A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht
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terça-feira, abril 15, 2008

PCP homenageou vítima do Tarrafal

Francisco Nascimento Gomes foi assassinado em 1943


O nome pode não dizer nada a muita gente, mas Francisco Nascimento Gomes foi um militante comunista assassinado pelo fascismo no Campo da Morte Lenta. Um mártir da luta antifascista.

O PCP homenageou, dia 5, em Foz Côa, o seu militante Francisco Nascimento Gomes, falecido há 65 anos. Este nome não será familiar a muita gente, mas trata-se de um militante comunista que pagou com a vida a sua opção de revolucionário, acabando os seus dias no tenebroso Campo de Concentração do Tarrafal.

Na homenagem estiveram presentes várias dezenas de pessoas, entre as quais dirigentes locais e nacionais do PCP, o filho e dois netos do homenageado e o presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa.

Convidado a intervir, José Casanova, da Comissão Política, elogiou a personalidade de Francisco Gomes, considerando-o um herói da luta contra o fascismo, pela liberdade e democracia. Foi mesmo um dos cinco presos que mais tempo passou na «frigideira» - 60 dias – informou o dirigente do PCP.

A informação dos últimos dias deste comunista chegam até nós através de uma carta escrita, em Novembro de 1943, pela organização dos presos comunistas no Tarrafal à direcção do Partido.

A dada altura da missiva, escreve-se que «mais um camarada nosso vai morrer e as condições em que escrevemos fazem que, mesmo antes da sua morte, vo-la anunciemos. Neste momento (9 horas de 14 de Novembro) já há 48 horas que deixou praticamente de urinar – estará morto, portanto, em poucas horas. Já perdeu a lucidez, é o fim».

Exemplo do terror fascista

Na carta, os prisioneiros comunistas do Tarrafal contam que se tratava de Francisco do Nascimento Gomes, natural de Foz Côa e trabalhador da Companhia Carris do Porto. Membro do Comité Regional do Porto preso em 1937. «Foi condenado a dois anos de prisão correccional, mas em Abril de 1939 veio para aqui deportado, tinha 4 anos e tal a mais da sua condenação», conta a carta. «No período inicial da sua vinda para aqui, estava-se em pleno terror do “sobado” do célebre capitão João da Silva. Foi então arruinado com terríveis trabalhos na horta, dirigidos por um miserável guarda chamado José Maria (da Polícia de Segurança).»

Contam os presos que foi neste período, castigado com isolamento, fome e «frigideira» que perdeu a sua saúde. Antes, realçam, «era forte e saudável». Apanhado numa tentativa de fuga «é espancadíssimo, no momento em que o apanharam e no caminho para aqui». Esteve na frigideira mais de 60 dias, 20 dos quais a «pão e água». Sempre que regressava desse cruel castigo, contava-se na carta, trazia febre e o fígado cada vez piorava mais. «Uma biliose precedida de uma terrível cólica de fígado complicada de endema pulmonar, atacou-o no dia 11 à noite. Não tem salvação possível», lamentavam os camaradas. «É um autêntico assassínio o que se passou aqui.»

Biografia de um herói

Francisco Nascimento Gomes nasceu em Vila Nova de Foz Côa, a 28 de Agosto de 1909. Exerceu a profissão de ferreiro. A 22 de Dezembro de 1931 foi admitido como condutor na Companhia Carris do Porto (actual STCP). A 6 de Maio de 1942, foi demitido da empresa, a contar da data da sua segunda prisão, a 11 de Outubro de 1937.

Foi preso pela primeira vez a 31 de Julho de 1936, pela Polícia de Vigilância e Defesa do Estado – Secção Internacional por «estar envolvido em ligações de carácter comunista».

Liberto a 12 de Outubro de 1936, voltou a ser preso um ano depois, a 11 de Outubro de 1937, acusado de «estar envolvido em manejos comunistas» e «implicado na distribuição do Avante! no norte do País».

Julgado em Agosto de 1938 pelo Tribunal Militar Especial, foi condenado a «6 anos de degredo para qualquer parte do território colonial», pena que viria a ser reduzida para 3 anos de degredo por ter sido dado provimento ao recurso interposto.

A 1 de Abril de 1939, foi enviado da Cadeia de Caxias para o Campo de Concentração do Tarrafal, onde viria a ser assassinado a 15 de Novembro de 1943, mais de três anos depois de ter terminado a pena a que fora condenado.
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in Avante 2008.04.10
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segunda-feira, maio 21, 2007



Homenagem aos sobreviventes do Tarrafal
"Auschwitz de via reduzida" ?


Para os que pensam que "os brandos costumes" pátrios suavizaram a prática repressiva do Estado Novo, aí está o Tarrafal. Amanhã é dia de romagem pública de saudade, ao memorial do Alto de São João, em Lisboa.

* António Melo

Há 27 anos, no dia 18 de Fevereiro, levantou-se no cemitério do Alto de São João, em Lisboa, um memorial às vítimas do Tarrafal, o campo de concentração que o Governo de Salazar, seguindo o modelo da Alemanha nazi, decretou que se construísse nos terrenos do Chão Bom, Achada Grande e Ponte da Achada, em Cabo Verde, "com capacidade para 500 presos". O decreto, que tem o número 26.539, foi publicado no dia 23 de Abril de 1936.

A guerra civil ainda não eclodira em Espanha - a sublevação caudilhista foi a 18 de Julho de 1936 -, mas o Governo republicano de Madrid não escondia a sua simpatia pelos oposicionsitas portugueses e Salazar estava preocupado com o futuro do seu regime.

Daí a nazificação do Estado Novo, com a criação da Legião e da Mocidade Portuguesa, a nível de mobilização de massas, da criação das companhias disciplinares, destinadas ao serviço militar obrigatório no posto de soldado de elementos "desafectos ao regime", e, para finalizar, os campos de concentração para "os [politicamente] mais perigosos".
 
Nesta designação cabiam os anarco-sindicalistas de Mário Castelhano e os comunistas de Bento Gonçalves, que por um imperativo histórico se tinham irmanado no levantamento do 18 de Janeiro de 1934, contra a fascização dos sindicatos - decidida pelo Estatuto do Trabalho, de 1933.

Irmanados ainda mais ficaram quando os líderes destas duas organizações políticas foram enviados, com mais 155 companheiros, nos quais se incluía um grupo de republicanos democráticos, para o Tarrafal, no Luanda. Saiu de Lisboa a 18 de Outubro de 1936.

Mário Castelhano e Bento Gonçalves morreram ambos no Tarrafal. O primeiro no dia 12 de Outubro de 1940 e o segundo no dia 11 de Setembro de 1942. Tinham, respectivamente, 44 e 40 anos.

O embarque foi apressado pela acção dos marinheiros dos navios de guerra Afonso de Albuquerque, Bartolomeu Dias e Dão, que no dia 8 de Setembro desse ano tentaram apoderar-se das embarcações e zarpar para os Açores, libertar os camaradas ali detidos.

No Forte de São João Baptista, em Angra do Heroísmo, encontravam-se centenas de detidos políticos, ali acumulados em sucessivas vagas repressivas, desde 1926. A acção provocou dez mortos e malogrou-se. Os 34 marinheiros implicados foram presos na Penitenciária de Lisboa e expeditamente enviados para a colónia penal que acabara de ser criada em Cabo Verde.

"A colónia penal destinar-se-á a presos por crimes políticos que devam cumprir a pena de desterro ou que, tendo estado internados em outro estabelecimento prisional, se mostrem refractários à disciplina (...)", dizia o decreto de 23 de Abril, e foi com base nesta imprecisa definição legal que o Governo de Salazar enviou para o Cabo Verde mais de 300 perseguidos políticos.

Um deles, Acácio Tomás Aquino, fez o inventário deste atropelo legal:

"Dos 226 presos a viver no Tarrafal em 1944, 127 estavam ilegais.

[Havia] 72 sem julgamento e 55 já tinham cumprido pena, perfazendo, no total, um excesso de 200 anos" (cf. PÚBLICO 25/1/04).

O reconhecimento só veio com o 25 de Abril

Só com a Revolução de Abril é que o "campo da morte lenta" efectivamente encerrou, pois, a partir dos anos 60, com a eclosão da guerra colonial, foi reaberto para encerrar os dirigentes dos movimentos de libertação dos países africanos.

Os corpos dos 32 presos portugueses que lá morreram foram exumados e trazidos para o Alto de São João, ficando sepultados junto ao Memorial. Devido à campanha eleitoral, a romagem de saudade foi este ano adiada para sábado, 12 de Março, como sempre às 11 h.

Dos antigos tarrafalistas há três sobreviventes, Edmundo Pedro, Barata Júnior e Josué Martins Romão, que deverão amanhã recordar, em breves palavras, o significado da sua luta política.

A romagem de saudade é organizada pela URAP, sucessora da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, e caberá a Luísa Irene Dias Amado, sua presidente, dar as boas-vindas às famílias das vítimas e a todos os que a elas amanhã se queiram juntar.
--
Público Sexta, 11 de Março de 2005

"Auschwitz de via reduzida" ?

Foi com esta frase que (...) Cândido de Oliveira procurou caracterizar, com um chocante exagero, o que foi o campo de concentração do Tarrafal. Para o horror de Auschwitz não há "vias reduzidas". O mal absoluto não admite comparações. O Tarrafal foi um campo de concentração típico. Não teve nada a ver com os campos de extermínio nazis. Mas a verdade é que o modelo físico e a lógica de funcionamento foram uma cópia exacta das dezenas (?) de campos similares que os nazis montaram na Alemanha logo após a subida de Hitler ao poder. E foi tão terrível como eles.

Vários "especialistas" portugueses estudaram naquele país a concepção e as normas de funcionamento dos Lager hitlerianos. Todas as vertentes que os celebrizaram estiveram presentes no Tarrafal: a farda vexatória; o trabalho compulsivo; a absoluta incomunicabilidade em relação ao mundo exterior; as permanentes perseguições, castigos e provocações - facilitadas pelo total isolamento - dos guardas da PIDE; a colaboração de alguns "rachados" (os kapos portugueses), felizmente poucos, que se puseram ao serviço da repressão concentracionária, e que foram, nalguns casos, tão ou mais odiosos do que os carcereiros; as fardas da ordem apodrecidas e desfeitas em farrapos (o que nos deu, em certos períodos, a aparência de um bando de maltrapilhos...); a total ausência de assistência médica e medicamentosa; as botas da ordem destroçadas; a instalação, durante dois anos, em barracas de lona que a chuva e o sol acabariam por apodrecer e por nos expor ao relento e à chuva. Este aspecto, precário e improvisado, ditado pela pressa de instalar aquele instrumento de terror, contribuiria, por si só, para degradar a saúde de muitos prisioneiros.

Cândido de Oliveira chegou ao Tarrafal no Verão de 1942 integrado num grupo de 14 presos acusados de espionagem a favor dos Aliados. (...) No seu livro Tarrafal, o Pântano da Morte, resumiu nestes termos a "estranha e dolorosa impressão" que o aspecto dos deportados lhe
causou:

"Que homens eram aqueles? Eram seres humanos que tínhamos ali perto, na nossa frente? Certamente. Mas pareciam fantasmas. Arrastavam-se, como autómatos articulados! Rapazes novos, na sua maioria à volta dos trinta anos, reflectindo velhice precoce. Vincos de martírio cavados no fundo dos rostos esquálidos, de tom baço, da cor típica do paludismo. Era como se os farrapos de caqui amarelo da farda da ordem se espelhassem nas suas magras faces." (...)Ao prestarmos uma comovida homenagem às vítimas do mal absoluto que foi o Holocausto, não podemos, nem devemos esquecer os prisioneiros que, na Alemanha e noutros países da Europa, entre os quais Portugal, passaram pela terrível experiência concentracionária e nela perderam as suas vidas.

Não nos podemos esquecer de que em Portugal também houve uma extrema-direita que se identificou com a demência nazi então reinante na Europa - demência de que o desprezado e esquecido campo do Tarrafal constitui a prova irrefutável.

Salazar, com a sua conhecida hipocrisia, escondeu-o dos olhares da população em Cabo Verde, na inóspita planície do Tarrafal. Mas as suas abandonadas ruínas testemunham a destruição prematura de muitos seres humanos. Permanecem ali como um grito de indignado protesto contra o esquecimento a que foi votada a memória dos que ali morreram na força da vida.

Portugal dissociou-se da pedagogia do horror que representa a empresa concentracionária que a consciência europeia - a começar pela própria Alemanha - mantém na agenda da luta contra a barbárie. Alguns referem-se a ela como a algo que não nos diz respeito. (...). Em Portugal tudo se passa como se o Tarrafal não tivesse existido.
(...)


PÚBLICO - Sexta, 11 de Março de 2005

quarta-feira, maio 09, 2007


Fados do Tempo da Outra Senhora (37)
Quitandeira


* Agostinho Neto


A quitanda.
Muito sol
e a quitandeira à sombra ~
da mulemba.

- Laranja, minha senhora,
laranjinha boa!

A luz brinca na cidade
o seu quente jogo
de claros e escuros
e a vida brinca
em corações aflitos
o jogo da cabra-cega.

A quitandeira
que vende fruta vende-se.

- Minha senhora laranja,
laranjinha boa!

Compra laranja doces
compra-me também o amargo
desta tortura
da vida sem vida.
Compra-me a infância do espírito
este botão de rosa
que não abriu
princípio impelido ainda para um início.

Laranja, minha senhora!
Esgotaram-se os sorrisos
com que chorava ´
eu já não choro.

E aí vão as minhas esperanças
como foi o sangue dos meus filhos
amassado no pó das estradas
enterrado nas roças
e o meu suor
embebido nos fios de algodão
que me cobrem.

Como o esforço foi oferecido
à segurança das máquinas
à beleza das ruas asfaltadas
de prédios de vários andares
à comodidade de senhores ricos
à alegria dispersa por cidades
e eu
me fui confundindo com os próprios problemas da existência.


