A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht
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segunda-feira, dezembro 14, 2015

O PAPEL DA RÁDIO E IMPRENSA CLANDESTINAS NO COMBATE À DITADURA SALAZARISTA



desenho do pintor António Domingues, datado de 1953. 






O PAPEL DA RÁDIO E IMPRENSA CLANDESTINAS NO COMBATE À DITADURA SALAZARISTA
Amigos, companheiros e camaradas, daqui fala a Rádio Voz da Liberdade

Nos tempos da ditadura salazarista, ouvir uma rádio clandestina ou trazer no bolso um jornal proibido tinha valor simbólico, equivalia à assunção de uma cidadania que se opunha à noite negra. No colóquio realizado em Abril passado, no Edifício Chiado, em Coimbra, sobre a rádio e imprensa clandestinas durante o salazarismo, Mário Mesquita lembrou a função simbólica destes meios, ajuntando-lhe quatro outras características. Rádio e imprensa clandestinas informavam, porque difundiam o que a censura proibia; doutrinavam, porque potenciavam o debate de ideias então proscrito; organizavam, funcionando como elemento estruturante em relação às organizações políticas a que se encontravam ligadas. Por último, a própria formação dos fazedores da rádio e dos jornais clandestinos, que dealbaram no jornalismo sem amarras que o 25 de Abril nos propiciou.

Estela Piteira Santos foi a primeira voz feminina da Rádio Voz da Liberdade, emitindo desde Argel. Fez questão de saudar os presentes com a mesma fala de há muitos anos, a primeira aos microfones da estação clandestina:

“Amigos, companheiros e camaradas, daqui fala a Rádio Voz da Liberdade, em nome da Frente Patriótica de Libertação Nacional”. 

Manuel Alegre foi director da Rádio Voz da Liberdade. Alegre, segundo Mesquita “a Voz da Liberdade”, desfiou estórias daquele tempo, por exemplo a primeira entrevista dada por Amílcar Cabral dirigida aos portugueses. Alegre lembrou ter Cabral assumido Camões, os Lusíadas, ousando dizer “aquilo que a esquerda portuguesa não assumia, por inibição”. Agostinho Neto, Samora Machel, Eduardo Mondlane também foram entrevistados por Manuel Alegre, vozes amplificadas por uma “rádio de indignação”, “um grito na noite contra a censura e contra o medo”. 

A canção era uma arma, os microfones da RVL também, apontados a campanhas para a libertação dos presos políticos, revelando dados sobre a guerra colonial submersos pelos censores portugueses, recebendo correio de muitos exilados, interrogando-se todos os dias sobre as audiências. Quem os ouviria ao tempo, num tempo em que o audímetro era palavra desconhecida, e o “share” não interessava para vender anúncios, mas para propagandear a Liberdade? 
Eram ouvidos país fora, melhor no Algarve e no Alentejo. 


Por cá, quem arriscava a sintonia colocava um copo de água em cima do receptor, obediente à lenda de que o copo mais a água afugentavam as carrinhas detectoras da Pide. 

Aurélio Santos, outro resistente, militante do PCP, que animou em Bucareste a Rádio Portugal Livre, lembrava outro truque: “havia quem pusesse o receptor junto às canalizações da água”. Se o truque não despistava os detectores, os canos sempre serviam de reforço de antena. 

A aura clandestina alimenta-se de mitos, também, já se disse. Um deles criou-se em torno desta rádio em português, vinda lá de longe, da Roménia. Mas se em Portugal os portugueses pensassem que a rádio emitia nas barbas da PIDE, a mensagem ganhava coragem. Durante algum tempo, circulou o mito de que a Rádio Portugal Livre emitia desde a Serra da Estrela! 

Os sons clandestinos que o éter vertia subvertiam mesmo a noção clássica que julgávamos assente, da actualidade, do que aconteceu nos momentos anteriores. A rádio clandestina noticiava greves promovidas em Portugal, e se só conseguia dar a notícia um mês depois, pouco importava: a notícia era actual, porque em Portugal não tinha havido qualquer notícia da greve. 

A organização do PCP reflectia-se no próprio arquivo da estação: as entradas começavam todas por “L”, de luta: lutas dos estudantes, lutas dos camponeses, lutas dos metalúrgicos. 

Havia a hora dos camponeses, também a Voz das Forças Armadas, que Santos afiançou ser ouvida até no remanso das casernas. 

Donas de casa exiladas cerziam o éter de invectivas às donas exiladas em suas casas portuguesas, com certeza: 

“Como dona de casa, daqui me dirijo a todas as donas de casa, exortando-as a que protestem nos mercados, nas lojas, e que façam sentir por toda a parte o seu descontentamento e revolta contra a actual carestia de vida. Exorto ainda a que se formem comissões de rua ou de bairro e também nas fábricas para organizar e coordenar este movimento de protesto que é necessário desencadear para o bem de todos nós”. 

Os sons da rádio que se assumia como “Voz do Partido Comunista Português” perenizaram-se em cassete preciosa que o “partidão” editou logo após o murchar das rosas que a primavera marcelista não conseguira fazer brotar. O país calado abriu tímpanos para Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Álvaro Cunhal. Por cá, e para os de mais difícil sintonia, o “Avante” funcionava como spot impresso, publicitando os metros das ondas clandestinas: “Pelas ondas de 26,31 e 32 metros, das 15 e 10 às 15 e 40, ou pela onda de 31 metros das 22 e 15 às 22 e 45, já podemos escutar: “Atenção, povo português! Aqui Rádio Portugal Livre, uma Emissora Portuguesa ao serviço do Povo, da Democracia e da Independência Nacional! ” 

“Que todos divulguem a nova voz anti-fascista, de modo a poder ser escutada em todo o país” — pregoava-se em Abril de 1962. 

Oito anos volvidos, a fidelidade às ondas esmorecera, razão para “O Militante”, boletim do Comité Central do PCP, puxar as orelhas aos de escuta mais relaxada: 

“A justificação mais usada dos que não ouvem com regularidade a Rádio é a falta de tempo ou já sei o que vão dizer. A falta de tempo traduz uma falta de interesse e uma evidente subestimação do papel da Rádio do Partido. Os que dizem já sei o que vão dizer manifestam uma atitude de autosuficiência para com a nossa Rádio. Estas atitudes são incorrectas devendo fazer-se um esforço para as eliminar dentro do Partido”. 

Escuta então como dever militante. 



Carlos Brito andou pelos media clandestinos, mas em vez da voz leve que o vento leva tratou das letras de chumbo que se não cansaram de imprimir o “Avante”, o jornal clandestino de maior longevidade que há memória, mesmo que ninguém se tenha lembrado de o registar no “Guiness Book”. 

A história do PCP até se pode fazer olhando às tiragens do “Avante”. Em 1936 foi tempo de deslumbramento para os tipógrafos clandestinos: dez mil exemplares de tiragem. No balanço eufórico passou a semanário em 1938, para logo a seguir ser silenciado três longos anos. Voltou então para não mais esmorecer até ao alvorecer dos cravos, vestindo-se depois, até aos dias hoje, com as roupas da legalidade. 

Em 1942 imprimiam-se, por edição, 2.700 exemplares; no ano seguinte subiu aos três mil; em 1946 voltou aos dez mil, porque era tempo de pujança do partido, no pós-guerra. Álvaro Cunhal foi preso, acompanharam-no uma série de camaradas, a organização tremeu e o “Avante” deu sinal disso mesmo, baixando a tiragem para os cinco mil. Haveria de subir aos sete mil passados anos, número que se aguentou firme até ao 25 de Abril. 

Imprimia-se em tipografias de cidade, e as que funcionavam com mais segurança eram as localizadas em prédios de habitação, de preferência com móveis grandes. O bojo destes permitiria guardar o rolo, as tintas, o papel, os chumbos. 

Os chumbos que uma vez viraram soldadinhos falsos. Carlos Brito tratava de transferir uma tipografia clandestina para uma zona mais segura na cidade do Porto. Levava nesse dia uma caixa em madeira, com os chumbos dentro. Pesava que se fartava, a caixa embrulhada com papel de sapataria. Tanto pesava que Brito se fez de coxo. Deixou o táxi e parou numa farmácia, pedindo remédios para a “maleita” que lhe afectava o pé. Sentou-se esperando que lhe aviassem a receita. Apesar dos cuidados extremos, quando se levantou deixou a caixa na cadeira. Senhora solícita tratou de pegar na caixa de sapatos para a entregar ao desditoso “coxo”. É o pegas, que a caixa pesava toneladas! 

A senhora fez a pergunta incómoda a Carlos Brito. Afinal, lá dentro não levava sapatos: 

“São soldadinhos de chumbo para as crianças, minha senhora!” 



O “Avante” era clandestino, parido por partido clandestino. Outros aproveitavam fissuras legais para editarem textos semi-clandestinos em nome de organizações semi-legais. Aconteceu com o “Boletim da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos”. O regime autorizara cidadãos reunidos em socorro de vítimas de catástrofes, haveria maior desdita que a Ideia de Liberdade agrilhoada nas masmorras da PIDE? 

Eugénia Varela Gomes, Cecília Feio, Levy Baptista, Nuno Teotónio Pereira e Luís Moita criaram a comissão que aparecia no cabeçalho do boletim, este feito a cheirar ao carbono do stencil albergado em cozinha esconsa de escritório de advogado desactivado, para as bandas de Campo de Ourique. 

“Denunciávamos, no boletim, os crimes de guerra praticados pelo exército português, divulgávamos as posições dos movimentos de libertação, estatísticas das baixas dos soldados portugueses, e vituperávamos a solidariedade da Nato e outras organizações para com a política colonial portuguesa” — lembrou Luís Moita. 

