A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht
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terça-feira, março 15, 2011

15 de Março de 1961 - o (re)ínicio da Guerra Colonial

Terça-feira, 15 de Março de 2011  
Direitos reservados
Mais de 65 mil militares foram para Angola


Tema de capa

Quando o País mergulhou na guerra

A guerra colonial começou com um massacre, há 50 anos. As histórias dramáticas de quem viveu o conflito na pele
  • 13 Março 2011
Por:Bruno Contreiras Mateus, José Carlos Marques e Marta Martins Silva


Jorge tinha 12 anos. "As senhoras do Movimento Nacional Feminino chamaram-me a ir à casa mortuária reconhecer, entre corpos esquartejados, o meu irmão. Só quando vi pessoas sem braços nem pernas é que me apercebi do sítio onde estava. Andei lá o dia todo à procura..." As marcas na memória de Jorge Fontinha são frias como o golpe das catanas dos guerrilheiros da UPA (União dos Povos de Angola) que, a 15 de Março de 1961, trucidaram colonos, trabalhadores rurais e dos postos administrativos no Norte de Angola. 
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O pai de Jorge, que era fazendeiro de café entre Nambuangongo, Zala e Quipedro, estava a preparar - nessa manhã de dia 15 - um carregamento de madeira para transportar para outra fazenda. Fernando, o irmão com 18 anos que tinha tido paralisia infantil, assistia aos trabalhos apoiado pelas duas muletas. Aperceberam-se de movimentações no capim. A governanta, julgando que fossem as galinhas, foi ver. Quando avistou um grupo de guerrilheiros empunhando catanas e paus, correu e mandou toda a gente para dentro de casa. Sem conseguir fugir, Fernando escondeu-se dentro da camioneta. "Deram-lhe duas catanadas: uma na testa; outra no peito" - recorda Jorge, hoje com 62 anos.
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Entretanto, os guerrilheiros forçavam a entrada da casa. Heroicamente, um dos homens lá escondidos conseguiu roubar--lhes uma catana, saiu e decapitou um deles - o que fez com que os outros recuassem. O pai de Jorge e os empregados fugiram para a camioneta, onde estava Fernando morto. A caminho de Nambuangongo, já ocupada pelos guerrilheiros da UPA, tiveram que levar à frente os que o queriam parar. Só foram travados e forçados a abandonar a camioneta - e o corpo de Fernando -, quilómetros depois, com a estrada cortada por troncos.
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Andaram pela mata até dia 18, quando o Esquadrão de Cavalaria - conhecido pelos ‘Dragões' - os socorreu e os levou para Luanda. Jorge estava na capital à espera do pai e do irmão - a mãe já havia falecido em 1952. Iam passar as férias da Páscoa em família. "Tive um pressentimento mal o meu pai se agarrou a mim a chorar e eu não vi o meu irmão". Jorge passou à condição de refugiado de guerra. "Desde que fui, em Abril, à morgue procurar o meu irmão e não o encontrei, fiquei com uma máscara de insensibilidade. No dia 1 de Maio, na ponte aérea não falei com ninguém. Só três dias depois de chegar a Portugal é que chorei, no colo de uma tia". 
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TRAGÉDIA ANUNCIADA
"Os massacres de 15 de Março, no Norte de Angola, podiam ter sido evitados. A região ficou desguarnecida de propósito. Salazar queria um pretexto para o início da guerra, queria sensibilizar a seu favor a opinião pública internacional e calar a oposição ao regime". Esta é a convicção do então segundo-sargento miliciano José Moura (hoje com 76 anos), da 3ª Companhia de Caçadores Especiais, que considera ainda que "o assalto à esquadra da polícia e às prisões de Luanda [a 4 de Fevereiro] é um reflexo das operações efectuadas [nos dias anteriores] na Baixa do Cassange (Malange)" - onde combateu.
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A resposta militar aos massacres de 15 de Março tardou. Só havia quatro unidades de Caçadores Especiais em Angola e um Esquadrão de Cavalaria - os ‘Dragões' - que seriam depois reforçadas por uma Companhia de Pára-quedistas e outras quatro de Caçadores Especiais vindas de Lisboa. Mas só no início do Verão começa a ‘Operação Viriato', a primeira grande manobra militar, que tinha por objectivo expulsar os rebeldes do Norte de Angola e desalojá-los de Nambuangongo, onde a UPA instalara a base da guerrilha. Três Batalhões - o 114 que atacaria pelo eixo central, o 96 desde Este e o 149, a partir do Oeste - convergiam em direcção aos rebeldes. O plano previa que seria o Batalhão 114 a entrar em Nambuangongo, mas o combate ditou uma sorte diferente.
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VINGANÇA
José Figueira foi um dos militares que participou na operação. À chegada a Luanda, a 14 de Maio de 1961, o alferes miliciano tinha 22 anos e nada sabia da guerra. Era um miúdo, um entre milhares chamado a combater no Ultramar. Foi através de um lote de fotografias, mostradas pelo director do jornal ‘Comércio de Luanda', que conheceu a guerra pela primeira vez. 
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"Todas as imagens mostravam brancos mortos pelos terroristas. Os cadáveres estavam em muito mau estado. Sabíamos que eles tinham sido cortados, serrados como madeira, estropiados. Sabíamos que as casas onde moravam ainda tinham o seu sangue, que tínhamos de os vingar. Isso serviu de incentivo para os homens, porque eu disse-lhes: ‘Estão a ver o que aconteceu? Não podemos tolerar isto, pois não?' Foi aí que a guerra começou para nós". O plural refere-se ao Batalhão de Caçadores 96 - comandado pelo famoso comandante Maçanita, a quem as tropas chamavam de ‘paizinho'.
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A unidade só soube que ia tomar Nambuangongo quando já estava no rio Dange. O caminho foi difícil: "Os gajos faziam buracos de tal forma que lá dentro cabiam viaturas e no fundo estacas afiadas para ver se a gente caía. E isso veio trazer-nos uma carga de trabalhos embora levássemos o alferes Jardim Gonçalves (futuro banqueiro) e um pelotão que cobria esses buracões. Nós íamos com secções apeadas fazer o tiro marchante para um e outro lado da picada".
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A caminho de Nambuangongo sofreram o maior ataque de que José, na guerra conhecido como o homem da granada - andava sempre com uma no bolso - tem memória. "No Mucondo, a 29 de Julho, eram cinco da manhã e estava quase tudo a dormir. Eu ouvi um estalinho e pedi ao sentinela para acordar a malta. A sorte foi que na véspera tínhamos levantado uns seis metros de arame farpado, que estava ligado a um gerador. Estávamos longe de imaginar que 450 homens se escondiam na mata prontos para nos atacar. Preparámos as metralhadoras, os morteiros e começámos a varrê-los. E eles, que não contavam com o arame farpado, acumulavam-se ali mortos, aos nossos pés. Houve dois que tentaram agarrar as metralhadoras que os nossos tinham largado no meio da confusão e um que ficou sem cérebro depois de levar um tiro na cabeça. Foi a primeira vez que vi uns miolos a saltar". 
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O Batalhão chefiado pelo tenente-coronel Armando Maçanita foi o primeiro a chegar a Nambuangongo, chegando muitos dias antes do Batalhão 114.
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A poucos quilómetros dali, o alferes de Cavalaria Manuel Monge, acabado de sair da Academia Militar, fazia também o baptismo de fogo na sua primeira comissão em Angola. À chegada, em Julho, juntou-se à Companhia local dos ‘Dragões'. Veio a tempo de participar na ‘Operação Viriato', onde a sua unidade prestou auxílio ao Batalhão 114. Enfrentou os guerrilheiros da UPA, mal armados, mas imbuídos de um espírito guerreiro fora do comum: "Eles avançavam para as nossas tropas armados apenas com canhangulos e catanas. Acreditavam que as balas dos brancos não os podiam ferir. Na altura falou-se que estariam drogados com algum produto fabricado por eles, mas isso nunca se demonstrou". O domínio de Nambuangongo tinha um significado especial para os dois lados do conflito. "Para a UPA, Nambuangongo ficava na capital do antigo reino do Congo, para nós era um ponto estratégico de confluência de várias estradas". 
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O agora major-general, actual governador civil de Beja, lembra as dificuldades sentidas pelas tropas portuguesas nos primeiros combates: "Usávamos umas espingardas Mauser do tempo da II Guerra Mundial, que tinham de ser carregadas tiro a tiro. E as viaturas blindadas tinham enormes dificuldades em progredir, chegávamos a demorar um dia inteiro a fazer 14 km". 
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BATALHÃO 114 EM APUROS
O alferes Campos pertencia ao Batalhão de Caçadores 114, que era esperado em Nambuangongo antes de qualquer outro. "Achava-se que por termos o itinerário mais fácil, mais directo, seríamos os primeiros a chegar, além de que éramos considerados o batalhão mais eficaz. Mas os negros parece que também acharam o mesmo e apanharam-nos no caminho. A Companhia de Caçadores 115 ia à nossa frente. Quando recebemos a notícia de que estavam a ser atacados acelerou-se a ordem de partida. ‘Prontos a receber tiros a qualquer momento'" - disse António Nobre Campos aos seus homens antes de partirem para aquele que ficou conhecido como o combate de Quicabo. 
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A dado momento, a frente da coluna foi atacada e assaltada por vagas sucessivas de combatentes da UPA, com punhais, catanas, fisgas, pistolas artesanais carregadas com ferros em vez de balas. "Em meia hora, a picada ficou pejada de mortos e feridos, de ambos os lados. Lembro-me do Durval, que teve o capacete rachado com uma catanada certeira e outro com as costas abertas por causa de um golpe de catana que lhe abriu uma ferida desde o ombro até ao final das costas, por onde saía o pulmão ao respirar". 
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COLONOS EM COMBATE
Os ‘Dragões' eram uma força exclusivamente de intervenção e constituída essencialmente por colonos. "No meu pelotão, em cerca de 30 homens, três eram da região dos Dembos - o Batista, o Brito e o Alexandre - e dois deles ficaram com as famílias trucidadas no 15 de Março", conta o coronel Barão da Cunha. "Eles queriam voltar à sua terra. E todo o pelotão estava solidário. Nós estávamos empenhados na missão de recuperação de Nambuangongo. Estávamos todos empenhados em encontrar os corpos dos pais do Brito e do Batista e recuperar a fazenda da família do Alexandre". Em 36 dias e 36 noites percorreram 1420 quilómetros. Não tiveram baixas, mas alguns destes homens ficaram feridos em emboscadas. "Foi preciso muito empenho. Era a nossa terra". 
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José Marinhas era segundo sargento no grupo dos Dragões de Angola, quando chegou à então colónia portuguesa, em Outubro de 1960, numa missão que pouco parecia ter de arriscada. O 15 de Março apanhou-os de surpresa pelo rádio e mudou-lhes o trilho. "A nossa função foi, durante os dias mais terríveis dos massacres, retirar as pessoas o mais rápido possível das zonas de alto risco. Quando somos deslocados para o Norte, onde estava o batalhão do Maçanita e o 149, deixámos vários homens pelo caminho, dezenas de mortos num ataque em massa que sofremos, em que até houve um corpo a corpo", recorda Marinhas, que esteve na Índia, antes de desembarcar em Angola, depois conheceu as agruras da Guiné, antes de regressar novamente a Angola. O ouvido, que lhe falha, foi dos tiros, dizem os médicos. "Dei muitos, daí este zumbido permanente". 
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COMANDANTE HERÓICO
É no combate que se revelam os grandes líderes e António de Spínola cedo se evidenciou um militar de excepção. Em Novembro de 1961, o então tenente-coronel comandou o Grupo de Cavalaria 345, colocado no Norte, em Ambrizete, e depois em Bessa Monteiro, mais para o interior. António Veiga era o motorista de Spínola e acompanhava-o para todo o lado. Numa operação em Quidilo, um ataque dos guerrilheiros fez 9 mortos e 21 feridos de uma das companhias do Grupo. 
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António Veiga conta a reacção de Spínola. "Quando os homens regressaram, muito desanimados, Spínola anunciou que, daí para a frente, seria ele sempre o primeiro homem da coluna quando saíssemos para o mato. E cumpriu a sua palavra. Houve acções em que as companhias que estavam a combater foram rendidas ao fim de muitas horas, mas ele permaneceu sempre na frente", conta António Veiga. 
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Em 1962, o motorista salvou a vida ao homem que mais tarde haveria de liderar o esforço de guerra na Guiné - e fazer tremer o regime com a publicação do livro ‘Portugal e o Futuro'. "Estávamos numa missão perto do Congo e fomos emboscados. Atirámo-nos todos para o chão e reparei que Spínola tinha perdido o seu capacete. Corri para ele e enfiei-lho na cabeça. Pouco depois, foi atingido por uma bala, que raspou no capacete e desviou-se", lembra António Veiga, hoje com 70 anos. Spínola ficou-lhe grato e fez questão de ser o seu padrinho de casamento após o fim da comissão, em 1964.
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STRESS DE GUERRA
A guerra estava cheia de pesadelos para muitos dos combatentes. José Rafael de Almeida ficou preso a este passado. Sofre de stress de guerra. O dia 4 de Julho de 1965 é das suas piores memórias. Integrando o Batalhão de Cavalaria 1851, a caminho de Nambuangongo foi emboscado numa zona minada à beira da estrada. José tropeçou no arame da mina que rebentou e o projectou para o chão.
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"A descarga de adrenalina é de tal ordem que não sentimos dor. Nesse momento, entro pelo palmar adentro a disparar. Os meus colegas dizem: ‘O Rato [como era conhecido] é maluco, vai-se matar'". Mas o que é certo é que esta iniciativa obrigou à retirada do atacante. Rafael tinha estilhaços na perna esquerda e no braço direito, mas nem mesmo este sangue derramado o faz sentir-se orgulhoso da condecoração que se seguiu: Cruz de Guerra de 4ª Classe. Rafael ficou psicologicamente incapacitado. Para ele, a justa recompensa seria considerarem-no deficiente permanente das Forças Armadas, porque hoje precisa da pensão para viver condignamente. 
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A CENA MAIS CHOCANTE
Mário Silva tinha 21 anos quando chegou, a 21 de Outubro de 1968, para uma experiência que tantos anos depois lhe apareceu nos pesadelos. "A primeira baixa que tivemos foi um acidente, no Norte. O inimigo ia de noite a uma lixeira e o comandante pediu que fizéssemos um cerco. A meio da noite, um lembra-se de ir fazer as necessidades e afasta-se. O furriel viu um vulto, perguntou quem era e ele não respondeu. O furriel disparou e matou-o". Catorze meses depois, o trilho faz-se para Leste, para o Cassange. "A cena mais chocante que vi foi um furriel, que ia numa Berliet (viatura de guerra) que pisou uma mina. Ficou pendurado numa árvore, todo desfeito". 

