A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht
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terça-feira, julho 30, 2013

Portugal não é a Grécia. Nem o Egipto. Nem a Tunísia. Nem o Brasil. Nem a Turquia.




O governo de Passos Coelho e Portas – e Cavaco -, é provavelmente o governo que enfrentou mais contestação pública desde a constituição da Assembleia da República. Greves gerais, greves sectoriais, manifestações sindicais, manifestações de outros movimentos sociais, manifestações de partidos, concentrações, acções, protestos em plena A.R., esperas públicas, invasão de palestras, tem sido este o variado menu de protesto e de proposta de alternativas de Esquerda. Precisamos de o manter e de o alargar, quer na quantidade quer na qualidade.
A coisa só se dá com união, ponderação e determinação. Têm sido muitos a pedir a união das “esquerdas” – coloquem o PS dentro ou fora disto, conforme vos apeteça ideologicamente – e têm sido muitos a trabalhar para essa desunião, muitas das vezes têm sido os mesmos a fazer as duas coisas em paralelo. A bandeira da unidade é frágil, tem um pano enorme e um pau muito pesado, não se ergue com palavras, segura-se com actos.
A crítica costuma rondar sempre a mesma questão: a CGTP e os partidos da esquerda parlamentar não mantêm as pessoas na rua.
 A CGTP e a esquerda parlamentar têm os seus percursos, as suas ideias, as suas formas de fazer e os seus caminhos. Durante anos – décadas no caso da CGTP e do PCP – deram luta ao fascismo, ao “soarismo”, ao “cavaquismo” e agora ao liberalismo económico. Estas lutas não lhes dão autoridade moral em relação aos mais novos e menos experientes, dão-lhes apenas História e maior organização. Em todos esses anos deram passos em frente e passos atrás, reinventaram-se, bem umas vezes e mal outras. Quem está com eles em muitas das suas reivindicações e ideais mas não concorda com os seus planos de acção só tem uma coisa a fazer: meter as mãos à obra e criar o seu espaço.
É preciso coerência e consequência. Disse a Rita Veloso que os críticos das acções da CGTP e da esquerda parlamentar, «curiosamente, nas suas críticas incluem portentos como “deviam era ter convocado assim, ou mobilizado assado”. Ou seja, censuram, censuram, mas continuam à espera de que os outros tomem a iniciativa. Será porque sozinhos a sua capacidade de mobilização é quase nula? Deveriam talvez interrogar-se sobre as razões pelas quais os outros têm a capacidade de mobilização que têm…» Disse e disse bem.
As pessoas deviam, provavelmente, estar todos os dias na rua como o fazem e fizeram no Egipto, na Tunísia, no Brasil e na Turquia. E porque não ir buscar o exemplo de Ghandi? Ou o exemplo de Simon Bolívar? Ou o exemplo do homem que iventou a roda e que, à sua maneira, revolucionou o Mundo? Mas Portugal é Portugal, com as suas qualidades e defeitos, e com a sua rua muito própria e sui generis.
Também estes países são inimitáveis, pela sua cultura, pelos diferentes problemas vividos pelas suas populações, pela influência da religião nos aspectos políticos, pelos tipos de regime e de organização políticia e social dos seus estados e a diversidade infindável de partidos políticos. Especificando as conquistas que naqueles países foram alcançadas com os protestos diários, e de forma resumidíssima, vemos que:
- no Egipto e na Tunísia caíram duas ditaduras. Neste momento, no Egipto, as ruas já fizeram caír o suposto governo da mudança, substituído por um governo marcadamente liberal e pró-imperialista, que tem chacinado os apoiantes de Morsi. Na Tunísia continuam a assassinar-se líderes da oposição;
- na Turquia conservou-se um parque, mas Erdogan continua no poder e sem sinais de o abandonar;
- no Brasil, e porque no poder está um governo teoricamente mais inclinado à Esquerda e que tem como obrigação mínima ouvir as pessoas, o aumento dos transportes foi parado e algumas medidas exigidas pelas ruas podem vir a ser aplicadas. No entanto continuamos em stand-by, à espera de ver Dilma cumprir o pouco que prometeu.
Tivemos revoluções não concretizadas ou que tardam em concretizar-se, tivemos a manutenção de poderes altamente e violentamente criticados e temos um povo posto na expectativa e com uma rua constante mas cada vez menos ruidosa. Parecem-me pequenas conquistas para tão grandes e contínuos protestos, principalmente quando em nenhum deles se atingiu o mais importante: a melhoria inquestionável das condições de vida das suas populações e a implementação de regimes solidamente democráticos.
Se olharmos para Portugal e para a proporcionalidade das massas nos protestos podemos ficar contentes, porque, apesar de não em continuidade, num só dia, 2 de Março de 2013, mais de 20% da população nas ruas, façam as contas e comparem com os outros. Dezenas de outras manifestações tiveram das maiores participações das últimas décadas.
Se olharmos para a proporcionalidade do resultados obtidos, vemos que eles não são muito diferentes dos alcançados nos outros quatro países. Também a nossa rua teve conquistas, umas maiores que outras, mas não atingiu o objectivo mais importante: a melhoria inquestionável das condições de vida das suas populações e a implementação de um regime solidamente democrático.
Para juntar a esta equação temos o nosso país vizinho, a Espanha. Por nos ser mais próximo geográfica e politicamente, a comparação é mais simples. Uma enorme e longa acampada e as gigantescas manifestações semanais que se lhe seguiram tiveram um efeito: colocar no poder um governo ainda mais autoritário que o anterior. Neste momento, esse mesmo governo, demonstra ser um poço de corrupção que as ruas não estão a conseguir guilhotinar e que é surdo a todas as suas reivindicações.
Parece-me provado que não é a constância ou a inconstância da rua que faz ou não a Revolução, é a força que está por detrás dela, a força da sua união em prol de um objectivo comum e concreto, ou, em alternativa, a força das armas que a querem concretizar. Se viajarmos entre Faro e Bragança, percebemos que a “união nacional”, a nossa, a que quer a Revolução está longe de existir. Em muitos pontos do país há até quem suspire pela “união nacional”, mas a outra, a que quer o regresso ao passado.
O governo continua “alive and kicking”. No parlamento, hoje mesmo, conseguiram ver aprovadas uma série de medidas que pioram drasticamente os direitos laborais dos funcionários públicos e das suas famílias. Continua a ser preciso parar este governo. A única hipótese é dar-lhe luta, enfrentá-lo olhos nos olhos e onde lhe dói mais: na rua, no parlamento, nos locais de trabalho, ou seja, em todo o lado. E a CGTP, hoje, esteve à porta da A.R.
E foram a CGTP e também o Que Se Lixe a Troika os dois grupos que mais chamaram a rua e que a tentaram trazer para o nosso lado, cada um com a sua forma de actuar. A rua possível respondeu sempre e esteve e está com eles. Dê um passo convicto à frente quem acha que a estocada final na besta se dá de outra maneira. Convoquem a rua, tirem a limpo se ela está convosco.
André Albuquerque (roubado aqui)