Decidido pelos membros da Comissão que a guerra colonial era o calcanhar de Marcelo que haveria de pôr o regime a coxear, avançaram para outra publicação: o B.A.C., Boletim anti colonial. O grupo, respaldado por plêiade de católicos “altamente politizados”, sofrendo “enormíssimas influências marxistas”, conseguiu publicar sete números do B.A.C., para logo depois integrarem o contingente dos presos políticos de que a outra publicação tratava. O “Boletim da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos” haveria de despedir-se dos leitores já Abril dos cravos ia alto, com notícia requentada da prisão de Luís Moita e companheiros de jornada. 



Lá por fora, ”estrangeirados” de nome Aquiles de Oliveira, Alberto Melo, Fernando Medeiros, Rodrigues dos Santos, Alfredo Margarido e Manuel Villaverde Cabral chegaram à conclusão, nos idos de 67, que a crítica ao regime salazarista padecia de “informação objectiva e firmeza ideológica”. Denunciaram a maleita nos “Cadernos de Circunstância”, impressos em Paris até 1970, aventura recordada no colóquio por Villaverde Cabral: 

“Pretendíamos dar um contributo diferente à luta política, fornecer à oposição elementos de debate, se possível ancorados em estatísticas; uma missão mais informativa, mais de reflexão do que de propaganda” — sinalizou aquele docente universitário. 

O primeiro número tratava da morte do Che, “capitán atado por la muerte”, pretexto para ferroadas várias aos partidos comunistas da América do Sul, Europa Ocidental também, máxima de Guevara transcrita para lembrar uma sua tese “demasiado simples, demasiado luminosa, límpida como todas as ideias generosas e objectivas”: 

“Só há uma maneira de se opôr às ameaças crescentes do imperialismo e à ofensiva do seu agente mundial — os USA — é pegar em armas e criar no mundo um, dois, três novos Viêt-Nam!” 

Cadernos fruto da sangria que tornava Portugal exangue de “trabalhadores intelectuais”, a circunstância mandaria que se escrevesse sobre “a violência na luta política e na vida quotidiana”, “os TUBARÕES e as sardinhas”, “o 3º plano de fomento”, “os investimentos estrangeiros em Portugal”. 

Ou que se respigasse texto de Cohn-Bendit, onde se falava da universidade “termómetro da resistência contra a uniformização e a integração social”; onde se falava da revolução-miríade, “um luxo, um sonho” se os estudantes não fossem capazes de “virar o saber ao contrário”. 



O “luxo” da revolução estudantil francesa era necessidade em Portugal, metamorfoseou-se em cravos vermelhos numa madrugada embalada por Zeca Afonso e Paulo de Carvalho, ia-se afogueando num Verão que foi Quente, cumpriu as urnas onde a democracia nasce feita voto, passou a celebração, depois evocação, depois amareleceu. 


O colóquio de Coimbra, se serviu para debater o papel da rádio e imprensa clandestinas durante a noite negra, serviu também para lembrar aos mais distraídos o sagrado valor da Liberdade "a noiva eterna das almas juvenis, o ideal sublime por que combatem todos", conforme definição de outras clandestinidades, as que antecederam a aurora republicana de 1910. 
Evocação que se quer tonitruante, que o amarelecer da memória lava mais rápido que o “OMO”. Manuel Alegre deixou repositório cáustico contra o que considera ser uma operação de branqueamento da ditadura: 

“O 25 de Abril foi uma revolução triunfante que não soube fazer a pedagogia dos seus valores. Vencedora no plano político não substituiu — e ainda bem —, uma cultura oficial por outra cultura oficial. Mas permitiu que pouco a pouco a estratégia do revisionismo fosse fazendo o seu caminho. Ora, como disse alguém, a luta pelo poder é sempre uma luta entre a memória e o esquecimento. Neste últimos anos a memória perdeu algumas batalhas. Tem-se procurado branquear o fascismo e denegrir o 25 de Abril e a Resistência. E mais, tem-se tentado aos poucos reabilitar o Estado Novo e ilegitimar moralmente o 25 de Abril. No plano das ideias e até no da própria linguagem os ditadores passaram a ser tratados respeitosamente por professores; o regime fascista passou a ser o regime anterior. Nada disto é inocente nem acontece por acaso, e só é possível porque, como tive ocasião de dizer no congresso “Portugal: Que Futuro”, há em Portugal uma questão de regime, uma questão que resulta do facto de nem todas as forças políticas representativas se reconhecerem na matriz fundadora da democracia portuguesa. 

Não é problema de somenos: há da parte de alguns dos principais beneficiários do regime democrático um divórcio afectivo e político com a natureza e o imaginário que estão na origem da liberdade portuguesa: a cultura da resistência, o imaginário do 25 de Abril. 

Enquanto por exemplo em França há uma memória da resistência e uma cultura republicana que são património tanto da esquerda como da direita democrática, tal não acontece em Portugal. E não acontece porque, com raras excepções, entre nós, a memória da resistência começa e acaba na esquerda, tal como a relação afectiva com o 25 de Abril e o seu imaginário. É por isso que o revisionismo tem avançado nos últimos anos, mas não só. A estratégia do branqueamento e do esquecimento é fruto de um certo amorfismo e de uma certa distracção, fruto da ausência de uma persistente e contiunuada pedagogia dos valores cívicos e democráticos, fruto também de omissões e ambiguidades que os nostálgicos do passado interpretam por vezes como convite ao revanchismo. A tolerância é a superioridade moral da democracia, mas a tolerância não deve ser confundida com masoquismo; a verdade é que o fascismo existiu e a Resistência também; a verdade é que o 25 de Abril restituiu a liberdade aos portugueses, mesmo a liberdade de o discutir, denegrir e pôr em causa. Essa é a diferença do 25 de Abril e também a sua superioridade. E por isso é que, mesmo quando parece estar a perder é o 25 de Abril que está a tornar-se vencedor. Porque não substituiu um dogma por outro dogma, nem um pensamento único por outro pensamento único (…)”. 



Hoje, aqui ao lado, na Europa que brasileiros e namibianos chamam de Primeiro Mundo, ainda há quem lute pela Liberdade com instrumentos iguais aos que ganharam corpo nas vozes de Manuel Alegre e Aurélio Santos, nas penas de Carlos Brito, Luís Moita, Villaverde Cabral. Há rádios clandestinas clamando pela Liberdade na Sérvia, mas as ondas da “B92” vão morrendo às mãos do sofisticado sistema de interferências do regime sérvio. Mas “o ideal sublime por que combatem todos” não se rende, e a Internet aí está, mesmo que arrogante, lembrando a todos que já foi tempo o tempo do panfleto, do stencil, da rádio da revolta em ondas hertzianas: 

“Even revolutions aren’t what they used to be, since there is internet. The times of illegal printing-presses in wet cellars, seditious pamphlets spread by revolutionaries in dufle coats, are over” — lê-se hoje no cabeçalho de página da Net, rodapé de título: “The revolution in Serbia begins with a homepage on Internet”. 

Se nos permitem terminar perguntando, quantos anos mais cedo teria chegado Abril se Carlos Brito tivesse um telemóvel, Estela Piteira Santos um modem, Manuel Alegre um fax, Mário Soares um bip, Álvaro Cunhal um PowerBook…? 



Dinis Manuel Alves 
29 de Outubro 1997


Data: 2006-01-11


http://www.mediatico.com.pt/sartigo/index.php?x=21

sexta-feira, abril 18, 2014

Rosa Casaco - como matámos Humberto Delgado

Expresso

Rosa Casaco, em entrevista

«Como matámos Humberto Delgado»



Em 1998, António Rosa Casaco, ex-inspector da PIDE, explicou ao EXPRESSO os pormenores da «Operação Outono», nome de código da armadilha montada contra Humberto Delgado.