O BENFICA-PORTO
José Marques pertenceu à primeira companhia de combate. O pára-quedista esteve em Angola entre 1971 e 73, onde muitas vezes se sentia "desalmado". "Não me sentia herói. Era incapaz de poupar o semelhante que à minha frente via fugir da morte. Não me sentia com remorsos por lhes tirar a alma e a vida".
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As operações que mais o marcaram "foram a primeira e a última". A estreia, pelo choque - "fomos procurar um pelotão do exército que tinha sido apanhado pelo inimigo a ouvir o relato do Benfica-Porto, que na imensidão do mato se ouvia a quilómetros. Morreram seis ou sete, o cenário era de horror. Alguns mortos, outros feridos, estropiados. O furriel miliciano estava a chorar que nem um perdido perante os seus soldados. Fizemos um cerco ao MPLA e era como abater coelhos, fiquei tão desumanizado que dava tiros como se fosse para animais. Era a única saída" - recorda Marques, agora pintor, de 61 anos.
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VER A MORTE
Vinte e quatro meses depois, José Marques viu a morte de frente uma segunda vez. "Íamos a persegui-los na margem de um rio com os heli-canhões e no meio da euforia resolvi descer o rio para ir buscar as armas do inimigo, que para nós eram troféus. Só que o helicóptero, que andava no ar, viu um vulto a mexer-se no meio dos mortos e começou a metralhar-me, sem saber que eu era dos dele. O piloto só percebeu quando as nossas tropas dispararam contra o helicóptero. Para me proteger refugiei-me entre os corpos, quietinho, porque alguns ainda se mexiam. Sobrevivi, apenas com queimaduras na cara". 
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O major-general José Ferreira Pinto conheceu três fases da guerra de Angola. A primeira foi em 1965, antes de ser transferido para Moçambique; as seguintes foram em 69-72 e em 74-75. Todas foram diferentes mas de todas se recorda com a precisão de um relógio.
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Era comandante da força de operações e chegou a liderar mil homens. Não esquece, não esquecerá nunca, o dia em que foi obrigado pelas circunstâncias a tomar a mais difícil decisão da carreira.
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‘Diana' - assim ficou conhecida a operação - tem lugar cativo na memória. Três helicópteros procuravam os trilhos do "inimigo". Oito pisteiros são colocados em terra, e 18 outros homens são chamados a avançar.
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"São recebidos com um tiroteio enorme que fere o capitão Pinhão, um soldado e o sargento Albertino Cardeira". Ferreira Pinto tem de optar entre os oito homens que ficaram isolados no meio de 120 guerrilheiros e a vida do capitão Pinhão: não há transporte para todos e a hora tardia não ajuda. O capitão sente que vai morrer e dita o testamento ao seu comandante. Fica no terreno com o sargento Cardeira, a guardá-lo.
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"Achei que ele ia morrer, mas um helicóptero conseguiu ir buscá-lo algumas horas depois". Eis que o imponderável acontece - "ao evacuar o capitão, gravemente ferido, para dentro do helicóptero, o sargento Cardeira é morto com uma rajada de metralhadora. O capitão sobreviveu. Era 3 de Julho de 1974 e a guerra tinha começado há 13 anos. Estava perto do fim, mas continuava a matar. 
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FREI EUGÉNIO BOLÉO - O CAMINHO DA FÉ
"A minha comissão em Angola como oficial de Marinha fuzileiro especial foi de 1963 a 65 e quase toda nas fronteiras, no rio Zaire e Cabinda. A meio da comissão, tive que ficar a comandar o meu destacamento e a ter que lidar com os Serviços de Informações Militares, a colaborar com a PIDE, a tratar de questões com informadores e refugiados no outro lado das fronteiras e a participar em reuniões operacionais a um nível habitual para quem era comandante de batalhão.
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Aos 25 anos ‘entrei' na podridão da guerra. Foi neste ‘quadro' que dentro de mim surgiu a convicção de que esse Deus que nunca ninguém viu era mesmo Pai, como Jesus de Nazaré veio dizer."
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GUERRILHEIROS FRAGILIZADOS
O cabo fuzileiro Manuel Pires da Silva conta no livro ‘Homem Ferro' que, em 1965, a UPA, apesar de responsável pelo 15 de Março de 61, "se encontrava limitada na sua acção após a ‘reconquista'" pelas tropas portuguesas, pouco mais fazendo que "saquear postos administrativos, assaltar fazendas" e pequenas acções terroristas.
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A GUERRA NÃO O LARGA
José Ferreira Vieira, 64 anos, sofre de stress de guerra. Como o próprio diz, transporta "a dor física e psicológica", causada em grande parte "pela morte dos colegas ali mesmo ao lado. Às vezes, corpos estilhaçados. Pela população local a pedir comida à porta do quartel para não morrer à fome. Por ficar oito dias no mato sem saber se iria voltar com vida". José transporta na cabeça os estilhaços de uma bala, que já causaram dois tumores. Foi o que trouxe da guerra.
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UM MÉDICO EM ANGOLA
No embarque para Angola, o alferes miliciano médico Luiz Damas Mora ouviu do seu pai palavras emocionadas: "Vê se não matas ninguém". Chegou em Junho de 1961 para dois anos de comissão. Impressionou-se com os refugiados, principalmente com as crianças desnutridas. Na década de 60, os hospitais angolanos eram "comparáveis aos da Misericórdia de há 40 anos em Portugal", afirma o cirurgião de 74 anos.
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"DEUS ESTAVA COM ELES"
Deus não abandonou os combatentes. "No meio da tragédia da guerra, é difícil manter-se o equilíbrio. Por isso há traumas. E nós [capelães] damos uma palavra de apoio. No meu caso, nunca lhes falei [aos militares] se a guerra era justa ou injusta. O importante era dizer que Deus estava com eles" - conta, aos 77 anos, o padre Agostinho Brígido, recordando os anos de capelão militar, de 1967 a 1975, em Angola. 
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COSTUROU FARDAS DURANTE TODA A GUERRA
Albina Luís começou a trabalhar para o Casão Militar em 1961 - pela mão da sogra, que já fazia fardas militares. "Precisavam tanto que nem tive de prestar provas. Na altura da guerra em Angola eles precisavam tanto de fardas novas que íamos buscar num dia quatro fatos (camisa e calças) para entregar no dia seguinte. Trabalhava pela noite dentro para engordar o magro orçamento - "as camisas mais bem pagas eram a 7 escudos e 500, umas que tinham mangas de casaco".
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55 MIL SOFREM DE STRESS DE GUERRA
O psiquiatra Afonso de Albuquerque, especialista em stress de guerra, coordenou em 2003 um estudo determinante para estimar a prevalência nacional de uma doença a que os especialistas chamam de perturbação pós-stress traumático (PTSD): 55 mil ex-combatentes, provavelmente, têm sintomas de stress pós-traumático produzido pela guerra.
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"A minha impressão é a de que a maioria nunca terá pedido ajuda, ou, se pediu, terá sido ao médico de família mas sem nunca falar propriamente da guerra", estima o especialista.
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UM LÍDER SEMPRE NA FRENTE DE COMBATE
Em 1961, o tenente-coronel António de Spínola, oficial de Cavalaria, era comandante do Regimento de Lanceiros 2, em Lisboa, a quem estava atribuída a Polícia Militar. Com o rebentar da guerra em Angola, Spínola quer estar no terreno e oferece-se como voluntário para combater. 
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É-lhe dada a missão de organizar o Grupo de Cavalaria 345, mobilizado para as zonas de Bessa Moreira e São Salvador do Congo, junto à fronteira com a antiga colónia belga, agora um estado independente de onde partiam forças da guerrilha para atacar em Angola. Spínola mostra a sua bravura e coragem. 
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Lidera os pelotões para a frente de combate e insiste em ser o primeiro da coluna. Quando saiu de Angola, em 1963, era um líder respeitado. Haveria de voltar à guerra para ser comandante-chefe e governador da Guiné, entre 1968 e 1972.
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PROTAGONISTAS DOS ANOS DA GUERRA EM ANGOLA
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ANTÓNIO DE OLIVEIRA SALAZAR (Presidente do Conselho)
Presidente do Conselho de Ministros desde 1932, Salazar livrou Portugal da Guerra Civil de Espanha e da II Guerra Mundial, mas não conseguiu (ou não quis) evitar a Guerra Colonial. Intransigente, recusou sempre negociar com os movimentos de libertação.
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MARCELO CAETANO (Presidente do Conselho)
O sucessor de Salazar chega à liderança do Governo em 1968. As esperanças de democratização do regime e de uma nova atitude perante a questão colonial rapidamente se desvanecem. Marcelo continua a política de manter as colónias, custe o que custar. 
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COSTA GOMES (comandante da Região Militar de Angola 1970)
Militar de grande craveira intelectual, era também um homem prático. Foi um dos obreiros da mudança do conceito estratégico militar, que apontou África como a prioridade da defesa. Em Angola, negociou com a UNITA e reorganizou a estrutura militar.
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AGOSTINHO NETO (líder do MPLA)
Estudante de Medicina em Portugal, cedo abraça a causa da luta pela independência de Angola. Preso várias vezes pela PIDE, em Angola e Portugal, conduz o MPLA desde 1962. Foi o primeiro presidente da Angola independente. Morreu em 1979.
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HOLDEN ROBERTO (líder da UPA/FNLA)
O homem que ordenou os massacres de 15 de Março nasceu em Angola, mas viveu muitos anos no Congo Belga. Em 1954 fundou e dirigiu a UPA e depois a FNLA, desde 1962. Derrotado pelo MPLA após o fim da guerra, viu a sua força perder influência.
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JONAS SAVIMBI (líder da UNITA)
Membro do governo do FNLA no exílio, torna-se dissidente em 1966 e funda a UNITA. Combate as forças portuguesas, mas chega a acordo para um cessar-fogo em 1971. Retoma depois os combates, mas é a luta contra o MPLA que o move, antes e depois de 1975.
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‘A MINHA GUERRA' NAS BANCAS DIA 20
O livro ‘A Minha Guerra', editado pelo Correio da Manhã e disponível nas bancas no próximo domingo, dia 20, reúne os testemunhos de 74 combatentes que passaram pela guerra em Angola. 
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Trata-se de um conjunto de depoimentos na primeira pessoa, histórias de quem viveu momentos marcados pelo heroísmo, pela dor e pela camaradagem. 
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"SALAZAR SABIA QUE IA HAVER ATAQUES" (Coronel Matos Gomes)
Comando do exército em África e historiador do conflito explica como o regime permitiu os massacres de Angola.
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- O governo português foi várias vezes avisado para a eminência de um ataque da UPA em 1961. Como se explica que pouco ou nada tenha sido feito para prevenir os massacres?
- Há uma questão inicial para nós conseguirmos entender o início da Guerra Colonial. Desde a Conferência de Berlim de 1885, em que Portugal recebe as colónias que depois vão constituir o seu Império, nunca houve uma política ultramarina. Nem a Monarquia, nem a República nem o Estado Novo tiveram uma política para as colónias. A questão do início da Guerra em 1961 e os massacres do 15 de Março são consequência da ausência dessa política. Desde 1960 que o Governo e o regime de Salazar começam a receber informações de que algo de importante e decisivo ia ocorrer  em Angola. A 30 de Junho de 1960 o Congo Belga tornou-se independente. Foi um processo traumático que criou um grande número de refugiados europeus (incluindo belgas e portugueses). Esta revolta transmitiu sinais que seriam evidentes  para qualquer governo competente de que algo iria acontecer em Angola.
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- Que avisos foram feitos?
- Há uma primeira informação concreta dos Serviços de Informações Franceses, transmitida ao governo do Dr. Salazar em Dezembro de 1960, de que iria haver uma contestação violenta ao colonialismo português no início de 1961. Houve uma conferência internacional em Moscovo onde essas questões foram debatidas. A partir daí, eu e o Aniceto Afonso (co-autor, com Matos Gomes, de vários livros sobre a Guerra Colonial) detectámos no mínimo dez informações, de diferentes origens, que dizem que em Março ia ocorrer no Norte de Angola um movimento de sublevação. O que nos parece incompreensível é o facto de o Dr. Salazar não ter tomado qualquer medida para contrariar o que ele sabia que ia suceder.
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- O Governo agiu de propósito para que os massacres servissem de pretexto para justificar a guerra?
- Há duas explicações para esta incompreensível inacção do Dr. Salazar. O professor Adriano Moreira, em vários dos seus escrito defende que Salazar tinha 73 anos e seria já um homem fora do seu tempo - Seria um homem velho, gasto e que já não tinha energia para perceber um mundo em mudança. Nós entendemos que, pelo contrário, o Dr. Salazar era um político cheio de manha, com todas as cartas na mão para jogar aquilo que para ele era decisivo - a manutenção do poder. E daí que ele tenha tentado dramatizar e levar ao limite a questão colonial e as convulsões que a luta inicial em Angola provocou. O deliberado responsável pelos massacres do 15 de Março - que fazem 700 a 800 mortos brancos e cerca de 10 mil mortos negros - é o Dr. Salazar. A independência do Congo Belga deveria ter obrigado o regime a colocar em Angola forças que fossem capazes de controlar o território. 
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- O dispositivo militar de Angola em 1961 era incipiente...
- Mas não era só o tecido militar que era incipiente, o dispositivo administrativo também o era. O norte de Angola, como o resto da colónia, não tinha uma administração civil digna desse nome. Não se garantiam os serviços mínimos de um Governo - a segurança das populações, serviços de saúde, educação e da justiça. No Norte de Angola, onde ocorrem os massacres, não existia, de facto, uma soberania nacional portuguesa. Por não existir é que, em Janeiro de 1961, aconteceram as graves sublevações da Baixa de Cassange. Todas aquelas populações que estavam no Norte de Angola, por ausência do Estado português, estavam nas mãos das grandes companhias monopolistas como eram a Cotonang, e nas mãos dos grandes fazendeiros e de uma administração completamente corrupta. O Estado português não tinha controlo soberano sobre o seu território. Isto permitiu que tenham vindo do Congo Belga todos os agentes - uns religiosos como é o caso do António Maria outros políticos, ligados ao FNLA, à UPA e outros movimentos independentistas - tenham vindo impunemente, sem nenhum controlo das autoridades portuguesas,             fazer a sua predicação. São estes factores que fazem com que Portugal pareça  aparentemente surpreendido pelos acontecimentos de 15 de Março. 
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- Em que é que o conflito de Angola beneficiava Salazar?