Serena o ser

crónicas de ser e não ser num sereno ser

http://serenaoser.blogs.sapo.pt/112865.html

segunda-feira, março 25, 2013

Raquel Varela - 25 de Abril: Revolução ou Transição?

 

25 de Abril: Revolução ou Transição?

Por ocasião do bicentenário da revolução francesa uma polémica marcou a historiografia mundial. No debate destacou-se François Furet que na obra Pensando a Revolução Francesa[1], caracterizava a revolução de 1789 como um «acidente histórico» e procurava separar o processo iniciado em 1789 das revoluções posteriores, sobretudo da russa de 1917. Do outro lado da controvérsia, Eric Hobsbawm publicou uma série de ensaios, reunidos na obra Ecos da Marselhesa[2], onde defendia que a posição de François Furet e de outros historiadores com esta visão resultava de pressões ideológicas (no sentido de falsa consciência) revisionistas e não de uma investigação renovada da revolução francesa: «(…) O revisionismo na história da Revolução Francesa é, simplesmente, um aspecto de um revisionismo muito maior sobre o processo do desenvolvimento ocidental – e mais tarde global – na era do capitalismo e em seu interior (…)»[3].
Uma polémica semelhante deu-se em Portugal quase 15 anos depois, também a propósito de um aniversário, o trigésimo da revolução portuguesa, em Abril de 2004. Embora já houvesse uma discussão em torno da caracterização da mudança de regime – Medeiros Ferreira, por exemplo, discute a questão no texto «25 de Abril, uma revolução?»[4] –, é a partir de 2004 que a questão se avoluma. No seguimento da escolha do cartaz oficial comemorativo para a celebração ter a inscrição «Abril é Evolução», uma polémica chegou às páginas dos jornais sobre o que tinha sido a revolução portuguesa. O debate rapidamente se centrou na questão sobre que deveria ser salientado em Portugal depois do fim da ditadura: a revolução ou a evolução do País no período pós-revolucionário.

