as causas desse fenômeno inaudito e aflitivo? Em terceiro lugar, o Ocidente apresentava um quadro bastante diferenciado de país a país. Se na Inglaterra e nos Estados Unidos assistia-se a um desenvolvimento gradual e pacífico em nome de uma liberdade bem ordenada, totalmente diferente era o caso da França: aqui à revolução se sucedia a contrarrevolução, por sua vez varrida por uma nova revolução; a partir de 1789, os mais diferentes regimes políticos (monarquia absoluta, monarquia constitucional, terror jacobino, ditadura militar napoleônica, império, república democrática, bonapartismo) se sucederam um ao outro, sem que jamais se realizasse a liberdade com ordem. Bem, qual era a maldição que pesava sobre a França? A todos estes três desafios teóricos a cultura dominante do século 19 respondia remetendo de um ou outro modo à “natureza”. Para dizer com Disraeli, a raça é “a chave da história”, “tudo é raça e não existe outra verdade”, e a definir uma raça “é só uma coisa, o sangue”; esta era também a opinião de Gobineau. Explicavam-se assim o triunfo do Ocidente ou da superior raça branca e ariana, a revolta daqueles “bárbaros” e “selvagens” que eram os operários e as convulsões incessantes de um país como a França, devastado pela miscigenação. Em outros momentos, a natureza a que se remetia tinha um significado mais brando. Para Tocqueville não havia dúvidas: o triunfo da “raça europeia” sobre “todas as demais raças” era vontade da Providência; a conduta mais ordenada da Inglaterra e dos Estados Unidos era a prova do mais robusto senso moral e senso prático dos anglo-saxões em comparação com os franceses, os quais eram devastados pela loucura revolucionária ou pelo “vírus de uma espécie nova e desconhecida”. Como se vê, o paradigma racial em sentido estrito (caro a Gobineau e Disraeli) tendia a ser substituído pelo paradigma etnológico-racial e pelo psicopatológico. Permanecia a referência a uma “natureza” mais ou menos imaginária e o abandono do terreno da história.

Foi sobre a onda da luta contra esta visão que Marx e Engels elaboraram a teoria da luta de classe. A marcha triunfal do Ocidente não se explicava nem com a hierarquia racial nem com os desígnios da Providência; ela exprimia o expansionismo da burguesia industrial e a sua tendência a construir o “mercado mundial” esmagando e explorando os povos e países mais débeis e mais atrasados. Os protagonistas das revoltas populares no Ocidente não eram bárbaros nem loucos; eram proletários, em seguida ao desenvolvimento industrial, tornavam-se cada vez mais numerosos e adquiriam uma consciência de classe mais madura. Em um país como os Estados Unidos o conflito social burguesia/proletariado era menos agudo, mas somente porque a expropriação e a deportação dos nativos permitia transformar em proprietários de terras uma parte consistente de proletários, enquanto a escravização dos negros tornava possível o controle férreo das “classes perigosas”. Mas tudo isto não tinha nada a ver com um superior senso moral e prático dos americanos, como foi confirmado pela sangrentíssima guerra civil, que entre os anos de 1861 e 1865 viu o confronto entre a burguesia industrial do Norte e a aristocracia proprietária de terras e escravista do Sul e, na última fase do conflito, os escravos (arregimentados no exército da União) contra os seus patrões ou ex-patrões.

Para compreender a ação histórica, é necessário remeter à história e à luta de classes, aliás às “lutas de classes” que assumem formas múltiplas e variegadas, entrelaçam-se umas às outras de modo peculiar e conferem uma configuração sempre diferente às diversas situações históricas.

Critica Liberale: O seu discurso parece, portanto, partir de uma leitura nova do legado de Marx e Engels?DL: A minha leitura de Marx e Engels pode surpreender, mas releiamos o Manifesto do Partido Comunista: “A história de toda sociedade que existiu até agora é a história das lutas de classes” e estas assumem “formas diversas”. O recurso ao plural faz entender que aquela entre o proletariado e a burguesia ou entre o trabalho assalariado e as classes proprietárias é apenas uma das lutas de classes. É também a luta de classes de uma nação que sofre a exploração colonial. Não é necessário, enfim, esquecer um ponto sobre o qual Engels insiste de modo particular: “a primeira opressão de classe coincide com aquela do sexo feminino por parte do masculino”; no âmbito da família tradicional “a mulher representa o proletariado”. Estamos, portanto, em presença de três grandes lutas de classes: os explorados e oprimidos são chamados a modificar radicalmente a divisão do trabalho e as relações de exploração e de opressão que subsistem em nível internacional, em um país singular e no âmbito da família.

Critica Liberale: Um discurso que vai longe, mas que pode ajudar a ler o passado com uma ótica nova.
DL: Somente assim podemos compreender o século passado. Nos nossos dias, um historiador de grande sucesso, Niall Ferguson, escreve que na grande crise histórica da primeira metade do século 20, a “luta de classe”, aliás, “a presumida hostilidade entre o proletariado e a burguesia”, tem desempenhado um papel bem modesto; bem mais relevantes teriam sido as “divisões étnicas”. Contudo, argumentando de tal maneira, mantém-se firme no ponto de vista do nazismo que lia a guerra no Leste como uma “grande guerra racial”. Mas quais eram os objetivos reais daqueles? São explícitos os discursos secretos de Heinrich Himmler: “Se não enchermos os nossos campos de trabalho de escravos – neste aspecto posso definir a coisa de modo líquido e claro – de operários-escravos que construam as nossas cidades, os nossos povoados, as nossas fábricas, sem ter em conta as perdas”, o programa de colonização e germanização dos territórios conquistados na Europa oriental não poderá ser realizado. A luta de todo um povo para evitar o destino de escravos sob domínio de uma suposta raça de senhores e patrões é claramente uma luta de classes!

Um acontecimento análogo ocorre na Ásia, onde o Império do Sol Nascente imita o Terceiro Reich e retoma e radicaliza a tradição colonial. A luta de classes de todo um povo que luta para escapar da escravização encontra seu intérprete em Mao Tsetung, que em novembro de 1938 sublinha a “identidade entre a luta nacional e a luta de classes” que veio a se produzir nos países contra os quais o imperialismo japonês investiu. Como na Irlanda da qual fala Marx, a “questão social” se apresenta concretamente como “questão nacional”, também na China daquele tempo a forma concreta assumida pela “luta de classes” é a “luta nacional”.