- Para o Dr. Salazar, o essencial era a manutenção do poder em Lisboa. E enquanto a disputa pelo poder se estava a travar entre ele e o seu ministro da Defesa, General Botelho Moniz, não foi resolvida, Salazar não mandou nenhum soldado para as colónias. Só depois de resolvido o golpe de Botelho Moniz, quando Salazar está como primeiro-ministro, ministro da Defesa e ministro dos Negócios Estrangeiros é que ele diz a tal frase "Para Angola e em Força". 
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- Mas o aparelho militar estava pronto para reagir contra uma insurreição armada em África?
- A questão militar é muito interessante. A alteração do chamado conceito estratégico português inicia-se entre 1958 e 1959, com a colocação no Ministério do Exército de Almeida Fernandes que tinha como secretário de Estado o então tenente-coronel Costa Gomes. E são eles que fazem a alteração do conceito estratégico, transferindo para África a prioridade do esforço de defesa. São feitos estudos, e um conjunto de determinações que fazem com que o Exército Português em África passe a depender pela primeira vez do Ministério do Exército, o que nunca tinha acontecido. Até aí, a forças que estavam em África dependiam do Ministério do Ultramar. São criadas as regiões militares de Angola, Moçambique e Guiné, ou seja, é criado um dispositivo militar legislativo  centrado em Lisboa. São também criadas as regiões aéreas e os comandos navais. Mas  enquanto as transformações foram no papel e não induziram despesas, Salazar aceitou tudo perfeitamente. Fizeram-se as alterações legislativas necessárias, mas não se colocaram tropas, nem viaturas, nem aviões, nem navios. Quando começa a guerra tínhamos uma articulação legislativa perfeita, mas os soldados não tinham armas, os aviadores não tinham aviões e os marinheiros não tinham navios.
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- Mas porquê manter territórios e não fazer nada para os defender?
- Podemos dizer que o Salazar é responsável pelo facto de a guerra ter começado em Angola sem que os dispositivos militar e político estivessem preparados. Mas a questão é mais complexa do que isto. Nós, a partir da conferência de Berlim, que é o momento em que recebemos as colónias nesta configuração, nunca soubemos o que havíamos de fazer com elas. Como não éramos uma potência industrial, servíamos de intermediários dos produtos que saíam de África para serem transformados na Europa. Salazar era um financeiro e sabia que, se saísse daquele circuito, a Metrópole deixava de ganhar dinheiro. Esta é a razão pela qual Portugal é a última potência a descolonizar.
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- Apesar da falta de meios, é enviada uma força de Pára-Quedistas para Angola no dia 15 de Março, data dos Massacres. Isto não é sinal de que haveria um esforço de defesa?
- Não, isso mostra que existia alguma organização. No Exército, destacavam-se os militares ligados à criação de Unidades afectas à NATO em Portugal. A partir de 1959, passámos a enviar para a Argélia oficiais portugueses que vão em missão tentar perceber este novo tipo de guerra, contra-subversiva ou contra-guerrilha. Vieram a Portugal militares ingleses e franceses proferir conferências sobre esta realidade, que surge após o movimento descolonizador. É nesta altura que se cria a unidade de Operações Especiais em Lamego e se formam Companhias de Caçadores Especiais. 
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- Salazar precisava de tropas em Lisboa para se aguentar no poder?
- Entre a independência do Congo e o 4 de Fevereiro (assalto à prisão de Luanda), Salazar só enviou quatro companhias de caçadores especiais. Podia ter enviado muito mais tropas e podia ter-se criado um dispositivo militar no norte de Angola. 
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Após o 15 de Março são enviadas mais duas companhias de caçadores especiais, mas não é enviado nenhum dispositivo de peso até Salazar resolver o problema fulcral de neutralizar o golpe de Botelho Moniz. 
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- As forças iniciais da UPA estavam mal armadas, mas acreditavam que em feitiços que protegiam os soldados das "balas dos brancos". A determinação era a maior arma dos combatentes?
- Os fazendeiros do norte de Angola estavam a centenas de quilómetros uns dos outros e sem contacto com alguma administração local. Os massacres são feitos com armas que eram usadas no dia a dia para caçar, como os canhangulos. Muitas das mortes são causadas por catanas, que são armas primárias. No início não havia uma organização militar, nem podemos considerar que quem fez os massacres eram guerrilheiros. Muitos deles têm até uma face religiosa, ligada ao pregador António Maria.
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- A partir de que momento é que podemos dizer que existe uma força organizada de combate contra as tropas portuguesas?
- Essa força só vai surgir a partir da resistência que esses grupos vão fazer ao avanço das tropas portuguesas que atacam e depois ocupam Nambuangongo, Mucaba e as posições do Norte. Isto vai-se processar a partir de Junho, Julho e Agosto  de 1961. Aquelas quatro companhias de Caçadores Especiais que já estavam em Angola a 15 de Março tinham estado em Nambuangongo. Não encontraram nada de especial na zona que depois viria a ser a base da guerrilha. A partir da formação das colunas militares portuguesas, a UPA tenta reorganizar toda aquela massa de contestatários e rebeldes e dar-lhes o mínimo de organização militar. Até Maio, o que aconteceu era puro terrorismo. 
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- Quando é que começou a sua participação na guerra?
- Entrei para a Academia Militar em 1963, mas só fui para os comandos em 1969. Em 1967, fui mobilizado pela primeira vez para Moçambique, integrado numa unidade de Cavalaria. Estive na zona do lago de Niassa. Depois, em 1969, fui para Angola. 
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- Na altura questionava a justeza da guerra?
- A justeza da guerra depende sempre de quem a faz. O problema da Guerra Colonial portuguesa era a questão que o Dr. Salazar também tinha - é que ele era um rural, um camponês. Aquilo que há de mais importante para um camponês é a terra. Ele recebe a terra, como os seus antecessores tinham recebido. Um camponês nuca larga a terra, mesmo que não saiba para que é que a terra lhe serve. Esta era uma ideia generalizada, que também era a minha. Achávamos que Portugal fazia sentido há 500 anos, sendo uma pequena nação europeia que tinha grandes quintas em África, embora nenhum de nós -e muito menos Salazar - soubéssemos para que serviam as colónias. Toda a sociedade, e mesmo a oposição política, eram colonialistas. O general Norton de Matos chegou a fazer uma proposta absurda que era a da colocação da capital de Portugal em Nova Lisboa, onde hoje é o Huambo, em Angola. 
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- Como foi a sua experiência de guerra em Angola?
- Em 1969 era tenente dos comandos em Angola. Encontrei uma guerra violenta. Andei pelo Norte, nas zonas da Bela Vista e Úcua, onde combatíamos tanto a FNLA como o MPLA. A minha companhia, da qual eu era adjunto do comando, foi depois transferida de Angola para Moçambique.
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- Da experiência em Angola lembra alguma operação em especial?
- Lembro-me de uma na zona da Bela Vista, em que fizemos um heli-assalto a uma base da FNLA. Os guerrilheiros, quer da FNLA, quer do MPLA estavam numa situação crítica. Tinham muito pouco armamento e efectivos muito pequenos. Eles lutavam até ao limite das munições. E isto é a luta mais pessoalizada, deixa de ser um combate para ser uma luta de combate olhos nos olhos com o adversário. Neste assalto, nós éramos 25 comandos e eles tinham poucas metralhadoras. Lutavam até à última munição, com uma arma para cada dois homens. Se eu matava um guerrilheiro, outro puxava a arma dele, que estava presa ao seu braço com um cordel. 
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- Em Angola, havia um tratamento desigual para com as populações indígenas. Esta mentalidade mudou durante os anos da guerra?
- Não estive em Angola desde o início da Guerra mas conheci muitos desses colonos de 1961. A partir de certa altura, distinguiam-se duas gerações de colonos. Uma era a dos colonos iniciais que tinham ido para Angola antes de 1961, e que tinham fazendas de café no Norte. Era o colonialismo puro e duro. Submetiam os pretos que vinham lá de baixo a um regime de exploração até ao limite. Havia trabalho obrigatório e escravo. Mas, a partir do início da guerra, os colonos perceberam que a situação se tinha alterado. As pessoas que vêm de Portugal percebem que não podem tratar o negro da mesma maneira, porque senão vão ter o reflexo que viram nas fotografias dos  massacres de 1961. Passa a haver dois tipos, os velhos e os novos colonos. Os novos passam a tratar o negro quase de igual para igual. 
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- Olhando para trás, arrepende-se de ter sido voluntário na Guerra Colonial?
- Não tenho uma posição moral. Os estados não têm estados de alma. Nós tínhamos colónias, e em determinado momento entendemos que devíamos defendê-las. Eu lutei para que essa possibilidade existisse. É evidente que a existência de colónias não era uma situação final. Eu lutei, como membro das Forças Armadas portuguesas, para que fosse possível encontrar a melhor solução para a questão ultramarina portuguesa. Sinto-me em paz comigo próprio por ter contribuído para a resolução do problema colonial e que essa solução tenha dado origem aos novos países de expressão portuguesa, que partilham connosco a mesma língua, as mesmas partes da história, e as mesmas afectividades. Esta comunidade dos países lusófonos, mais do que económica é uma comunidade de afectos, e isso é bom. 
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- Falando da sua actividade como historiador e romancista da Guerra Colonial, quando estava no terreno sentiu logo que tinha ali material para escrever depois de terminado o conflito?
- Depois do final da guerra, entendi que deveria escrever as histórias dos que estiveram comigo. Aquilo que eu escrevo é um tema universal, que são as histórias dos homens colocados na situação da guerra e não propriamente naquela guerra específica.   
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- Quando começou a escrever, a guerra era um tema tabu?
- Nunca senti que fosse um tema tabu. Mas as pessoas que tinham feito a guerra não queiram falar dela. Cada um entendia que não tinha condições especiais para falar, mas eu entendi que as tinha. Eu entendi que a experiência que eu tinha tido fazia parte da história do meu país. Se mais ninguém queria escrever sobre o assunto, eu achei que devia fazê-lo. Fazia parte do meu dever enquanto militar profissional. 
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- Temos hoje uma boa historiografia sobre a guerra?
- Há muito poucas coisas hoje em dia que sejam decisivas para nós nos compreendermos. A minha geração de portugueses que fez a guerra está a contar hoje as suas histórias pessoais. Será uma área muito interessante para cada um deles, hoje há mais gente a escrever sobre histórias da guerra do que a lê-las. O importante não é fazer a história da minha guerra - que é o que se está muito a fazer - mas sim perceber o que foi aquela guerra na história de Portugal. A história colonial e a história da guerra fazem parte de um movimento de descolonização e fazem parte da história da Europa. Portugal teve um papel central porque foi a última potência colonial a largar os seus territórios. É esse momento que aqueles que escrevem devem contribuir para esclarecer. 
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- E o que é que falta esclarecer?
- Há duas ou três grandes questões por clarificar. A primeira é perceber porque é que Portugal optou por se envolver numa guerra quando podia optar pela negociação. O segundo ponto é entender porque é que houve da parte do Governo português uma incompetência na gestão da guerra. A falha mais importante é que não soube gerir os seus quadros permanentes e criou uma absurda dictomia em que tinha de um lado os milicianos e do outro os militares profissionais. As guerras fazem-se com uma comunidade, com um exército nacional. O governo não soube gerir as suas Forças Armadas. A terceira grande questão é o processo muito complexo em que se envolveu o professor Marcelo Caetano para estabelecer alianças com a Rodésia e com a África do Sul para manter os poderes brancos na África Austral. Nunca se soube como iríamos gerir essas alianças. Não sabemos se íamos continuar a ser um país europeu, ou se íamos passar a ser um país africano. 
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- Em termos estritamente militares, havia condições para continuar a guerra em Angola para além de 1974/75?
- Podia. A guerra não tinha um prazo. A guerra não estava perdida; era uma guerra perdida, independentemente do momento em que fosse efectivamente dada como perdida, porque assentava em bases que não tinham resolução. A política nunca foi capaz de dizer às Forças Armadas qual era a sua missão.  A única missão era permanecer, mas permanecer não é uma missão. Não é cumprível. E daí que as Forças Armadas, a dado momento se tenham interrogado ‘permanecer como e porquê?' A partir de um momento histórico nada daquilo fazia sentido. A Guiné era um prejuízo em termos de vidas humanas e de recursos. E em Angola e Moçambique também ninguém sabe se a manutenção daqueles territórios era rentável para se manter uma guerra. Justificava-se que uma metrópole tivesse aqueles dois territórios quando os seus dois vizinhos eram repúblicas independentes, como a África da Sul e a Rodésia? Como é que íamos manter as nossas províncias ultramarinas em pé de igualdade perante uma potência como a África do Sul ou a Rodésia, que tinha a agricultura mais desenvolvida de toda a África?
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- Tem alguma nova edição no horizonte
- Eu e o Aniceto Afonso vamos publicar um livro sobre as relações entre Portugal, África do Sul e a Rodésia. Que tinham uma aliança militar efectiva. Vamos tentar apresentar aos nossos leitores as contradições que estavam na base da política ultramarina portuguesa. 
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- Olhando para trás, arrepende-se de ter sido voluntário na Guerra Colonial?
- Não tenho uma posição moral. Os estados não têm estados de alma. Nós tínhamos colónias, e em determinado momento entendemos que devíamos defendê-las. Eu lutei para que essa possibilidade existisse. É evidente que a existência de colónias não era uma situação final. Eu lutei, como membro das Forças Armadas portuguesas, para que fosse possível encontrar a melhor solução para a questão ultramarina portuguesa. Sinto-me em paz comigo próprio por ter contribuído para a resolução do problema colonial e que essa solução tenha dado origem aos novos países de expressão portuguesa, que partilham connosco a mesma língua, as mesmas partes da história, e as mesmas afectividades. Esta comunidade dos países lusófonos, mais do que económica é uma comunidade de afectos, e isso é bom.  
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domingo, fevereiro 06, 2011