Aí vão as laranjas
como eu me ofereci ao álcool
para me anestesiar
e me entreguei às religiões
para me insensibilizar
e me atordoei para viver.

Tudo tenho dado.

Até mesmo a minha dor
e a poesia dos meus seios nus
entreguei-as aos poetas.

Agora vendo-me eu própria.
- Compra laranjas
minha senhora!
Leva-me para as quitandas da Vida
o meu preço é único:
- sangue.

Talvez vendendo-me
eu me possua.

- Compra laranjas!


Canção para Luanda


* Luandino Vieira

(Angola)


A pergunta no ar
No mar
Na boca de todos nós:
- Luanda onde está?

Silêncio nas ruas
Silêncio nas bocas
Silêncio nos olhos

- Xê
mana Rosa peixeira
responde?

- Mano
Não pode responder
Tem de vender
Correr a cidade
se quer comer!

«Ola almoço, ola amoçoeé
Matona calapau
Jiferrera jiferreresé»

- E você
Mana Maria quitandeira
Vendendo maboque
Os seios-maboque
Gritando
Saltando
Os pés pescorrendo
Caminhos vermelhos
De todos os dias?
«Maboque m’boquinha boa
Dóce docinha»

- Mano
Não pode responder
O tempo é pequeno
para vender!

Zefa mulata
O corpo vendido
Baton nos lábios
Os brincos de lata
Sorri
Abrindo o seu corpo

- seu corpo-cubata!

Seu corpo vendido
Viajado
De noite e de dia.

- Luanda onde está?

Mana Zefa mulata
O corpo-cubata
Os brincos de lata
Vai-se deitar
Com quem lhe pagar
- precisa comer!

-Mano dos jornais
Luanda onde está?
As casas antigas
O barro vermelho
As nossas cantigas
Tractor derrubou?

Meninos nas ruas
Caçambulas
Quigosas
brincadeiras minhas e tuas
asfalto matou?
- Manos
Rosa peixeira
Quitandeira Maria
Você também
Zefa mulata
dos brincos de lata

- Luanda onde está?

Sorrindo
As quindas no chão
Laranjas e peixe
Maboque docinho
A esperança nos olhos
A certeza nas mãos
Mana Rosa peixeira
Quitandeira Maria
Zefa mulata
- Os panos pintados
Garridos
Caídos
Mostraram o coração:

- Luanda está aqui!


Luandino Vieira, in “Cultura II, 1957, n.º 1



* Viriato da Cruz

(Angola)

MAKEZÚ


- "Kuakiè!!!... Makèzú, Makèzú..."

...................................................


O pregão da avó Ximinha
É mesmo como os seus panos,
Já não tem a cor berrante
Que tinha nos outros anos.

Avó Xima está velhinha,
Mas de manhã, manhãzinha,
Pede licença ao reumâtico
E num passo nada prático
Rasga estradinhas na areia...

Lá vai para um cajueiro
Que se levanta altaneiro
No cruzeiro dos caminhos
Das gentes que vão p'a Baixa.

Nem criados, nem pedreiros
Nem alegres lavadeiras
Dessa nova geração
Das "venidas de alcatrão"
Ouvem o fraco pregão
Da velhinha quitandeira.

- "Kuakiè... Makèzú... Makèzú..."
- "Antão, véia, hoje nada?"
- "Nada, mano Filisberto...
Hoje os tempo tá mudado..."

- "Mas tá passá gente perto...
Como é aqui tás fazendo isso?"

- "Não sabe?! Todo esse povo
Pegó um costume novo
Qui diz qué civrização:
Come só pão com chouriço
Ou toma café com pão...

E diz ainda pru cima
(Hum... mbundo kène muxima...)
Qui o nosso bom makèzú
É pra veios como tu".

- "Eles não sabe o que diz...
Pru qué qui vivi filiz
E tem cem ano eu e tu?"

- "É pruquê nossas raiz
Tem força do makèzú!..."

(Poemas, 1961)
* António Cardoso
Oferta

Sou a quitandeira mais doce
que todos os doces de coco,
minha boca é tão docinha
como a fruta da minha quinda.
Tenho os seios para dar
duas laranjas do loje,
tenho nos olhos pitangas
tão boas de namorar

Tenho o Sol na barriga
e doçura da manga nos braços,
quem quer a minha vida
pra adoçar os seus cansaços?

(No reino de Caliban II - antologia panorâmica de poesia africana de expressão portuguesa)
Quadro - Quitandeiras - Lívio Morais

Fados do Tempo da Outra Senhora (35)


Quitandeira
Fruit and Vegetable Vendor, Rio de Janeiro, Brazil, 1850s

Fonte

Daniel P. Kidder, Brazil and the Brazilians, portrayed in historical and descriptive sketches (Philadelphia, 1857), p. 167. (Copy in Special Collections Department, University of Virginia Library)

Comentários

Shows female hawker, "The Quitandeira," carrying a tray on her head with her infant tied to her back. "The quitandeiras are the venders of vegetables, oranges, guavas, . . mangoes… sugar-cane, toys, etc. They shout out their stock in a lusty voice . . . . The same nasal tones and high key may be noticed in all. Children are charmed when their favorite old black tramps down the street with toys or doces." The same illustration appears in later editions of this work, e.g., 1866 (6th ed.), 1879 (9th ed.).
in


António Cardoso
Oferta
Sou a quitandeira mais doce
que todos os doces de coco,
minha boca é tão docinha
como a fruta da minha quinda.
Tenho os seios para dar
duas laranjas do loje,
tenho nos olhos pitangas
tão boas de namorar

Tenho o Sol na barriga
e doçura da manga nos braços,
quem quer a minha vida
pra adoçar os seus cansaços?
(No reino de Caliban II - antologia panorâmica de poesia africana de expressão portuguesa)
Nasceu a 8 de abril de 1933 em Luanda, onde fez os estudos liceais. Teve a sua estreia no boletim "Estudante" (órgão dos alunos do ex-liceu Salvador Correia) e na revista "Mensagem". Foi preso pela PIDE (polícia portuguesa) em 1959 e de novo em 1961, só sendo libertado a 1 de maio de 1974, depois de ter passado cerca de três anos em cadeias de Luanda e aproximadamente dez no Campo de Concentração do Tarrafal, fato que marcou muito a sua obra. Após a independência, exerceu funções superiores na Rádio Nacional e na Secretaria de Estado da Cultura.
Nota: Em Luanda as quitandeiras e muitas mulheres vestiam-se do mesmo modo da gravura e do mesmo modo transportavam os filhos às costas.
VN

segunda-feira, maio 07, 2007


Sérgio Vilarigues -
«Para a ditadura,Tarrafal queria dizer morrer longe»


Escrito por Revista «O Militante»
01-Set-2006

O campo de concentração do Tarrafal, emblema das mais sinistras prisões da ditadura fascista chefiada por Salazar, foi aberto há 70 anos, na ilha de Santiago no arquipélago de Cabo Verde, então colónia portuguesa e hoje país independente. Para o campo do Tarrafal foram enviados centenas de presos antifascistas, dos quais cerca de três dezenas haveriam de morrer em condições desumanas.

A história sinistra do Tarrafal foi escrita a sangue pela coragem, espírito de luta e abnegação heróica de centenas de patriotas portugueses e africanos ali sujeitos a condições prisionais arbitrárias e extremamente penosas.

Sérgio Vilarigues, actualmente com 91 anos, integrou o grupo dos primeiros presos enviados para o Tarrafal. Tinha sido preso em Lisboa, no mês de Setembro de 1934, com um grupo de seis camaradas. Espancado na esquadra do Calvário, julgado e condenado por pertencer às Juventudes Comunistas e ao PCP, cumpriu integralmente a sua pena no presídio de Angra do Heroísmo. Mas, em vez de ser restituído à liberdade, foi obrigado a embarcar para o novo cativeiro do Tarrafal, de onde só viria a sair em 1940, a título “condicional”, devido à chamada amnistia dos Centenários... Esta breve conversa com Sérgio Vilarigues, dirigente histórico do nosso Partido que durante muitos anos integrou os seus organismos executivos, pretende dar uma ideia do que representou, no quadro da repressão fascista, a criação do Campo de Concentração do Tarrafal.

Camarada Sérgio Vilarigues, em que contexto decidiu a ditadura salazarista criar o Campo de Concentração do Tarrafal?

Na minha opinião, e penso que não será só a minha, o campo destinava-se a liquidar, em condições menos expostas, uma boa parte dos elementos mais firmes da luta contra o fascismo.

Era para não se ouvir aqui a sua voz?

Penso que sim, esperavam que de tão longe não chegasse cá a voz dos presos. Mas acabou por chegar, e bem.

Era o vosso famoso sistema de comunicação?

A primeira das nossas preocupações em nova situação prisional era combater o isolamento que nos queriam impor, era estudar novos meios de comunicação entre nós. Tratava-se de uma forma de luta e resistência. E de sobrevivência, como muitas outras.

Como foi a ida para Cabo Verde?

Quando fui para lá já tinha acabado de cumprir a pena havia três meses. Estava em Angra do Heroísmo, na Fortaleza de S. João Baptista. Aí foram largados setenta e tal presos dos que vinham do Continente e escolheram outros setenta e tal para seguirem viagem. Ia também uma companhia da GNR para nos guardar, provisoriamente, no Tarrafal. Fez um cerco quando chegou a Angra a ameaçou logo que, ao mais pequeno pio, trabalhariam as metralhadoras e as mangueiras do barco com água a ferver. Ainda a propósito de comunicação entre nós: chegámos ao barco e dez minutos depois já estávamos em comunicação com o outro porão. Os presos são assim, há quem diga que nas prisões não se luta, mas eu digo-te: luta-se e de que maneira!

Mesmo no campo de concentração?

Claro, quantas lutas, e vitoriosas, lá fizemos. Eram combates pelos nossos direitos, se assim se pode dizer de um sítio onde é quase caricato falar de direitos, mas sobretudo pela nossa sobrevivência. Porque era disso que se tratava: mandaram-nos para ali para morrermos ali. Isso mesmo nos dizia o Seixas, chefe dos pides do campo: “Tudo o que veio para aqui foi para morrer, lapas e tudo”. Acabou por morrer de podre depois do 25 de Abril, era um depravado, não foi por qualquer castigo pelo mal que fez a tantas pessoas. Ele e todos os outros. E olha que, não sendo eu de vinganças, nada disso, mas não tenho problemas em dizer ainda hoje que não me repugnava ver um Pide sofrer só um pouco, um pouquinho, daquilo que nós sofremos às mãos deles.

Então a mudança para o Tarrafal...

Mudaram-nos para o Tarrafal porque em Angra era muito mais difícil matar, o clima e as condições sanitárias não eram tão maus. Não havia paludismo, não havia malária, e havia uma população à qual os nossos gritos chegavam facilmente. E estávamos mais perto do Continente. As ligações não eram muitas, mas sempre havia um barco, creio que semanal, o que tornava mais fácil e mais rápido fazer chegar as notícias ao Continente.

E havia a célebre “frigideira”...

Sim, havia a frigideira no Tarrafal, mas em Angra também tínhamos a poterna, que não era melhor... A frigideira contribuiu para a morte de vários presos, mas pior do que ela talvez fosse a insalubridade, a água absolutamente inquinada, a falta de higiene, a ausência de assistência médica, a desumanidade, o mal... Até os medicamentos pessoais, que tínhamos connosco ou que nos eram enviados de Portugal, com muitos sacrifícios, pelas nossas famílias e pela solidariedade de amigos, nos eram roubados. Por eles, pelos guardas, pelos esbirros, pelo sistema...

Não achas que os governos de Portugal e Cabo Verde deviam colaborar com vista a preservar a memória de um dos símbolos mais terríveis da repressão fascista contra Portugueses e Africanos?

Lá achar, acho. Mas o que tem sido feito, e eu até já fui convidado para uma dessas excursões, são visitas com muitos empresários e muito boa mesa. E depois acompanham esses cruzeiros com evocações mais ou menos idiotas que resultam em choradeiras pelo macaquinho que morreu, coitadinho, e em desculpas do regimes fascista, que afinal nem era assim tão fascista e afinal os presos do Tarrafal nem morreram todos. Para isso já dei. Quanto à memória do Tarrafal, não sei se os políticos no poder estão de facto interessados em preservá-la. Parece-me até que não. Houve promessas, palavras ditas, projectos ao vento, até de um filme... Sabes dizer-me onde estão as obras?

Seja como for é necessário que os antifascistas, e em primeiro lugar os comunistas – que foram quem pagou o preço mais alto pelo seu amor à liberdade – persistam na luta para que não caia no esquecimento o que foi e o que significou o Tarrafal.

quinta-feira, maio 03, 2007

70 anos - Tarrafal «Campo da Morte Lenta» -

Nunca mais! Abril Sempre!

Segunda, 23 Outubro 2006 Dossier

A MARÉ NEGRA DO FASCISMO CHEGA A PORTUGAL

Nos anos 20 do século passado vivia-se em toda Europa um período de grande crise social e política. Os grupos financeiros e as classes dominantes queriam reconstituir e reforçar o seu poder, abalado com a I Grande Guerra, de 1914-18. As camadas populares, com os trabalhadores na primeira linha, procuravam o reconhecimento dos seus direitos sociais e económicos, com um ânimo em grande parte estimulado pelo avanço desses direitos na Rússia, após a revolução soviética de 1917. E o anticomunismo foi a bandeira que as forças políticas mais reaccionárias ergueram para fundamento da sua expressão mais agressiva que então começava crescendo no mundo: o nazi-fascismo.

Foto01


Na Alemanha, os grandes grupos financeiros e industriais do aço, da energia, do armamento, promoveram a tomada do poder pelo partido nazi de Hitler. Na Itália, o partido fascista de Mussolini tomara o poder. A maré negra do nazi-fascismo começou alastrando pela Europa e levou ao desencadeamento da II Guerra Mundial.