Critica Liberale
: A sua interpretação é tão heterodoxa, que poderiam abater-se sobre você, como ocorreu frequentemente no passado, críticas acesas também da parte da esquerda, além daquelas do mundo liberal.DL: Desafortunadamente, também na esquerda “radical” difundiu-se a visão de que a luta de classes se referiria exclusivamente ao conflito entre o proletariado e a burguesia, entre o trabalho assalariado e as classes proprietárias. Chama a atenção de modo negativo a influência de uma eminente filósofa, Simone Weil, segundo a qual a luta de classes seria “a luta daqueles que obedecem contra aqueles que comandam”. Não é este o ponto de vista de Marx e Engels. Em primeiro lugar, aos seus olhos, é luta de classes também a que é conduzida por aqueles que exploram e oprimem. Ainda querendo concentrar-se na luta de classes de caráter emancipador, esta pode muito bem ser conduzida do alto, por “aqueles que comandam”. Tome-se a Guerra de Secessão nos Estados Unidos. No campo de batalha se enfrentavam não os poderosos e os humildes, os ricos e os pobres, mas dois exércitos regulares. E, todavia, desde o início, Marx assinalou que o Sul era o campeão declarado da causa do trabalho escravagista e o Norte o campeão mais ou menos consciente da causa do trabalho “livre”. De modo totalmente inesperado, a luta de classes pela emancipação do trabalho tomava corpo em um exército regular, disciplinado e poderosamente armado. Em 1867, publicando o primeiro livro de O Capital, Marx indicava na Guerra de Secessão o “único acontecimento grandioso da história dos nossos dias”, com uma formulação que reclama à memória a definição da revolta operária de junho de 1848 como “o acontecimento mais colossal na história das guerras civis europeias”. A luta de classes, a própria luta de classes emancipadora, pode assumir as formas mais diversas.

Depois da revolução de outubro, Lênin sublinha repetidamente : “A luta de classes continua; apenas mudou a sua forma”. O empenho para desenvolver as forças produtivas, melhorando as condições de vida das massas populares, ampliando a base social de consenso do poder soviético e reforçando a sua capacidade de atração sobre o proletariado ocidental e sobre os povos coloniais, tudo isto constituía a forma nova assumida na Rússia soviética pela luta de classes.

Critica Liberale
: Como explicar este impressionante mal-entendido da teoria da luta de classes exatamente da parte da esquerda, que sobre a teoria do conflito social construiu boa parte da própria ação histórica?DL: A esquerda, mesmo a radical, resiste a compreender a teoria da luta de classes em Marx e Engels porque é influenciada pelo populismo. O populismo se apresenta aqui em duas formas conectadas entre si. A primeira já começamos a vê-la: é a transfiguração dos pobres, dos humildes, vistos como os únicos depositários dos autênticos valores morais e espirituais e os únicos possíveis protagonistas de uma luta de classes realmente emancipadora. É uma visão de que o próprio Manifesto do Partido Comunista já zombava, ao criticar o “ascetismo universal” e o “rude igualitarismo” e acrescenta: “nada mais fácil do que dar ao ascetismo cristão uma mão de verniz socialista”. Segundo Marx e Engels, esta visão caracteriza “os primeiros movimentos do proletariado”. Na realidade, esta primeira forma do populismo se manifestou com força na Rússia soviética, quando muitos operários, inclusive filiados ao partido bolchevique, condenaram a NEP como uma traição aos ideais socialistas. Uma réplica de tais processos e conflitos se manifestou na China quando, em polêmica contra a transfiguração do pauperismo e a visão do socialismo como distribuição “igualitária” da miséria, Deng Xiaoping chamou a realizar a “prosperidade comum”, a ser conseguida etapa após etapa (e mesmo através de múltiplas contradições). É nesse quadro que aparece o slogan “Ficar rico é glorioso!”, que suscitou tanto escândalo também na esquerda ocidental.

A segunda forma de populismo encontra sua expressão mais eloquente, e mais ingênua, de novo em Simone Weil quando nos anos 1930 imagina um enfrentamento homogêneo no plano planetário e decisivo de uma vez para sempre: enfrentar-se-iam o “conjunto dos patrões contra o conjunto dos operários”; seria uma “guerra conduzida pelo conjunto dos aparatos do Estado e os estados maiores contra o conjunto dos homens válidos e em idade de empunhar armas”, uma guerra que vê o enfrentamento entre o conjunto dos generais e o conjunto dos soldados! Nesta perspectiva não está mais o problema da análise das formas de luta de classes de tempos em tempos diferentes nas diversas situações nacionais e nos diversos sistemas sociais. Em toda a parte estaria em ação uma única contradição em estado puro: aquela que contrapõe os ricos e os pobres, os poderosos e os humildes.

É evidente a influência que esta segunda forma de populismo continua a realizar ainda nos nossos dias, em particular na esquerda ocidental: quando no afortunadíssimo livro de Hardt e Negri, O Império, lemos a tese segundo a qual no mundo de hoje a uma burguesia substancialmente unificada em nível planetário se contraporia uma “multidão”, esta própria unificada pelo desaparecimento das barreiras estatais e nacionais, quando lemos isto, não podemos deixar de pensar na visão que foi cara a Simone Weil.

Critica Liberale: Esta sua empenhada reconstrução do problema fornece uma chave de leitura para hoje?DL: Certamente! Permanecem em ação as três formas fundamentais da luta de classes analisadas por Marx e Engels. Nos países capitalistas avançados a crise econômica, a polarização social, a crescente desocupação e precarização, o desmantelamento do Estado social, tudo isto torna agudo o conflito entre o trabalho assalariado e uma elite privilegiada cada vez mais restrita. É uma situação que compromete algumas das conquistas sociais das mulheres, cuja luta de emancipação torna-se particularmente difícil em países que não alcançaram o estádio da modernidade. Quanto ao Terceiro Mundo, a luta de classes continua ainda a manifestar-se em medida considerável como luta nacional. Isto é imediatamente evidente para o povo palestino, cujos direitos nacionais são pisoteados pela ocupação militar e pelos assentamentos coloniais. Mas a dimensão nacional da luta de classes não desapareceu nem sequer nos países que se libertaram da sujeição colonial. Estes são chamados a lutar não contra uma, mas também contra dois tipos de desigualdade: por um lado devem reduzir a disparidade social em seu interior; por outro lado, devem preencher ou atenuar a distância que os separa dos países mais avançados. Os países que, sobretudo na África, descuidaram dessa segunda tarefa e que não compreenderam a necessidade de passar em dado momento da fase militar à fase econômica da revolução anticolonial, tais países não têm nenhuma real independência econômica e estão expostos à agressão ou à desestabilização promovida ou favorecida a partir do exterior.