António Costa Pinto, na altura comissário para as comemorações dos 30 anos do 25 de Abril, escreveu no calor da polémica que: «No panorama habitualmente morno das comemorações de datas históricas, algumas dimensões das celebrações dos 30 anos do 25 de Abril provocaram pelo menos um esboço de debate. O trogloditismo saudosista, com a excepção dos escassos defensores de uma história ao serviço da ‘revolução hoje e sempre’, teve escassa visibilidade. (…) Comemorar os 30 anos de evolução para a democracia e o desenvolvimento que se seguiu à Revolução de 1974 não agradou a uma parte da esquerda, o que é natural. Ver o centro-direita de cravos a comemorar o 25 de Abril foi-lhe desagradável»[5]. O historiador Fernando Rosas criticou o envolvimento de António Costa Pinto naquilo que considerou ser uma «pseudocientificidade»: «Abril não foi evolução porque as direitas portuguesas foram historicamente incapazes de realizar um processo de transição, isto é, de levar a cabo, a partir do próprio regime, um processo endógeno e sustentado de reformas»[6]. Outros cientistas sociais, como António Borges Coelho, Manuel Villaverde Cabral e Luís Salgado de Matos, envolveram-se no debate[7].
Hoje, o termo revolução convive, na academia, para designar exactamente o mesmo período, com termos como «transição», «processo de democratização» ou ainda «normalização democrática», «transição por ruptura». Cientistas sociais e historiadores de inspiração marxista que estudaram a revolução portuguesa, como Loren Goldner, Valério Arcary ou John Hammond, não questionam o termo revolução e contra-revolução, embora controvertam se se tratou de uma situação revolucionária ou pré-revolucionária e qual o grau de radicalização da mesma[8]. Mas mesmo fora do campo do marxismo muitas obras mantiveram o uso do conceito de revolução e contra-revolução, como é o caso dos estudos de Boaventura Sousa Santos e Medeiros Ferreira[9]; e/ou distinguiram claramente o período da revolução (1974-75) do período de transição para a democracia, que se inicia em 1976, como nas obras de João Medina e Fernando Rosas[10]. Outros autores, porém, usam indiferentemente os dois conceitos. Josep Sanchez Cervelló em «O Processo democrático português 1974-75»[11], Maria Inácia Rezola em Os Militares na Revolução de Abril. O Conselho da Revolução e a Transição para a Democracia em Portugal (1974-76)[12] e Tiago Moreira de Sá em Carlucci vs. Kissinger[13] usam indistintamente, para falar do mesmo período, o termo revolução e transição. É na área da ciência política que se destacam os trabalhos que tendem a usar exclusivamente o conceito de «transição» para a mudança de regime ocorrida em Portugal, tendo como influências determinantes as obras de Philippe Schmitter[14] e António Costa Pinto[15].
Na verdade, dificilmente se pode afirmar que em todos os casos os termos são usados tendo por base uma discussão teórica prévia e uma opção científica teórico-metodológica, desde logo porque o debate teórico entre a historiografia portuguesa é amiúde desprezado. Mas a indefinição terminológica tem consequências epistemológicas. A polémica é incontornável porque revela, mais do que um conceito, uma visão histórica sobre o que é uma revolução, os seus sujeitos, as suas consequências, os seus derrotados e vencedores.
Em primeiro lugar, o conceito de revolução tem um significado histórico que podemos e devemos debater, mas que de forma alguma se confunde com uma visão teleológica que associa uma mudança de regime revolucionária à consolidação de um regime democrático liberal. O período após a década de 70 do século XX viu surgir no Mundo uma vaga de novos regimes de democracia representativa que inspiraram um paradigma na ciência política, de tradição fortemente ligada ao pensamento liberal, como argumenta Ronald Chilcote[16], que é simultaneamente teleológico – as sociedades caminhariam inevitavelmente para um tipo de regime, a democracia liberal – e ideológico – na medida em que todas essas análises, como assinala Matheus Silva, ou propõem «o aprofundamento do modelo neoliberal como forma de solucionar os problemas da democracia contemporânea» ou procuram a «melhoria da democracia dentro do âmbito da democracia liberal actualmente existentes»[17].