1961: O ano do início da Guerra no Ultramar

  
Fernando Farinha
Tenente-coronel Maçanita a caminho de Nambuangongo


Histórias

1961: O ano do início da Guerra no Ultramar

Há 50 anos, o país embarcou na guerra colonial. O conflito sangrento, que se prolongou por 13 anos, começou em Angola.
  • 06 Fevereiro 2011 - Correio da Manhã

Por:Bruno Contreiras Mateus
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O ano de 1961 foi o pior do salazarismo. Em Janeiro, depois da constipação, a gripe atacou fortemente o presidente de Conselho. A debilidade de saúde de Oliveira Salazar podia ser interpretada como mau presságio. E com razão de ser. O ano decorreu difícil na metrópole - com o lento início do fim do Estado Novo - e nas colónias, com o eclodir da guerra, onde morreram 8803 militares portugueses e 15 507 ficaram portadores de deficiência permanente. A guerra começou a desenhar-se em Angola. Ao massacre da Baixa do Cassange, sucede a 4 de Fevereiro o assalto às prisões e à esquadra da PSP na capital angolana. A 15 de Março, deflagraram sangrentos ataques no Norte. 
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PRIMEIRO MASSACRE
O dia ficou na história como feriado nacional em Angola: 4 de Janeiro de 1961. Milhares de agricultores da antiga Companhia Geral de Algodão de Angola (Cotonang) teriam sido mortos - reclamam os angolanos - pelos militares portugueses, na Baixa do Cassange, distrito de Malange, como resposta a manifestações exigindo melhores condições de trabalho e a abolição do trabalho forçado. O então segundo-sargento miliciano José Moura (hoje com 76 anos), da 3ª Companhia de Caçadores Especiais, a única tropa portuguesa no terreno àquela data, conta: "Não houve mortos nenhuns feitos pela nossa Companhia até ao dia 2 de Fevereiro. Nesse dia, estávamos na Baixa do Cassange, mas não matámos ninguém. Quem lá estava também era a PIDE, a fazer interrogatórios, e se mataram alguém... é possível."
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Já a 11 de Janeiro de 1961, estala a revolta - instigada por emissários da União dos Povos de Angola (UPA), vindos do ex-Congo Belga. A onda de rebelião varre toda a Baixa do Cassange, causando a morte de um capataz da Cotonang. No dia seguinte, um pelotão da 3ª Companhia de Caçadores Especiais, comandado pelo tenente Silva Santos, é rodeado por um grupo numeroso de revoltosos. O chefe deste grupo só se dispõe a falar ao tenente se as suas forças depusessem as armas. O que veio a acontecer. Silva Santos levou os líderes daquele grupo ao chefe de posto administrativo de Milando. E assim se acalmaram os ânimos.
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Os dias seguintes foram de tensão, mas não ficaram marcados por confrontos. Em Malange, no dia 1 de Fevereiro à noite, os militares da 3ª Companhia são chamados ao quartel, quando alguns, entre eles José Moura, estavam no cinema a ver o filme ‘Orfeu Negro'. Um comerciante de Cunda Ria-Baza tinha estado reunido com o comandante da Companhia, contando-lhe da aproximação de uma invasão daquela localidade pela UPA.
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Era já uma da madrugada do dia 2 de Fevereiro quando, debaixo de fortes chuvadas, partiu para Cunda Ria-Baza um ‘pelotão menos' - com cerca de 20 homens - da 3ª Companhia de Caçadores Especiais. Ao amanhecer, os militares ouvem a ira popular: "Vai-te embora, branco."
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Por volta das 11h00, os Caçadores chegaram à povoação. "Mandei instalar a metralhadora no telhado de um prédio colonial de um comerciante" - recorda José Moura. O pelotão dividiu-se em dois sectores, presumindo a passagem dos revoltosos. Um dos grupos militares, comandado pelo segundo-sargento Moura, abrigou-se atrás do murete da varanda do mesmo edifício. "Veio um numeroso grupo. Eu disparei para o ar, umas duas ou três vezes, a pistola-metralhadora FBP, dando sinal para eles pararem. Mas não obedeceram. Faço então uma rajada para o meio do grupo, o que também não os impediu de avançar. Dei ordem a um soldado atirador especial, e ele disparou sobre o líder do grupo, que era uma espécie de feiticeiro. O tiro foi certeiro."
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O grupo, que tinha sofrido 11 baixas, dispersou e não foram disparados mais tiros. "O fulano que ia catequizar aquele povo [o feiticeiro] dizia para eles não temerem, que as balas dos brancos eram de água" - recorda.
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Ali permaneceu aquele pelotão, aguardando pela chegada da 4ª Companhia. No dia 3, chega a Malange o major Rebocho Vaz, vindo de Luanda, com um pelotão para formar o Batalhão Eventual. E já no dia 5 - depois do ataque à esquadra de Luanda, a 4 -, é a vez de chegar a Malange a 4ª Companhia de Caçadores Especiais, que parte de imediato para Cunda Ria-Baza ao encontro daquele pelotão da 3ª Companhia. Pelo caminho, cruzam--se com um grupo rebelde que pretendia assaltar a povoação de Quela. "As nossas tropas circundaram uma sanzala, e dois cabos da 4ª Companhia foram atingidos mortalmente por fogo amigo" - diz José Moura. "São as duas primeiras baixas da guerra", defende. 
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No meio de todos os acontecimentos, o centro de transmissões do Comando Militar de Angola envia uma mensagem ao comando-chefe da Defesa Nacional, relatando os primeiros episódios na Baixa do Cassange: "Malange informou [dia 4, às 23h30] comerciante branco digno de confiança saído Riobaza [dia 4, às 17h00] comunicou força localidade teve actuar fogo abatendo 11 indígenas grupo 150 entre quais uma espécie de feiticeiro agitador já referenciado. (...) Nenhuma baixa nosso lado. Um indígena antes morrer declarou ter sido enganado vistas nossas armas dispararem balas e não água como propalavam(...)."
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Os acontecimentos na Baixa do Cassange estenderam-se até Março. Nesta altura, a Força Aérea intervém. Logo a 6 de Fevereiro, um Lockheed PV-2 Harpoon bombardeia a região. O número de mortos terá ultrapassado os sete mil. 
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O PÂNICO EM LUANDA
José Dinis (hoje com 90 anos) saiu de Luanda no dia 4 de Fevereiro às sete da manhã. Regressava ao Uíge, pela estradas dos Dembos, com a mulher e os dois filhos no carro. Àquela hora da manhã não se ouviam tiros.
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Durante a madrugada, um grupo de patriotas angolanos - gente do MPLA e da UPA - desceu dos musseques com 200 homens de catanas e canhangulos em punho, atacando objectivos da estrutura colonial portuguesa como grito de revolta. Gritavam: "Viva Angola!" Tentaram sem êxito tomar de assalto a Casa de Reclusão Militar, o edifício dos Correios e ainda ocupar a Emissora Oficial de Angola. Em simultâneo, assaltaram a cadeia da PIDE no bairro de São Paulo, além da 7ª Esquadra da PSP - esta acção pretendia libertar presos políticos que, constava, iriam ser transferidos para o Tarrafal, em Cabo Verde.
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Estes grupos queriam também chamar a atenção dos jornalistas estrangeiros que se encontravam em Luanda na cobertura do assalto ao paquete ‘Santa Maria'.
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José Vítor Silva, que hoje é advogado em Faro, com 56 anos, nasceu e foi criado em Vila Alice - um bairro de colonos europeus endinheirados, localizado a cerca de 500 metros da 7ª esquadra. Conta que, após o assalto ao ‘Santa Maria', a 22 de Janeiro, em Luanda fervilhava o boato de que um ataque estaria iminente. No dia 3 de Fevereiro, às 17h00, pressentindo o pior, o pai de José pega na mulher e nos dois filhos e leva-os para a casa de um familiar que morava mais perto ainda da PSP. Julgavam eles que seria a melhor maneira de se protegerem. "Recordo-me de ouvir tiros, que deveriam ser das pistolas-metralhadoras FBP dos polícias, como reacção ao assalto à esquadra. Ouvimos também tiros disparados por um português que vivia numa casa contígua à porta lateral, que dava acesso às cadeias da esquadra, por onde entraram os angolanos" - recorda José.
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Os acontecimentos instalaram o medo nas famílias de europeus, que representavam cerca de um terço dos 300 mil habitantes da capital. Manuel Fonseca (hoje com 57 anos) vivia num bairro cercado por musseques: "Não ouvimos nenhum tiroteio. Mas, no dia seguinte, pairava o medo de que as populações dos musseques nos viessem atacar", conta. Organizaram-se em grupos para se refugiarem no centro de Luanda. "Imagino que tenham ficado cerca de 20 pessoas por apartamento. Os homens ocupavam uma sala e as mulheres e crianças ficavam nas outras. Estavam connosco, ao todo, cerca de 60 a 70 pessoas" - conclui José.