ANTÓNIO Rosa Casaco chefiou a brigada da PIDE que assassinou o general Humberto Delgado, no dia 13 de Fevereiro de 1965, perto de Badajoz. Fugido do país depois do 25 de Abril, foi julgado à revelia e condenado a oito anos de prisão, sendo ainda hoje procurado pelas autoridades portuguesas e pela Interpol. À beira de completar 83 anos, o ex-inspector da polícia política, que vive no Brasil sob falsa identidade, quebra o silêncio a que sempre se remeteu e conta ao EXPRESSO a sua versão sobre o mais importante assassínio cometido pelo regime salazarista. Assume que a cilada fatal foi montada pela PIDE, confirma que o assassino foi Casimiro Monteiro, mas garante - contrariando o acórdão do Tribunal - que Arajaryr Campos, a secretária do general, foi morta por Agostinho Tienza.
A «Operação Outono» - nome de código da armadilha montada contra Humberto Delgado - começou a ser delineada «na sequência da tentativa de assalto ao quartel de Beja», explica António Rosa Casaco.
Realizado no primeiro dia de 1962, o golpe de Beja estava concebido para ser liderado pelo «general sem medo», que conseguira iludir a vigilância da polícia e entrara em território nacional disfarçado com um bigode postiço. O assalto frustrou-se, Delgado escapou-se, mas o estado-maior da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado) resolveu que, para grandes males, grandes remédios. Foi nessa altura que Barbieri Cardoso, cérebro e estratego da polícia, «decidiu estudar o modo de neutralizar as actividades de carácter político» do general, «designadamente as que assumiam formas violentas de assalto ao poder constituído e que beneficiavam os sectores mais à esquerda da Oposição».
Uma «toupeira» junto do general
Um prieiro passo foi «a introdução de uma ou mais 'toupeiras'» na «entourage» do general, capazes de ganharem a sua confiança, «de modo a permitir a detecção de todos os seus movimentos e das actividades revolucionárias que congeminava». O próprio Barbieri se encarregou de procurar a pessoa indicada. Subdirector-geral desde Abril de 1962, Agostinho Barbieri de Figueiredo Batista Cardoso ingressara na polícia, como inspector, em 1948, vindo da GNR. Nascido em Lisboa em 1907, mas de ascendência italiana, Barbieri «mantinha contactos regulares da mais diversa natureza com personalidades italianas da direita e extrema-direita». Entre elas, contavam-se Ernesto Bisogno - um médico com clínica em Roma, e Pascoale Pascuelino - «ex-oficial do exército fascista que fugira de um campo de concentração na Índia e atingira Diu». Cunhado do inspector Cunha Passo, Pascuelino era tradutor da PIDE, valendo-se dos seus impressionantes dotes linguísticos, já que «falava cerca de 21 línguas e dialectos diferentes».
Duas viagens a Roma
Pasquelino e Bisogno detectaram em Roma a presença de um cidadão português, Mário Alexandre de Carvalho, «que alegava ser oposicionista e refugiado político e que privava com Delgado, sendo, aparentemente, pessoa da sua estrita confiança». Carvalho, um lisboeta da freguesia dos Anjos, nascido em 1912, residia em Itália há um punhado de anos e possuía um estranho e sinuoso currículo. No prolongado e paciente trabalho de aliciamento de Mário de Carvalho envolveu-se o próprio Barbieri que «efectuou algumas viagens a Roma, sozinho», bem como Pereira de Carvalho, o director dos chamados Serviços Reservados. Nascido na Figueira da Foz em 1920, Álvaro Augusto das Neves Pereira de Carvalho entrara para a PIDE em 1956, como inspector, e era considerado, com propriedade, o nº 3 da hierarquia.
Inspector desde 1962, Rosa Casaco era um dos mais experimentados e eficientes operacionais da polícia, para onde entrara em 1937. Colocado na Secção Central, em Lisboa, e gozando da total confiança de Barbieri Cardoso, foi chamado a participar na «Operação Outono», tendo sido enviado a Roma várias vezes com o objectivo de «controlar» a dupla Ernesto Bisogno/Mário de Carvalho. De uma das vezes, foi na companhia de Barbieri e de Pereira de Carvalho, a parelha que desde 1962 dirigia o nevrálgico serviço de informações. Numa segunda viagem a Roma, foi secundado por um sub-inspector, de nome Ernesto Lopes Ramos, que de certo modo entrara na PIDE pelas suas mãos. Nascido nas Caldas da Rainha, em 1933, formado em Direito, concorrera aos serviços noticiosos da RTP nos seus primórdios. Hábil e destemido, Ernesto Lopes estagiara na CIA e era um operacional de mão-cheia, razão porque foi adstrito a Casaco. «Tínhamos de assegurar-nos, sem margem para quaisquer dúvidas, de que realmente o Mário de Carvalho dispunha, como afirmava, de acesso íntimo ao general.»
As eventuais dúvidas desvaneceram-se por completo. Carvalho passou a trabalhar activamente para a polícia, que lhe atribuiu o nome de código de «Oliveira», com uma remuneração de dez mil escudos mensais. A verba era enviada através de cheque para a conta nº 433045 da filial de Génova do Banco de Roma; sobre o cheque, a assinatura de Jorge Farinha Piano, um banqueiro e amigo de peito de Casaco.
Com Carvalho a contar para Lisboa tudo quanto Delgado dizia, urdia e fazia, a PIDE decidiu «passar à fase seguinte, ou seja, ao contacto com o próprio general». A ideia foi gizada por Barbieri e Pereira de Carvalho. Casaco possuía todas as qualidades para o tentar, mas apresentava um senão insuperável: Delgado conhecia-o perfeitamente - «nos anos 50, quando o general exercia o cargo de director-geral da Aeronáutica Civil, eu chefiava o posto do aeroporto de Lisboa, tendo tido, então, inúmeros contactos com ele». Eliminada a hipótese Casaco, a escolha acabou por incidir em Ernesto Lopes.
Encontro em Paris no hotel Caumartin
Em Dezembro de 1964, Casaco e Ernesto Lopes voaram de novo até Roma, donde tomaram um avião para Paris, com uma missão particularmente arriscada: «Manter um encontro 'conspirativo' com Humberto Delgado.» A entrevista teve lugar no dia 27 de Dezembro, no Hotel Caumartin.
O contacto, a que estiveram presentes Mário de Carvalho e o professor Emídio Guerreiro, ambos colaboradores do candidato às célebres eleições presidenciais de 1958, foi um êxito. «Mário de Carvalho apresentou Ernesto Lopes ao general como Ernesto de Castro e Sousa, nas supostas qualidades de advogado, oposicionista e recém-chegado de Portugal. É aí combinado o encontro de Badajoz, entre Humberto Delgado, Mário de Carvalho, Ernesto de Castro e Sousa e alguns 'militares' portugueses das fileiras da Oposição Democrática.» A data exacta viria a ser fixada mais tarde.
No dia imediato, 28 de Dezembro, o general apareceu inesperadamente no Hotel Commodore, onde se haviam hospedado os dois homens da PIDE. O objectivo era entregar «pessoalmente a Ernesto Lopes um maço de cartas dirigidas à Dr.ª Alcina Bastos». Era a prova provada de que Castro e Sousa - aliás, Lopes Ramos - «havia, efectivamente, granjeado a confiança pessoal de Delgado».
O sucesso da reunião de Paris permitiu consolidar o projecto delineado pelo estado-maior da PIDE. Ou, mais rigorosamente, por Barbieri e Pereira de Carvalho. Com efeito, o director-geral, Silva Pais, «discordava das linhas gerais do plano, não participando, via de regra, das conversas travadas sobre o assunto». Natural do Barreiro, Fernando Eduardo da Silva Pais, de 54 anos, era director-geral desde Abril de 1962. Só que, apesar de ocupar o topo da hierarquia, «deixava-se intimidar um pouco perante o Barbieri. Este era muito mais culto e inteligente do que o Silva Pais, que se sentia inferiorizado». Ainda por cima «com os serviços secretos na mão», Barbieri era quem, na altura, «assumia o papel principal» na organização, «acolitado por Pereira de Carvalho, o verdadeiro nº 2», enquanto Silva Pais «havia sido relegado para funções quase marginais».
Mas em que consistia, afinal, o plano? «Raptar o general e levá-lo clandestinamente para Portugal, para lhe ser dada voz de prisão e responder em tribunal por 'actos de terrorismo'.» A ideia de Casaco, como haveria de declarar em Madrid logo após o 25 de Abril, era «cloroformizar o general», por forma a adormecê-lo, transportando-o de seguida «na mala do automóvel pela fronteira de S. Leonardo».
Casaco nega que a morte do general fosse o objectivo do plano, pelo menos tal qual lhe foi transmitido. Muitos anos depois, quando o caso subiu a tribunal, a acusação haveria de considerar que «o objectivo central» da direcção da polícia era o de «reduzir» o general «à não actuação, quaisquer que fossem os meios necessários para tanto» - o que incluiria, obviamente, a possibilidade da liquidação física. Esta tese, contudo, não foi acolhida pelos juízes do Tribunal Militar. Na sua apreciação, a morte não figurava no plano traçado, que visava, outrossim, «tentar raptar e prender» o general, «trazendo-o para Portugal».
Do ponto de vista legal, a detenção de Delgado justificar-se-ia, segundo Casaco, «por ter sido condenado pelos tribunais portugueses pelo grave crime da prática de terrorismo, tentado em Portugal por sequazes seus, oriundos do Brasil» - referência a um alegado projecto de «fazer ir pelos ares alguns postes de alta tensão e o comboio 'rápido' Lisboa-Porto, próximo de Alfarelos».
Brigada escolhida ou imposta a Casa?
A última fase da «Operação Outono» iniciou-se com a convocação de Casaco, já em Fevereiro de 1965, ao gabinete do director-geral. Presente o triunvirato da PIDE, ficou determinado, segundo o acórdão do tribunal, que «Casaco chefiaria a brigada» e que «assumiria o falso papel de Coronel do Exército» ido ao encontro do general. Diferente é a versão do inspector: «Fui incumbido de acompanhar e proteger a brigada que iria tentar deter o general em Badajoz, no dia 13.» A escolha foi justificada pelo facto «de me considerarem pessoa capaz de efectuar essa protecção, dado gozar de grande influência junto das autoridades militares e civis das províncias de Cáceres e Badajoz e, especialmente, dos altos comandos policiais de Madrid».
Casaco prossegue: «Disciplinadamente tive de aceitar a missão, mas não deixei de chamar a atenção dos meus superiores para os perigos que implicitamente acarretaria tão perigosa incumbência, porque seria extremamente arriscado fazer passar pela fronteira espanhola o general sem que este protestasse, o que poderia provocar um conflito não só entre as duas polícias, mas, principalmente, entre os governos de Portugal e de Espanha.»
A brigada seria completada pelo sub-inspector Ernesto Lopes Ramos - o elo de contacto com Delgado - e pelos chefes de brigada Agostinho Tienza e Casimiro Monteiro, ambos de 44 anos. Natural de Alcáçova (Elvas), Agostinho Giraldo Cilero Tienza entrara para a PIDE em 1947 e era o motorista de Casaco. Nascido em Goa, Casimiro Emérito Rosa Teles Jordão Monteiro só fora admitido na PIDE em Novembro do ano anterior. No seu cadastro figuravam vários crimes de sangue, particularmente na antiga Índia Portuguesa. «Era um facínora», reconhece Casaco; «matava a torto e a direito. Mas era um patriota exacerbado».
Quem escolheu estes dois agentes? O Tribunal foi peremptório, ao sentenciar que Tienza e Casimiro Monteiro «foram escolhidos» por Casaco. Este, porém, diz que «a brigada foi-me imposta pelo triunvirato». Mais: os restantes elementos «tinham sido instruídos na minha ausência» - instruções que, de resto, «não me foram dadas a conhecer». Instado por Casaco a explicar a razão deste procedimento, Pereira de Carvalho «alegou que não se justificaria a realização de uma reunião conjunta de todos os funcionários» e reiterou que «a minha missão se limitaria, unicamente, a protegê-los de qualquer eventual interferência por parte das autoridades espanholas e nada mais».
Casaco aceitou a «diligência» de que foi incumbido, apesar de, sublinha, a ter considerado «uma estupidez, tanto mais que Delgado não oferecia qualquer perigo, por ser um homem gravemente doente (há mais de um ano que derramava pus do ventre, de forma quase incontida, e que os médicos em Roma nada puderam fazer contra este mal, dando-lhe o máximo de um ano de vida)». Além de que, em sua opinião, ele «não dispunha de qualquer crédito político ou revolucionário e, em consequência, mais tarde ou mais cedo, se apresentaria às autoridades portuguesas», até porque estava «sem fundos para a sua subsistência e da sua amante».
A armadilha de Badajoz
A brigada largou de Lisboa na tarde de 12 de Fevereiro. Monteiro e Tienza seguiram no carro deste, um Opel verde e creme, com a matrícula EI-44-39; Ernesto Lopes e Casaco foram na viatura do primeiro, o Renault Caravelle IA-65-40. As viaturas e os agentes tinham documentação falsa. Casaco utilizou um passaporte a que já recorrera numa viagem ao Brasil, em nome de Roberto Vurrita Barral, um cidadão da Guatemala; Ernesto Lopes serviu-se de documentos passados em nome de Ernesto de Castro Sousa, o tal falso advogado; Tienza seguiu como se fosse Filipe Garcia Tavares; e a Monteiro foi dada a falsa identidade de Washdeo Kundaumal Nilpuri, da ilha de Jersey.