Esta análise tem sido alvo de críticas mesmo em Espanha, o modelo deste paradigma, onde a mudança de regime se deu por negociação entre a classe dominante e as direcções das organizações operárias e de trabalhadores (PCE, PSOE, CCOO). Encarnación Lemus por exemplo, lembra que a democracia não era o desenlace obrigatório da luta política e social que ocorreu em Espanha em 1975: «Por um lado, em 1975, o socialismo como princípio ideológico e como sistema social não estava desautorizado; a via socialista estava a ser tentada em Portugal; por outro lado, ainda existia o Governo republicano no exílio, que reclamava a legalidade, e os partidos da oposição, tanto os socialistas como o PCE, eram republicanos»[18]. Carlos Taibo escreve que «boa parte da literatura sobre transições «não se limita a analisar as transições, mas agrega a estas um destino final desejado: a democracia»[19]. Com um efeito a jusante, que é o próprio estudo das democratizações estar inquinado por visões que desprezam as variáveis sociais, como lembra o cientista político Gabriel Vitullo: «A necessidade de resgatar e dar maior atenção às variáveis estritamente políticas – antes não tidas em conta – não pode autorizar que a democratização seja vista apenas como o resultado de uma eleição ou opção estratégica das elites dirigentes, omitindo o restante da sociedade, os sectores populares e a própria história, como fica manifesto na colectânea de Higley e Gunther (1992)[20], cujo objectivo primordial parece ser o de adoptar o compromisso das elites como pré-condição fundamental para a consolidação da democracia. Como criteriosamente argumenta Bunce (2000, p. 635)[21], ficar nesse único plano de análise implica dizer que são as elites e não a sociedade, a política e não a economia, os processos internos e não as influências internacionais, os que constituem os factores cruciais da democratização e que, portanto, agregaríamos, a democracia pode ser confeccionada ou desmontada de acordo com as opções ou decisões tomadas por um reduzido grupo de lideranças políticas»[22].
A democracia, nos termos em que se consolidou em Portugal, foi o resultado da luta de classes, da revolução e da contra-revolução, mas não foi o seu resultado inevitável, o que pode legitimamente ser deduzido dos estudos que analisam as transições para a democracia na Europa do Sul. Poder-se-á ponderar, no caso português, os factores que pendiam a favor da consolidação de Portugal como uma democracia liberal – geograficamente inserido na Europa Ocidental e portanto, no quadro da divisão de Ialta e Potsdam, na esfera de influência da NATO; peso das classes médias portuguesas; qualidade da direcção da contra-revolução, que repousou em grandes dirigentes políticos como Mário Soares, etc. – e também os factores que faziam perigar essa hipótese – a existência de uma revolução; a profunda crise económica e militar do País; o prestígio, ainda nesta altura, das sociedades onde a burguesia tinha sido expropriada e que representavam 2/3 da humanidade; a existência de países onde a contrario dos factores internacionais, a expropriação se deu, como Cuba; a «onda revolucionária» aberta com o Maio de 68 em França[23]. A ponderação de uns e outros factores – só citámos alguns – é parte do trabalho de historiador. Mas não autoriza argumentos contra-factuais. A democracia não era, não se pode afirmar que era, inevitável.
Mas um outro argumento desconceitua o termo «transição para a democracia» para designar o período revolucionário. A revolução é um período distinto do regime democrático que se seguiu à contra-revolução e portanto não é correcto inserir processos distintos numa única noção de «transição para a democracia». Houve de facto duas rupturas em Portugal entre 1974 e 1976: passou-se do regime fascista para um período revolucionário (que aliás se pode dividir em dois subtipos, um essencialmente democrático até 11 de Março de 1975 e outro de disputa objectivamente socialista a partir dessa data) e desse para outro democrático liberal, que se começa a formar a partir de Novembro de 1975. O novo nasce do velho. Mas é necessário recordar que a revolução portuguesa não foi o «acidente» que deu origem à democracia. Foi uma situação distinta do regime democrático liberal que se lhe seguiu – e cuja matriz genética é a própria revolução[24] – mas que assenta em dois pressupostos radicalmente distintos do período revolucionário: a democracia representativa e o respeito pela propriedade privada dos meios de produção.