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As horas que se seguiram aos ataques foram de "caça ao homem". Muitos revoltosos foram presos - em rusgas feitas por duas companhias de caçadores, polícias, elementos da PIDE e cipiaios (polícias da administração portuguesa). A 22 de Março, foi detido - e depois deportado para Portugal - o cónego da Sé Catedral de Luanda, Manuel Mendes das Neves, de quem se dizia ter sido ele a dar ordem de revolta.
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Os ataques de 4 de Fevereiro resultaram num elevado número de feridos e quatro a cinco dezenas de mortos entre os elementos atacantes. Por parte dos portugueses, morreram sete polícias e um soldado. "Gerou-se o pânico. Enquanto decorriam as cerimónias fúnebres, eu vi um africano ser morto mesmo ao pé de mim. A polícia matou-o" - recorda José Vítor Silva. "Ouviam-se tiros... Havia um sentimento de represália a quem tivesse a cor negra." A partir daí, as pessoas passaram a fazer sentinelas às casas e aos bairros. 
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FOTÓGRAFO DE GUERRA
Fernando Farinha (hoje com 70 anos) não lia jornais, porque, dada a distância a que se encontrava de Luanda, nem lhe passavam pelas mãos. Tinha 19 anos e estudava na Escola de Regentes Agrícolas de Tchivinguiro, antiga Sá da Bandeira. Quando em Março viajou, de férias, para Luanda, foi surpreendido. O director do jornal ‘O Comércio' - seu grande amigo - perguntou--lhe se queria ir para o aeroporto ouvir e fotografar as pessoas que chegavam do Norte. aterrorizadas. "Nem sequer sabia fotografar" - diz. A 21 de Março, foi criada uma ponte aérea que transportou para Luanda mais de 3500 portugueses residentes no Norte. 
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Como relata um cartaz de acção psicológica alusivo aos acontecimentos de 15 de Março, que se iniciaram na zona dos Dembos e da fronteira com o antigo Congo Belga: "Dia da chacina de milhares de portugueses de todas as cores e etnias não foi esquecido!" Este dia marcou para sempre o início da rebelião dirigida pela UPA, no Norte de Angola - numa altura em que o MPLA se tentava afirmar - mobilizando os negros bacongos, de catanas na mão, para a chacina. Atacaram povoações, postos administrativos e fazendas. Mataram brancos e angolanos que trabalhavam nos cafezais.
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"Senti pena daquela gente que estava ali: a umas, tinha-lhes morrido o marido; os filhos; outros nem sabiam da família. Era uma grande catástrofe" - conta Fernando Farinha, recordando-se do aeroporto. Tornou-se repórter de guerra. E vai para o Caxito, onde estava estacionado o 1º Esquadrão de Cavalaria - os "Dragões de Silva Porto". "O alferes Marinho Falcão aceitou levar-me com eles numa escolta a uma coluna de automóveis civis. Mais tarde, quando chego ao Úcua, apercebo-me de que estão a preparar uma grande operação militar: a recuperação de Nambuangongo", conta o fotógrafo. Esta vila, a 200 quilómetros de Luanda, estava transformada no quartel-general da UPA. 
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A Operação Viriato, que se iniciou a 10 de Julho, ficaria marcada como uma das mais emblemáticas do Exército, envolvendo centenas de militares, neste início de guerra. "No caminho Úcua-Nambuangongo, andámos sempre debaixo de fogo. Íamos pela estrada e de repente era uma chuva de tiros. Durante os ataques, se eu vi dois ou três guerrilheiros, foi muito. Eles eram rápidos e estavam bem escondidos", prossegue Fernando Farinha. No dia 9 de Agosto, o Batalhão de Caçadores 96 reconquistou Nambuangongo e, às 17h45, três soldados hastearam a bandeira de Portugal na torre da igreja, bastante danificada. Foi o primeiro ponto estratégico a ser recuperado, mas ainda havia muita Guerra Colonial pela frente, que Fernando Farinha acompanhou até 1974. Este era apenas o início do fim. 
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"PARA ANGOLA, RAPIDAMENTE E EM FORÇA!"
No dia 11 de Abril seguia-se a tentativa de golpe de Estado do ministro da Defesa, o general Botelho Moniz, que pretendia substituir Salazar por Marcelo Caetano e encontrar uma solução para a guerra em Angola, que prometia alastrar a Moçambique e Guiné. Antes da concretização do golpe, Salazar - que tardava a enviar tropas para o teatro de operações - fez uma remodelação governamental e assumiu ele próprio a pasta de Botelho. 
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Dia 14, na televisão, Salazar dirige-se ao País para dizer: "Para Angola, rapidamente e em força!" Passava um mês sobre os massacres no Norte de Angola. Desde 1960 que esta colónia portuguesa tinha apenas 5000 militares do recrutamento local e 1500 enviados por Lisboa. 
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Até ao final do ano, com a nova ordem de Salazar, seriam 33 mil homens. Ao longo dos anos, ficou sempre por responder a pergunta de que se Salazar tivesse reagido antes, teriam ou não sido evitados os massacres de 15 de Março. 
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CRONOLOGIA
JANEIRO
Dia 3
Estados Unidos cortam relações com Cuba;
Dia 11
Na Baixa do Cassange (Malange), trabalhadores da Cotonang (Companhia Geral de Algodão de Angola), revoltados e armados com canhangulos e catanas matam um capataz.
Dia 20
Tomada de posse de John F. Kennedy
Dia 22
Inicia-se a Operação Dulcineia, encabeçada por Henrique Galvão, que se traduz no assalto ao paquete ‘Santa Maria'. O destino do navio era Luanda, mas a operação termina a 4 de Fevereiro, no Brasil.
FEVEREIRO
Dia 2
À 01h00, um pelotão da 3.ª Companhia de Caçadores Especiais é destacada para Cunda Ria-Baza (Malange) para responder à tensão que se vivia. Os revoltosos sofreram 11 baixas.
Dia 4
Militantes do MPLA assaltam a esquadra da polícia e a Casa de Reclusão, em Luanda. Morrem sete polícias e um soldado.
Dia 5
Chega a Malange a 4.ª Companhia de Caçadores. No dia seguinte, partem para Cunda Ria-Baza.
Dia 25
Assinado o contrato para a construção da Ponte sobre o Tejo, em Lisboa.
MARÇO
Dia 15
A UPA (União dos Povos de Angola) massacra colonos, trabalhadores das fazendas e dos postos administrativos. Mar de sangue no Norte de Angola. Embarcam para o país quatro Companhias de Caçadores Especiais.
Dia 16
Chega a Luanda a 1.ª Companhia de Pára-quedistas.
Dia 21
Primeira actuação dos Beatles na discoteca de Liverpool onde foram depois descobertos - o Cavern Club.
ABRIL
Dia 11
General Botelho Moniz lidera uma tentativa de golpe de Estado. O ministro da Defesa procurava uma solução para a guerra em Angola, que ameaçava alastrar-se a Moçambique e à Guiné. Salazar remodela o Governo e assume a pasta da Defesa.
Dia 12
Yuri Gagarine é o primeiro no Espaço.
Dia 13
"Para Angola, rapidamente e em força!", diz Oliveira Salazar na televisão.
Dia 17
Invasão à Baía dos Porcos. 
Dia 18
Parte para Angola, por via aérea, a 2ª Companhia de Pára-quedistas.
Dia 30
Morre no Norte de Angola o primeiro pára-quedista em combate: soldado Joaquim Afonso Domingos.
MAIO
Dia 26
Chegada a Moçambique de mais dois pelotões de pára-quedistas.
Dia 30
Benfica vence Taça dos Campeões Europeus em jogo com o Barcelona
NOVEMBRO
Dia 10
Hermínio da Palma Inácio lidera um grupo de revolucionários que toma de assalto um avião da TAP na ligação Casablanca-Lisboa. É a Operação Vagô. General Silva Freire, comandante-chefe de Angola, morre num desastre de avião com boa parte do seu Estado-Maior, em Chitado, Sul de Angola.
Dia 13
A ONU condena Portugal pela recusa em negociar a autodeterminação de Angola, Guiné e Moçambique.
Dia 18
Kennedy envia 18 000 militares para o Sul do Vietname
DEZEMBRO
Dia 18
Início da operação militar da União Indiana que leva à ocupação de Goa, Damão e Diu e desencadeia a Operação Vijay.
Dia 19
Escultor José Dias Coelho é assassinado pela PIDE
NOTAS
MORTOS
Até 1974, morreram na Guerra do Ultramar 8.803 militares e 15.507 ficaram portadores de deficiência.
ANGOLA
Entre 1961 e 74 morreram no teatro de operações, em Angola, 3.423 militares portugueses.
MOÇAMBIQUE
Em Moçambique, em cerca de dez anos de guerra, de 1964 a 74, morreram 3.099 militares. É o segundo cenário mais mortífero.
GUINÉ
A terceira ex-colónia onde deflagrou a Guerra do Ultramar, a Guiné, foi fatídica para 2.281 militares, em combate desde 1963.
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domingo, setembro 30, 2007