O grupo passou a noite numa pensão em Reguengos de Monsaraz. Na manhã seguinte os dois carros tomaram a direcção do posto fronteiriço de S. Leonardo, chefiado pelo agente da PIDE António Gonçalves Semedo. Antes, substituíram as placas de matrícula de ambos os veículos por outras, falsas. Em S. Leonardo, «ordenei a todos os funcionários que deixassem as suas armas de serviço no posto fronteiriço». Casaco assegura que «as armas foram depositadas e guardadas» pelo chefe do posto - o que foi formalmente negado, em tribunal, pelo próprio António Semedo.
Já no lado espanhol da fronteira, «verifiquei que, no carro do Tienza, se encontravam um garrafão, um saco com cal, uma picareta e uma pá». Admirado ao ver o ácido sulfúrico e a cal viva, Casaco terá perguntado a Tienza «que material era aquele, respondendo-me o próprio que se destinava a umas obras que estavam em curso, na sua casa em Sintra, e que não tinha tido a oportunidade de o retirar do carro». Este pormenor não condiz com uma declaração de Casaco em Madrid, em 1974, segundo a qual «ignorava totalmente a existência daqueles produtos destrutivos» até ao momento em que os corpos foram enterrados.
Para o projectado encontro com Delgado, foi escolhido um local ermo, perto da estrada principal que liga Badajoz a Olivença. Foi aí que, cerca das 15 horas, surgiu a viatura de Ernesto Lopes, transportando o general. No assento da retaguarda, uma personagem não prevista no elenco idealizado pela PIDE: Arajaryr Campos, a secretária do general. Carioca de 34 anos, divorciada, Arajaryr Canto Moreira de Campos era a dedicada colaboradora do general, que acompanhava para todo o lado desde há cinco anos. A apreciação de Casaco é deveras pejorativa, referindo-se sempre a Arajaryr como «a amante brasileira».
A aguardar a chegada do general estavam, ansiosos e impacientes, os outros três elementos da PIDE, supostos «oficiais do Exército português anti-situacionistas», liderados por um imaginário coronel: Casaco.
Monteiro dispara sobre Delgado...
É aqui que a versão do ex-inspector mais difere dos factos dados como provados pelo tribunal. Segundo o acórdão, Casaco estaria no interior da viatura de Tienza, a uma distância de cerca de dez metros do local onde se deteve o carro em que viajava Delgado. «Isso é falso», protesta Casaco, que assegura que não só não estava no carro como ficara «a cerca de 120 metros de distância», com o objectivo de «impedir qualquer possível intervenção das autoridades espanholas, pois o general poderia ter alguém a protegê-lo ou estar a ser seguido».
Continuando a citar o texto judicial, Rosa Casaco - que se passava por um coronel que Ernesto Lopes prometera trazer de Lisboa - saiu do carro e dirigiu-se ao encontro do general. Mais lesto, Casimiro Monteiro, que já estava fora do veículo, tomou a dianteira e, ao aproximar-se de Delgado, empunhou uma pistola e disparou sobre o general. O revólver, de fabrico francês, de modelo «Unique», estava munido de um silenciador e não fazia parte do armamento distribuído ao pessoal da PIDE, de marca «Walther». Atingido na cabeça, Humberto Delgado teve morte imediata.
Casaco nega que se tenha dirigido ao general, até porque este o «conhecia pessoalmente», desde os tempos em que trabalhara na aeroporto de Lisboa. Mantém a versão de que assistiu a tudo de longe: «Voltando a minha atenção para a estrada, ouvi um disparo seco e vibrante, como se fosse uma pistola de pressão de ar, vindo do alto da colina, e gritos agudos femininos. Verifiquei, então, que o Casimiro Monteiro estava abatendo o general.» Estaria Delgado armado, como alguns membros da brigada viriam mais tarde a sustentar? «Eu não vi arma nenhuma.» Já o dissera, de resto, em Madrid: «O general não estava armado, tendo disso absoluta certeza.»
...e Tienza mata Arajaryr
Testemunha impotente de um assassínio a sangue frio, a secretária, descontrolada, desatou aos gritos. «Assustado», prossegue Casaco, «corri coxeando para o topo do monte e gritei: 'Calem-me essa mulher'». Após o que também Arajaryr foi mortalmente baleada. Segundo o tribunal, o autor do segundo homicídio voltou a ser Casimiro Monteiro. Casaco desmente em absoluto e acusa - tal como fizera na declaração de Madrid - o seu ex-motorista, Agostinho Tienza, o que até levou Ernesto Lopes a gritar «Eh pá, não me fodas o carro!», aparentemente mais preocupado com a viatura do que com as mortes. A arma era do mesmo modelo que a utilizada por Monteiro.
«Perante a consumação deste duplo crime», prossegue, «manifestei, de imediato, a minha veemente repulsa por tal acto tão miserável e, também, por ter sido enganado pelos meus superiores. Admiti, imediatamente, que o Monteiro e o Tienza iam predestinados e preparados para tão nefando acto, uma vez que ambos eram portadores de pistolas com silenciadores.»Casaco garante que interpelou os seus subordinados, «ao que o Casimiro Monteiro respondeu: 'O Sr. Inspector não se meta neste assunto! Isto não é nada consigo'», ao mesmo tempo que se mostrava «ameaçador, com a pistola na mão». Mais tarde, Casaco terá indagado «junto dos elementos da brigada quem tinha dado a ordem de execução», mas não obteve «qualquer resposta». Cedo se convenceu que também Ernesto Lopes «nada sabia quanto à intenção de matar, porque os seus estados de espírito e de indignação eram idênticos aos meus».
Inúmeras contradições
Os dois cadaveres foram, então, metidos nas bagageiras dos automóveis. Aqui surge mais uma contradição. Para os juízes, ambos os corpos foram colocados na mala do Opel de Tienza, levados por Monteiro e Casaco. Este nega: «Eu tinha lá força para isso! Tinha acabado de ser operado a uma perna... Quem os transportou foram o Casimiro e o Tienza, cada um para sua bagageira.»
Os corpos acabaram por ser sepultados numa vala natural, num local a cerca de seis quilómetros a sul de Villa Nueva del Fresno. O acórdão não o confirmou, mas Casaco não tem dúvidas em afirmar que os corpos foram previamente regados com ácido sulfúrico e cal viva. As roupas e os documentos pessoais das vítimas «foram queimados, posteriormente, noutro local».
Em face do adiantado da hora, o grupo pernoitou na localidade espanhola de Aracena, tendo reentrado em Portugal na manhã seguinte, pela fronteira de Vila Verde de Ficalho. Pereira de Carvalho terá sido o primeiro responsável da PIDE a ser informado do resultado da missão. Casaco diz que foi pelo telefone, a partir da pousada de Serpa, onde a brigada almoçara. O acórdão sustenta que foi pessoalmente, na noite de dia 14, na residência de Pereira de Carvalho, em Lisboa.
Na manhã do dia seguinte, já na sede da PIDE, os seus três dirigentes máximos ouviram um relato completo do que se passara. «Todos eles manifestaram surpresa, em particular o major Silva Pais, que ficou aterrorizado.» No final da reunião ficou estabelecido que seria guardado o mais absoluto silêncio sobre o assunto. Não sem que, antes, tenha sido determinada a destruição de todas as provas susceptíveis de incriminar a PIDE no duplo homicídio - desde a documentação (verdadeira e falsa) utilizada, até às duas viaturas. Nova e farta contradição surge neste ponto. Para Casaco, «não sei exactamente como isto se processou, mas, tanto quanto pude apurar, essa destruição terá tido lugar numa quinta próxima de Sintra, previamente alugada». O acórdão, contudo, é taxativo e acusa Rosa Casaco de ter tomado a iniciativa da destruição, seja dos automóveis, seja da maior parte da documentação.
Qual a justificação que Casaco apresenta para tantas e tão graves diferenças entre a sua versão e a sentença judicial? Desde logo, os mais de trinta anos que passaram sobre os acontecimentos e os seus inevitáveis efeitos sobre a memória de um octogenário. Aduz, por outro lado, que «a minha perturbação» no momento do crime «foi grande, o choque emocional tremendo, daí qualquer confusão que tenha surgido no meu espírito». Considera, finalmente, que durante o julgamento «todos me acusaram. Era fácil descarregar tudo para cima de mim, porque eu não estava presente, não me podia defender». Guardadas as devidas proporções, conclui que «as principais vítimas em todo este processo foram o Humberto Delgado e... eu!».
O telefone toca duas vezes
Uma semana depois do crime, Casaco recebeu uma chamada telefónica de Badajoz. Era Manuel Pozo, o chefe da polícia daquela província espanhola e velho amigo, que pedia «ajuda na identificação de uns passaportes e de uma bagagem abandonada no Hotel Simancas» - o mesmo onde Delgado dormira a sua derradeira noite. Com a indispensável autorização de Silva Pais, e ainda que«bastante contrariado», Casaco rumou a Badajoz no dia 20 de Fevereiro. As suspeitas confirmaram-se em absoluto: «A documentação, as roupas, bagagens e uma bolsa de plástico com ligaduras cheias de pus pertenciam ao general e à sua amante.»
A 25 de Abril, o telefone voltou a tocar, desta feita a partir de Madrid. Na linha, um outro amigo espanhol, general Eduardo Blanco Rodriguez, director da Dirección General de Seguridad, «dizendo-me que tinham aparecido», na véspera, «os esqueletos de um casal nas proximidades de Villa Nueva del Fresno e que se suspeitava teria sido obra de um grupo de portugueses que atravessou aquela fronteira no dia 13 de Fevereiro». Os cadaveres haviam sido localizados junto a um caminho conhecido por «Los Malos Pasos», que conduz à fronteira portuguesa. O chefe da secreta espanhola «solicitou-me que investigasse a quem pertenciam» as matrículas registadas no posto fronteiriço espanhol. A resposta foi dada meia hora depois: «Telefonei ao general referindo que as matrículas indicadas pertenceram a um camião e a um táxi, ambos fora de circulação, há muitos anos.» Perante «tão insólito» facto, o general Blanco Rodriguez pediu ao amigo português que fosse pessoalmente a Madrid «apresentar explicações».
«Menti descaradamente»
Posta a questão à hierarquia da PIDE, esta concordou com a ida à capital espanhola, com o fito de «confirmar que a polícia portuguesa nada tinha a ver com os corpos aparecidos»
Em Madrid, as autoridades já não tinham dúvidas: os cadaveres em causa eram mesmo do general Delgado e da secretária Arajaryr. Alarmada com as imprevisíveis consequências de um crime político daquele jaez, perpetrado no seu território, a DGS espanhola dispensou um acolhimento muito especial ao enviado da PIDE. «Fui recebido num amplo salão pelo general Blanco, pelo subdirector-geral, pelo chefe dos Serviços Secretos daquela corporação, Vicente Reguengo, e pelos chefes das 'secretas' dos três ramos das Forças Armadas espanholas.» A selecta assistência parecia ter uma ideia já formada sobre a autoria dos dois crimes. «Notei que todos aqueles senhores estavam convencidos que o duplo assassínio tinha sido obra da polícia portuguesa. Tive dificuldade em convencê-los de que teria sido acção de terceiros, ou seja, um saldar de contas entre grupos oposicionistas rivais» - a versão oficial inventada e posta a correr pelo regime de Lisboa.
A reunião de Madrid esteve longe de ter sido agradável para o inspector português. «Fui submetido a um interrogatório implacável durante várias horas. Consegui convencer os presentes que se iria proceder a exaustivas diligências em Portugal para se tentar descobrir quem seriam os ocupantes dos dois carros suspeitos. Devo dizer que passei um mau bocado, por ter que mentir descaradamente diante daquela assembleia, alguns deles meus amigos.» No íntimo, verberou os seus superiores por não terem «tido a coragem de se justificar diante das autoridades espanholas, fugindo às suas responsabilidades por incompetência e cobardia, 'empurrando-me' para a 'boca do lobo'».
Desde então, admite, «passei a manifestar uma irritação maior» perante a «troika» dirigente da PIDE, «por me terem envolvido no crime que considerei inútil, contraproducente e disparatado, por terem transformado o general num mito que iria ser glosado por toda a oposição durante anos».
Na sequência da convocação de Casaco a Madrid, o tenente-coronel Blanco Rodriguez veio a Lisboa a 7 de Maio. O chefe da DGS espanhola discutiu com a direcção da PIDE uma articulação entre as duas polícias em torno do escaldante crime. Com o mesmo objectivo, Barbieri Cardoso voou até Madrid em 18 de Maio. A sensação de Rosa Casaco é que «as autoridades espanholas não ficaram completamente convencidas» pela argumentação aduzida pela PIDE, ou seja, que nada tivera a haver com o duplo assassínio. Convencidas ou não, o facto é que «só vieram a saber a verdade dos factos depois do 25 de Abril de 1974».