Temos, portanto, três formas de lutas de classes emancipadoras, entre as quais não há uma harmonia pré-estabelecida: como combiná-las nas diversas situações nacionais e em nível internacional de modo que possamos confluir em um único processo de emancipação, é este o desafio com que tem que se defrontar uma esquerda autêntica.

Fonte: Blog da Resistência www.zereinaldo.blog.br

Tradução: José Reinaldo Carvalho

sábado, fevereiro 09, 2013

Alexandre Saldanha - A natureza de classe do chamado Estado social


Diário.info



07.Mar.12 :: Outros autores

A ofensiva que a ditadura da burguesia tem em curso significa que decidiu prescindir da variante social-democrata, atropelando o que a própria burguesia apelidava de “estado de direito”, liquidando direitos, intensificando brutalmente a exploração, e aprovando medidas de cariz repressivo e fascizante.

Nesta situação, aumentam as condições objetivas para a compreensão, por parte da grande massa dos trabalhadores e das camadas pobres, de que é necessário derrotar o capitalismo, a ditadura da burguesia, e lutar por uma alternativa: o socialismo. E aumenta a responsabilidade das personalidades e forças políticas e sociais de massas progressistas (de que se destaca o movimento operário e popular) na criação das condições subjetivas para o desenvolvimento dessa luta.


Na luta de classes que a atual crise de sobreprodução capitalista (para a procura solvente) tem vindo a agudizar, é cada vez mais invocado, por personalidades e forças de diversos quadrantes da burguesia (e, mesmo, de organizações de trabalhadores), o chamado Estado social, seja como manifestação de nostalgia por um “paraíso perdido” – apresentado como o fim da história da organização estadual em termos de melhores condições de vida e de trabalho –, seja como objetivo de luta apontado à classe operária e aos trabalhadores.

Em paralelo, também é muitas vezes invocado para desmascarar a hipocrisia daqueles que diziam defendê-lo, mas logo o postergaram quando o capital exigiu o aprofundamento da exploração para manter e aumentar a sua concentração e centralização.

Convém, por isso, balizar o que se quer dizer quando se utiliza o conceito de Estado social. Desde logo, a própria denominação potencia a confusão, pois incute a ideia de que existirá um Estado não social, o que é um tanto incongruente – o mesmo se pode dizer relativamente ao conceito de economia social, que ciclicamente é invocado como meio de superar o caráter predador do capitalismo.

Assim, partimos do entendimento comum de que o Estado social é um Estado capitalista com (de facto, forçado a ceder) direitos sociais para os trabalhadores e para as camadas pobres – por exemplo, nas remunerações, na saúde, na educação, ou na segurança social. Quer dizer; um Estado que se baseia na exploração individual do trabalho coletivo, mas que é obrigado a aceitar determinados limites e a atribuir algumas compensações sociais.

A conceção de Estado como “nação politicamente organizada”, que defende, de forma imparcial e neutral, os interesses de todo o povo – definição paradigmática assumida pelo manual de Organização Política e Administrativa da Nação (a então conhecida OPAN), durante o período fascista – deixou praticamente de ter defensores assumidos, pelo menos publicamente.

Mas é comum a conceção daqueles que, embora admitindo que o Estado não é completamente neutro, consideram que também não está ao serviço dos dominantes (por regra, evitam falar em classes). Por exemplo, para Pierre Bourdieu, conhecido sociólogo francês, que critica o dito processo de involução neoliberal nos EUA e na Europa, o Estado é um lugar de conflitos … mas «entre os ministérios financeiros e os ministérios “gastadores”, encarregados dos problemas sociais», e, assim, «o movimento social pode encontrar apoio nos responsáveis pelas pastas sociais, encarregados da ajuda aos desempregados crónicos, que se preocupam com as ruturas da coesão social, com o desemprego, etc., e que se opõem aos responsáveis pelas finanças, que só querem saber das coerções da “globalização” [1]»
.
Claro que sempre existem (ou há a suscetibilidade de existirem) contradições internas num governo – que devem ser aproveitadas pelos trabalhadores na sua luta por melhores condições de vida e de trabalho e por uma sociedade sem exploração –, mas isso não põe em causa a política global por ele prosseguida, que é a de defender a classe ou classes que o sustentam; em última análise, os ministros recalcitrantes vão para a rua.

Nós partilhamos a conceção de que o Estado é um instrumento de dominação e opressão de uma(s) classe(s) sobre outra(s) classe(s) – uma ditadura (no sentido marxista-leninista), portanto, da classe que domina sobre a classe dominada [2].

Em «A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, Engels refere que “O Estado não é, portanto, de modo nenhum um poder imposto de fora à sociedade e tão pouco é “a realidade da ideia ética”, “a imagem da razão” como afirma Hegel. Ele é antes um produto da sociedade num estádio determinado de desenvolvimento; é o reconhecimento de que esta sociedade está enredada numa insolúvel contradição consigo própria, que se cindiu em oposições inconciliáveis de que ela é incapaz de se livrar. No entanto, para que essas oposições, classes com interesses económicos em conflito, não se consumam em si próprias e à sociedade numa luta estéril tornou-se necessário um poder situado aparentemente acima da sociedade para abafar o conflito e mantê-lo dentro dos limites da “ordem” [3]».

Mais sinteticamente, Lenine escreve que «O Estado é o produto e a manifestação do caráter inconciliável das contradições de classe» e «surge precisamente onde, quando e na medida em que as contradições de classe objetivamente não podem ser conciliadas [4]».

Por isso, o Estado capitalista – baseado na apropriação individual do resultado do trabalho social, em que a classe dominante é a burguesia, dona dos meios de produção – é sempre utilizado para impor os interesses da burguesia aos interesses dos trabalhadores (ditadura da burguesia). Aquela quer cada vez mais lucros e estes melhores condições de vida e de trabalho e, quando atingem consciência de classe, uma sociedade onde não haja exploração.

Claro que esta ditadura da burguesia pode tomar formas diversas, desde o fascismo à chamada social-democracia, que se assume como “incorporadora” de causas sociais caras aos trabalhadores e “superadora” das contradições de classe. É esta última forma de dominação da burguesia que também é apelidada de “Estado social”, ou “Estado de bem-estar”, ou “capitalismo de rosto humano”.

Por sua vez, aos trabalhadores não é indiferente a forma de dominação da burguesia, pois o grau de violência e o terror fascistas, com a negação de direitos e liberdades fundamentais e não hesitando mesmo em utilizar o assassinato como arma política, torna ainda mais difícil o desenvolvimento do esclarecimento, da organização e da luta dos trabalhadores e das camadas populares por uma sociedade progressista.