A República - Que símbolos para a República moderna?

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* Maria Ramos Silva, Marta Martins Silva, Bruno Contreiras Mateus e Isabel Ramos
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Passado e presente tocam-se apenas no essencial. O que tem a República implantada em 1910 – faz na sexta-feira 97 anos – a ver com o País que hoje o nosso corpo percorre?
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Para o historiador António Costa Pinto, “a República foi uma tentativa falhada de democratização do liberalismo e muita da sua concretização passa pela actual democracia. Reavivar velhas clivagens da República faz agora pouco sentido.” Tal como diversas personalidades da política e da cultura, o investigador aceitou o desafio de escolher um símbolo representativo da actual República. Elegeu a escola. O combate ao analfabetismo proclamado pelos republicanos perdura. No essencial.
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“Renovação” foi, há um ano, a palavra que norteou o discurso de Cavaco Silva nas celebrações da proclamação da República. “Uma nova atitude perante a República, da sua dimensão cívica e da sua dimensão ética, é algo que se torna premente no Portugal contemporâneo”. O civismo e a ética a que se referiu implica um País com opinião consciente.

Na mesma linha e aceitando o repto de eleger um símbolo que representa a actual República, Jorge Sampaio, anterior inquilino do Palácio de Belém, escolheu os portugueses. “Sem sombra de hesitação, para mim, são as pessoas, os cidadãos que fazem e vivem a República no quotidiano, que lhe dão expressão, rosto e sentido e para os quais a ‘res publica’ (coisa pública) verdadeiramente existe como espaço de participação, de cidadania e de comunidade de destino.”
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Não há como fugir à História. Nem é simples elaborar subjectivamente para além dos símbolos mais imediatos – o Hino e a Bandeira, para o presidente da Assembleia da República súmula do regime político actual. “Embora sublinhe que também gosta do busto da República”, acrescenta o seu assessor de imprensa Luís Nunes da Ponte.
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“O Hino e a Bandeira Nacional são os símbolos que nunca ninguém contestou. São unânimes”, sublinha António Costa Pinto. Está consagrado na Lei e bem patente no site da internet da Presidência. Aliás, a bandeira verde e rubra foi uma das prioridades instituídas pelo Governo Provisório logo após a implantação da República.
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Mas o busto inflama até os ânimos artísticos. É também a escolha do escultor João Cutileiro. Nunca lhe some a voz – e nada de surpresas – quando o descreve como o monumento símbolo da República contemporânea. Pedissem-lhe a ele que a representasse com as suas mãos e pouco inovaria. “Pegava na tradição.”
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O que o artista plástico não resiste a contar é uma história bem-disposta sobre Alfredo Keil do Amaral, compositor do hino nacional, ‘A Portuguesa’, com letra de Henrique Lopes Mendonça. “Uma vez, estava eu lá em casa, por ser muito amigo do filho dele, e ele disse-me: ‘tu tens uma profissão muito fácil porque, para ti, a Maternidade é uma mulher seminua com um bebé ao colo; a Justiça é uma mulher seminua com uma venda nos olhos e uma balança na mão; a República é uma mulher com os seios à mostra e um capacete!’”
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Pode não ter privado com Keil do Amaral, mas o encenador Filipe La Féria não regateia elogios à música que aquele imaginou para acompanhar o Hino. Keil foi oportuno. “Soube acompanhar o grito da revolta: contra os bretões marchar, marchar.” Não é este o registo que perdura e sim “contra os canhões marchar, marchar!”

O compositor, músico e poeta Keil do Amaral é o protagonista duma história ainda longe do palco. O percurso do homem que compôs o Hino Nacional serve de inspiração a uma peça que La Féria gostava de escrever – “Já tenho algumas cenas da peça escritas, com início no princípio da queda do Império.”

O encenador e empresário não foge ao repto de ‘reduzir’ a República moderna a um elemento – escolheu a Assembleia da República porque, “sendo agora democrática, os deputados são eleitos pelo povo, é preciso dignificá-la.” Há quem acredite, contudo, que nem três ou quatro musicais de La Féria podem valer ao Parlamento.

O arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles estranha que alguém se tenha lembrado de lhe perguntar pela República. “Então não sabe que eu sou monárquico?” Então e não pode alguém que vê numa monarquia moderna a única esperança de futuro associar um símbolo ao regime vigente em Portugal desde 5 de Outubro de 1910?

“Assembleia da República”, lá se decide o arquitecto, para quem o edifício guardado por leões de pedra significa “imobilidade e da falta de futuro”. Imobilidade que, prossegue, implica todos os órgãos de soberania – não só a AR mas também o Presidente da República, o Governo e os Tribunais.

O edifício é ainda simbólico da “falta de interesse dos portugueses pela intervenção pública.” Para Ribeiro Telles, assim não vamos lá. “Não acertamos com a nossa História, e sem o passado não há futuro.” Pelo menos, explica, futuro mantendo a independência. As alternativas são “ou a integração na Espanha, como defende o (José) Saramago, ou noutros países da Europa”.

O 5 de Outubro de 1910 deixou Portugal “sem rei nem roque”. Em tais bolandas e furor revolucionário, a Igreja não passou incólume. Não foram amigáveis as relações entre a Primeira República e a Igreja Católica. Não o foram ao ponto de a Santa Sé ter cortado relações diplomáticas com Portugal.

“No seguimento do modo como a República foi implantada houve necessidade de institucionalizar formas de respeito mútuo e cooperação entre o Estado e a Igreja, quer com a Concordata de 1940, de respeito mútuo, quer com a actual (2004), de cooperação.” É esta, a actual, que o padre franciscano Vítor Melícias elege como símbolo da moderna República Portuguesa.

“Foram encontrados modos de respeitar a laicidade do Estado – separação entre Estado e Igreja – e de ambas as instituições desenvolverem a sua missão específica em favor do bem comum dos portugueses.”

Quanto à Concordata de 1940, Vítor Melícias sublinha a importância prática, no âmbito daquele documento, do Acordo Missionário, que “permitiu a escolarização das antigas colónias”. Em 1910, “escola” e “escolarização” eram palavras republicanas.