quinta-feira, agosto 01, 2013

João Vilela - A Sagração da Desigualdade – II: Pobrezinhos mas honestos


A Sagração da Desigualdade – II: Pobrezinhos mas honestos

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Perante a meritória burguesia de que ontem falávamos, surge a massa dos réprobos, dos inferiores, dos que nunca chegaram, dos fracos, dos pobres.
Há relativamente a eles, da parte dela, muito pouca noção do que os distingue fundamentalmente de outro aparelho qualquer. As moderníssimas teorias de gestão falam indistintamente de «recursos» para referirem verbas disponíveis, materiais de trabalho, mercadorias em stock, e os «recursos humanos» da empresa. Tudo está ali, à mão, para a isso se «recorrer» quando necessário. E a concepção não é de agora: para não irmos buscar os objectos animados e inanimados do velhinho Aristóteles, veja-se como era definida, por «especialista» britânico do séc. XIX, a noção de fábrica: «autómato imenso composto de numerosos órgãos, uns mecânicos outros conscientes, que operam de mútuo acordo e ininterruptamente para produzir um objecto comum, subordinados a uma força motriz que se regula a si mesma». Órgão consciente de um imenso autómato, parte integrante, peça da fábrica. Esse é o seu estatuto: apendicular e subalterno, dominado, à disposição de quem o dirige. Enquanto variável independente e autor do seu destino não existe. Assim se caracteriza, nos termos de Marx, a sociedade do sistema fabril moderno.
Naturalmente, esse estatuto não é tolerável sem resistência pelo dominado. O que não significa que essa intolerância seja, imediatamente, uma rejeição radical do modo de produção. Aliás, nunca significou. Vejamos o tempo em que a burguesia era uma classe dominada na sociedade senhorial, e descrevia o seu percurso histórico rumo ao estatuto de classe dominante: o fito do prestamista, do mercador, do pequeno manufactureiro ou do armador de navios não era, desde o início, o derrube da aristocracia e o guilhotinamento do rei. Se pudesse, almejava ascender à nobilitação. Se tal lhe estivesse vedado, procurava a justificação, dentro do quadro de valores da época – e nesse ponto a lógica do «engrandecimento do reino» e do «robustecimento da fazenda do rei» foi determinante -, para o exercício das actividades a que se dedicava, e que eram as mais das vezes criminosas. O mesmo ocorre, naturalmente, com o proletário dentro do sistema burguês: o desenvolvimento da sua consciência de classe, da percepção da real amplitude do problema no que concerne às relações de exploração e opressão, do papel da propriedade privada dos meios de produção no estabelecimento das contradições do sistema, de como estas são apenas resolúveis pela acção revolucionária – tal é um moroso processo de consciencialização. O que estabelece um hiato entre a opressão que se abate sobre o trabalhador e a consciência política que este tem, que o compele para a luta, mas para uma luta a que chega desarmado num primeiro momento.
Marx coloca nos seguintes termos, n’O Capital, o discurso do trabalhador que «subitamente» toma a palavra «quando estava emudecido no turbilhão do processo produtivo»: «tu e eu só conhecemos, no mercado, uma lei, a da troca de mercadorias. E o consumo da mercadoria não pertence ao vendedor que a aliena, mas ao comprador que a adquire. Pertence-te, assim, a utilização da minha força diária de trabalho. Mas, por meio do seu preço diário de venda, tenho de reproduzi-la para poder vendê-la de novo (…) preciso ter amanhã, para trabalhar, a força, a saúde, a disposição normal que possuo hoje. Estás continuamente a pregar-me o evangelho da parcimónia e da abstinência. Muito bem: quero gerir o meu único património, a força de trabalho, como um administrador racional, parcimonioso, abstendo-me de qualquer gasto desarrazoado (…) sem fazer apelo ao teu coração, que quando se trata de dinheiro não há lugar para bondade». O humor de Marx é conhecido, já o disse, mas julgo que esta passagem é, por inteiro, para levar a sério: este é o ponto de partida de todo o trajecto de luta que levará à revolução e ao socialismo, mas ele começa aqui, neste ponto e desta forma. O primeiro utensílio teórico de que o trabalhador dispõe para se bater com o patrão é, nada menos, a própria moral de classe do patrão. Coloca-se a si mesmo num ponto análogo (e não diferente, e muito menos antagónico) ao de quem o explora, reconhecendo abertamente com quem aprendeu («estás continuamente a pregar-me», note-se!), e manejando, a seu favor, a moral de classe da burguesia. Marx não podia ser mais claro quando, linhas abaixo, põe na boca do operário a sua primeira reivindicação: «exijo uma jornada de trabalho normal [sic], porque exijo o valor da minha mercadoria, como qualquer vendedor» (o itálico é meu). É escusado repetir o que acima vai dito: a primeira reivindicação dos trabalhadores é, claramente, uma reivindicação «comercial», decalcada dos códigos de conduta e das regras que normalizam o capitalismo. Os homens são em essência, é bem verdade, a soma das suas condições sociais.
A luta assim movida, no fundo transformada num exercício de exegese da moral do patrão e de emulação dos seus comportamentos no trato com fornecedores e clientes, comporta dificuldades que só o salto qualitativo da consciência de classe e da ideologia proletária vai suplantar. A grande dificuldade inicial é que ela é o ponto central na sagração da desigualdade, por mais que pareça, discursivamente, uma igualitarização das posições entre patrão e trabalhador, e até porque parece isso mesmo: aceitando discutir no campo do patrão, de acordo com as suas regras e os seus princípios, o trabalhador emaranha-se num mundo em que ele não está em igualdade de circunstâncias, e em que cada aperfeiçoamento aprofunda a sua desigualdade relativamente ao patrão. Só as reivindicações que garantam rupturas transformadoras, ou no mínimo melhores condições para chegar àquelas, são, ele o acabará por perceber, do seu interesse. Até aqui, o trabalhador discute como quem vende discute com um comprador, não como quem produz discute com quem explora. Esta diferença é toda a diferença, quanto mais não seja dada a velhinha divisa do comércio de bairro segundo a qual «o cliente tem sempre razão».  Para assumir seja que estatuto for que lhe garanta autoridade bastante para peitear o antagonista, ao trabalhador só lhe resta, porque joga na casa do outro, porque escolheu assentar na premissa de que lhe vendia alguma coisa e queria essa coisa bem paga, jogar o jogo mais antigo do comércio de todo o mundo: regatear com quem compra para que aceite despender mais. Leiloar-se, portanto. E fazê-lo rigorosamente nos mesmos termos de um leilão qualquer: se o pregoeiro de uma mobília incentiva lances mais altos elogiando-lhe as formas, o desenho, as decorações e a robustez da madeira, o trabalhador terá de se elogiar a si mesmo, bendizer a sua força de trabalho, explicitar a forma como se deixa explorar diligentemente: como chega todos os dias à hora; como nunca falta ao emprego; como nunca se alonga a almoçar; como não pára para tomar café, nem para ir à casa-de-banho, nem sequer para respirar fundo, se disso for caso; como, em suma, apresenta resultados do seu trabalho e procede com correcção (o que, veremos noutro local, significa também proceder despolitizadamente) para com o patrão, fazendo tudo o que este lhe pede. Malhas que o império tece! Para mitigar – nem sequer para se libertar: apenas para mitigar – a sua exploração, o trabalhador começa por… dar provas de que se deixa explorar convenientemente. Por apresentar certificados de bom explorado. Por dizer, alto e bom som, que é pobrezinho mas honesto.
Esta forma de luta, inevitável entre as massas mais recuadas, é o sonho maior do capitalista. Associando o merecimento à honestidade e a honestidade à submissão, transforma os avanços dos trabalhadores em compensações pela subserviência, nunca em vitórias do seu combate. Consagra uma moral pública que permite a caça aos vadios, aos alcoólicos, aos desocupados, aos que «não querem trabalhar»: porque ser explorado determina a partir daqui a própria valia social, e não ser  explorado (nem um respeitável explorador) transforma o desgraçado que em tal estado se veja num homo sacer sobre o qual todas as punições podem legitimamente recair – como em tudo isto se está a observar, com rigorismo, a segmentação da classe, a trabalhar para o patrão, a solidificar os interesses do patrão! E quanto à desigualdade essencial entre partes, como em nada mais, fica aqui bem patente e entranhada no modo como a sociedade funciona: porque se o critério mediante o qual se afere a justiça do que o trabalhador pede é o empenhamento que este deposita na sua própria exploração, então a desigualdade entre classes é mais do que óbvia - é um princípio essencial, uma categoria definidora, uma substância da verdade na inexistência da qual nada faz nenhum sentido.
Aqui se encontra a raiz de um visceral anticomunismo presente em fracções menos politizadas das massas. Aqui se encontra o que sustenta a política de medo-pânico e a impiedosa repressão dos patrões quando se insinua a política nas lutas operárias. Aqui se vê o esteio fundamental da dominação – e se abre a porta para o próximo texto…