O termo «transição por ruptura» também não elimina esta omissão, uma vez que houve duas rupturas muito bem delimitadas cronologicamente, em termos de direcção política, e em termos da organização das forças armadas em Portugal: o golpe militar de 25 de Abril de 1974, que iniciou a revolução, e o golpe militar de 25 de Novembro, que iniciou a contra-revolução e o regime democrático-liberal. A única fronteira que não é clara na mudança ocorrida em 25 de Novembro é precisamente no campo das lutas sociais (as ocupações de terras, por exemplo, prosseguiram para lá de Novembro de 1975). Uma vez que a contra-revolução também é ela própria um processo (que começa num golpe militar, mas a ele não se resume) e vai-se dar num curto e médio prazo (os bancos serão desnacionalizados uma década depois). Mas do ponto de vista de regime a mudança foi clara, com o fim da “indisciplina” nos quartéis logo a partir de 25 de Novembro 1975 e a realização de eleições legislativas em Abril de 1976.
Um outro argumento ainda lembra que o próprio conceito de revolução tem uma história. Carlos Taibo lembra, a propósito das mudanças de regime da Europa de Leste (1989), que os conceitos de revolução e de transição dificilmente são compatíveis[25]. Norberto Bobbio assinala que a terminologia revolução tem uma história e significação própria, que o cientista político italiano opõe a reforma e não a transição[26]. O conceito de revolução, inclusive, é para este politólogo menos controverso que a extensão da radicalidade da mudança numa revolução: «Afirmemos desde já que a dificuldade para emitir um juízo sobre a radicalidade da mudança é bem maior do que a dificuldade para definir o evento revolucionário em relação à natureza do movimento»[27] (Bobbio, 2000: 606).
O termo transição é, finalmente, desajustado porque a ele está associado um “como” – negociação entre “elites”, ou seja, acordo entre dirigentes das classes em conflito –, mas não está explicado “porquê”, o que em última análise faz repousar sobre a vontade individual dos dirigentes a razão de tal negociação.
Em resumo, verifica-se entre um sector da investigação histórica e política uma tendência para considerar a revolução portuguesa como uma doença que surge num momento em que já se estava a dar uma transição no País no sentido da democratização, ou seja, tende a dominar uma visão de que a revolução interrompeu, como que despropositadamente, uma transição/modernização que já estaria em curso e que permitiria assegurar a mudança e simultaneamente a estabilidade do Estado. O uso do conceito de “transição” não é, neste caso, uma escolha inconsciente, porque o próprio conceito ergue uma visão historiográfica, acarretando consigo uma visão teleológica das sociedades: o regime democrático como fim da história. É aliás esta mundivisão ideológica que justifica que algumas obras sobre a revolução portuguesa, que não se ancoram nas teorias da transitologia e têm por base um levantamento histórico rigoroso, não se tenham inibido de classificar a revolução como uma patologia, como é o caso da obra Portugal em Transe, de José Medeiros Ferreira[28] ou Os Dias Loucos do PREC, dos jornalistas José Pedro Castanheira e Adelino Gomes[29].
Parece-nos que este debate é assim incontornável e o seu aprofundamento, para o qual damos aqui apenas um contributo, é proveitoso e desejável. Porém, erguer uma historiografia competente, rigorosa e capaz de resistir às pressões do poder político implica muito mais do que o debate da terminologia. Implicará porventura, entre outros caminhos, a rejeição das teorias filosóficas pós-modernas que desvalorizam o labor da própria história em detrimento de disciplinas mais especulativas; e exigirá um retorno inovado à história social e à centralidade dos conflitos sociais para explicar o processo histórico. No caso do estudo da revolução portuguesa, este esforço levar-nos-á à centralidade das revoluções anticoloniais contra o império português e ao levantamento amplo dos conflitos operários e populares durante a revolução.
Raquel Varela é autora de História do PCP na Revolução dos Cravos (Bertrand, 2011) e Revolução ou Transição?. História e Memória da Revolução dos Cravos (Bertrand, 2012).
Artigo 8 – Este artigo faz parte de uma  série: 25 Artigos para 25 Dias, 2013. Publicado também em http://raquelcardeiravarela.wordpress.com/