Foto02

Da esquerda para a direita, de cima para baixo:
Prisão do Aljube, Lisboa; Prisão de Caxias; Prisão de Peniche; Prisão da PIDE no Porto


Em 1926, a maré reaccionária que alastrava na Europa chegou a Portugal. A 28 de Maio um golpe de Estado militar instaura a ditadura. Começou, para o povo português, um período negro de repressão, obscurantismo, miséria e opressão, que se prolongou por quase meio século.

O golpe de Estado de 28 de Maio de 1926 fez Portugal um país sob ocupação militar e policial, num regime de opressão, repressão e exploração - a que chamaram «Estado Novo» e que encontrou em Salazar o seu mentor.Salazar tomou como modelo as ditaduras fascistas de Mussolini e de Hitler. Foi incondicional aliado de Franco na Guerra Civil espanhola (1936-39) para a instauração da ditadura em Espanha. Apoiou as ditaduras nazi-fascistas de Hitler e Mussolini, na II Guerra Mundial, até à sua derrota militar.

Foto03


TARRAFAL “CAMPO DA MORTE LENTA”

A mais brutal expressão da violência repressiva da ditadura, nesta época, foi a abertura do Campo de Concentração do Tarrafal, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, a milhares de quilómetros de Portugal.

Foto05
Fragata atacada pela forças do regime fascista contra os marinheiros em Setembro de 1936

O campo do Tarrafal, inaugurado em Outubro de 1936, foi inspirado nos campos de concentração nazis, que Hitler nessa altura começava a montar na Alemanha e depois estendeu, como campos de extermínio, por todos os países ocupados pelo exército nazi.

Foto06

Prisão dos Marinheiros da Revolta de Setembro de 1936

Foto07
Grupo de presos do Campo do Tarrafal

Foto08
Cemitério do Campo do Tarrafal

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No Tarrafal não havia câmaras de gás, como nos campos de concentração nazis, mas os presos eram submetidos a um regime de morte lenta - por isso ficou conhecido como o «Campo da Morte Lenta». Os maus tratos e a má alimentação, as doenças sem tratamento e o clima, numa das mais insalubres regiões de Cabo Verde, mataram 32 dos portugueses que para lá foram deportados. Nas primeiras levas de prisioneiros enviados para o Tarrafal encontravam-se muitos dos participantes nas greves do 18 de Janeiro de 1934 e da revolta dos marinheiros de Setembro de 1936, na sua grande maioria comunistas, mas também outros antifascistas, sindicalistas e anarquistas. Entre os presos políticos enviados para o Tarrafal encontrava-se o Secretário-Geral do PCP, Bento Gonçalves, onde viria a ser assassinado.

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Foto Bento Gonçalves

BENTO GONÇALVES

Jovem operário do Arsenal, activista e dirigente sindical, Bento Gonçalves teve um papel decisivo na reorganização de 1929: no combate às concepções anarquistas,
na ligação do Partido à classe operária, na sua transformação num partido leninista.

Afirmando-se, como operário, por uma rara competência técnica e por um sólido espírito de classe e de camaradagem, Bento Gonçalves granjeou a estima e a admiração dos seus camaradas e companheiros de luta.

Os que com ele privaram nas prisões e na luta clandestina consideravam-no um homem «exemplar no trato, sóbrio e leal.»

Em 1927, por ocasião do 10º aniversário da revolução de Outubro, efectuou uma viagem à União Soviética, à frente de uma delegação de operários arsenalistas após o que aderiu ao Partido Comunista Português.

Na qualidade de secretário-geral do PCP, participou no VII Congresso da Internacional Comunista, em 1935, tendo apresentado um relatório sobre a situação em Portugal e as tarefas dos comunistas.

Foi preso em 11 de Novembro desse ano, condenado pelo Tribunal especial Militar e enviado para a Fortaleza de Angra do Heroísmo. Daí, em Outubro de 1936, foi transferido para o Campo de Concentração do Tarrafal, onde morreu em 11 de Setembro de 1942.



TESTEMUNHOS

NA ACHADA GRANDE DO TARRAFAL

«Na Achada Grande do Tarrafal montou o governo fascista o campo de concentração. Na Achada Grande há pântanos, mosquitos e paludismo. A Achada Grande era a zona mais temida pela gente de Cabo Verde.Na ilha que o mar guardava melhor que o arame farpado e as armas dos carcereiros, o mosquito seria um executor discreto.

Sem possibilidade de ferver a água inquinada, sem mosquiteiros, sem medicamentos, com má alimentação, trabalhos forçados, espancamentos, semanas na «frigideira», todas as resistências orgânicas se desmoronavam abrindo caminho fácil ao paludismo e às biliosas.»

«As mortes dos antifascistas no Tarrafal foram premeditadas. Tão claro era objectivo que o director do Campo não o escondeu. Afirmou-o para que todos os presos soubessem a que estavam destinados.

“Quem vem para o Tarrafal vem para morrer!”

E muitos morreram e lá ficaram no cemitério que tão perto estava do Campo»

«A baía do Tarrafal, entre Julho e Novembro, quando o nordeste não sopra, é zona de paludismo. O mosquito anófele alimenta-se com sangue e é nos glóbulos vermelhos que se reproduz e se completa o ciclo evolutivo do plasmódio, causa do paludismo. O mosquito é o transmissor.Ali morreram dezenas de antifascistas, e muitos outros morreram prematuramente já depois de libertados, em consequência directa das violências e maus tratos lá sofridos.»

MAIS DE DOIS MIL ANOS DE PRISÃO

No Campo do Tarrafal, muitos dos presos não tinham sido julgados ou de há muito haviam cumprido a sua pena.

O tempo de prisão dos 340 presos que passaram pelo Tarrafal somou dois mil anos, cinco meses e onze dias.

Dois mil anos de vida sacrificados num campo de paludismo e morte!


PARA ALÉM DO TARRAFAL

«O Tarrafal, perante o desenvolvimento da luta do povo português pela liberdade e pela democracia, não chegava para albergar todos os que se levantavam contra o regime. A ditadura criou toda uma rede carcerária por onde passaram, antes e depois do Tarrafal, milhares de presos políticos: a Fortaleza de S. João Baptista, nos Açores, a cadeia do Aljube em Lisboa e o Forte de Caxias, o Forte de Peniche, as cadeias da Rua do Heroísmo, junto à sede da PIDE no Porto - para além da sede da PIDE da Rua António Maria Cardoso, em Lisboa, onde a maioria dos presos eram submetidos a dias seguidos de interrogatórios e tortura e onde alguns foram mesmo torturados até à morte.»

«O regime prisional em todas estas prisões salazaristas era de vigilância constante, alimentação deficiente, privação de exercício físico. Os castigos e torturas faziam parte do regular arsenal repressivo fascista.

Os contactos com as famílias faziam-se em «parlatórios» com os presos por detrás das janelas de um corredor pelo qual passeava um guarda, para ouvir as conversas.
Prisioneiros houve que passaram na prisão cinco, dez, quinze, vinte e mais anos.»


A FRIGIDEIRA

«A frigideira era uma caixa de cimento, construída perto do aquartelamento dos soldados angolanos. Tinha uma forma rectangular. O tecto era uma espessa placa de betão. Uma parede dividia-a interiormente em duas celas quase quadradas. Tinha cada uma delas a sua porta de ferro, perfurada em baixo com cinco orifícios onde mal se podia enfiar um dedo. Por cima, junto ao tecto, havia um postigo gradeado em forma de meia lua com menos de cinquenta centímetros de largura por uns trinta de altura. Estava exposta ao sol de manhã à noite. Lá dentro era um forno. Aquela prisão merecia o nome que os presos lhe davam: a frigideira.»


«O sol batia na porta de ferro e o calor ia-se tornando sempre mais difícil de suportar. Íamos tirando a roupa, mas o suor corria incessantemente. A frigideira teria capacidade para dois ou três presos por cela. Chegámos a ser doze numa área de nove metros quadrados.

A luz e o ar entravam com muita dificuldade pelos buracos na porta e em cima pela abertura junto ao tecto. Quatro passos era o percurso de uma parede a outra. Dentro havia uma constante penumbra.»


O POÇO DO CHAMBÃO

«No Campo do Tarrafal, a água que nos estava destinada vinha de um poço, situado a uns setecentos metros. Ali se juntavam mulheres e crianças. Vinham de bem longe com as suas vasilhas. Carregavam-nas à cabeça e seguiam para suas casas.

Era esta a água que bebíamos. Estava contaminada com excrementos de cabras e burros lazarentos que ali iam beber todos os dias. Pelo tempo das chuvas, raras mas torrenciais, as enxurradas que desabavam das montanhas arrastavam consigo burros, cães, aves mortas. O poço ficava no caminho das torrentes e com a sua água bebíamos também a outra, a das chuvadas que corriam para o oceano.

Ficava o poço a uns duzentos metros do mar que se infiltrava e tornava integralmente salobra a água que bebíamos. Pelas marés vivas mais salgada era ainda»


A BILIOSA
EXECUTOR SILENCIOSO


«A biliosa aparecia de repente. Não era pressentida. E a todos nós assustava e nos fazia vigiar ansiosamente a urina. Porque quando se urinava sangue, quando a urina trazia um tom de café, era a biliosa»


«Havia sempre paludismo, mas pela época das chuvas era o seu período. Tal como durante todo o ano se podiam dar «biliosas», embora no final de Outubro fossem mais frequentes.

A biliosa era a fase final do paludismo crónico. Aparecia sempre naqueles que anteriormente já tinham sido vítimas do paludismo.»

«Naquela manhã entrou o Joaquim Amaro que nos gritou a má nova:

O Bento está com uma biliosa!

Corremos à caserna. Bento Gonçalves estava já a ser levado para a enfermaria.

E com aquele seu ar meio despreocupado, meio sorridente, disse-nos:

Mais um, camaradas! Preparem outra mesa!

E, na verdade, tudo parecia que teríamos de fazer mais um caixão. Não tardou a cair em coma, com uma cor arroxeada e uma respiração difícil. Bento Gonçalves adoecera com a forma mais grave da biliosa, aquela a que chamamos perniciosa e para a qual não havia esperança. A 11 de Setembro de 1942, o doutor Moreira verificou o óbito.

A morte de Bento Gonçalves era uma grande perda para nós.

- Mais um que mataram! Dizíamos.»

PRESOS POLÍTICOS
QUE MORRERAM NO TARRAFAL


FRANCISCO JOSÉ PEREIRA
-MORREU EM 20.09.1937

PEDRO DE MATOS FILIPE
-MORREU EM 20.09.1937

FRANCISCO DOMINGOS QUINTAS
-MORREU EM 22.09.1937

RAFAEL TOBIAS
-MORREU EM 22.09.1937

AUGUSTO DA COSTA
-MORREU EM 22.09.1937

CANDIDO ALVES BARJA
-MORREU EM 24.09.1937

ABILIO AUGUSTO BELCHIOR
-MORREU EM 29.10.1937

FRANCISCO ESTEVES
-MORREU EM 29.01.1938

ARNALDO SIMÕES JANUÁRIO
-MORREU EM 27.03.1938

ALFREDO CALDEIRA
-MORREU EM 01.12.1938

FERNANDO ALCOBIA
-MORREU EM 19.12.1939

JAIME DE SOUSA
-MORREU EM 07.07.1940

ALBINO COELHO
-MORREU EM 11.08.1940

MÁRIO DOS SANTOS CASTELHANO
-MORREU EM 12.10.1940

JACINTO FARIA VILAÇA
-MORREU EM 03.01.1941

CASIMIRO FERREIRA
-MORREU EM 24.09.1941

ALBINO ANTÓNIO CARVALHO
-MORREU EM 23.10.1941

ANTÓNIO OLIVEIRA E SILVA
-MORREU EM 03.11.1941

ERNESTO JOSÉ RIBEIRO
-MORREU EM 08.12.1941

JOÃO DINIS
-MORREU EM 12.12.1941

HENRIQUE VALE DOMINGUES
-MORREU EM 07.07.1942

BENTO ANTÓNIO GONÇALVES
-MORREU EM 11.09.1942

DAMÁSIO MARTINS PEREIRA
-MORREU EM 11.11.1942

ANTÓNIO JESUS BRANCO
-MORREU EM 28.12.1942

PAULO JOSÉ DIAS
-MORREU EM 13.01.1943

JOAQUIM MONTES
-MORREU EM 14.02.1943

MANUEL ALVES DOS REIS
-MORREU EM 11.06.1943

FRANCISCO NASCIMENTO GOMES
-MORREU EM 15.11.1943

EDMUNDO GONÇALVES
-MORREU EM 13.06.1944

MANUEL DA COSTA
-MORREU EM 03.06.1945

JOAQUIM MARREIROS
-MORREU EM 03.11.1948

ANTÓNIO GUERRA
-MORREU EM 28.12.1948

EXTINÇÃO DO TARRAFAL
GRANDE REIVINDICAÇÃO NACIONAL


8 e 9 de Maio de 1945

O povo português festejou nas Jornadas da Vitória a derrota do nazi-fascismo.

Em Lisboa, Margem Sul, Porto, Coimbra, Viana do Castelo, Marinha Grande, Alentejo e muitas outras regiões do País o povo vem para a rua, em grandiosas manifestações, festejando o fim da guerra e a derrota do nazismo, reclamando eleições livres e a libertação dos presos políticos.

A extinção do Tarrafal aparece, em todas as manifestações, como uma das principais reclamações do povo português.


Outubro-Dezembro de 1945

Mobilização de milhares de trabalhadores para as eleições nos sindicatos fascistas, com vitórias das listas democráticas unitária em mais de 50 sindicatos.

Desenvolve-se por todo o país um grande movimento nacional reclamando o imediato encerramento do Campo de Concentração do Tarrafal e a libertação dos antifascistas aí condenados à morte lenta.


Outubro/Novembro de 1945

Poderosas manifestações e comícios da 0posição Democrática marcam a campanha eleitoral que Salazar é forçado a conceder, sob a pressão da opinião pública nacional e internacional.