Então, pode perguntar-se, qual a razão por que a ditadura da burguesia assume uma forma em determinado momento e outra em momento diferente? E a resposta tem forçosamente de considerar que a razão determinante, entre outras de caráter conjuntural, objetivo ou subjetivo (que podem ter maior ou menor influência), é a da relação política de forças, a nível nacional, primeiro e a nível internacional depois. No mundo atual, com a globalização e o domínio económico-político dos monopólios transnacionais, a que os média não escapam, cada vez mais o nacional e o internacional se inter-relacionam e se interpenetram.

Daqui resulta que o chamado Estado social/social-democracia mantém a natureza exploradora do capitalismo, mas foi obrigado pela relação política de forças, a nível interno e externo, a fazer cedências à classe operária e aos trabalhadores. Isto é, o Estado social é uma ditadura da burguesia com uma relação de forças que lhe é em grande medida desfavorável; e que, perante a relação de forças antagónica entre o trabalho e o capital e em determinadas condições de desenvolvimento das forças produtivas, teve de dar melhores salários e mais direitos aos trabalhadores. Foi o que aconteceu no período pós-Segunda Guerra Mundial até à derrota da URSS e dos países socialistas de leste, no início dos anos 90 do século passado, período em que os trabalhadores conquistaram importantes direitos sociais e melhores condições de vida e de trabalho. Porém, com a derrota do socialismo nesses países e uma relação de forças diferente, a burguesia está agora a atacar e espoliar os trabalhadores e os povos desses direitos e condições de vida, para impor um violento retrocesso social e civilizacional, fazendo jus à sua natureza de classe e ao objetivo último do capital: a maximização do lucro.

Ora, está a fazer escola o apelo ao estado social por parte daqueles que querem enclausurar dentro dos limites do capitalismo os objetivos da luta de classe dos trabalhadores por uma sociedade onde não exista a exploração do homem pelo homem. E também por outros que se deixam embalar por esta música, que se pode traduzir assim: “podem” lutar por melhores condições de vida e de trabalho dentro do capitalismo, mas afastem essa ideia de o superar e pôr fim à exploração.

Hoje, no turbilhão de uma crise cíclica de sobreprodução capitalista, a nível global, a ditadura da burguesia está a proceder à alteração da forma dita social-democrata do seu exercício para uma forma de aprofundamento da exploração, com a retirada de direitos fundamentais dos trabalhadores, atropelando o que a própria burguesia apelidava de estado de direito e aprovando medidas de cariz repressivo e fascizante.

Sobressai assim, de forma cada vez mais evidente, o caráter explorador, desumano e violento do capitalismo e a utilização da sua crise para avançar para formas de ditadura da burguesia cada vez mais retrógradas, reacionárias e repressivas. E isto é assim, sejam quais forem os partidos burgueses que sustentam os respetivos governos e as denominações que adotam – socialista, social-democrata, popular, democrata-cristão, liberal, trabalhista, “de esquerda” (com aspas, claro), conservador, nacionalista ou outra – como se prova com o exemplo de Portugal e dos outros países da UE.

Nesta situação, aumentam as condições objetivas para a compreensão, por parte da grande massa dos trabalhadores e das camadas pobres, de que é necessário derrotar o capitalismo, a ditadura da burguesia, e lutar por uma alternativa: o socialismo. E aumenta a responsabilidade das personalidades e forças políticas e sociais de massas progressistas (de que se destaca o movimento operário e popular) na criação das condições subjetivas para o desenvolvimento dessa luta.

Por isso, apelar à manutenção ou à luta pelo Estado social e não apresentar como alternativa a superação do capitalismo, tem como consequência a desmobilização dos trabalhadores da luta por este objetivo.

Por outro lado, credibiliza a consideração de que a ditadura da burguesia, na sua forma de social-democracia/Estado social é o fim da linha da luta dos trabalhadores e das forças progressistas por uma sociedade mais justa.

O alinhamento com algumas conceções e definições que se tornaram lugares comuns por imposição da ideologia dominante, em nome do politicamente correto, não contribuirá certamente para a criação das condições subjetivas necessárias à luta por uma sociedade socialista, que as condições objetivas existentes potenciam.

Daí a importância de colocar como objetivo da luta de massas a superação do capitalismo, que terá de incorporar: a conquista do poder de Estado, a nacionalização dos setores básicos da economia e a planificação económica central para satisfação das necessidades dos trabalhadores e das massas populares. Só a interiorização e assunção da necessidade e possibilidade de obter estes objetivos, num período de tempo maior ou menor, criará as condições subjetivas que perspetivem a superação da barbárie capitalista.


Lisboa, 5 de Março de 2012

Notas:
[1] Pierre Bourdieu (1930-2002): «O mito da “mundialização” e o Estado social europeu» – intervenção efetuada na GSEE (central sindical reformista do setor privado da Grécia), em Atenas, em 1996, p. 48 –http://www.mediafire.com/?weie0zs9k8rcmdd. 
[2] Sobre esta matéria, ver o opúsculo “A Questão do Estado Questão Central de Cada Revolução”, de Álvaro Cunhal, Edições Avante, 1977 (extraído de O Militante n.º 152, de novembro de 1967).
[3] Friedriech Engels: “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, em Obras Escolhidas de Marx-Engels, em 3 tomos, Edições Avante, 1985. t. 3, p. 366
[4] V. I. Lenine: “O Estado e a Revolução”, em Obras Escolhidas de V. I. Lenine, em 3 tomos, Edições Avante, 1978, t. 2, p. 226.

* Presidente da Mesa da Assembleia-Geral do Sindicato dos Trabalhadores da Atividade Financeira (SINTAF)

sexta-feira, novembro 30, 2012

Wagner Gomes: A “nova classe média” e a velha ideologia burguesa


Página Inicial

28 DE NOVEMBRO DE 2012 - 18H57 

Wagner Gomes: A “nova classe média” e a velha ideologia burguesa


Dezenas de milhões de pessoas foram resgatadas da condição de extrema pobreza no Brasil desde a eleição de Lula em 2002, graças às políticas de redistribuição de renda instituídas pelo governo, com destaque para a valorização do salário mínimo, e à salutar expansão do mercado de trabalho. 

Por Wagner Gomes*, na CTB


Wilson Dias/ABr
Classe média
O que a imprensa chama de nova classe média, na verdade é uma extensão da classe trabalhadora
O fenômeno é inegavelmente positivo. Falsa, porém, é a interpretação que o caracteriza como a emergência de uma nova classe média no Brasil, amplamente disseminada e vulgarizada pela mídia nativa.