terça-feira, fevereiro 26, 2013

José Ferreira - sair ou não sair do euro ?

Fala Ferreira

Assim me saúdam os amigos de Guatemala.

  • Crítica do Passa a Palavra

    A relação que tenho com as tomadas de posição do blog Passa a Palavra é, em certo sentido, semelhante às que tenho com o PCP. O seu ponto de partida é correto; mas o seu ponto de chegada é equivocado. Li e comentei o extenso texto do João Valente de Aguiar (JVA). Mas o argumento repete-se aqui e aqui. Mas é o primeiro destes últimos que me esclarece a essência da posição do grupo. Eles insistem que a saída mais provável de uma crise económica é o fascismo. E, portanto, que a ideia de “patriotismo de esquerda” – empregue, de fato, por Stálin para travar a sangria de militantes do PC Espanhol em direção à direita nacionalista – é um discurso de direita que estende um tapete vermelho ao fascismo. Por outra palavras, ao dizer-se patriótica, a esquerda coloca no debate político uma questão cara ao fascismo: a identidade nacional; em suma, faz o jogo do inimigo
  • .
    Consequentemente, eles rejeitam a palavra de ordem de saída do euro. Não queria tocar na questão dos custo económicos e sociais. O JVA limita-se a concordar com o Francisco Louçã contra o Octávio Teixeira. Mas posso resumir a minha opinião em duas linhas. Octávio Teixeira  faz contas supondo que sairíamos do euro sem tumulto social; Louçã assume que o tumulto social será tão grande que não há como fazer contas. Mas, ao mesmo tempo, Louçã assume que esse tumulto social manteria inócuo o poder a burguesia sobre a sociedade: desse modo, os custos incalculáveis da saída do euro seriam pagos pelos trabalhadores. Octávio Teixeira supõe a boa vontade da burguesia; Louçã supõe que a esquerda seria capaz de impor uma, mas só uma – a saída do euro – decisão à burguesia. Como se vê, o debate está mal enquadrado. Basta colocar a questão de quem é o sujeito da saída do euro para ver que é a burguesia! E que, portanto, a esquerda está a debater do ponto de vista da burguesia.

  • O segundo argumento do Passa a Palavra não se resolve assim. Defender a saída do euro é abrir a porta ao nacionalismo fascista – diz o Passa a Palavra. Aqui o sujeito é a esquerda. Mas terão razão? Aqui divergimos. Sem dúvida, o fascismo da primeira metade do século XX foi nacionalista. Mas será o fascismo do séc. XIX uma cópia do anterior? Será necessariamente chauvinista?