PRIMEIRA REPÚBLICA

O ataque da Primeira República à Igreja, com raízes profundas nos corações dos portugueses, foi entendido como chão permissivo do golpe militar de 28 de Maio de 1926, que deu origem à Ditadura Nacional e, após a aprovação do Constituição de 1933, ao Estado Novo. Durou até 25 de Abril de 1974.

Noventa e sete anos após a instauração da República e 33 passados sobre o 25 de Abril, “a democracia, constitucionalmente social e política, já não oligárquica, alarga a democracia da Primeira República”, sustenta o historiador e militante do Bloco de Esquerda Fernando Rosas, para quem o cravo é o símbolo da República.

“O cravo do 25 de Abril que floriu na ponta das espingardas da revolução fundadora da democracia” é, ainda assim, uma segunda escolha. Um símbolo institucional do nosso regime – a Assembleia da República – é a primeira. Fernando Rosas lembra que também a moeda de escudo, mesmo se já não circula, fez parte da simbologia nacional.

SÍMBOLO DA REPÚBLICA

Não é a pensar em escudos que o seleccionador nacional de râguebi faz a sua escolha. Pede um tempo para pensar e, entre um telefonema e outro, em directo nas emoções da saída do Mundial da modalidade, Tomaz Morais elege como símbolo da República moderna o euro. Não foi uma decisão fácil.

Lançou primeiro a ideia de produtividade – “aquilo que estão sempre a exigir-nos”. Foi-lhe pedido que desse rosto e concretizasse a sua escolha. “E a moeda, pode ser?”, questionou, embora neste caso o euro represente bastante mais do que dinheiro. Ele explica: “Precisamos sempre de uma enorme coragem para responder a todas as exigências e, acima de tudo, de iniciativa, muita iniciativa”. Pronto, está decidido – “a moeda, fica a moeda”, conclui, convencido pelas suas próprias palavras.

O euro até pode dar jeito, mas o que os portugueses decerto não vão esquecer tão cedo – agora que já olvidaram as derrotas sucessivas da Selecção, a única amadora, no Mundial de Râguebi – é do tratamento que os portentosos atletas deram ao Hino Nacional, símbolo unânime da República. No início dos jogos cantaram-no de tal maneira que nem o Presidente lhes ficou indiferente. “Faz parte a emoção, nunca sabemos quando voltamos a jogar pela Selecção – é sempre uma sensação única, daí a garra, a vontade”.

JOSÉ GIL

O ensaísta José Gil, autor do inesperado best-seller filosófico “Portugal, Medo de Existir”, desculpa-se “por não satisfazer o desejo” de precisão na escolha mas satisfaz com “o que lhe vem à cabeça”. E na dele pensar em República é situá-la num “espaço público como objecto do cidadão, um espaço citadino em permanente expansão”. Não distingue nenhuma cidade em particular.

Os dilemas filosóficos da síntese não afligem Marcelo Rebelo de Sousa, que foi contactado por fax e deixou resposta no voice mail do telemóvel. Foi uma resposta clara e precisa, sem hesitações ou palavras desnecessárias, pois tempo a perder é coisa que o professor de Direito e comentador político não tem.

Quem, para Marcelo, simboliza a moderna República portuguesa é o poeta Miguel Torga, cujo centenário se celebra precisamente este ano. “Foi um republicano e simultaneamente alguém que conheceu, que viveu, vibrou com e descreveu o País no que ele tem de mais essencial. É esta a minha escolha.” Despediu-se, deixou cumprimentos e desligou. Simples e directo.

Em valores Joe Berardo também é rápido no gatilho, “Democracia”. Mas a República tornada objecto merece hesitação. Imediato, um “ai, ai, ai...” de quem precisa de tempo para materializar a resposta. No final, o comendador/empresário madeirense decide-se por um elenco com cunho tecnológico. A República de hoje e de amanhã escreve-se com os “meios de transporte, como o avião”, o “telefone e a televisão” e, claro, com os “computadores”. “Representam a nova era da nossa República. Imagine o País sem estas coisas!”

Maçon, António Arnaut, fundador do PS e antigo grão-mestre do Grande Oriente Lusitano, sublinha a relação entre a ordem maçónica e o advento da República. Tal associação, bem como entre a Maçonaria e todas revoluções liberais, é imediata. Já escolher uma única imagem capaz de traduzir a República que hoje somos revela-se mais difícil. “... direitos das mulheres, libertação do Homem, educação...”.

Arnaut decide-se pela força simbólica da árvore, até porque “o Dia da Árvore foi instituído pela República.” Mas tem que se lhe diga este símbolo. Em tempo de preocupação com o (des)equilíbrio da Natureza, é absolutamente moderno, sem perder o sentido original que remete para “um regime com raízes no coração do povo português, tronco sólido e ramos lançados para o céu, que significam esperança no futuro e nos valores da liberdade, igualdade e fraternidade.”

Havia outros símbolos – “um triângulo, um círculo...” – que o antigo ministro dos Assuntos Sociais e impulsionador do Serviço Nacional de Saúde não se importava de associar à República mas fica-se pela árvore.

No final das contas, o músico João Gil também há-de primar pela modernidade. Tudo começa em tom de brincadeira. Pede para pensar alto. Sucedem-se as tentativas e a questão “mas será que existe uma República moderna?” também dá um ar da sua graça.

Pelo meio, o músico balança entre “uma bela mulher portuguesa como símbolo de modernidade da aniversariante República”. Mas é a ausência de fronteiras que acaba por cativá-lo. “Já sei! O símbolo que escolho é o Planeta Terra, pois só faz sentido que a República moderna sobreviva fora das fronteiras impostas”. Entusiasma-se. Pega na ideia de viagem e remata com a saudade, “tão presente na expressão da língua portuguesa”. Faz o elo com o passado e um desabafo divertido termina a conversa: “Precisamos de um País maior, mas somos poucos.”

Mais cá de casa, ou seja, pouco dado a universalismos, mostra-se Jaime Nogueira Pinto, professor universitário e ‘advogado’ de Oliveira Salazar no programa “Grandes Portugueses”. “Habituei-me sempre a pensar Portugal, não como regime – monárquico, republicano, autoritário, democrático – mas como Pátria e Nação. É para Portugal que vai a minha lealdade para além e independentemente dos regimes.”

JAIME NOGUEIRA PINTO

Diz Jaime Nogueira Pinto que, “se é pensar a ‘República’ como regime histórico, como imagem político-literária”, então pensa “numa dessas alegorias do 5 de Outubro, com bustos da República, marinheiros de baioneta-calada, uns políticos de óculos, pêra e barbicha, como o Teófilo Braga e o Afonso Costa, em medalha ao canto”. Para o pensador, que não esconde as suas simpatias políticas, a República “é a própria contradição dessas imagens: patriota e sectária, generosa e brutal, popular e jacobina, libertária e intolerante”.

Nogueira Pinto não esquece o mau fim da Primeira República.

Quem teve um grande desgosto ao saber que o filho, José Relvas, era republicano foi Carlos Relvas, proprietário rural e apaixonado pela fotografia. Incompatibilizou-se de tal maneira com ele que acabou por abandonar a casa de família e mudar-se para o ateliê fotográfico onde morreu em 1894. O filho seria ministro das Finanças da Primeira República. Foi ele, José Relvas, quem, a 5 de Outubro de 1910, a proclamou da varanda da Câmara Municipal de Lisboa.

O publicitário Américo Guerreiro não sabe se por influência da mãe – que nasceu em Alpiarça, onde Relvas terminou os seus dias – mas é precisamente a figura do republicano que causou desgosto ao pai que mais o impressiona e acaba por escolher como símbolo da República moderna. “Foi um republicano a quem a República correu mal. Vinha de uma família com uma vida desgraçada, com suicídios, emparedamentos, adultérios, noivados contrariados... Representa muito o fado, o espírito português de que ‘a bota não joga com a perdigota’.”

Não, afinal o que leva o antigo dirigente da Associação Portuguesa de Empresas de Publicidade a escolhê-lo como símbolo da República moderna não é a afinidade familiar com Alpiarça. É antes a impressão que lhe causa a “vida de desgraça e a influência cultural de José Relvas”.

“Olhe, só consigo associar a construções.” São as palavras de Lídia Jorge segundos depois da pergunta. Pode ser, e a escritora premiada pelo romance ‘O Vento Assobiando nas Gruas’ dá assim corpo de pedra e cimento à República.

Não hesita sequer, como se sempre tivesse pensado nisso e esta fosse apenas a oportunidade de dizê-lo. Poeticamente, como sempre. Entre todas as construções, Lídia Jorge escolhe a Ponte Vasco da Gama, que associa à democracia. “A ponte deu modernidade a Lisboa, uniu o Norte e o Sul, franqueou as portas da interioridade”, diz a mulher de letras com raízes no Algarve.

Lídia canta as palavras em voz baixa. Continua. “A Ponte Vasco da Gama ajudou a destruir a separação, aparece como a ideia de uma retoma de esperança do País, uma retoma da força da terra”. Não termina sem um elogio ao Tejo: “A ponte é símbolo também porque dá uma perspectiva do rio como um ante-oceano, como se fosse um abrir dos braços até ao verdadeiro oceano.” O que faz desta uma República à beira-mar plantada. Para o que der e vier.

97 ANOS SOBRE A PROCLAMAÇÃO

A República faz anos na próxima sexta-feira. Passam 97 sobre a sua proclamação em Lisboa, a 5 de Outubro de 1910. Nesse mesmo dia, a organização do Governo Provisório, presidido por Teófilo Braga, ocupa-se da administração do país. A Assembleia Constituinte reúne-se, pela primeira vez, em 19 de Junho de 1911, sanciona a revolução republicana e elege uma comissão para elaborar o projecto-base do novo texto constitucional. Em Agosto do mesmo ano, Manuel de Arriaga é eleito Presidente. A Bandeira Nacional, símbolo da soberania da República, da independência, unidade e integridade de Portugal, adoptada pela República instaurada pela Revolução de 5 de Outubro de 1910, e o Hino Nacional, A Portuguesa, são os dois símbolos nacionais definidos no artigo 11.º da Constituição da República Portuguesa.