Num livro recente em que refuta tal caracterização, o economista Marcio Pochmann mostra que a causa principal da mobilidade social em tela foi a criação de 21 milhões de novos postos de trabalho ao longo dos últimos 10 anos, sendo 94,8% deste total com salários equivalentes até 1,5 mínimo. O nível de desemprego, que tinha subido a 20% no governo FHC, despencou. Mas não se pode falar com seriedade em nova classe média. 

“Seja pelo nível de rendimento, seja pelo tipo de ocupação, seja pelo perfil e atributos pessoais, o grosso da população emergente não se encaixa em critérios sérios e objetivos que possam ser claramente identificados como classe média”, argumenta Pochmann. Trata-se, na realidade, de classe trabalhadora - e de baixa remuneração. Os dois conceitos conduzem a estratégias políticas diferentes, uma vez que os interesses e objetivos históricos da classe trabalhadora, reiterados a cada 1º de Maio, nem sempre coincidem com os da classe média, apesar de não serem antagônicos.

Embora pareça inofensivo, o falso conceito de classe média (que a mídia monopolista, como quem não quer nada, procura transformar em senso comum), serve a um propósito ideológico e político reacionário, que é o de incutir neste novo contingente de assalariados a cultura do consumismo e do individualismo, tornando-os consumidores em vez de cidadãos.

É uma operação ardilosa da velha ideologia liberal-burguesa, hoje travestida de neoliberalismo, cujo objetivo é obscurecer a identidade e a consciência de classe das trabalhadoras e trabalhadores, afastando-os com isto da busca de soluções coletivas para problemas sociais comuns, das lutas solidárias e das bandeiras classistas, que desde sempre inspiraram e guiaram o movimento operário e sindical. Podemos notar em tudo isto um significado análogo ao do novo idioma que o patronato usa para caracterizar o empregado, chamando-o de “parceiro” ou “colaborador”, como se já não existisse a subordinação do trabalho ao capital (atestado pelos altos índices de rotatividade) e o trabalhador tivesse sido alçado à condição de sócio da empresa.

O sindicalismo classista deve não só rechaçar o falso conceito em voga como também, e ao mesmo tempo, procurar compreender com maior rigor científico o fenômeno social em questão, de forma a abordar este novo contingente da classe trabalhadora com espírito classista, visando sua conscientização, sindicalização e incorporação nas lutas sociais. Desta forma, daremos à agenda da 2ª Conclat por um novo projeto nacional de desenvolvimento com soberania e valorização de trabalho a energia e a força de amplas massas. 