  • Todo o meu investimento no estudo da hipótese de uma solução fascista para a crise, me leva a crer que ela não é necessariamente nacionalista. O fascismo, pelo menos do modo como eu o entendo, é fruto, de um lado, da ideologia das massas desorganizadas e, do outro, do oportunismo da burguesia monopolista em servir-se dessa ideologia. De de ideologia se trata? Ora, as massas desorganizadas – compostas com elementos de todas as classes dominadas, de pequeno-burgueses a trabalhadores – encontram-se numa situação de dupla vulnerabilidade. Incerteza quanto ao seu futuro socioeconómico e incapacidade de organizarem-se e criar um projeto político próprio. No plano subjetivo, terminam 1) rejeitando as formas de luta tipicamente operárias, greves e manifestações, uma vez que elas só obrigam a burguesia a ceder porque criam mais incerteza. Ora, com a incerteza já sofrem as massas. Portanto, as massas são tipicamente de direita. (No 18 de brumário, Marx usa esta oposição entre classe com projeto político e massa sem projeto político, portanto, alienada). 2) Consequentemente, a única esperança para a situação em que se encontram está no surgimento de uma solução sebastiânica – ou, no caso português, salazarista. Facilmente, a burguesia monopolista lhe dará um D. Sebastião como deu Mussolini e Hitler no século passado. As massas investirão contra os sindicato, destruindo o movimento operário e abrirão caminha à reconstrução violenta do capitalismo.

  • O que havia de nacionalismo na solução fascista da década de 1930 era o “sebastianismo”. Foi o Estado nacional que surgiu como salvador na situação trágica da crise de 1929. Mas não está garantido que seja o Estado nacional que venha a ser apontado como salvador da atual crise. Pode até ser a Comissão Europeia e – a surgir e vento em poupa – o Banco Europeu de Investimento. Nesse caso, o argumento do Passa a Palavra volta-se contra ele e defender o euro pode ser, no fim de contas, o tapete vermelho para uma solução fascista. Além do mais, não vale a pena argumentar que o nacionalismo é melhor enraizado que o europeísmo. Na década de 1930, o nacionalismo estava pouco melhor enraizado que o europeísmo de hoje. (Lembremos que a unificação da Itália e a unificação da Alemanha terminaram ambas em 1870. E que na passagem do séc. XIX para o XX se contava uma anedota segundo a qual o El Rei de Portugal havia perguntado a uma embarcação de pescas “- Sois portugueses? A resposta foi “- Não Majestade. Somos da Póvoa de Varzim!”).

  • Isto não impede que eu reconheça que o “patriotismo de esquerda”, incompatível com o “internacionalismo proletário” , tolde a visão da esquerda atual. Em primeiro lugar, porque a pátria anula as classes. Ao discutir o que o país deve ou não deve fazer está-se, na verdade, a debater o que a burguesia deve ou não deve fazer. Em outras palavras, a esquerda está a assumir o ponto de vista burguês. Mas também é verdade que o Passa a Palavra ao fazer a crítica do “patriotismo de esquerda” deixa de lado a crítica do imperialismo alemão e europeu! Creio que a saída, como propôs Floristã Fernandes para o caso brasileiro, é que a luta contra o imperialismo não é uma luta contra a burguesia estrangeira (no nosso caso, alemã). Mas, antes de mais, uma luta contra a burguesia  nacional a quem o imperialismo serve (a banca)! Pois, sem apoio interno, nenhum imperialismo é possível.

    Nacionalismo e anticapitalismo

    Li, finalmente, o texto do do João Valente Aguiar sobre o discurso nacionalista da esquerda (ver parte 1, 2, 3 e 4). Vale a pena ler também a tomada de posição prévia do João no 5dias, e um debate entre ele e o Miguel Serras Pereira (mote e resposta) no Vias de Facto.
     
    1. O João acusa os partidos de esquerda de subsumirem o discurso de classe ao discurso patriótico.  Por exemplo, quando se protesta contra o FMI, se faz em nome da soberania nacional antes de fazer-se contra o aumento da exploração do trabalho. Crítica-se o imperialismo alemão sem que “imperialismo” seja pensado pelo seu teor económico (exportação de capital e retirada de mais-valia), senão pelo seu teor político (conquista de território). As comparações entre Merkel e Hilter demonstram este erro – Hitler nunca foi imperialista no sentido que Lénin entendia o imperialismo.
     