«Amnistia» e «Extinção do Tarrafal - duas das principais reclamações apresentadas na campanha.

26 de Janeiro de 1946

Embarcam com destino a Portugal os presos «amnistiados» do Campo de Concentração do Tarrafal.

Ficam ainda no Tarrafal 52 presos políticos.

12de Novembro de 1948

Termina em Lisboa o «julgamento dos 108» com a condenação de cerca de uma centena, de antifascistas,entre os quais Francisco Miguel.

Francisco Miguel é enviado de novo para o Tarrafal.

Janeiro de 1949

Desenvolvem-se grandiosas manifestações populares de apoio à candidatura do general Norton de Matos, apresentada pela Oposição Democrática nas eleições para a Presidência da República.

A extinção do Tarrafal é uma das reclamações apresentadas na campanha que recebe maior apoio popular.

1952-1953


A luta pela amnistia ganha grande adesão e torna-se uma das importantes frentes de acção e unidade das forças democráticas portuguesas.

31 de Janeiro de 1953

Francisco Miguel, o último preso político português no Tarrafal, é transferido para a cadeia do Forte de Caxias.

26 de Janeiro de 1954

Encerramento do Campo de Concentração do Tarrafal.

1962

O Campo de Concentração do Tarrafal foi reaberto, desta vez destinado aos patriotas dos movimentos de libertação das colónias portuguesas.


Foto:francisco-miguelFRANCISCO MIGUEL

Foi o último preso político português a sair do Tarrafal, em 31 de Janeiro de 1953.

Membro do Partido Comunista Português desde 1932, foi preso quatro vezes e julgado três. Passou nas prisões fascistas 21 anos e 2 meses. No Tarrafal esteve duas vezes, 5 ano e meio quando da deportação, e 3 anos da segunda. Foi o último preso a ser libertado do Campo de Concentração. Depois de transferido do Tarrafal para a cadeia de Caxias ainda foi de novo julgado e condenado.

Evadiu-se quatro vezes das prisões fascistas e viveu muitos anos na clandestinidade.

Membro do Comité Central do PCP desde 1939, foi deputado à Assembleia Constituinte pelo distrito de Beja. Foi promotor e porta-voz da Comissão que promoveu a transladação para Portugal dos prisioneiros mortos no Tarrafal.

«É necessário ver o Tarrafal como ele realmente foi, em todas as suas facetas e como uma parte da grande prisão que era Portugal dominado pelo fascismo. Sem essa apreciação correcta do que foi o Tarrafal não poderíamos compreender toda a enorme responsabilidade dos governantes que o criaram e o mantiveram durante 19 anos»

Francisco Miguel, no livro «Testemunhos»

Foto:sergio-vilarigues

SÉRGIO VILARIGUES“
Para a ditadura, Tarrafal queria dizer morrer longe”

Sérgio Vilarigues, actualmente com 91 anos, é um dos poucos sobreviventes do campo de concentração do Tarrafal. Integrou o grupo dos primeiros presos enviados para o Tarrafal em 1936. Tinha sido preso em Lisboa, no mês de Setembro de 1934. Julgado e condenado por pertencer às Juventudes Comunistas e ao PCP, cumpriu integralmente a sua pena no presídio de Angra do Heroísmo, mas, em vez de ser restituído à liberdade, foi obrigado a embarcar para o novo cativeiro do Tarrafal, de onde só viria a sair em 1940, a título «condicional».

Sérgio Vilarigues, dirigente histórico do nosso Partido, que durante muitos anos integrou os seus organismos executivos, deu recentemente uma entrevista ao “O Militante”, cujo número acaba de sair, e na qual dá uma ideia do que representou, no quadro da repressão fascista, a criação do campo de concentração do Tarrafal, tendo salientado que «o campo se destinava a liquidar, em condições menos expostas, uma parte dos elementos firmes da luta contra o fascismo».

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Foto do topo: Tarrafal – trasladação dos corpos, dos presos políticos portugueses, mortos no Campo do Tarrafal, em Fevereiro de 1978, com a presença de Francisco Miguel antigo preso do Campo e as autoridades de Cabo Verde, militares e povo.
Foto do meio: Lisboa – Velório quando da trasladação dos mortos em Fev. 1978, com a presença da Direcção do PCP
Foto de baixo: Lisboa – Velório quando da trasladação dos mortos em Fev. 1978, com os antigos presos sobreviventes do Campo do Tarrafal

Foto - Lisboa – Funeral da trasladação dos mortos em Fev. 1978, da SNBA para o Memorial no Cemitério do Alto de S.João
Foto - Lisboa – Funeral da trasladação dos mortos em Fev. 1978, da SNBA para o Memorial no Cemitério do Alto de S.João

Foto: Lisboa – 1º aniversário da trasladação dos corpos  dos mortos no campo,  com João Faria Borda, antigo preso a falar à multidão presente, no Memorial aos mortos no Campo do Tarrafal, erguido no Cemitério do Alto de S.João.
Foto Lisboa – 1º aniversário da trasladação dos corpos dos mortos no campo, com João Faria Borda, antigo preso a falar à multidão presente, no Memorial aos mortos no Campo do Tarrafal, erguido no Cemitério do Alto de S.João.

No cemitério do Tarrafal ficaram os corpos de 32 dos prisioneiros que ali morreram vítimas dos maus tratos sofridos.Só depois do 25 de Abril de 1974, foi possível trazer de regresso os seus corpos para terra portuguesa.

Em 1978, numa grande homenagem nacional, promovida pelos sobreviventes do Tarrafal, e na qual participaram dezenas de milhar de pessoas, os corpos dos prisioneiros que ali morreram foram transladados para um Mausoléu Memorial no cemitério do Alto de S. João, erigido por subscrição pública e no qual estão inscritos os nomes daqueles que o fascismo salazarista matou no Campo de Concentração do Tarrafal.

OS CRIMES DO FASCISMO NÃO PODEM SER ESQUECIDOS

Corre o mundo, e regista-se também em Portugal, uma campanha insidiosa que visa o branqueamento do fascismo, dos crimes cometidos pelos regimes fascistas, e das raízes, interesses e forças sociais a quem os regimes fascistas serviram. É uma campanha que visa abrir terreno à ofensiva das forças mais reacionárias do capitalismo e do imperialisno contra aos direitos, liberdades e garantias alcançadas pelos povos com as grandes lutas e vitórias revolucionárias do Século XX, e que o 25 de Abril fez também
chegar a Portugal.

O fascismo português teve os seus traços próprios determinados pela natureza sócio-económica de Portugal e porque nunca encontrou apoios e simpatia da parte do povo português. Não foi tão abertamente brutal, racista e arrogante como os regimes de Mussolini e de Hitler. Mas a sua actuação teve as mesmas raízes, serviu os mesmos interesses, usou métodos idênticos. Foi uma ditadura que usou a repressão para impor no país um ambiente de terror. Esses métodos não resultavam duma crueldade gratuita. Tinham como objectivo principal permitir a aplicação de uma política que atingia cruelmente a esmagadora maioria do povo português, e só pelo terror podia ser imposta.

Não esquecer o que foi o fascismo, os seus métodos e os seus crimes é dever de todos os que não querem que volte a haver em Portugal e no mundo sombras negras como as que a política do fascismo lançou na História do Século XX.

Esse é o apelo que deixamos neste ano em que passam 70 anos em que a primeira leva de presos foi lançada para o Campo da Morte Lenta do Tarrafal.

retirado do site do PCP - DOSSIERS

sábado, abril 28, 2007

ANTÓNIO DE OLIVEIRA SALAZAR

Político e estadista: 1889 - 1970

Fernando Correia da Silva

António de Oliveira Salazar

MANDA QUEM PODE, OBEDECE QUEM DEVE.

QUANDO TUDO ACONTECEU...

1889: Nasce em Vimieiro, Santa Comba Dão. - 1914: Em Coimbra, conclui o curso de Direito. - 1918: Lente de Ciência Económica. - 1926: Após o golpe de 28 de Maio é convidado para Ministro das Finanças; ao fim de 13 dias renuncia ao cargo. - 1928: É novamente convidado para Ministro das Finanças; nunca mais abandonará o poder.- 1930: Presidente do Conselho de Ministros; cria a União Nacional. - 1933: Faz ratificar a nova Constituição (corporativa); cria a PVDE, polícia política; proíbe as oposições, impõe o partido único, regime totalitário. - 1936: Na Guerra Civil de Espanha apoia Franco; cria a Legião Portuguesa e a Mocidade Portuguesa; abre as colónias penais do Tarrafal e de Peniche - 1937: Escapa a um atentado dos anarquistas.- 1939: Iniciada a Segunda Guerra Mundial, Salazar conseguirá manter a neutralidade do país. - 1940: Exposição do Mundo Português. - 1943: Cede aos Aliados uma base militar nos Açores. - 1945: A PIDE substitui a PVDE. - 1949: Contra Norton de Matos, Carmona é reeleito Presidente da República; Portugal é admitido como membro da NATO. - 1951: Contra Quintão Meireles, Craveiro Lopes é eleito Presidente da República. - 1958: Contra Humberto Delgado, Américo Tomás é eleito Presidente da República; o Bispo do Porto critica a política salazarista - 1961: 22/01, assalto ao Sta. Maria; 04/02, assalto às prisões de Luanda; 11/03, tentativa de golpe de Botelho Moniz; 21/04, resolução da ONU condenando a política africana de Portugal; 19/12, a União Indiana invade Goa, Damão e Diu; 31/12/61 para 01/01/62, revolta de Beja. - 1963: O PAIGC abre nova frente de batalha na Guiné. - 1964:A FRELIMO inicia a luta pela independência, em Moçambique. - 1965: Crise académica; a PIDE assassina Delgado. - 1966: Salazar inaugura a ponte sobre o Tejo. - 1968: Salazar cai de uma cadeira e fica mentalmente diminuído. - 1970: Morte de Salazar.


POBRE, FILHO DE POBRES


Esta cadeira está desengonçada mas arrisco-me. Gosto muito de estar sentado aqui ao sol, no terraço do Forte de Santo António do Estoril, a contemplar a foz do Tejo e o oceano. É o meu único luxo, sou pobre, filho de pobres.

No exílio, uma vez a rainha D. Amélia disse que, se pudesse, de mim faria o rei de Portugal. Enganou-se. Eu gostava era de ter sido primeiro ministro de um rei absoluto. Só consigo estar no Governo porque nunca saio da rotina. Como conseguiria aguentar estes anos todos a concorrer a eleições, a ir ao Parlamento responder a perguntas, a correr a inaugurar coisas? Não, rei não quis, nem quero ser; sou pobre, filho de pobres.

Tenho aversão a espalhafatos. Admirei o Mussolini, depois fartei-me dele. Cheguei a ter o seu retrato em cima da minha secretária, foi homem que fez obra. Mas irritou-me a forma aparatosa de estar na vida. Por motivo idêntico também não gostei do António Ferro, nem do Duarte Pacheco, nem do Henrique Galvão e nem do Humberto Delgado. Despeitados, os dois últimos acabaram por me trair. Ao Duarte Pacheco, que também fez obra, Deus mandou que morresse num desastre de viação. Mas ao António Ferro, fui eu que o deixei cair em 1949, os tempos eram outros e já me incomodava o estrondo da sua propaganda. Tanto, que depois privatizei a política da acção cultural. Sem encargos para o Estado, Azeredo Perdigão, o mecenas vermelhusco, com a sua Fundação Gulbenkian é que passou a ser o meu Ministro da Cultura. Mas disto ele não sabe, nem sequer suspeita. Contudo o Ferro, às vezes, até descobria coisas com interesse. Foi ele quem achou a minha imagem nos painéis de S. Vicente. Num lado o Infante de Sagres e eu no outro. Dois homens de gabinete. Um, a mandar as caravelas à descoberta do mundo. Outro, que é pobre, filho de pobres, a mandar Portugal seguir em frente.


MULHER, FAMÍLIA, FILHOS?

Salazar com a afilhada

Salazar com Christine Garnier em Santa Comba Dão.

Os povos antigos, ou são tristes ou são cínicos; a nós, portugueses, coube ser tristes. É frase lapidar e assim descarto o cinismo que me assacam. Somos povo sorumbático mas, espicaçados, em heróis nos convertemos. Somos povo fincado à terra mas, espicaçados, metemo-nos a caminho e damos novos mundos ao mundo. Amália Rodrigues anda lá por fora a promover a tristeza que será nossa. Não gosto de fados mas a tristeza dá-me jeito. Sejam tristes, não me aborreçam, eu é que sei o que é bom para todos, eu é que sei quando devo espicaçar.

Aos fins de semana as minhas afilhadas chegam a meter em S. Bento uma dúzia de amigas e colegas. É um bando de raparigas a palrar de manhã até à noite. Isto, realmente, não é tristeza, mas algazarra que eu suporto, aliás a única. Verdes meninas a chilrear, deleite meu...

As minhas afilhadas... Nas férias mandei a mais velha visitar a mãe. E ela foi, mas não correu bem o reencontro, quem me contou foi a Maria. A rapariga perguntou à mãe por que motivo é que a filha de uma simples rural vivia em Lisboa com o Presidente do Conselho. Perguntou mais:

- Senhora, quem é afinal o meu pai?

E a mãe não soube o que responder, baixou os olhos, corou. Tola, foi sempre tola... Não posso perder tempo com estas coisas, importante é a incumbência que Deus me deu.

Mulher, família, filhos? Julia Perestrelo, a fidalguinha, não aceitou a minha corte. Embora sendo eu estudante já com prestígio, continuava a ser ainda, e apenas, o filho do feitor de uma herdade da família. Quando me arrimei à Julia, a sua mãe, que é também minha madrinha, apontou-me o dedo:

- Não esqueça os tamancos do seu pai.