*Wagner Gomes é presidente da CTB

sábado, novembro 17, 2012

A propósito de lugares-comuns e ideias feitas


Coletivo Passa Palavra

A propósito de lugares-comuns e ideias feitas

28 de outubro de 2012  
Categoria: Portugal
O voluntarismo niilista implícito no Que se lixe! é a força motriz de qualquer fascismoPor Passa Palavra
Comentários insultuosos e irrelevantes não podem servir de base a nenhum debate fundamentado, por isso o Passa Palavra não costuma ocupar-se com eles. Fazêmo-lo agora porque, embora não sendo produtivos, são significativos. E assim neste artigo deixaremos de lado todas as contribuições sérias para o debate. Reconhecemos que é uma injustiça, mas se as ideias se convertem numa força social quando mobilizam massas, então as trivialidades, que se difundem mais facilmente do que as análises críticas, constituem uma força social mais imediata.
A democracia do insulto
É elucidativo que os comentadores histéricos tenham preferido insultar-nos nos blogs que frequentam habitualmente e onde encontram linkspara os nossos artigos em vez de colocarem observações no Passa Palavra, onde esses artigos foram originariamente publicados. Sucedeu mesmo que um sujeito não inseriu o linkpara o artigo que criticava, alegando que não queria aumentar-lhe as visualizações. E assim se aplicam os princípios do marketing ao que deveria ser um confronto ideológico.
Esta propensão a criticar de longe e como que em casa caracteriza igualmente os insultos no trânsito, em que cada um, fechado dentro do seu automóvel, grita impropérios que nunca teria coragem de dizer sem a protecção dos vidros e das portas trancadas. O trânsito e a internet constituem a infra-estrutura de uma forma política nova — a democracia do insulto.
Ora, como sempre sucede na arte, a forma é o principal conteúdo e neste caso é mesmo o único conteúdo. O insulto é a modalidade escrita do que na oralidade são os gritos, o barulho.
Os lugares-comuns
Quanto mais procuramos num artigo questionar lugares-comuns e fazer apelo ao raciocínio, tanto mais os comentadores histéricos gritam. Para quê, para se fazerem ouvir? Não, para eles próprios não ouvirem. E assim constroem uma câmara de eco numa sala de espelhos.
Pode obrigar-se as pessoas a muita coisa, mas não a pensar. Frequentemente os artigos que se criticam não são lidos ou, no máximo, passa-se a vista em diagonal, porque quem está habituado a ouvir-se a si mesmo não suporta outros sons. Lêem-se então só os comentários, ou alguns se forem muitos, e desanca-se o que se presume que o texto diz. Falha-se o alvo, mas quem se importa com isso, se os amigos também não lêem o texto?
Quanto mais estes comentadores se ouvem a eles próprios e quanto mais ouvem opiniões iguais às suas, mais acreditam que são muitos. Já repararam que se a embalagem de um produto reproduzir a sua imagem no rótulo se alcança o infinito? A repetição de uma imagem no interior dela própria é igual ao infinito. Sucede exactamente o mesmo com os comentadores histéricos. A democracia do insulto é simultaneamente um mecanismo de reprodução do infinito.
Mas como os insultos são desprovidos de conteúdo substantivo e os ecos e os espelhos são auto-referentes, deparamos com a multiplicação infindável do vazio.
O espantalho e a máscara
O argumento principal que temos defendido a propósito da permanência ou da saída de Portugal do euro é o de que o abandono do euro não só levará a uma deterioração maior ainda das condições de vida da classe trabalhadora portuguesa como deteriorará a situação dos pequenos e médios capitalistas, correndo-se o sério risco de que todos eles se precipitem juntos numa «nação em cólera», que — segundo a análise de um fascista sabedor e experiente — é o próprio caldo de cultura do fascismo.
Trata-se de um argumento com duas faces. A primeira diz respeito ao agravamento das condições de vida dos trabalhadores; a segunda, a uma possível convergência dos trabalhadores com a maioria dos capitalistas. Ora, este argumento tem sido ignorado.
Que se lixe!
Os comentadores que nos servem aqui de matéria-prima recusam-se a analisar os custos da saída do euro, sob o pretexto de que os custos da permanência são muito elevados. Sem dúvida, mas trata-se de saber quais são os mais elevados.
Querem debater seriamente os custos comparados de uma manutenção no euro ou de um abandono da zona euro? Querem debater seriamente as limitações do empresariado português e uma marginalização económica que se deve à estrutura social deste país e não à malevolência dos outros? Querem debater seriamente as alternativas económicas que se colocam dentro e fora da zona euro? Mas como discutir estas questões económicas sem falar de economia em termos económicos?
Acusam-nos então de falarmos «economês». Mas com que direito querem extrair conclusões económicas se se abstêm de proceder ao mínimo raciocínio económico? Abrem-se as portas, perdão, ficam escancaradas para o mais despudorado exercício de demagogia.
Reclamam contra os banqueiros, a quem atribuem todas as culpas do crédito oferecido, esquecendo-se aliás de observar como ele foi utilizado. Logicamente, protestam também contra os subsídios adiantados pelo Estado à banca. E deste modo colocam-se na actual crise exactamente na mesma posição em que, durante a crise da década de 1930, se colocavam as tendências mais conservadoras, também elas opostas ao salvamento dos bancos através de subsídios estatais. Esquerda e direita não são posições geográficas, mas políticas e ideológicas. Como devemos considerar a esquerda que adopta hoje posições que a direita conservadora defendia há oitenta anos atrás?
Vejamos a questão dos bancos e dos subsídios. O abandono do euro e a adopção do escudo, com todas as dificuldades e turbulências provocadas por esta mudança, implicaria a estatização do sistema bancário, o que obrigaria não ao fim do crédito aos bancos mas, pelo contrário, a novas injecções de crédito, só que feitas mais ocultamente do que agora.
E como a saída da zona euro e a adopção de uma moeda de pechisbeque traria condições de vida ainda piores do que as que já sofremos, provocaria uma considerável desilusão dos trabalhadores, que tinham esperado salvar-se ou pelo menos emergir e ver-se-iam mais afundados. Daqui resultaria muito provavelmente uma agudização das reivindicações e das lutas, numa situação em que os patrões e os governantes teriam ainda menos margem de manobra do que hoje. A resposta só poderia ser o agravamento da repressão e a tentativa de pôr fim às greves sob o pretexto de que precisamos de defender a economia nacional. Os mais velhos de entre nós já ouviram esta música.
Ora, como escreveu Nuno Cardoso da Silva, um comentador que neste contexto citamos por excepção, já que destoa das futilidades e dos delírios, «não precisamos efectivamente de nenhum capitalismo de Estado para resolver os problemas do capitalismo privado».
Nada disto convence os comentadores histéricos, que repetem em todos os tons Não importa o que virá depois. Mas isto significa que se derruba a actual situação sem saber em benefício de quem. O Que se lixe! tem uma função exclusiva de ocultamento político.
Os cegos e o precipício
O voluntarismo niilista implícito no Que se lixe! é a força motriz de qualquer fascismo.
Ora, os nossos comentadores histéricos buscam precisamente, nestes dias de agora, contribuir para que se junte nas ruas uma «nação em cólera». Veremos se o conseguem, se as ruas servirão para marcar as clivagens entre classes ou para as confundir na amálgama nacional, porque o fascismo surge quando aquela cólera mobiliza em conjunto toda a nação. Um comentador chegou ao ponto de afirmar que queremos que as pessoas não entrem «em cólera», sem se dar conta de que para nós o problema não está na cólera, mas na nação.
Para quê demonstrar o que os próprios comentadores afirmam? Não é só depois de um eventual abandono do euro que serão criadas condições para o aparecimento de um fascismo, mas é desde já que alguns, ou muitos, se esforçam por fazê-lo. Veja-se este comentário, que reproduzimos extensamente: «E um bom Nacionalismo deve ser agnóstico em relação à estupidez imbecilizante e divisionária do paradigma “Esquerda/Direita”. Isso só serve para dividir e não para unir. Não queremos cá marxismos, nem capitalismos, nem liberalismos. Defender os trabalhadores e empresários de igual modo, fomentando a criação de PME e diminuindo os impostos e pornográficos IRS e IRC». Mas é precisamente isto que temos dito e repetido desde o nosso artigo sobre Os perigos da «nação em cólera». Será que não dão conta do fascismo quando o têm diante dos olhos, como sucede neste comentário? E quantas e quantas pessoas dizem o mesmo todos os dias nas ruas, nos empregos, nos cafés, nos transportes públicos?
Ou será que não sabem o que é fascismo, quando sistematicamente o confundem com a repressão? Um regime não é fascista só por empregar a repressão. Senão, veja-se o exemplo da União Soviética, que nunca foi fascista mas em matéria de repressão não precisava de lições de ninguém. O fascismo caracteriza-se por mobilizar vastas massas operárias em favor de um programa nacionalista. É isso o fascismo, uma renovação nacionalista do capitalismo e das instituições conservadoras graças a um impulso vindo da rua.
Ora, estes comentadores falam muito em atacar o euro e a União Europeia e pouco ou nada em atacar o capitalismo. Mas reduzir o capitalismo, que é um sistema global de exploração, a uma das suas modalidades é a receita directa para perpetuá-lo. Nestes termos, em vez de abalarem o sistema, as lutas sociais renovam-no e reforçam-no. Tem sido esta a função do fascismo.
A economia real e os delírios nacionais
Talvez por não dominarem o «economês», nenhum dos comentadores respondeu aos nossos argumentos a respeito da transnacionalização do capital. No entanto, sem isto não tem qualquer sentido falar de nacionalismo e de internacionalismo.
Nós nunca defendemos «a unificação de Estados burgueses em super-Estados», como nos acusou um comentador que treslê. Pelo contrário, escrevemos que foi ultrapassada a época da internacionalização do capital e se desenvolveu uma época nova, em que hoje vivemos, a da transnacionalização do capital, que ultrapassa as fronteiras nacionais e lhes tira a relevância económica e que esvazia progressivamente os Estados e governos nacionais. É neste contexto que deve falar-se hoje de internacionalismo.
Há quem nos acuse de «prostração perante a grande burguesia europeia e a oligarquia financeira europeia». Mas interessam-nos sobretudo as conjunturas sociais e as potencialidades de luta. E não deixamos de analisar e de criticar o capitalismo português e as características do seu tecido empresarial. Ora, como sucede frequentemente, o anti-imperialismo destes comentadores serve para absolver os capitalismos nacionais. Aliás, alguns comentadores mais histéricos postulam a equivalência entre o internacionalismo do Passa Palalvra e o imperialismo dos Estados Unidos ou da Alemanha.
Mas aqueles que «por anticolonialismo» defendem «a saída imediata de Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha da União Europeia» será que há alguns anos atrás defenderam também que saíssem imediatamente da União Soviética a Ucrânia, a Bielo-Rússia, a Geórgia, a Arménia, o Azerbeijão, a Estónia, a Letónia, a Lituânia, o Uzbequistão, o Turquemenistão e desculpem-nos os esquecimentos? Ou será que a balcanização, que é uma catástrofe visível no Leste da Europa, se transformará numa benção a Ocidente?
Será que imaginam que, saindo da zona euro, Portugal poria em causa os centros imperialistas? Ora, a economia portuguesa representa uma parcela ínfima do Produto Interno Bruto da zona euro e não é com estas migalhas que os centros capitalistas europeus enriquecem, mas com a exploração dos seus próprios trabalhadores. É elucidativo do estado de coisas a que chegámos que seja necessário explicar aos «marxistas patrióticos» que é o aumento da produtividade — mediante a qualificação crescente da força de trabalho, a passagem a sistemas produtivos mais complexos e a intensificação dos ritmos laborais — que constitui o principal motor da acumulação ampliada do capital. Esqueceram-se da mais-valia relativa. Mas este b-a-bá tem de ser esquecido pelos defensores do nacionalismo, que vitimizam como um todo a sociedade do jardim à beira-mar e atacam como um todo a sociedade dos países mais produtivos.
Nós falamos de classes, coisa que estes comentadores não vêem quando falam só de nações. Por isso nem lhes passa pela cabeça analisar as contradições sociais nos centros mais produtivos da União Europeia e confundem os «trabalhadores do centro e norte ricos da Europa» entre o saco sem fundo dos defensores da chanceler Merkel. Um dos comentadores evocou mesmo «uma União Europeia, comandada sobretudo pelos capitalistas do Norte e fortemente apoiada pela classe trabalhadora bem instalada nesses países e que não sente a crise». Voltámos assim à oposição entre nações proletárias e nações plutocráticas, típica da panóplia de conceitos dos fascismos.
Depois acham que não temos razão para estar preocupados?