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terça-feira, julho 30, 2013

João Vilela - O Regresso da «Unidade Moral da Nação»



O Regresso da «Unidade Moral da Nação»

No artigo 6º, 1º, da Constituição de 1933, podia ler-se: «[incumbe ao Estado] Promover a unidade moral e estabelecer a ordem jurídica da Nação, definindo e fazendo respeitar os direitos resultantes da natureza ou da lei, em favor dos indivíduos, das famílias, das autarquias locais, e das corporações». Seriam possíveis páginas e mais páginas de dissecação em detalhe de toda a riqueza e subtileza ideológica inscrita em tão poucas palavras. Hoje, contudo, cingir-me-ei a verificar como a noção de «unidade moral da nação» continua a nortear a actuação política dos agentes da política de direita, maximamente do actual Presidente da República.
Um pressuposto desta «unidade moral» da nação, que de resto é uma pedra angular de qualquer discurso conservador, é o da naturalização da desigualdade social, sob a expressão legitimadora da «hierarquia». O conservador não perscruta as causas históricas, económicas, sociais, da desigualdade social: assume-a como a natureza das coisas, e, mais do que isso, confere-lhe propriedades que a tornam benéfica para a própria sociedade. A igualdade é descrita como desmobilizadora do esforço, como fomentadora da inércia, como destruidora da «motivação» para o trabalho. Se não existissem ricos e pobres, consideram, os pobres não trabalhariam: a posse comum da riqueza social por todos os seus membros geraria indolentes, encostados, preguiçosos: só a posse por poucos dessa riqueza compele os muitos que têm de se esgadanhar para aceder a uma pequena fracção dela a darem-se a tal trabalho. Por outro lado, além desta «justificação» «funcional» da hierarquia, perfila-se uma «justificação» «ética»: a desigualdade é a expressão do resultado do esforço de uns e da indolência dos outros. A riqueza de cada um atesta a capacidade de trabalho que teve, a destreza, a inteligência, a sagacidade, o mérito. Quando somos bombardeados com loas diárias ao empreendedorismo, estamos, fundamentalmente, a revisitar este campo: e isso torna incontornável a heroicização do empresário, hoje tão em voga.
Sagrada que fica a divisão em classes da sociedade (repare-se: essa divisão não é negada nem dissolvida: é justificada!), e «explicada» que está a «razão» «justificativa» da preeminência dos detentores de meios de produção, que papel é o do Estado, sob a lógica corporativa? No que consiste a «unidade moral da nação» depois de termos visto «a natureza» (e, já agora, a lei) estatuir «direitos» de «indivíduos» e «famílias», que o legislador (don’t kill the messenger) se limitou a «definir»? Fundamentalmente, na conservação estrutural da ordem vigente através de mecanismos de (cito directamente a propaganda do regime deposto) harmonização dos interesses de classe. A menos evidente e todavia poderosamente eficaz era a já citada glamourização propagandística dos papéis de classe, com o lambe-botismo ao grande empresário (repetido hoje) e o prestígio dado à Casa Portuguesa onde «a alegria da pobreza/está nesta grande riqueza/de dar e ficar contente». Associava-se a isso uma preocupação caritativa de apoios públicos «a quem precisa» e de crítica desagradada, do próprio Salazar, aos «opulentos», aos «arquimilionários», ao lucro que não era «comedido»: nada a que o Papa Francisco não nos tenha acostumado já. Mas quando não chegavam estes mecanismos, afinal de contenção, e quando não era, ainda, preciso empregar o arsenal dos bufos, dos pides, dos tribunais plenários, dos feijões verdes da Legião, dos polícias-cães e dos cães-polícias, havia a imposição antidemocrática da opção de classe do Estado, pela sobreposição da deliberação administrativa à negociação (aliás, materialmente inexistente) entre os sindicatos nacionais e os grémios, em nome do interesse nacional que este Estado-árbitro julgava e se atribuía o poder de aferir.
Ora, é aqui que reside a razão de ser, incontornável, da antidemocraticidade do fascismo. O Estado, no corporativismo, entregando-se a arbitragem dos conflitos entre classes por se considerar intérprete supraclassista do «interesse nacional», tinha uma legitimidade própria, «orgânica», dentro desta arquitectura social. Os seus agentes não careciam de sufrágio, de ver justificado por ninguém o poder que tinham, de prestar contas, de nada. O Estado era: como o cérebro no corpo, o motor num carro, o cavalo numa carruagem. Sem ele, a lógica das coisas ficava comprometida. A natureza ficava incompleta. Se a sociedade tem uma configuração natural e um andamento inerente a essa configuração, que quem lidera conhece e trilha, o que se fará? Perguntar aos guiados para onde devem ser guiados? Mas acaso o cérebro põe à discussão do fígado, do estômago, das mãos e dos pés, o que lhes cumpre fazer num corpo? Nada: ordena, e eles fazem. Não discutem. Não reflectem. Executam ordens que lhes chegam, e, possivelmente, se lhes fosse dado escolher o seu papel, sem serem merecedores de constar do «escol» cerebral, levariam o corpo, todo ele, à desorganização e à morte.
O que pensam Cavaco, Passos, e os que hoje nos impedem de, indo a votos, solucionarmos os problemas que o país atravessa? Nada de essencialmente diferente, neste ponto. Em situação de conflito entre os interesses dos trabalhadores portugueses e os do imperialismo alemão, o Estado arbitra e decreta o «interesse nacional» de aplicar o memorando da troika, mesmo que o povo se rebele contra ele e as manifestações antitroika encham praças e ruas com centenas e centenas de milhares de pessoas. Isso de nada importa. Intérpretes do interesse da nação (que em nada se distingue, por sinal, do interesse do imperialismo e das fracções da burguesia nacional que dependem dele), aplicam-no sem sentirem dever contas a ninguém e recusando, mesmo em caso de grave crise política, que o povo seja chamado a pronunciar-se. Julgam, aliás, perigosa essa veleidade (e dizem-no): acarretaria insuportável instabilidade, desconfiança dos mercados, seria a desordem e o caos absoluto. O povo não é senhor de definir o que é do seu interesse. O povo submete-se «ao país», mítica abstracção que no fundo significa «quem manda». E o país precisa, porque o Estado interpretou que precisa, de cumprir o memorando. Se o povo se esticar muito, o Estado, em nome do país, descarregará sobre ele os bastões da PSP.
Lenine dizia que só a classe dominante pode falar em nome da nação. Marx recordava que a primeira missão do proletariado revolucionário era tornar-se classe nacional «mas jamais nacional no sentido burguês». Entre nós, esta verdade torna-se cada dia que passa mais agudamente sentida, pelo uso sistemático, recorrente, incessante, do abusivo estribilho do «interesse nacional» subsumindo o interesse dos dominantes. E à medida que o interesse desses dominantes colidir mais e mais com o dos dominados, tanto maior será a cadência repetitiva desta linguagem chauvinista e patrioteira. É contudo verdade que os trabalhadores não desconhecerão muito longamente que quando lhes falam do país, lhes falam acima de tudo do patrão. E quando o compreenderem, todos, e aos esquemas de manipulação e mentira que em nome do patrão lhe vão aplicando, os trabalhadores não abdicarão, ainda aí do país – mas vão querê-lo para si próprios.