Pôs-me no meu lugar, pobre, filho de pobres. Mas se a fidalguinha não quis, ou não pôde querer, outras quiseram, outras querem. Cada vez eu sonho mais com as mulheres da minha vida: Felismina, a potrazinha de Viseu; Maria Laura, mulher do próximo e eu a cobiçá-la, pecador me confesso; Carmen Lara, a espanhola; Carolina, a viúva aristocrata, essa quase me leva ao matrimónio, os monárquicos queriam muito, travei a tempo; e Christine, a francesinha, vendaval de simpatia, sedução; e tantas outras... Ainda hoje, muitas delas, vêm ao castigo em S. Bento, até viscondessas e marquesas. Ali mesmo no jardim, moita frondosa, fidalgas e um pobre, filho de pobres, a revidar...

Deus isentou-me da paternidade porque me reservou para missão maior. Ainda bem, prefiro o respeito ao amor. Mas um homem tem as suas necessidades e fidalgas não há sempre ao meu dispor. O que é preciso é compostura. Algumas vezes, a meio da noite, Manuel, o meu guarda-costas de confiança, leva-me a um certo clube só para cavalheiros da alta, fica ali no Largo do Andaluz. Sem outras testemunhas, num quarto há sempre uma mulher nova e bonita à minha espera, muito asseada, primeira apanha. Talvez enfermeira, ou telefonista, ou costureira, coitaditas... Nada pergunto, apenas me sirvo. Tudo muito discreto, tudo pela surda. Já dizia S. Tomás de Aquino: se não podes ser casto, sê cauto ao menos.


MARIA


Maria fica enciumada com as cenas do jardim, sou eu a sua paixão secreta. Sei disso, mas não o demonstro, avassalo. Não se lamenta, não abre a boca, virgem fiel, fidelíssima, sempre à espera de quem se nega a desvirgá-la. Está comigo desde a "República dos Grilos", em Coimbra, onde já era a governanta. Fala-me é das serras e da neve, da Primavera a romper, do gado, do milho a desfolhar, das eiras, das alfaias e da lavoura. Também se queixa das criadas lerdas no casarão de S. Bento, e das vendedeiras do mercado que tentam roubá-la nos preços, que a cidade não tem emenda, é só ladrões. Gosto de ouvi-la, entretém-me. Está sempre a vigiar quem me visita, cão de guarda. Um dia aponto-lhe os Ministros que acabam de sair do meu gabinete e digo-lhe que eles deviam era estar na cadeia. Pergunta-me por que não os mando então prender. Respondo que não vale a pena, pois já roubaram tudo o que tinham para roubar. Ela sabe que roubar, eu cá não roubo. Apenas deixo que uns tantos roubem para que melhor me sirvam. Mas isto a Maria não pode entender, é muito ignorante.


MOCIDADE

Rolão Preto

Passo oito anos no Seminário de Viseu. É a única oportunidade de um pobre, filho de pobres, poder estudar. Católico fui, sou e serei sempre, mas não vocacionado para a vida eclesiástica. Sei que Deus tem para mim outros desígnios. Renuncio ao Seminário e entro como vigilante e professor no Colégio da Via Sacra, do cónego Barreiros. Em Agosto de 1910, ainda em Viseu, dou uma conferência sobre a "Educação da Mocidade":

- Sabei que a vontade deve ser educada no amor a Deus e ao próximo, no amor à família, à honra e à dignidade, ao trabalho e à verdade.

Sou muito aplaudido, ali há gente de boa cepa. Em Outubro do mesmo ano vou matricular-me na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. A mãe da Julinha é quem me paga a mesada, esmola ao filho do feitor.

Recordo a "República dos Grilos", onde também se hospeda o Manuel Cerejeira. E a Universidade, a discussão de ideias, os filhos de família a beberem as palavras de um pobre, filho de pobres... Distingo quatro ou mais grupos, cada qual a terçar armas pelas minúcias do respectivo ideário. Assim vão esquecendo o essencial que pode e deve unir a todos. Um dos grupos, de gente mais velha, só pensa na restauração monárquica com um príncipe do ramo miguelista. Bem os entendo: se voltar a monarquia, antes um rei absoluto do que um liberal. Um outro grupo é mais extremado, anos depois tomará como modelo ideal de Estado a Alemanha de Hitler. Um terceiro é apologista da violência física; mais tarde passará a falar em "burguesia" e "capitalismo" a ver se, à moda italiana, cativa o operariado; este grupo será um dia comandado por Rolão Preto, o qual acabará por fundar o Movimento Nacional Sindicalista para me fazer oposição, pois eu não corresponderei ao Chefe espalhafatoso pelo qual anseiam. Um quarto grupo, de gente moça, a que depois se juntarão Teotónio Pereira e Marcelo Caetano, já fala em corporativismo de inspiração cristã. Todos lêem, comentam, interpretam e reinterpretam os textos do António Sardinha, do Sorel e do Maurras, também as encíclicas de Leão XIII. Todos se dizem mais ou menos integralistas. É urgente aglutinar toda aquela gente. Começo por participar na reorganização do CADC - Centro Académico da Democracia Cristã. Em 1912 sou eleito 1.º secretário da direcção. O vice-presidente é o Manuel Cerejeira. Quem sempre me apoia é o Santos Costa; um dia será general e meu sempre fiel Ministro da Guerra. Entretanto concluo o curso de Direito e sou logo chamado para leccionar. Em 1918 já sou lente de Ciência Económica. Em 1921 sou eleito deputado pelo círculo de Guimarães nas listas do CCP - Centro Católico Português. Assisto a umas poucas sessões e logo renuncio ao mandato, tamanha é a confusão na Câmara. Depois, sem pressas, no CCP dedico-me a gerir as diferenças entre os vários grupos que o integram, como já integravam o CADC. Ponho em evidência aquilo que afinal a todos nos une: a fé inabalável em Deus, na Pátria e na Família. Conforme as circunstâncias o exigem, ora apoio um grupo, ora outro, contra os restantes. Já Maquiavel dizia que a máxima dos sábios dos nossos dias consiste em esperar o benefício do tempo.


O "28 DE MAIO"

Salazar dando posse a António Ferro.

O "28 de Maio" de 1926 como antecâmara do Estado Novo? Fantasias do António Ferro, pois aquele foi tempo em que se fez política com pistolas em cima da mesa... Eu apenas fiquei à espera da minha oportunidade, soube jogar com o benefício do tempo.

Não foi um golpe, foi um passeio de Braga até Lisboa, uma grande parada militar chefiada pelo Gen. Gomes da Costa. Da Esquerda à Direita todos pareciam felizes e contentes, só eu na expectativa. Compreende-se: todos estavam fartos do Partido Democrático, há 16 anos que os "bonzos" mamavam sozinhos na porca da política. A 30 de Maio o presidente Bernardino Machado aceita a demissão do primeiro ministro, o "bonzo" António Maria da Silva. No dia seguinte o Bernardino entrega os seus poderes ao Alm. Mendes Cabeçadas, republicano conservador, porém um democrata, a sua pecha, pois a Democracia é justamente o regime que deixa emergir os piores instintos do ser humano. A ver vamos no que vai dar tudo isto, aguardo o benefício do tempo.

O Gen. Sinel de Cordes, um jacobino de Direita (assim o chamam os da Esquerda), faz as suas intrigas e o Alm. Mendes Cabeçadas apresenta a demissão a 18 de Junho. O Sinel, e outros como ele, exigem que o Gen. Gomes da Costa continue a chefiar a ditadura militar. Tudo se precipita. A ver vamos no que vai dar tudo isto, aguardo o benefício do tempo.

Mais intrigas do Sinel: a 9 de Julho o General Oscar Carmona é empossado como Presidente. Só posso rir quando me contam a anedota: o único sítio onde o Carmona mete o nariz, é no próprio lenço. Maledicência, ele é antes um homem a tentar o equilíbrio entre as várias forças de Direita que estão sempre a hostilizar-se, de um lado monárquicos, do outro republicanos. Se um dia eu for chamado para o Governo, Carmona ser-me-á de grande utilidade, estou em crer. A 11 de Julho o Gen. Gomes da Costa é desterrado para os Açores. A ver vamos no que vai dar tudo isto, aguardo o benefício do tempo.

O Sinel arrebenta com as Finanças públicas, défice de 700 mil contos, a Nação à beira da bancarrota. Ai os militares, os militares... Convidam-me e a 26 de Abril de 1928 sou empossado como Ministro das Finanças. Depois do "28 de Maio" é a segunda vez que isso acontece. Da primeira, no tempo do Cabeçadas, ao fim de 13 dias larguei o cargo por excesso de confusão na cabeça do presidente e falta de condições para o meu trabalho. Mas agora vou promover o desdobramento da ditadura militar em ditadura financeira, exijo direito de veto sobre toda e qualquer despesa pública. Digo, ao tomar posse:

- Sei muito bem o que quero e para onde vou.

O Cerejeira manda-me um bilhete: "António, foi Deus que te chamou para salvar a Nação". Respondo com outro: "Manuel, quem me chamou foi o José Vicente de Freitas, o presidente do Governo". A ver vamos quem avassala quem...


ORÇAMENTO EQUILIBRADO

Salazar equilibra o orçamento. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.

Nos corredores da Ditadura militares conspiram com liberais (os "bonzos" recuperados) e conservadores para me derrubarem. Mas em 1930 já ninguém consegue remover-me, peguei de estaca. Não sou ainda o presidente do Conselho de Ministros, mas hei-de ser, não tarda muito. Com o auxílio do exército imponho novas contribuições. Veto despesas públicas e alcanço o equilíbrio do orçamento, liquido a dívida flutuante, estabilizo a moeda. Não me arredam, já não conseguem, ou eu ou a bancarrota.

Aperta-se o cinto, há quem se queixe da vida, pelos menos na capital. Mas nas aldeias ninguém se queixa. Ali, às vezes, não há trabalho, mas raramente eles deixam de comer. Ali, às vezes, falta dinheiro e roupa para vestir, mas há sempre uma côdea ou um caldo para enfrentar um novo dia. Prefiro o povo das aldeias.


A UNIÃO NACIONAL

Comecei por aforrar prestígio. Agora vou aplicá-lo na formação de um partido, a União Nacional. Deus, Pátria e Família é investimento seguro. Não eu, mas outros por mim, devem começar a fazer o alarde, nacionalistas que beberam do Integralismo. Eu ficarei na sombra, serei sempre o desejado, o encoberto, o Anjo da Guarda em retiro. Não vou desgastar a minha imagem junto da populaça, nem isso me apetece, omnipresença será um dos meus atributos. Embora com objectivos convergentes, sou o avesso do Mussolini.

Uma intentona malograda dos "reviralhistas" e logo se precipita o previsível: ainda em 1930 tomo posse como Presidente do Conselho de Ministros. Trato de oficializar a União Nacional. Declaro:

- Temos uma doutrina e somos uma força!

Recomendo ao Cerejeira que encerre o Centro Católico Português. Saiba ele, e saibam todas as direitas, que a União Nacional passou a ser a Direita, a única.


CADA COISA EM SEU LUGAR

Óscar Fragoso Carmona

Exijo disciplina, um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar. O lugar dos políticos é na Política, o dos militares é nos quartéis, o do clero é na Igreja.

Em 1932 recomponho o Governo. Dos quatro generais dispenso três, apenas reservo o Carmona para continuar como Presidente da República. Se os três dispensados quiserem começar a conspirar contra mim, pois que o façam, atrevam-se eles a enfrentar o meu prestígio...

Na cerimónia de posse dos novos Ministros também está presente o Alfredo da Silva, o patrão da CUF - Companhia União Fabril. Não gosto dele, pior do que a exuberância é a sua ânsia de alargar império, de dia para dia mais cresce o número dos seus operários. E é nesta classe de infelizes que mais facilmente germina o bolchevismo, semente do Mal. Sem dar por isso, ele e outros como ele, estão a cavar a própria sepultura, talvez a minha e a da Nação. Cego, magnata cego...

Vou depois apresentar cumprimentos ao cardeal Cerejeira, é a praxe. Desde que foi encerrado o Centro Católico Português, ele tem vindo a agitar o nome do Cunha Leal para me substituir. Não discuto intrigas de sacristia. Declaro-lhe que só posso levar em consideração os interesses da Igreja desde que se conjuguem com os interesses do Estado Novo. Espero que entenda o recado. Perante Deus somos todos iguais, mas cada qual no seu lugar.


O ESTADO NOVO

Cartaz de propaganda do regime.

Cartaz de propaganda aos princípios corporativos.

Só vêem o que lhes passa diante do nariz, são incapazes de distinguir entre a letra e o espírito. A nova Constituição, ratificada em 1933, prevê eleições? Pois prevê, assim travo os republicanos conservadores e vagamente democratas que herdámos do "28 de Maio". Mas quem controla as eleições sou eu, é a União Nacional, através das restrições relativas ao grau de instrução, ao sexo e à propriedade do eleitorado. Isto não o vêem os conservadores, nem sequer os nacionais-sindicalistas do Rolão Preto. Entusiasmados com a vitória do nacional-socialismo na Alemanha, milhares de camisas azuis fazem a saudação romana e andam a agitar o povo de norte a sul da Nação, gritam e proclamam que os traí. É preciso pôr um ponto final nestas arruaças, para isso contarei com o tácito apoio dos conservadores, militares e civis. Chamo ao meu gabinete o Teotónio Pereira e o Manuel Múrias. Ouvem-me com atenção e tratam de esfacelar, por dentro, o Movimento Nacional-Sindicalista a que pertencem, colocando o Rolão Preto em minoria. Assim isolado, logo o mando prender e expulso-o da Nação. Mas ao mesmo tempo abro as portas da União Nacional aos órfãos de camisa azul. Apenas sugiro que vistam outras. Para os consolar, também eu começo a fazer a saudação romana. Ficam aliviados e contentes. Serão eles os grandes activistas do Estado Novo.

Em 1936, nas comemorações do 10.º aniversário da Revolução Nacional, declaro:

- Às almas dilaceradas pela dúvida e o negativismo do século procurámos restituir o conforto das grandes certezas. Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a Pátria e a sua história; não discutimos a autoridade e o seu prestígio; não discutimos a família e a sua moral; não discutimos a glória do trabalho e o seu dever.