Comentários

14 Comentários on "A propósito de lugares-comuns e ideias feitas"

  1. Fernando em 29 de outubro de 2012 00:14 
    “Nós falamos de classes, coisa que estes comentadores não vêem quando falam só de nações.” Falam de classes, mais ou menos… ao longo de vários posts têm vindo a falar dos custos sociais da saída do euro … para a “classe trabalhadora portuguesa”.

    De resto, a UE não é comandada unicamente pela Alemanha, mas é inegável o papel preponderante que esta tem na sua direcção. Inegável também é que Merkel tem largo apoio popular, pelo que se presume que o povo alemão aceita a política interna e externa pelo seu governo praticado. Inegável também é que a classe trabalhadora alemã – se me permitem dizer que existe tal coisa sem me apelidarem de fascista – não sofre na pele o elevado desemprego nem os baixos salários que existem em Portugal ou Espanha neste momento. Não se trata de nações proletárias nem de nações plutocráticas, mas não se vislumbra qualquer mudança institucional (qual deveria ela ser?) que combaterá o “gap” que se vai alargando entre os países credores e os países devedores – se mais uma vez me permitem dizer que existem tais coisas sem me chamarem nacionalista.

    Termino este breve comentário dizendo que defendo maior integração europeia, emissão de eurobonds e toda essa panóplia de soluções pré-socialistas. Falta votarmos nas eleições que determinem as políticas do BCE, não é verdade? Um voto por país, “bale”? E se esses votos forem tão favoráveis ao progressismo como têm sido as do parlamento europeu? A democracia tem destas coisas…
  2. Mário J. Heleno em 30 de outubro de 2012 11:11 
    É verdade que há imenso barulho dos que começam por metralhar, na própria trincheira, primeiro os não adeptos da metralha, depois os que disparam noutra direcção que não a sua e, uma vez sós na trincheira, os próprios pés.

    Mas, por outro lado, permanece um imenso silêncio do passa-a-palavra na resposta clara a uma pergunta simples: Sabendo o que não fazer, o que propõe que se faça, hoje, agora e concretamente?
  3. Passa Palavra em 30 de outubro de 2012 12:51 
    Mário Heleno,
    Muito em breve o Passa Palavra (note que, por economia linguística, não usamos artigo) quebrará o silêncio relativamente a essa questão. De qualquer modo, já em Maio deste ano abordámos o tema, embora num texto relativo à situação no Brasil, já que somos um site luso-brasileiro. Pode ver aqui:

  4. Mário J. Heleno em 30 de outubro de 2012 19:03 
    Esse texto resume como a vossa crítica contribui para a descoberta/invenção do caminho a seguir aqui, agora e concretamente. Ninguém duvida disso, o problema é que tal mérito só por si não exclui a hipótese de não vislumbrarem caminho nenhum.
  5. nf em 31 de outubro de 2012 20:25 
    Os autores deste texto estão a par da situação grega?
  6. ABCD em 31 de outubro de 2012 20:40 
    O autor do comentário anterior tem alguma noção do que ocorrerá do ponto de vista económico e político no caso de uma implosão da zona euro? Se soubesse certamente que não faria comparações deste género…
  7. nf em 1 de novembro de 2012 00:02 
    Não, eu não sei o que aconteceria se houvesse uma implosão do euro. Mas sei, bastante bem, o que se passa na Grécia. É a todos o níveis um país em depressão, onde se pode ver in loco o que neste texto parece ser o que acontecería se um dos países periféricos saísse do Euro (radicalização à direita, nacionalismo, etc).
  8. Passa Palavra em 1 de novembro de 2012 00:08 
    NF,
    Você poderia desenvolver melhor o seu argumento? Poderia falar mais sobre a radicalização à direita e o nacionalismo na Grécia actual?
  9. nf em 1 de novembro de 2012 17:12 
    Caros,
    O meu argumento é simples. Muito daquilo que se prevê que aconteça com a saída do euro (nacionalismo radical de direita, desejo de soluções autoritárias, fragmentação institucional, etc) é já uma realidade na zona euro. Basta acompanhar a situação na Grécia para se perceber que qualquer coisa semelhante a Weimar pode nascer dentro da UE. A depressão está aí à porta.