  1. De diz:
    Desculpem lá mas estes textos constituem um esqueleto preciosíssimo para uma bagagem ideológica mais funda, mais consistente e mais consolidada.
    Constituem reflexões importantes que abrem fendas enormes no argumentário estereotipado que ouvimos a cada dia que passa aos personagens menores dos propagandistas do regime.
    A “naturalização da desigualdade social”, a inevitabilidade de ricos e pobres ( ou a de exploradores e explorados), a hierarquização e a ostracização, o darwinismo social, os mecanismos de contenção, como as prestações caritativas (já focadas aqui recentemente num post de Frederico Aleixo), ou de repressão , o papel do Estado, a luta de classes…tudo isto e muito mais num texto que é uma pedrada (estruturada) nos discursos conservadores ( mas não só) que por aí se ouvem ad nauseum.

    …chapeau!

    A Sagração da Desigualdade – I: Mérito e Excelência

    running businessman
    «Houve outrora, em tempos muito remotos, uma elite laboriosa, inteligente, e sobretudo poupada, e uma população constituída por vadios, trapalhões, que gastavam mais do que tinham (…) a elite foi acumulando riqueza, e a população vadia ficou, finalmente, sem ter outra coisa que vender além da própria pele». Assim define Marx, n’O Capital, com a ironia que lhe é reconhecida, o mitologema legitimador da dinâmica capitalista. Para os mitógrafos burgueses encarregues da «explicação» «histórica» da exploração do homem pelo homem, da desigualdade, da estruturação da sociedade em classes, em suma, para aqueles que não afirmam sem se rir que «capitalismo sempre houve, chama-se economia» (e sim, eu já ouvi estas e piores) e pretendem, toscamente que seja, adiantar uma explicação simultaneamente funcional e ética para a desigualdade social do mundo em que vivemos. Como indicia a imagem que ilustra este texto, o mito presume (mas nunca indica onde está nem quando foi) um determinado ponto na história em que todos os homens estavam em rigorosíssima igualdade de circunstâncias, salvo as «naturais» diferenças entre fracos e fortes, espertos e parvos, belos e feios, e demais aspectos de igual primarismo. Começou aí, não se sabe bem por que tiro de partida dado talvez por Deus, uma corrida de cem metros opondo todos os seres humanos nascidos até então, e até hoje: alguns de nós terão dedicado a essa corrida o melhor de si, suplantado dificuldades, inventado forças, ignorado sofrimentos, e com o poder de uma vontade férrea terão chegado longe; outros, por indolência ou atrapalhação, mas no fundo por incapacidade, terão preguiçado, mostrado insuficiência, inevitavelmente ficado pelo caminho. Ninguém tem para culpar por isso se não a Mãe Natureza ou, no limite, a si próprios. O seu estatuto social é natural, como a cor dos olhos ou a altura que tiveram. Podem, com dedicação e trabalho, eventualmente mudá-lo, assim como se emagrece fazendo dieta ou se ganha músculo indo ao ginásio. A menos que a sua seja uma genética condenada, circunstância em que, por mais voltas que dêem, nada poderão fazer.
    Gostem ou não disso, dos pretensos teóricos que hoje em dia se socorrem desta mitologia, quando já não é fino nem de bom-tom ser-se religioso, estão, no fundamental, a reproduzir a tese da doutrina social católica quanto ao fundamento moral da propriedade e da hierarquia social. A Rerum Novarum, encíclica do Papa Leão XIII que funda a citada doutrina, afirma, com pretensões de seriedade, aquilo que Marx refere de forma jocosa: «como é fácil compreender, a razão intrínseca do trabalho empreendido por quem exerce uma arte lucrativa, o fim imediato visado pelo trabalhador, é conquistar um bem que possuirá como próprio e como pertencendo-lhe; porque, se põe à disposição de outrem as suas forças e a sua indústria, não é, evidentemente, por outro motivo senão para conseguir com que possa prover à sua sustentação e às necessidades da vida, e espera do seu trabalho, não só o direito ao salário, mas ainda um direito estrito e rigoroso para usar dele como entender. Portanto, se, reduzindo as suas despesas, chegou a fazer algumas economias, e se, para assegurar a sua conservação, as emprega, por exemplo, num campo, torna-se evidente que esse campo não é outra coisa senão o salário transformado: o terreno assim adquirido será propriedade do artista com o mesmo título que a remuneração do seu trabalho. Mas, quem não vê que é precisamente nisso que consiste o direito da propriedade mobiliária e imobiliária?». Poderíamos ouvir qualquer João César das Neves, qualquer Cantiga Esteves, qualquer João Duque dizer semelhante coisa. Isto é, quanto a eles, historiografia assente. Nem mais, nem menos. Ainda há dias, J. Beleza dizia na TV que «a concorrência é o maior factor de desenvolvimento desde que o mundo é mundo». É aliás de crer que a gregariedade humana, que lhe vem dos seus antepassados hominídeos, se funda puramente no desejo irreprimível da gabarolice e da competição, de mostrar ao Neandertal do lado uma caverna melhor, como hoje se esfrega na cara dos vizinhos o carrão que se acabou de comprar.
    Esta é todavia das maquinações que em menos se assemelham ao que quer que se saiba sobre a história e a antropologia. Nada podia ser mais rotundamente anticientífico do que este postulado. Sem me alongar muito, esta ideia ignora, em gala, o que quer que seja sobre o processo de divisão social do trabalho, a começar pela repartição de funções sociais entre géneros e a acabar na influência da patria potestas e da conquista militar na definição radical de papéis sociais inultrapassáveis; escamoteia a ulterior autonomização social do estamento dos guerreiros, e o estabelecimento por eles de situações de dominação da sociedade como um todo; faz de conta que não sabe do resultado do desenvolvimento do comércio, posterior a esta prévia divisão, rígida, das sociedades, na consagração de uma clique de comerciantes-prestamistas que ombreavam com os guerreiros e, em aliança ou frontal combate, disputavam com eles a exploração dos desapossados; desconhece o processo histórico de esbulho dos escassos haveres dos minifundistas correlativos à ascensão social da burguesia a partir do séc. XVI, com cercamento de terras comuns, expulsão de camponeses das suas aldeias, prisão e subjugação a trabalhos forçados dos que, sem emprego, tinham de vadiar, emprego do poder de Estado na sua deslocação forçada para outras regiões, legitimação das relações de força desproporcionadas entre classes – nada disso interessa. Isso, clamam irracionalistamente, são «desculpas». E o que visam com isto é claro e transparente: a um tempo, individualizar os comportamentos sociais, tornando-os atitudes de pessoas específicas e não de classes (e menos ainda de classes em luta), e, por outro lado, estabelecer a base sobre a qual o lucro e a exploração resultam do senso comum. Vejamos o que visa o primeiro e como nasce dele o segundo.
    Num curioso movimento dialéctico, a desclassização que o discurso individualista empreende promove quer a consciencialização de uma classe (e a sua predisposição para se aliar com os dominantes), quer a desmobilização de outra. A classe cuja consciencialização se procura, como se percebe, é a pequena burguesia: a ela sim, e a ninguém mais, se aplica o mitologema da força da vontade na ascensão social, e mesmo aí, uma ascensão precária, titubeante, ao arrepio das dinâmicas estruturais do capitalismo, sujeita a rápido desaparecimento como atestam as falências de PMEs desde o começo da crise. Poupando salário abre-se uma mercearia, nunca uma SONAE. Mas estabelece-se a impressão – que o capitalismo em crise cedo prova ser nada mais que uma impressão – que entre o merceeiro de bairro e o merceeiro Belmiro de Azevedo a diferença é, meramente, de grau. E com isso se leva para o lado dos dominantes estes sectores intermédios, por mais que o engrandecimento desses sectores dominantes seja, a prazo, a morte das tais classes intermédias. Quanto aos trabalhadores, pouco é preciso explicar: promove-se desta forma a sua desunião, vende-se-lhe o sonho ilusório de resolver o seu problema individual tornando-se burguês, e não o problema colectivo da sua classe, fazendo, com ela, a revolução. E de caminho retarda-se a sua consciencialização, deslegitimando junto dele a classe a que pertence, e associando o bom e o belo a quem pode e manda.
    Ao mesmo tempo, descarnada da sua estruturação em classes e reduzida a organização associativa de indivíduos livres, a sociedade assim inventada pelo discurso burguês justifica todas as suas práticas e desobriga-o de toda a moralidade. Não existe correlação de forças, desigualdade de circunstâncias, coordenação grupal. Nada. O proletário que discute quanto ganha com quem o contrata é um homem livre perante um homem livre. O inquilino que discute a renda com o senhorio, outro homem livre perante outro homem livre. O pequeno produtor que vende cebolas ao Belmiro de Azevedo, também ele um homem livre, como homem livre é Belmiro de Azevedo – estranhamente, a margem de manobra do homem livre Belmiro é prodigiosamente maior que a do não menos homem livre merceeiro de esquina que lhe sucede na fila para negociar com o produtor agrícola…
    Se as relações forem puramente individuais, o que resulta de benefício ou de prejuízo para cada parte é fruto, estritamente, da sua capacidade negocial. E aqui voltamos à corrida de 100 metros, à natureza, à responsabilidade individual única e exclusiva. O que é o lucro? Mérito, excelência. O que é o sucesso? Mérito, excelência. O que dita a posição social? O mesmo. É tudo muito fácil e claro quando a descrição da sociedade é assim feita. Fácil e claro, sim. Verdadeiro, bem pouco.
    [NOTA: escreverei quatro textos sob o título «A Sagração da Desigualdade». O de amanhã chamar-se-á «Pobres mas honestos»]