Infelizes ficam os conservadores. Se a letra da Constituição é o que é, só agora lhe entrevêem o espírito: antiliberal, antiparlamentar e antidemocrático. Nela incorporo o Acto Colonial e o Estatuto Nacional de Trabalho. Sidónio Pais, coitado, surgiu antes de tempo. Mas intuiu o caminho que estamos hoje a desbravar. Esta é a primeira constituição corporativa do mundo: sob o arbítrio do Estado forte, a conjugação dos grémios e dos sindicatos, do Capital produtivo e do Trabalho para o engrandecimento da Pátria. Assim levanto uma barragem contra a luta de classes, bandeira dos comunistas.

E os padres? Quando é que sobem ao púlpito a louvar o Estado Novo? Aguardemos o benefício do tempo...


CINEMA

Uma barragem... Sinto as pernas entorpecidas, levanto-me, passeio pelo terraço do Forte. As barragens, o plano hídrico nacional... E ainda há alguns maledicentes que me chamam de retrógrado... Tiro os binóculos do estojo e avisto um barquinho que demanda a barra. Se antes da vazante, que não tarda, eles não conseguirem alcançar S. Julião, serão arrastados para o alto mar. A montante, sobre o Tejo, não a vejo, mas sei que lá está a ponte que leva o meu nome, não me fazem favor por isso, fui eu que mandei construir, fui eu que a inaugurei em 1966. Agora, o que me apetecia era ouvir um filme. Não ver, mas ouvir, que eu não tenho pachorra para ir ao cinema. Maria e as amigas é que vão às matinées e depois contam-me tudo. Manta sobre as pernas, um bule de chá, são as noitadas em S. Bento. Gostei muito de "Música no Coração".

Volto a sentar-me. A cadeira balança e range, mas lá se aguenta. Um dia destes ainda me prega uma partida.


SAFANÃO A TEMPO

Salazar

Folheto de propaganda da Confederação Geral do Trabalho denunciando as torturas infligidas pela PIDE aos oposicionistas do regime.

Bento Gonçalves, o primeiro Secretário-Geral do Partido Comunista Portugês.

Era fim de Agosto e as uvas estavam bonitas, comecei a vindimar. O meu Pai deu-me um safanão a tempo e eu parei. Tirou um bago do cacho que eu acabara de cortar, deu-me a provar. Trinquei, logo cuspi, era azedo. Assim comecei a aprender que tudo tem o seu tempo, tudo obedece a regras, Lei suprema quer para a Natureza, quer para a sociedade dos homens, que é outra forma da Natureza. Quem não respeita as regras é desordeiro; mas quem sempre as põe em causa e delas troça, é ateu a infectar os que estão perto, anarquismo ou comunismo, danação.

Os grandes homens, os predestinados, os grandes chefes, não se embaraçam com preconceitos, com fórmulas, com preocupações de moral política. A violência pode ter vantagens mas não na nossa raça nem nos nossos hábitos. Em Portugal não há homens sistematicamente violentos. Aqui, há que governar tendo sempre em conta esse sentimentalismo doentio a que chamamos bondade. Para defender a Pátria, aqui não é preciso usar da violência. Um safanão a tempo é quanto basta.

Nas revistas e nos jornais e nas emissoras radiofónicas e nos teatros e nos cinemas, o lápis azul e a tesoura da Censura prévia cortam os textos e as imagens fora de prumo, há regras a cumprir, safanão a tempo. Nas livrarias, a polícia apreende os livros subversivos, há regras a cumprir, safanão a tempo.

Se abandonados à liberdade, os homens logo se convertem em libertinos. Reforço a proibição das greves e em 1933 fundo a PVDE - Polícia de Vigilância e Defesa do Estado. Agentes italianos e depois uns alemães, com as suas técnicas, virão ajudar-nos a torná-la mais eficaz. Rapidamente a PVDE estende uma rede de informadores de norte a sul da Nação, nas cidades, nas vilas e até em aldeias. É fácil, muita gente ambiciona ganhar mais uns tostões.

A função primeira da PVDE é prevenir as tentações de libertinagem, é intimidar não só os ímpios e os incautos à beira da impiedade, mas também os respectivos pais, e cônjuge, e filhos, e irmãos, e colegas, e amigos, todos os que estejam em perigo de contágio. Subversão é peste, há que meter a Nação em quarentena. E meto, mas alguns escapam, danados que tentam danar os outros, cães raivosos.

Reorganizo as forças militarizadas, a GNR - Guarda Nacional Republicana, a PSP - Polícia de Segurança Pública, e a Guarda Fiscal. E chamo ao meu gabinete, primeiro o Agostinho Lourenço, director da PVDE; mais tarde o Silva Pais, director da PIDE. Alerto:

- Mais vale um safanão a tempo do que deixar o Diabo à solta no meio do povo.

Contam-me como fazem. Localizam onde pousa um dos suspeitos. A meio da noite arrombam a porta, dão-lhe voz de prisão e uns sopapos, arrastam-no para a sede, interrogatório, safanão primeiro. Se o subversivo conta o que sabe, é porque já está a caminho da salvação. Se não fala, safanão segundo, espancamento. Se calado continua, safanão terceiro, é a penitência da estátua, dias e noites obrigado a ficar sempre de pé, até que as suas pernas se transformem em dois trambolhos. Variante do terceiro safanão é a penitência do sono, dias e noites sem dormir; quando cabeceia, logo acendem um holofote contra os seus olhos. Um dos possessos, ao fim de quinze dias e quinze noites sem dormir, começou a beijar a parede, alucinações, pensava que estava na cama com a mulher. Depois entrou em coma. Normalmente, depois do terceiro safanão, os inconfessos entram em coma. Ninguém os mata, eles é que se deixam morrer porque se negam à salvação.

Alguns sobrevivem ao terceiro safanão, mas nada mais podemos fazer por eles, almas penadas já são em vida. Com ou sem julgamento são despejados em masmorras. Em 1936 inauguro as colónias penais do Tarrafal e de Peniche. É no Tarrafal que vai morrer Bento Gonçalves, secretário do Partido Comunista. Outros seguem-lhe o exemplo; no Tarrafal e em Peniche, no Aljube e em Caxias.

Não, não é preciso usar da violência, somos um povo de brandos costumes. Aqui, para governar, um safanão a tempo é quanto basta.


O ENCOBERTO
Salazar, Salazar, Salazar! gritos nacionalistas. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.

1936: agitação vermelha vaza de Espanha para Portugal. Reagimos: barreira militar, Legião Portuguesa, cruz de Aviz, invocação de Aljubarrota! Mando que os meus legionários vistam camisas verdes, assim não se confundem nem com a milícia do Rolão Preto, nem com a Falange do Franco. São convocados os funcionários do Estado e todos aderem à Legião; os incapazes de exercícios militares, juram fidelidade ao regime.

No mesmo ano crio a Mocidade Portuguesa, também camisas verdes. Ali os rapazes aprendem a amar e a defender a Pátria, bravos lusitos. E nas escolas imponho um livro único, passaporte para Deus, Pátria e Família.

Nacionalistas, legionários e lusitos, de braços estendidos em saudação romana, andam sempre a marchar pelas ruas, congregam multidões, fazem grande alarido:

- Quem vive?

- Portugal, Portugal, Portugal!

- Quem manda?

- Salazar, Salazar, Salazar!

Contudo, para além da algazarra à superfície, detecto o profundo silêncio da Nação. Somos tristes, eu o disse, mas há aqui um excesso de tristeza. E isto é perigoso, a caldeira do silêncio também pode explodir. Há que montar uma válvula de escape.

Chamo ao meu gabinete os homens da Censura. Digo-lhes que aliviem o rigor sobre as revistas do Parque Mayer, que alarguem o espartilho e deixem passar as alusões à minha pessoa, desde que não sejam ofensivas. E o público sacode-se a rir com os números do António da Calçada ou do Santo Antoninho da Estrela. Só mando cortar O Botas. É alcunha de mau gosto. Não se pode brincar com um defeito físico que me obriga a usar botas ortopédicas, daquelas de elástico, para disfarçar.

Também chamo ao meu gabinete o Agostinho Lourenço. Digo-lhe o que direi mais tarde ao Silva Pais:

- É conveniente que os descontentes tenham sítios onde possam desabafar sem perturbar mais ninguém. Os Cafés podem servir para isso.

Quanto mais estrondosas são as gargalhadas no Parque Mayer e quanto mais se conspira nos Cafés, mais avassala a minha ausência, omnipresença.


UNGIDO?

Salazar

Por três vezes o Maligno tenta abater-me.

Primeira: em Janeiro de 1934 os comunistas convocam greve geral e tentam implantar um soviete na Marinha Grande. São cercados e vencidos.

Segunda: em Setembro de 1936 marinheiros comunistas rebelam-se. Mando que a artilharia da costa os bombardeie e afunde.

Terceira: em Julho de 1937, quando me dirijo para a missa, sofro um atentado à bomba mas escapo ileso. Bem sei que foram os anarco-sindicalistas. Mas eles já são tão poucos, que não vale a pena mencioná-los. Acuso os comunistas. Daqui para a frente, quem me atacar passa a ser comunista, eles é que são o inimigo principal.

Consequências do atentado são a comoção nacional, as mensagens de solidariedade, os cortejos, as manifestações, as missas Te Deum. Uma única vez surjo em público, a agradecer. Não me apetece, sou avesso a estas coisas, mas lá declaro à multidão:

- Somos indestrutíveis! Porque a Providência assim o destina e na Terra vós o quereis.

Ungido de Deus? Não sei, talvez... Sei apenas que, quatro séculos antes de nascer, eu já fora colocado lado a lado com o Infante de Sagres, predestinação...


AS GUERRAS DOS OUTROS

Craveiro Lopes com Franco.

Nacionalistas espanhóis começam a gritar os nomes de Primo de Rivera, Sanjurjo e Franco e rebelam-se contra o Governo dos vermelhos. Assumo também a pasta dos Negócios Estrangeiros. Temo que, se vencerem os rebeldes, queiram mais tarde anexar Portugal como província espanhola, ambição que herdaram dos Filipes. É perigo menor e longínquo. Mas se venceram os vermelhos, o bolchevismo alastrará de imediato a Portugal, quer por intervenção militar, quer por contágio. Perigo maior, de vida ou de morte, é pois a vitória dos vermelhos. Há que ajudar a derrotá-los. E ajudamos:

Numa primeira fase ponho à disposição dos rebeldes os nossos portos e os nossos caminhos de ferro para o aprovisionamento de víveres, armas e munições. Numa segunda fase, também permito que os meus legionários arregimentem 8000 voluntários para combater o bolchevismo em Espanha. São os nossos Viriatos.

A Alemanha e a Itália apoiam os nacionalistas espanhóis. A França e a Inglaterra optam pela não-intervenção e assim condenam à derrota os vermelhos. Para alguma coisa havia de nos servir a Democracia nesses dois países...

Vencedor da guerra civil, e incentivado pelo falangista Serrano Suñer, Franco pensará agora anexar-nos. Mando avisá-lo: mal as suas tropas se concentrem na fronteira, de imediato accionarei o velho Tratado de Aliança entre Portugal e o Reino Unido. Repare ele que a Segunda Guerra Mundial não tarda aí, a guerra civil que devastou a sua Espanha foi o ensaio geral. E que se os nacionalistas espanhóis se sentem obrigados a alinhar com a Alemanha, eu sinto-me obrigado a alinhar com a Inglaterra em virtude da nossa Aliança. Se tal acontecer, sacrificados aos interesses de outras potências serão os nossos povos. Realço ainda que os regimes de Espanha e Portugal são idênticos: católicos, autoritários, antiliberais, antiparlamentares e antidemocráticos. Será sinal que Deus nos manda para se constituir aquém Pirinéus um bloco neutral, nem a favor da Grã-Bretanha, nem a favor da Alemanha, mas só a nosso favor. Assim defenderemos os povos da Península e a sobrevivência dos nossos regimes. Ou não estais vós, espanhóis, cansados de tanta guerra? Eu, por meu lado, para evitar envolver-me no próximo conflito europeu, já declarei publicamente:

- Somos sobretudo uma potência atlântica, presos pela natureza à Espanha, política e economicamente debruçados sobre o mar e as colónias.

Depois de muitas discussões, de avanços e recuos, a 13 de Março de 1939 consigo finalmente assinar com a Espanha o Tratado de Amizade e Não Agressão. Vencido o bolchevismo espanhol, que era o perigo maior, assim desarmo o menor. Ao mesmo tempo alivio a pressão britânica sobre o meu Governo; por causa de Gibraltar e do acesso ao Mediterrâneo, convém-lhes a neutralidade da Península. E a Alemanha desistirá de forçar a Espanha a entrar em guerra.

Há muitas formas de matar pulgas, diria a Maria...


O DEDO DE DEUS

Em 1940 assino a Concordata com a Santa Sé. Não vou restaurar o poder da Igreja, não lhe devolvo os seus haveres expropriados pela República em 1911, não vou abolir o divórcio. Mas isento a Igreja e o clero do pagamento de impostos ou contribuições, quaisquer que sejam. Deus, Pátria e Família, é evidente, mas quem manda sou eu! É um bom acordo para a Igreja e o Manuel Cerejeira sabe disso.

Na carta pastoral de 1942, bodas de prata das aparições de Fátima, os bispos já dizem que, nas mudanças operadas da Primeira República para o Estado Novo, poder-se-á ver o dedo de Deus.

E em 1945, a propósito de uma outra visão da Irmã Lúcia, o Cerejeira escreve-me: "O facto de ser a nossa paz um favor do Céu (predito pela Irmã Lúcia), não te tira nem diminui o mérito. Pelo contrário, faz de ti um eleito, quase um ungido de Deus. Foste tu o escolhido para realizar o milagre".

Até que enfim...


O MUNDO PORTUGUÊS

Exposição do Mundo Português, 1940.