    Veja-se aliás quantos dos nacionalismos mais radicais por essa Europa fora vivem à custa do “projecto europeu”.
    ps- por falta de tempo não posso dar as minhas impressões daquilo que é a Grécia de hoje. Só posso dizer uma coisa: foi ao tapete e quando caiu levantou poeira que a Europa julgava varrida para sempre.
  10. ABCD em 1 de novembro de 2012 17:21 
    O fascismo como movimento é uma coisa por si já tenebrosa. O fascismo como regime é outra… E uma constelação de regimes fascistas, então nem se fala
  11. Rodrigo O. Fonseca em 2 de novembro de 2012 19:13 
    “reduzir o capitalismo, que é um sistema global de exploração, a uma das suas modalidades é a receita directa para perpetuá-lo. Nestes termos, em vez de abalarem o sistema, as lutas sociais renovam-no e reforçam-no”.

    Bingo. Eis uma boa chave para ler as contraidentificações com o capitalismo no século XX.
  12. Manuel Monteiro em 7 de novembro de 2012 21:40 
    Não estando eu contra o fundo do artigo, penso que há aqui uma falha de fundo: uma posição analitica um bocado descomprometida com a direção da luta popular.

    Quer dizer: muita preocupação com as contradicões sociais sem colocar a tónica que é necessário um programa revolucionário para que a luta popular revolucionária afaste o perigo do fascismo.

    Ainda aqui há pouco se gritava em Portugal que o movimento popular estava parado e que não havia clareza para apresentar um programa revolucionário. Pois bem; o movimento está em movimento(boa frase), mas não há um esforce, dentro do movimento, para teorizar um programa que dê um sentido à luta.

    É claro que um programa de luta apenas a nível nacional não faz sentido. Ele tem que ser estendido a toda a europa, unificando as lutas e o proletariado europeu na sua luta contra o capitalismo. Os reformistas já viram isto e, através das suas centrais sindicais, estão a caminhar nessa direcção.

    E nós? Continuamos na nossa capelinha e nas nossas análises brilhantes, mas fora do movimento popular?

    Eu lembro-me, quando com os camaradas do projecto Mudar de Vida, andava desesperadamente à procura de uma pequena luta popular e quando ela surgia que alegria. Agora que quase todos os sectores populares estão em luta, embora desorientados, não se vê um esforço de participar nas lutas e, messas lutas, formular teorias e programas de ruptura com o sistema capitalista.

    É idealismo da minha parte? Será. Mas esta é a minha velha experiência de proletário com pouca teoria e muita acção. E, pese embora os anos e a doença, aqui estou disponível para voltar à liça; mesmo que de bengala…

    Um abraço, camaradas

    Manuel Monteiro
  13. João Bernardo em 8 de novembro de 2012 01:23 
    Caro Manuel Monteiro,
    Há muitos séculos atrás, alguém que tu conheceste de nome e eu, para minha infelicidade, conheci pessoalmente, disse-me, acerca de um dado texto, que «era muito teórico». Ao que eu respondi que os textos são sempre teóricos, só que podem ser boa ou má teoria. E acrescentei que a prática se faz noutro plano, fora dos textos. As análises críticas que possam ser feitas, noPassa Palavra ou noutro lugar, não significam que as pessoas que as escrevem não tenham uma actividade prática. Também não significam que a tenham. Embora geralmente seja possível, através do que está escrito, ver se as coisas são ou não conhecidas por dentro. Mas as análises críticas tornam-se tanto mais necessárias quanto mais parece que todos gritam em coro. E o nacionalismo converteu-se hoje, em Portugal, num perigo iminente não só devido à ausência de uma relação organizada com as lutas da classe trabalhadora noutros países mas — e é isso que é muitíssimo mais grave — devido a uma deliberada vontade nacionalista da maioria da esquerda portuguesa. O programa que a maioria dessa esquerda nos apresenta é a união dos trabalhadores com os pequenos e médios patrões contra a Alemanha. O fascismo foi isto mesmo: uma mobilização dos trabalhadores, ao serviço de uma renovação do capitalismo, representando uma pretensa nação proletária contra as pretensas nações plutocráticas. Todas as críticas que sejam feitas a um programa desse tipo me parecem bem vindas.
    Para ti, o meu abraço trans-oceânico.
  14. Manuel Monteiro em 8 de novembro de 2012 12:46 
    João
    Voltamos ao mesmo.

    Que a esquerda reformista leva o movimento popular para um beco sem saída, ou para o fascismo, já nós sabemos.

    O meu problema é a posição dos revolucionários e a sua obrigação de se inserirem no movimento de massas e dar a sua comparticipação para a elaboração de um programa revolucionário.

    E não tenho dúvidas que esse programa trará para o campo popular, sem lhe fazer cedências, o pequeno patronato industrial e agrícola arruinados pelo grande capital. E saberá neutralizar a chamada classe média, não lhe dando, como agora se passa, um lugar de vanguarda da luta(Já sei que esta palavra vanguarda faz eriçar muitos cabelos).O que tem que ficar claro nesse programa é que nós não queremos outro capitalismo; mas que queremos derrubar todos os capitalismos e que visamos desapropriar os detentores da propriedade privada e transformá-la em propriedade colectiva.

    Portanto, companheiro, eu não estou contra os textos teóricos. Estou a favor de os canalizar, de uma forma rigorosa e acessível, para os combatentes populares; que não são burros e que, pela prática, chegam à compreênsão dos grandes problemas da humanidade.

    E estou-me a lembrar de um velho operário do PCP, o Francisco Miguel, que, na prisão, dava aulas de economia politica, do materialismo histórico e dialético, aos intelectuais e operários do partido.

    Como as coisas estão, infelizmente, vejo mais as coisas inclinarem-se para o fascismo do que para a revolução socialista.

    Mas, se assim suceder, nós teremos grandes responsabilidades.

    E estou-me cagando para aqueles que acham que as minhas teorias da vanguarda estão ultrapassadas. Vanguarda ou retaguarda, o que é preciso é nós estarmos no centro das lutas, contribuirmos, sem caciquismos, para o debate teórico e ganharmos clareza, pela luta e pelo debate, das grandes questões que atormentam a humanidade.

    Foi este o meu passado.Não é um passado sem mácula. Alinhei em muito contrabando teórico. Ajudei a mutilar muita dinâmica.Contribui para incensar muitos mitos.

    Mas, como dizia o poeta, o caminho faz-se caminhando.

    Temos que voltar de novo ao caminho e caminhar. Agora libertos de muita canga inútil.

    Frágeis de tanta derrota histórica

    Mas mais fortes pelo braço da experiência.

    Um abraço, João.

    Manuel Monteiro

    http://passapalavra.info/?p=66327