DEPOIMENTOS

"IMOBILIDADE E FALTA DE FUTURO" Gonçalo Ribeiro Telles (arquitecto e monárquico)

"TORGA VIVEU, VIBROU E DESCREVEU O PAÍS" Marcelo Rebelo de Sousa (professor catedrático e comentador político)

"ÁRVORE COM RAMOS LANÇADOS PARA O CÉU, A ESPERANÇA" António Arnaut (ex-ministo dos Assuntos Sociais)

"GOSTO MUITO DO BUSTO E O HINO E A BANDEIRA SÃO SÍMBOLOS UNÂNIMES" Jaime GAma (presidente da Assembleia da República)

"A PONTE APARECE COMO RETOMA DA ESPERANÇA" Lídia Jorge (escritora)

"A REPÚBLICA É UM ESPAÇO CIITADINO EM PERMANENTE EXPANSÃO" José Gil (filósofo e ensaísta)

"PRODUTIVIDADE PARA RESPONDER A TODAS EXIGÊNCIAS" Tomaz Morais (seleccionador de râguebi)

"COM A CONCORDATA, QUE A DE 1940, QUER A ACTUAL. FOI POSSÍVEL À IGREJA E AO ESTADO DESENVOLVEREM A SUA MISSÃO ESPECÍFICA EM FAVOR DO BEM COMUM DOS PORTUGUESES" Vítor Melícias (padre franciscano)

"SENDO AGORA DEMOCRÁTICA, TEMOS DE DIGNIFICAR A ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA" Filipe La Féria (encenador e empresário)

"O CRAVO DO 25 DE ABRIL, REVOLUÇÃO FUNDADORA DA DEMOCRACIA" Fernando Rosas (historiador e militante do Bloco de Esquerda)

"REPÚBLICA DEVE SOBREVIVER FORA DAS FRONTEIRAS IMPOSTAS" João Gil, (músico)

"A REPÚBLICA É A ESCOLA, O SISTEM ESCOLAR E O ALRGAMENTO DA ESCOLARIDADE DOS PORTUGUESES" António Costa Pinho (historiador)

"A REPÚBLICA É UMA MULHER COM OS SEIOS À MOSTRA E UM CAPACETE" João Cutileiro (artista plástico)

"IMAGINE-SE O PAÍS SEM COMPUTADORES "Joe Berado (empresário)

"POLÍTICOS DE ÓCULOS E BARBICHA" Jaime Nogueira Pinto (historiador e pensador político)

"JOSÉ RELVAS, O ESPÍRITO DO FADO PORTUGUÊS" Américo Guerreiro (publicitário)

A REPÚBLICA, ESSA BELA MULHER

A República é uma mulher. Mulher no género do nome. Mulher nas muitas caras que lhe dão rosto ao longo dos anos. Em Portugal, Maria Puga foi uma das modelos que serviram de inspiração para representar o busto da República. Morreu no início da década de 90. O busto da República, atribuído ao escultor João da Nova, foi inaugurado por Afonso Costa em Outubro de 1911. Em França, a representação da mãe pátria, guerreira e pacífica, fogosa e protectora, coube a Brigitte Bardot (1970), Mireille Mathieu (1978), Catherine Deneuve (1985) e Inès de La Fressange (1989) que inspiraram o busto de Marianne, incarnação dos valores republicanos da divisa ‘Liberdade, Igualdade, Fraternidade’. No ano 2000, a escolha recaiu sobre a modelo Laetitia Casta, numa votação inédita e polémica aberta às câmaras municipais do país. Pouco tempo depois, o ícone da República mudava-se para Londres, sob acusação de tentar fugir aos impostos. Em 2003, sucedeu-lhe Évelyne Thomas, animadora de um popular programa de televisão.
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Pediram tempo. Que era assunto sério pensar sobre o que significa, quase um século depois, a República, disseram. Houve gente ligada à política, às artes, à publicidade que se assustou com a responsabilidade.
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in Correio da Manhã 2007.09.30

domingo, julho 22, 2007


Os amigos de Garcia Pereira
MRPP perde candidatos de extrema-esquerda
* Bruno Contreiras Mateus
Entre a lista de independentes que se aliaram à candidatura de Garcia Pereira, pelo MRPP, estão muitos apartidários, amigos, colegas e a filha.
Coisas de esquerda, não sou muito virado para aí” – declara firme João Soeiro, ex-oficial piloto aviador da Força Aérea que, mais tarde, porque ganharia mais dinheiro, passou a comandar aviões da TAP. Era o número dois da lista de candidatos encabeçada por Garcia Pereira. O prestigiado advogado que decidiu correr na volta eleitoral para comandar a maior autarquia do País, tendo o símbolo do PCTP/MRPP no boletim de voto, entre o seu nome e as cruzes dos eleitores que esperava arrecadar. Logo após o advogado e o comandante, a lista tinha mais 29 candidatos – muitos amigos, colegas, a filha. Só algumas destas pessoas se identificam com os ideais do partido de extrema-esquerda – ao qual, inevitavelmente, se associaram: o marxismo-leninismo-maoísmo.
“Juntei-me por amizade ao dr. Garcia Pereira. Somos amigos há muitos anos. Vá ele para onde for, eu também vou”, remata João Soeiro.Conheceram-se na luta sindical: Soeiro presidia nessa altura, há sete anos, o Sindicato dos Pilotos da Aviação Civil e uma luta laboral entre os pilotos e a TAP levou à contratação de António Garcia Pereira na defesa dos interesses destes trabalhadores. Os dois ficaram amigos, embora o comandante afirme que nunca por ligação ao MRPP.Por altura do 25 de Novembro de 75, Soeiro era um piloto aviador da Força Aérea – e Comandante da Polícia Aérea da Esquadra de Sintra – “descontente com os caminhos da revolução”. Envolveu-se então em confrontos com o PCP: “foi gente com quem nunca me dei bem, já desde essa altura.” Conta que muitas pessoas o julgavam de extrema-direita. Agora, não se incomoda que pensem o inverso.
“Já não é aquele MRPP do pinta paredes, tipos de barba rija. São gente boa, alguns formados outros sem formação, mas gente calma, serena.” Mas não se revê nos mesmos ideais.“Nunca pertenci à alta burguesia, mas fui sempre recompensado pelo meu trabalho”, atesta. E foi por melhor salário – “três vezes mais” – que passou de oficial da Força Aérea a comandante da TAP, em 1980. “Depois, dá-se um certo deslumbramento. E, como o ser humano é um animal de hábitos, se ganhar cem gasto cem; se for mil, gasto mil.”
FILOMENA CASANOVA ALVES
A candidata que surge em oitavo lugar na lista do MRPP é Filomena Casanova Alves, com 46 anos. Esta advogada enquadra-se na verdade numa classe social e laboral muito diferente do esperado – como a própria descreve – pelo “eleitorado que associa [os candidatos de extrema-esquerda] aos operários, de-sempregados e àqueles que pegam na foice e martelo.” E não é nada disso. “Em bom rigor, não posso dizer que me identifique com o MRPP. Existe uma ligação ao prof. Garcia Pereira.
”Entre os oito advogados da lista de 31 candidatos – 14 deles independentes –, encontra-se Rita Batalha Dias Garcia Pereira, com 28 anos. A filha do candidato a presidente da autarquia lisboeta. Tal como na corrida às Presidenciais de 2006, Rita ficou encarregue dos assuntos digitais. Quando, no domingo último, o seu pai lia o comunicado sobre os resultados eleitorais frente para uma câmara de televisão – com uma apoiante à sua direita, Sandra Vinagre, técnica de Recursos Humanos, e, à esquerda, o comandante Soeiro –, a filha estava fechada no gabinete que recebia informações sobre as votações.
Filomena Flores, com 35 anos, advogada que trabalha no escritório da sociedade de advogados Garcia Pereira e Associados, figura entre os candidatos. É a 16.ª – também independente. “Conheço o dr. Garcia Pereira, mas não me ligava a uma candidatura por simpatia. Também não sou do MRPP.” Justifica, então, que foi o “programa apresentado pela candidatura” que a fez aliar-se ao que a própria considera “bom para Lisboa e que vai de encontro aos princípios e desejos do MRPP”.
Além destes nomes, entre os 14 independentes, consta Nuno Cardoso Silva, professor universitário, “conhecido pelas suas ideias monárquicas” – reconhece Garcia Pereira. Mais, por exemplo, o médico António Lurdes Martins, o engenheiro João Ferreira Peters, o juiz desembargador aposentado José Gonçalves Lopes.
“Foi este o conjunto de pessoas que se reviu no meu programa [eleitoral do PCTP/MRPP]”, explica Garcia Pereira. “Naturalmente que marxistas, leninistas e maoístas estão sempre disponíveis para fazer alianças políticas com candidaturas que defendem princípios correctos. Isso passa por nos entendermos com pessoas de outros sectores da sociedade.”
O ex-candidato à Câmara de Lisboa justifica que só não concorreu como independente porque, “perante o aperto dos prazos”, não conseguiria, atempadamente, recolher as 4000 assinaturas necessárias.
JOÃO SOEIRO
João Soeiro, 60 anos, é filho de um oficial da Força Aérea. A sua mãe cuidava dos dois filhos, embora a irmã tivesse falecido com 21 anos. “É a mulher que mais falta me fez na vida”, confessa o comandante. Em 1965 entra para a Academia Militar e, em 69, é promovido a Alferes Piloto Aviador. Esteve na guerra do Ultramar e regressa ao País quando se dá o 25 de Abril de 1974.
Participa no 25 de Novembro de 1975 e parte depois para os Açores. Regressa ao Continente pouco depois para voar nos C130. Já em 1980, por poder “ganhar três vezes mais” na vida civil, entra para a TAP, como piloto. Neste período, até se reformar a 24 de Dezembro de 2006, foi dirigente da Associação e do Sindicato dos Pilotos de Aviação Civil.
Neste último cargo conheceu Garcia Pereira, que defendeu uma luta sindical. João Soeiro é pai de dois filhos do primeiro casamento e de um menino de um ano do último matrimónio. Tem também dois netos.
FORAM 3122 ELEITORES
Foram 3122 os eleitores que votaram em Garcia Pereira – candidato do Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses/Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado, PCTP/MRPP, com 1,59 por cento dos votos. O advogado, nascido em Lisboa em 1952, deverá candidatar-se a bastonário da Ordem, em 2008. Em 1972 adere à organização estudantil do MRPP. Dois anos depois, passa a militar
FILOMENA FLORES
Filomena Flores, com 35 anos, era a 16.ª candidata – como independente – pela lista de Garcia Pereira à Câmara de Lisboa. A advogada do escritório onde o cabeça de lista do PCTP/MRPP (foto ao lado), afirma que não é deste partido de extrema-esquerda e que só se juntou a esta luta pela autarquia por considerar o programa de campanha “bom para Lisboa”.
Outra advogada, Filomena Casanova Alves, com 46 anos, era a 8.ª da lista (foto em baixo) – também como independente. “Ligação ao partido não existe, mas sim ao professor Garcia Pereira”, diz.
"O PCTP/MRPP DEIXOU DE EXISTIR HÁ MAIS DE 30 ANOS"
Sobre a campanha de Garcia Pereira para as eleições intercalares de Lisboa, o fiscalista Saldanha Sanches dispara logo: “Isso não tem nada a ver com o MRPP, tem a ver com a angariação de clientes para o seu escritório de advogados.”
Já o facto de que, da lista de 31 candidatos, 14 sejam independentes, Saldanha Sanches não fica espantado porque, no seu entender, “sabiam que nenhum seria eleito”. Quanto ao eleitorado, “nem fazem ideia de quem aparece na lista”. O fiscalista, que também militou no MRPP, recorda que o partido “sempre teve uma posição hipócrita porque dizia que falava em nome da classe operária, quando este era um dos bastiões do Partido Comunista”. Depois do 25 de Abril, os estudantes radicais – que na verdade eram quem militava, na sua maioria, este partido – seguiam a linha maoísta, inspirada nos ensinamentos de Mao TséTung, na China.
“Seria a forma actual do marxismo e leninismo”, diz. Embora a posição chinesa fosse crítica a Estaline, em Portugal chegaram a ser empunhados cartazes com a sua figura, conta Saldanha Sanches. Mas, “o PCTP/MRPP deixou de ter linha política há mais de 30 anos”, acrescenta.
in Correio da Manhã 2007.07.22