"A nossa paz...", dirá a Irmã Lúcia. Antecipo: a paz que eu forjei e o passado glorioso que me forjou. Os heróis é que fazem a História, não são os povos. Felizes os povos que têm heróis a conduzi-los. Ontem demos novos mundos ao mundo, hoje somos um oásis de paz num mundo em guerra. É isso mesmo que torno evidente em 1940, com a Exposição do Mundo Português. Ali mesmo, à beira-Tejo, não muito longe de onde partiram as naus do Vasco da Gama. Comemoramos oito séculos sobre a Fundação da nacionalidade em 1140, e três sobre a da Restauração, em 1640. Dois homens me ajudam a planear a Exposição: António Ferro com epopeias escritas, faladas, esculpidas e pintadas e Duarte Pacheco com a imponência dos pavilhões. Um, é o meu Ministro da Propaganda. Outro, é o meu Ministro das Obras Públicas, que já as fez sumptuosas, como convém que sejam as do Estado. Dois frenéticos que, por ora, me servem bem.

Mando que na Exposição também sejam alojados, em palhoças, uns tantos pretos e pretas, adultos e crianças, primitivos que retirámos da selva... Que todos admirem a obra dos nossos missionários em África! Aquele pretos, bem doutrinados, bons cristãos podem ainda vir a ser. De segunda ou terceira, porém cristãos.


NÃO TEM CHEIRO...

Durante a guerra a Grã-Bretanha reduz drasticamente as suas compras a Portugal. Não posso morrer à míngua e começo a vender volfrâmio e estanho aos alemães. Os britânicos protestam e eu também passo a vender-lhes volfrâmio e estanho. Bem sei que isto vai ter de parar um dia, ou vendo para um lado, ou vendo para o outro. Mas enquanto puder vender para os dois, venderei. Todo o dinheiro traz agarrado a si miséria e sangue. Mas não tem cheiro.


REFUGIADOS

Salazar acolhe refugiados judeus. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica!

Por causa do volfrâmio, não pensem os alemães que rompi a neutralidade e passei para o lado deles. Andam à caça de judeus? Pois saibam eles e vejam os ingleses que recebo milhares de refugiados judeus em trânsito para a América. E que não os interno em campos de concentração, mas hospedo-os em hotéis perto do mar, nas Caldas da Rainha, na Figueira da Foz. Mas quando, em 1945, Hitler se suicidar, para escândalo dos ingleses mandarei pôr a bandeira nacional a meia haste. Somos um povo de brandos costumes, matriz cristã, fazer bem sem olhar a quem. Porém independentes, sempre. Em nós ninguém manda, nunca! Ontem não mandaram os espanhóis, eles que se lembrem de Aljubarrota. Durante a guerra, nem alemães, nem ingleses mandam em nós. No pós guerra, nem americanos, nem ingleses hão-de mandar. Ninguém, nunca!

Não posso é consentir que, durante a guerra, por conta própria, sem ordem superior, Aristides Sousa Mendes, cônsul de Portugal em Bordéus, esteja a passar milhares e milhares de vistos a refugiados judeus. Para se tirar o apetite a outros possíveis prevaricadores, mando que seja demitido e punido de forma exemplar! Ai este sentimentalismo doentio a que chamamos bondade...


ESPIONAGEM

Alemães e ingleses precisam espiar-se uns aos outros, precisam conversar secretamente uns com os outros, e estão a usar Lisboa como base operacional. Pois que usem, desde que não interfiram com a nossa política interna e para essa eventualidade a PVDE está alertada. É forma de evidenciar a nossa neutralidade, é forma de arrecadar mais algumas divisas.


SOBREVIVÊNCIA

Cartaz da candidatura de Norton de Matos.

Cartaz da candidatura de Carmona.

Sou muito instado mas adio a decisão, o que provoca acessos de fúria naquele gordo inglês fumador de charutos. Só em 1943, quando vejo que a Alemanha já não pode ganhar a guerra, é que cedo aos Aliados uma base militar nos Açores.

A imprensa deles insulta-me, que eu sou nazi-fascista, que nós fazemos a saudação romana, que a Legião Portuguesa festejou publicamente as vitórias do Eixo, que os legionários são os meus "camisas negras", apesar de verdes serem elas. Os cães ladram mas a caravana passa... Acabo de garantir a sobrevivência do meu regime.

No pós-guerra, na Europa ocidental são muito apreciados os legalismos. Consequência: o número de possessos que faz o jogo da Rússia, não pára ali de aumentar. Inevitável é outra guerra. Aguardo o benefício do tempo enquanto vou encobrindo o que se passa por aqui: em 1945 transformo a PVDE em PIDE - Polícia Internacional e de Defesa do Estado e mando organizar os Tribunais Plenários. Nestes, antes dos julgamentos, já estão ditadas as sentenças; traição à Pátria pode dar até 20 anos de cadeia; os lugares para a assistência são todos ocupados por agentes da PIDE; advogados e testemunhas de defesa, se exorbitam, são calados à força. Depois de cumpridas as penas, os condenados podem levar mais uns anitos de reclusão, higiénicas medidas de segurança.

Nos finais da guerra, apesar dos safanões, os comunistas cá de dentro (eles, sempre eles!) provocam agitação e greves de certa monta, mas aguento-me. Em 1947 outros comunistas sabotam-me aviões na base de Sintra.

Entretanto é levantado o muro de Berlim e começa a guerra, embora fria. O meu regime foi sempre anticomunista. Em 1949 Portugal é admitido como membro da NATO. Valeu a pena aguardar o benefício do tempo...

Só para inglês ver, também em 1949 finjo eleições livres para a Presidência da República. O candidato da Oposição é o Norton de Matos, um general maçom. Alega que nós controlamos os cadernos eleitorais e as mesas de voto e por isso desiste à boca das urnas. É reeleito o meu candidato General Carmona; de sete em sete anos, desde 1928, é o que lhe acontece; mas esta foi a reeleição mais espinhosa.

Coitado do Carmona, vem a falecer em 1951 e eu tenho de convocar novas eleições. O candidato "reviralhista" é o Almirante Quintão Meireles. Recusamos a candidatura de Rui Luís Gomes, o comunista. Ele, e a sua quadrilha, levam até uns safanões a tempo. Naturalmente ganha o meu candidato, o General Craveiro Lopes. Lá fora os jornalistas continuam a ladrar, mas a caravana continua a passar.


VAZANTE

Duarte Pacheco

Craveiro Lopes com Marcelo Caetano.

A caravana passa... Outra vez me levanto e passeio pelo terraço. O barquinho não conseguiu alcançar S. Julião da Barra e a vazante começa a arrastá-lo para o alto mar.

Somos pobres, filhos de pobres. O Estado tem de ser forte e imponente para compensar a pobreza natural do nosso povo. Cuidem eles das suas hortas que do Estado cuido eu. Admirem e orgulhem-se das obras que mandei o Duarte Pacheco, e outros, construir de norte a sul da Nação. Admirem e orgulhem-se do Instituto Superior Técnico, do Estádio Nacional e da auto-estrada que o liga a Lisboa; admirem e orgulhem-se do Hospital Santa Maria em Lisboa, e do Hospital S. João no Porto, e dos Palácios da Justiça em Lisboa e no Porto, e das pontes, e dos viadutos, e das barragens do Cávado-Rabagão, e da Idanha-a-Nova, e do Castelo de Bode.

Para admirar e orgulhar-se da nossa Pátria heróica, do nosso Estado forte, não é preciso ser-se instruído. Instrução, para quê? Basta saber ler e escrever e não é preciso que sejam todos. Se tiverem alguma dificuldade de entendimento, lá está o senhor padre para os aconselhar e orientar. Para as primeiras letras, e só para essas, mando construir uma rede de escolas pela Nação fora, e mais não é preciso. Se fôssemos todos doutores, quem iria amanhar a terra, quem iria amassar o pão, quem iria assentar tijolos? Não permito que a falsa sabedoria perturbe a inocência do nosso povo. Esconjuro a tal universidade popular desse tal Bento Caraça; é ateu, interfere com a lei divina, é comunista disfarçado de matemático, é demitido e preso.

Manda quem pode e obedece quem deve, esta é a ordem natural das coisas. Não mexo na propriedade, ela é intangível. Cobiçar os bens do próximo é tentação assoprada pelos comunistas.

Bem sei que é preciso fomentar a produção industrial. Mas o fomento é planeado por mim e aplicado conforme o Estado exige, não permito que se ponha em perigo o equilíbrio orçamental que tanto me custou a alcançar. Observo que o mundo campestre provoca os sorrisos desdenhosos da economia industrial. Por mim, se tivesse de haver competição, continuaria a preferir a agricultura à indústria. Mas se eles querem enriquecer depressa, não chegam lá pela agricultura. A faina agrícola é, acima de tudo, uma vocação de pobres. E o nosso é um povo de pobres, filhos de pobres. As nossas raízes mergulham fundo no torrão natal.

Não admito reivindicações salariais e muito menos greves, isso é obra de comunistas. Se a economia industrial está a enriquecer uns poucos e a levar um excesso de pobreza a muitos, só a mim cabe corrigir o excesso, cristão eu sou. Doo terrenos para facilitar a construção de casas com rendas limitadas. Pela província, de norte a sul mando construir as Casas do Povo. E nas grandes cidades mando edificar bairros sociais. No da Encarnação, em Lisboa, são pequenas vivendas por entre árvores, cada qual com a sua horta para plantar couves e semear batatas. Que ao menos se lembrem eles das courelas que trocaram pela cidade, à procura de melhor vida que, afinal, não será assim tão boa...

Outra vez assesto os meus binóculos. O barquinho cada vez está mais ao largo, corre o perigo de ser engolido pelas vagas do mar alto. Quem lhe pode lançar mão?

E fogem, fogem dos campos, vêm para as cidades, vão para o Brasil, vão para a Europa e a maioria dos emigrantes é clandestina. Depois da guerra, além dos Pirinéus tudo parece um mar de rosas. Odeio a Rússia e os comunistas, mas também não gosto dos americanos. Não, não! aqui não quero um Plano Marshall, pequeninos mas orgulhosos, escorados estamos por um passado glorioso. Não consigo é evitar o mar de rosas, não há barragem que o detenha, afoga-nos, poucos são os que reparam nos espinhos. De Setúbal a Braga, pelo litoral, as indústrias surgem como cogumelos depois da chuva. Em Lisboa, e no Porto, começa a haver mais gente a escrevinhar nos escritórios do que operários a produzir. Tudo muda e já não consigo travar a mudança. E os escreventes cada vez lêem mais livros e jornais, e vão a cursos nocturnos, e ouvem telefonia com ondas curtas para apanhar o estrangeiro, e vêem filmes, e fundam cineclubes, e arrogam-se o direito de exigir melhor distribuição dos benefícios acrescidos. Também os operários entram no coro, inquinados já estão uns e outros pelo comunismo.

Para evitar a inflação e os maus costumes, continuo a impor vida frugal a quem trabalha por conta d’outrem. Em consequência, são os novos Bancos e as novas Seguradoras que estão a comer a grande fatia do bolo novo, não é o Estado. Nisso não reparam os pobres diabos quando rosnam contra o Estado...

Mas uma coisa é ouvir o que nos contam, outra é ver com os próprios olhos. Chamo o Manuel e, dentro do Mercedes com os vidros foscos, às onze da noite seguimos lentamente ao longo da Avenida. É fim de semana, é Verão, e as esplanadas estão cheias. Pergunto:

- Manuel, o que estão eles a beber?

- Ó Senhor Presidente, é cervejas, é gasosas, é pirolitos, é laranjadas...

- Mas isso é muito caro, não é?

- Ó Senhor Presidente, é 25, é 15, é 10 tostões.

Pois, pois, já estou a entender... Queixam-se que não têm dinheiro e só fazem extravagâncias...

Se fossem apenas operários e escreventes a rosnar, com essa gentinha podia eu... O pior é que já começam a surgir brechas na União Nacional e no Estado. Henrique Galvão, que foi dos meus, descambou de vez para o "reviralho". Começou por alinhar com o Quintão Meireles e agora, ao lado do Cunha Leal (aquele do Cerejeira de antigamente), rosna que há compadrio dos grandes grupos financeiros com muitas das autoridades civis do meu regime. A Censura corta mas sei que, no fundo, têm razão; o dinheiro não tem cheiro, por baixo do pano impossível é deter o seu fluxo.

Também oficiais formados na América pela NATO, entre eles o Humberto Delgado (outro que foi sempre dos meus), começam a morder o Santos Costa, o meu sempre fiel Ministro da Guerra. Dizem que o aparelho militar português é arcaico e é urgente renovar as Forças Armadas, também a sociedade portuguesa. E até o Craveiro Lopes, o meu Presidente da República, parece que lhes dá ouvidos... O Craveiro não pode ser candidato à reeleição, e tenho dito! Saudades do velho Carmona...

Até o Marcelo Caetano (que foi o meu Comissário da Mocidade Portuguesa, e o meu Ministro das Colónias, e o meu presidente da Câmara Corporativa e é o meu Ministro da Presidência desde 1955) faz conluio com os seus ex-alunos que já ocupam lugares cimeiros nas grandes empresas. Parecem todos apostados em renovar o regime, mas por dentro. Não me atacam frontalmente, tentam é dissolver-me. Quererão fazer hoje comigo, o que ontem eu fiz com o Rolão Preto? Enganam-se, sou um osso muito mais duro de roer...

Tudo muda e é-me difícil travar a mudança. Eu queria que muitas e muitas famílias portuguesas lavrassem as terras da nossa África, nisso investi. Assim fiz na Cela e em Matala, em Angola. Assim fiz no vale do Limpopo, em Moçambique. Até grandes barragens eu mandei construir, a de Cambambe em Angola e a de Cabora-Bassa em Moçambique. Porém, selvagens ignorantes, que se diziam donos da terra, passaram a hostilizar as famílias portuguesas. Muitas, talvez a maior parte, acabaram por desertar para as cidades. Assim desandam as colónias... A Guiné, hoje, é mais uma colónia da CUF do que uma colónia de Portugal. O mal é estar eu aqui tão longe. Viajar não me apetece, de Lisboa a Santa Comba já me cansa, quanto mais a Bissau, Luanda ou Lourenço Marques... Tivesse eu o dom da ubiquidade e tudo seria diferente.