    Sobre João Vilela

    Professor de História da Arte algures na cidade do Porto, licenciado em História e mestre em História e Educação, portista e comunista, falo de política, economia, educação, cultura, e, se me der na veneta, até de nudez feminina. Este blogue é para me entreter, e contará com «a little help from my friends» volta e meia.
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    23 respostas a A Sagração da Desigualdade – I: Mérito e Excelência

    1. André Carapinha diz:
      Excelente texto. Está cá tudo, limpinho, limpinho. Aguardo ansiosamente pelos outros, e deixo desde já o meu elogio ao João Vilela, grande aquisição para o 5 Dias.
    2. De diz:
      Não é só o conteúdo, é também a forma.Não é só esta ,é sobretudo aquela. Notável.
      … é um prazer ler textos com cabeça,tronco e membros,pedagógicos na forma, também instrumentais na acção, que nos conduzem ao exercício da inteligência e do pensar.
      Uma janela aberta para se respirar um pouco de ar não poluído.
      ( não…não me canso de o repetir)
    3. Nuno Cardoso da Silva diz:
      Pode-se brincar com a doutrina social da Igreja, mas é essa Igreja que há quase duzentos anos vem dizendo que o direito de propriedade não é absoluto, é relativo, e está condicionado ao proprietário colocar essa propriedade ao serviço da comunidade, não guardando do seu produto para si senão o que é necessário ao seu sustento. A Rerum novarum pode ainda ser um pouco ambígua, mas a Populorum progressio, de Paulo VI, já não deixa sobre a matéria muitas dúvidas a quem quer que seja. Se há figuras da Igreja que foram – e são – cúmplices da burguesia, já a doutrina da Igreja é altamente crítica do capitalismo e da exploração que ele engendra. Não é preciso ser-se católico – e eu não sou – para se reconhecer a posição crítica da Igreja face à exploração capitalista. Agora não se espere é que a Igreja encabece tomadas da Bastilha ou do Palácio de Inverno… Embora tenha havido sacerdotes seguidores da teologia da libertação que andaram lá bem perto, como Camilo Torres.
      • A crítica, terá percebido, não é dirigida à doutrina social católica (de que discordo, mas que nem me aquece nem arrefece): uso apenas a explicação, soi disant, que essa doutrina convoca para fundamentar a desigualdade social, e que em meu entender é igual em tudo à que os economistas liberais usam e que, em qualquer dos casos, não tem ponta por onde se lhe pegue.
        • Nuno Cardoso da Silva diz:
          É curioso, porque a Igreja considera que só o trabalho cria valor, o que está um pouco longe das doutrinas liberais. Não convém pegar da doutrina católica apenas aquilo que nos dá jeito para a criticar porque em muitos aspectos – como a teologia da libertação demonstrou – ela pode ser tão radical e revolucionária como o marxismo mais duro. Volto a dizer que não sou católico, mas o catolicismo, quando é coerente, é verdadeiramente revolucionário nas questões económicas e sociais. Por isso o reacionário do Ratzinger não descansou enquanto não silenciou os teólogos da libertação.
          • Eu escuso-me de repetir que não critiquei a doutrina social católica, que por sinal não me aquece nem me arrefece, mas tão-só a sua concepção e explicação das origens da propriedade privada. Se quer discutir doutrina social católica com quem a critica, dirija-se ao guiché ao lado.
            • Nuno Cardoso da Silva diz:
              Da Doutrina Social da Igreja:
              “O direito à propriedade privada subordina-se ao princípio da destinação universal dos bens e não deve constituir motivo de impedimento ao trabalho e ao crescimento de outrem. A propriedade, que se adquire antes de tudo através do trabalho, deve servir ao trabalho. Isto vale de modo particular no que diz respeito à posse dos meios de produção; mas tal princípio concerne também aos bens próprios do mundo financeiro, técnico, intelectual, pessoal.”
              “Deus destinou a terra e tudo o que ela contém para o uso de todos os homens e de todos os povos, de sorte que os bens criados devem chegar eqüitativamente às mãos de todos, segundo a regra da justiça”
              Se queria referir-se à doutrina da Igreja quanto à propriedade privada, talvez valesse a pena procurar com mais cuidado…
            • Homem, você é chato. Eu especifiquei claramente que criticava a teorização daorigem da propriedade, não da sua função social, na DSC. E pela terceira vez lhe digo: nem critiquei essa doutrina, nem estou para a discutir. Quer, fale do fulcro do texto. Não quer, deixe-me sossegado!
            • Nuno Cardoso da Silva diz:
              Eu sei bem qual é a origem do incómodo. É que enquanto na década de sessenta, na América Latina, a maioria dos comunistas ficou sentada à espera que a revolução burguesa se consolidasse para só depois promover a revolução proletária, os padres defensores da teologia da libertação estavam no terreno a organizar e a alfabetizar os mais pobres, a lutar sem concessões contra a exploração oligárquica capitalista. Eram eles que exigiam a entrega da terra aos camponeses, e não os partidos comunistas locais. É por isso que discutir a doutrina social da Igreja e a subsequente teologia da libertação incomoda alguns. Porque esta póe em causa a ficção do monopólio do materialismo histórico na luta contra a exploração e o capitalismo.
            • Não, o incómodo procede mesmo do apego patético a um ponto lateral do post e à forma desonesta como as minhas respostas aos seus comentários foram contraditadas por si. Mas enfim, acabemos com isto. Passe bem.
      • Carlos Carapeto diz:
        E essa igreja tem cumprido com o que lá tem escrito?
        O Vaticano é um dos Estados mais ricos do mundo, no entanto suga benesses e isenções até aos países mais miseráveis.
        Por outro lado o bem que a igreja pratica é fazendo caridade, caridade essa que tem apenas como finalidade tornar as pessoas subservientes aos seus dogmas.
        Nunca a igreja em tempo algum se interessou por combater as causas que provocam a pobreza e as desigualdades sociais.
        Interessa-lhe o perpetuar dessa situação. Verga as pessoas por o estomago, doma-lhes a mente, captando dessa forma mais militantes para as suas fileiras e evitando conflitos sociais.
        E qual foi o tratamento que a igreja reservou a muitos teólogos da libertação que se atreveram ir para além das regras doutrinarias estabelecidas ?
        Leonardo Boff, Ernesto e Fernando Cardenal por exemplo.
        Camilo Torres ao contrario destes decidiu pegar em armas.
        • Nuno Cardoso da Silva diz:
          O problema não está se, no seu todo, a Igreja foi fiel à sua doutrina. Todos sabemos que não foi. O importante é constatar que há outras formas de lutar contra a exploração, a opressão e o capitalismo, e que uma dessas formas resulta de uma leitura coerente da doutrina da Igreja. A teologia da libertação é a prova de que é possível desenvolver-se essa luta pelos oprimidos a partir de princípios que nada têm a ver com a leitura marxista. O que não invalida a importância da análise marxista mas lhe retira o carácter de única via para a libertação dos povos. É até particularmente importante verificar-se que marxistas e teólogos da libertação, com pontos de partida muito diversos, conseguem um grau interessante de convergência nas soluções. É verdade que a Igreja oficial maltratou os teólogos da libertação, mas não os aniquilou. E o actual Papa até pode vir a abrir de novo a porta às experiências dos teólogos da libertação. O que, espero, não incomode excessivamente os marxistas, porque é pelas duas vias que se poderá liquidar a exploração capitalista.
    4. Carlos Carapeto diz:
      Muito obrigado João Vilela por o esforço que fez em esclarecer-me.
      É o que posso acrescentar às palavras elogiosas que os outros participantes escreveram.
    5. João diz:
      Isto agora já cheira m bocadinho a “sopas depois de almoço” ou a “Maria vai com as outras”, mas mesmo correndo e sabendo que ele é grande, não posso deixar de me juntar a todos os que o elogiaram. Parabéns, quanto a essa produção.
      Interessantes e honestas me parecem também as posições – sua e do Nuno Cardoso da Silva – no que respeita à doutrina social da Igreja. Em tempos de transicção (e nós estamos nesse tempo) perscrutar em todas as portas, janelas e frestas, parece-me vital. Mas isto, sem me desviar do propósito essencial, que é dar-lhe os parabéns.
    6. RG diz:
      Esquecem-se alguns historiadores que houve mais evolução e desenvolvimento humano em sociedade cooperativas do que quando passaram à matriz competitiva.
      • Carlos Carapeto diz:
        Na muche!
        A burguesia tem medo do povo e dos trabalhadores organizados, por esse facto dificulta ou nega o apoio à formação de Cooperativas de iniciativa popular.
        • Nuno Cardoso da Silva diz:
          Talvez seja altura dos trabalhadores dispensarem as autorizações ou apoios da burguesia e avançarem de motu proprio para a criação de cooperativas e para a transformação de empresas capitalistas em empresas cooperativas. E poder-se-ia começar pela ocupação de empresas em vias de encerramento, impedindo o desmantelamento dos seus activos e continuando a produzir, agora sob controlo dos próprios trabalhadores.
        • RG diz:
          Nem referia tanto a cooperativas enquanto modo de organização da produção (aliás estas podem ser tão competitivas com uma vulgar empresa) mas sim ao modo como as sociedades, na história, se organizaram para satisfazer as necessidade básicas e comuns, reproduzindo-se pelo trabalho cooperativo, por divisão igualitária do produto comunitário.
    7. JgMenos diz:
      Muito mais me entusiasmaria lê-lo sobre a ‘sagração da igualdade’.
      Onde e quando esse mito foi, não só realidade, como factor de progresso material e cultural!
      Talvez me abalasse a convicção de que quem sempre menoriza o individualismo muito ambiciona que outros por si muito façam!