Tenho sonhado muito com a Christine Garnier, não sei porquê. Ou talvez saiba, é esta minha ânsia de interregno, a minha loira e decidida francesinha, jornalista que em 1951 veio para me entrevistar e acabou por me aquecer a cama e a alma... Para fugirmos à mal-encarada vigilância da Maria, até fomos para Santa Comba passar férias. Também porque a minha governanta, muito sovina, só lhe dava carapaus grelhados, umas vezes com batatas, outras com arroz de grelos...

Estou cansado, saudades tenho do antigamente. Estou preso às ideias do passado, sinto vontade de me ir embora, não me dou com a nova mentalidade, isto é só para safados.

No horizonte não vejo mais o barquinho. Terá sido engolido pelas ondas?


DELGADO

Manifestação no Porto, 1958, aquando da campanha de Delgado à Presidência da República.

Américo Tomás após a tomada de posse como Presidente da República.

Humberto Delgado com Álvaro Cunhal em Praga durante a 2ª Conferência da Frente Patriótica de Libertação Nacional, em Maio de 1963, onde Delgado seria eleito Presidente da FPLN.

Volto a sentar-me e a cadeira quase se desmonta. Vou mandar arranjá-la. Não substituí-la, que eu nada desperdiço, tudo aproveito.

Os ingleses, finalmente, parecem apoiar o meu regime, embora aconselhem que o liberalize. Em 1957 mandam a rainha Isabel II a visitar-nos. Ela trata com excessiva deferência o Craveiro Lopes. Bem entendo os ingleses, papas e bolos para enganar os tolos... Mas não, já disse que não, o Craveiro não! Recuso a infinita gama de cinzentos, essa é armadilha do Diabo. Para mim é branco ou preto, o Bem ou o Mal. O meu candidato é o Almirante Américo Tomás, dócil e bronco, não quero viver em sobressaltos.

Tocado pelos americanos, Humberto Delgado passa a ser o candidato da Oposição. É o próprio General Coca Cola, mas até os comunistas acabam por apoiá-lo. É desassombrado, é o mais novo general das Forças Armadas portuguesas, coragem física e irreverência não lhe faltam. Declara que, se for eleito, obviamente me demite. Tem até o desplante de frisar o obviamente. Apesar da PIDE, das cargas da GNR e da PSP, em nome da Liberdade arrasta multidões atrás de si. Já lhe chamam o General Sem Medo. Desde o Porto até Lisboa, desde o Alentejo até ao Minho. E os arruaceiros parecem não ter medo das forças da ordem, respondem à pedrada, subversão.

É sismo, é terramoto, rompeu-se um dique e a Nação pode vir a ficar submersa.

Cerro fileiras para salvar a Pátria. Santos Costa põe a tropa de prevenção e os "craveiristas" acovardam-se, não respingam. Na campanha eleitoral de 1949 um dos meus dissera "daqui não saímos, nem a tiros, nem a votos". Não o digo mas penso o mesmo. Quem controla os cadernos eleitorais e as mesas de voto ainda somos nós e em 1958 quem ganha as eleições para a Presidência da República é o Almirante Américo Tomás, obviamente. Não posso deixar de rir...

No rescaldo, um dignitário da Igreja, D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, atreve-se a contestar a minha autoridade. O Cerejeira desterra-o para Roma, mas já vai tarde, fez grandes estragos nas relações entre a Igreja e o Estado.

Deixo que amorteça a onda de choque e em 1959 demito o Delgado de todos as suas funções militares. Nas vésperas de ser preso corre a asilar-se na Embaixada do Brasil e depois segue para o exílio naquele país.

A Nação está devastada. Não sei se terei forças para reconstruí-la. Ainda faço uma alteração constitucional: a eleição para a Presidência da República não será mais por sufrágio directo, mas por sufrágio orgânico. Casa arrombada, trancas à porta...

Em 1960 um comunista louco desvia um avião da linha Casablanca - Lisboa e espalha panfletos subversivos sobre a capital. Também o Álvaro Cunhal e outros cães raivosos conseguem fugir do Forte de Peniche, tudo me falha.

Não gosto da minha vida. Em vez de governar, gostaria de estar em Santa Comba, entre os campos e as vinhas. Mas não encontro quem possa substituir-me.


1961: O PIOR ANO DA MINHA VIDA

O assalto ao "Santa Maria" e a passagem deste para "Santa Libertade".

Tropas portuguesas na Guerra Colonial.

A 22 de Janeiro, na América Central, o Henrique Galvão assalta o paquete Sta. Maria (Santa Liberdade, berram eles...). É pirataria das antigas, mas as outras Nações assim não o entendem. O Brasil dá asilo político aos piratas.

A 4 de Fevereiro um bando de selvagens assalta as prisões de Luanda, querem libertar os presos políticos. Espicaçados, a reacção dos portugueses é heróica: de muceque em muceque, partem à caça dos terroristas.

11 de Março... O General Botelho Moniz é um militar "craveirista", eu bem sabia disso. Mas quis neutralizá-los, convidei-o para meu Ministro da Guerra e muito me custou pôr de lado o Santos Costa. Enganei-me, isto já não funciona como dantes. A 11 de Março o Américo Tomás telefona-me a avisar que o Botelho Moniz e outros generais têm um golpe armado para me apear. Neste preciso momento os golpistas estão a assistir a um jogo de futebol entre as selecções militares de Portugal e Marrocos. Rapidamente vou de quartel em quartel, altero os comandos, esvazio o golpe. Depois do jogo, o Botelho Moniz ainda vem ao meu gabinete tentar uma solução pacífica, que eu trate de acabar com a Censura e outras parvoíces... Ele a falar e eu a lembrar-me de um outro Botelho Moniz fundador da Legião Portuguesa e comandante dos nossos Viriatos na guerra de Espanha. Este aqui degenerou, não saiu aos seus... Corto rente:

- Senhor General, está demitido, queira retirar-se!

Em Angola dão-me uma facada pelas costas. E agora, na minha própria casa, outra facada me queriam dar?

A 13 de Março vou à Emissora Nacional e proclamo, espicaço:

- Para Angola e em força!

Mobilização, flores, fanfarras, a Pátria não se discute!

Mas a 15 de Março a quadrilha do Holden Roberto começa a chacina no norte de Angola. Ele, que nem português sabe falar, é traidor de segunda financiado pelos americanos.

A PIDE avisa-me que outros, dos que estudaram na Metrópole, como o médico Agostinho Neto e o engenheiro agrónomo Amílcar Cabral, também andam lá por fora a organizar movimentos terroristas de outro cariz. Fiz mal em ter aberto em Lisboa a Casa dos Estudantes do Império. Apesar de assimilados, e até licenciados, portugueses de segunda, de segunda serão sempre.

A 21 de Abril há uma resolução da ONU a condenar a política africana de Portugal. Ninguém entende a nossa forma de estar no mundo, à qual um brasileiro chamou, e muito bem, de luso-tropicalismo. Não percebem que a nossa Nação é pluricontinental e plurirracial, é Una, vai do Minho a Timor e a Pátria não se discute.

A 19 de Dezembro tropas indianas invadem Goa, Damão e Diu. Eu tinha ordenado que resistíssemos até ao último homem. O nosso martírio (e eu só estava à espera dele...) levaria ao ridículo internacional o incensado pacifismo de Nehru. Mas Vassalo e Silva, o comandante da nossa tropa, acovardou-se, rendeu-se, traiu-me. Fico muito abalado com a traição.

Na noite de 31 de Dezembro para 1 de Janeiro há uma tentativa de sublevação no quartel de Beja, e nela está envolvido o próprio Humberto Delgado. A PIDE está a par das movimentações. Abafa a revolta mas o susto é grande.

Este foi o pior ano da minha vida.


ORGULHOSAMENTE SÓ

Cartaz alusivo às comemorações do Dia do Estudante de 1962, 1963 e 1964.

Salazar

Torno a levantar-me. Não vejo o barquinho, não sei o que é feito dele.

Ingleses, franceses e belgas abandonaram a África e agora exigem que façamos como eles fizeram? Estão enganados, somos diferentes, não viramos costas à Pátria que dilatámos, soprados somos pelos ventos da História. Não querem ouvir-me e fico só, orgulhosamente só.

Porventura em Portugal estarei mais só. Mas não me entrego, já disse que sou osso duro de roer. Hei-de vedar as brechas da União Nacional, ela tornará a ser o que foi no início, aglutinação de todas as direitas, a Direita, a única. Faço como sempre fiz, alivio o secundário, atarraxo o principal. Em 1958 dei aumento aos funcionários públicos mas, ao mesmo tempo, promovi a caça aos comunistas, o escultor Dias Coelho foi abatido na rua como um cão raivoso e a PIDE destroçou quase que por completo o aparelho clandestino dos lesa-Pátria. Em 1959 consenti que Portugal aderisse à EFTA, lancei o Plano de Fomento, abri linhas de crédito para as indústrias mas, ao mesmo tempo, dei caça ao Delgado e aos delgadistas.

No meu tempo era a Direita que fascinava os estudantes universitários. Hoje parece que é a Esquerda, consequências da famigerada instrução que alastrou sem rei nem roque... Para esse perigo alertei os doutores que me cercam. Não me quiseram ouvir e aí está o resultado: em 1962 rebenta a crise académica de Lisboa. A um grupo de estudantes católicos chego mesmo a dizer:

- Não estraguem as vossas vidas, não se metam em políticas, façam como eu, a minha política é o trabalho!

Ouço que abafam risos. Só há um remédio, safanão a tempo, estudantes para o calabouço!

Mais preocupado me deixa o Ultramar. Em 1963 os terroristas do Amílcar Cabral, traidor de segunda financiado pelos russos, abrem uma segunda frente na Guiné. Espicaço, vamos também em força para a Guiné! Para aliviar a pressão em Angola apoio a secessão catanguesa do ex-Congo Belga e o comunista Lumumba é justiçado. Mas em 1964 os terroristas do Eduardo Mondlane, outro traidor de segunda também financiado pelos russos, abrem uma terceira frente em Moçambique. Espicaço, vamos também em força para Moçambique! A Grã-Bretanha, os Estados Unidos, a Rússia, a ONU, exigem referendos para a autodeterminação das nossas Províncias Ultramarinas. Estão iludidos, não vou à fala, não converso com terroristas. Orgulhosamente sós, a Pátria não se discute!

É-me já difícil manter o equilíbrio orçamental: três guerras no Ultramar e o consequente sorvedouro financeiro, também a expansão económica da Metrópole que já não consigo domar... Paliativos? As remessas dos emigrantes, o turismo (com a consequente infecção da nossa moral e costumes), também o investimento estrangeiro. Assim começa a ser ofuscada a nossa forma de estar no mundo... É preocupante, mas pior que tudo são as traições. Em 1964 o Papa visita a Índia e, no ano seguinte, visita as Nações Unidas que tanto me atanazam. Não lhe perdoo, nem sequer quando vem a Fátima a 13 de Maio de 1967.

As traições, as traições... Em 1965 há nova crise académica e Marcelo Caetano sai em defesa dos estudantes que levaram o merecido safanão. Logo ele, o meu ex-Ministro da Presidência... Tenho sonhado muito com o Rolão Preto, pesadelos.

Não cedo, não arredo! Para aliviar a pressão em Moçambique, juntamente com a África do Sul apoio a independência da Rodésia de Ian Smith. E ainda em 65 mando assaltar e encerrar a Sociedade (dita Portuguesa) de Escritores, que premiou o romance de um terrorista angolano! E em 67 mando assaltar e fechar a Cooperativa Pragma (dita de acção cultural), aí os comunistas até fingiam de católicos. Para mais me perturbar, sei que ali também arengava o filho de um dos meus fieis.

Ainda em 1967 bandidos comunistas assaltam a dependência do Banco de Portugal na Figueira da Foz e fogem com o dinheiro, que não é pouco. Mas o que é que andam a fazer a PIDE e a GNR e a PSP? Até essas forças já me falham?

Bandidos mais perigosos são os estudantes, veja-se o que fizeram com o General De Gaulle em Maio passado. Esta subversão moderna tem de ter um ponto final! Começo por deportar o Mário Soares para S. Tomé. Só porque era o advogado da família Delgado, queria meter o bedelho aonde não era chamado...

O Delgado, ai o Delgado... Uma das raras alegrias que eu tive nestes tempos conturbados, ocorreu em 1965. Em Argel conspiravam comunistas, delgadistas e outros "reviralhistas", queriam até aliciar a ingenuidade lusitana através das ondas curtas. Rosa Casaco, o meu fiel inspector da PIDE, de Argel conseguiu atrair o Delgado até perto de Olivença, emboscada. Estou a ver o general a chegar à fronteira a meio da noite, a morder o isco, a engasgar-se, a levar um tiro. E a apagar-se, obviamente. Dá-me vontade de rir e largo o corpo na cadeira.


REQUIEM

A 3 de Agosto de 1968 a cadeira prega-lhe realmente uma partida: queda, a cabeça a bater no chão, hematoma cerebral, bloco operatório, diminuição das faculdades mentais. Depois de muito hesitar, Américo Tomás acaba por nomear Marcelo Caetano para a Presidência do Conselho de Ministros. Alguns destes, junto de Salazar, fingem que é ele ainda o Presidente do Conselho; ou ele finge acreditar na encenação e, a fingir, lá vai dando despacho aos assuntos correntes. Morre a 27 de Julho de 1970. 81 anos de idade, 42 de poder ininterrupto.

As suas pegadas marcaram Portugal. O tempo passa e elas ficam, dinossauros passearam por aqui.

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