    O discurso patriótico condena a esquerda a dois erros:
    a) O discurso propriamente marxista, isto é, assente na oposição entre trabalhadores e burgueses, aparece inevitavelmente subordinada ao discurso nacionalista. (Além de, implicitamente, recusar património genético do marxismo – o internacionalismo proletário). Consequentemente, não apenas se indica o caminho errado aos trabalhadores, como esse caminho arrisca-se ainda a ser o do fascismo.
    b) Se a burguesia abandona hoje os Estados nacionais – depreende-se das ideias do João – é porque a economia é já europeia. A infraestrutura ultrapassou a super-estrutura. Portanto, a burguesia desmantela os Estados nacionais porque nenhuma solução nacional pode ser encontrada para a crise. Isto implica que, mesmo para o proletariado, não há soluções nacionais. O patriotismo é a defesa de uma super-estrutura inadequada para lidar esta crise estrutural.
     
    2. Estou totalmente de acordo com o primeiro argumento. Aliás, se a minha análise é correta, o argumento do João não é apenas uma teimosia. (Ainda que fosse uma teimosia, sabemos, pela crítica de Marx a Lassale, que são essas teimosias intelectuais que distinguem o socialismo científico do socialismo utópico). Como tenho argumentado, as classes trabalhadores têm-se dividido entre a luta contra o capitalismo e a luta conta a corrupção, entre a luta contra o sistema e a luta contra as opções por dentro do sistema. De fracasso em fracasso, a primeira levar-nos-á à tomada de consciência (assim esperavam Marx e Engels quando escreveram o Manifesto Comunista). De fracasso em fracasso, a segunda luta levar-nos-á certamente ao fascismo. É por isso que os partidos de esquerda não podem nem sequer flertar (piscar o olho, como dizia o Carvalhas) outro discurso que não o discurso de classe. O discurso patriótico não é somente errado… é fascista.
     
    3. O segundo argumento, esse, é péssimo. O João tem pelo menos a intuição das suas contradições, quando se pergunta (na primeira nota de rodapé da parte 3) se a vanguarda proletária deve preocupar-se com questões tipicamente burguesas. A resposta é não na medida em que não se trata de dizer o que fazer (“na medida em que não se trata de salvar o capitalismo”). E sim na medida em que se trata “avaliar as tendências de desenvolvimento do capitalismo e as encruzilhadas reais e concretas em que a luta da classe trabalhadora pode prosseguir”. Mas, ao longo do texto, esquece tudo o que disse, e afirma: “Quem à esquerda tem defendido a saída do euro talvez devesse começar por confrontar as suas teses delirantes com os dados e as alternativas concretas em cima da mesa”.
     
    De facto, se discutir o fim ou não do euro (bem como a renegociação ou o repúdio da dívida pública) são questões burguesas, quais são as questões “operárias”? Em poucas palavras, pode dizer-se que as perguntas “operárias” são aquelas que se colocam à classe operária na sua posição de classe. Grosso modo, uma classe pode ser dominante ou estar dominada; e, sendo dominada, estar em refluxo ou acumulando forças. Estas três situações não são mais do que uma síntese de um número infinito de arranjos quando se considera não apenas a existência de mais de duas classes mas igualmente as suas frações. Portanto, a primeira pergunta que se coloca a todas as classes dominadas é ‘qual o arranjo de classes existente?’; ‘em que lugar se encontra a minha classe?’. Somente à classe dominante convém não partir destas questões. Perguntar ‘qual é a melhor opção para o país?’ implica, no melhor dos casos, ignorar a divisão de classes existente e, no pior dos casos, legitimar a hierarquia entre classes – ou, pelo menos, todas as coisas que sustentam essa hierarquia.
     
    Além de contraproducente, o debate tipicamente burguês não leva a lado nenhum. Como se reconhece, de imediato, o debate burguês? É fácil. Dada a questão ‘devemos sair do euro?’, coloca-se outra ‘nós quem?’. “Nós portugueses” – o que visivelmente, pegando no primeiro argumento do João, é uma maneira indireta de obliterar o critério de classe pelo critério da nacionalidade. Ao mesmo tempo, enquanto a resposta não for “nós vanguarda” ou, pelo menos, “nós trabalhadores”, a resposta dada ao ‘Devemos?’ nunca implica consequências práticas. Vemos que a questão ‘Devemos sair do euro?’ só se torna prática para a burguesia que, sendo classe dominante, dirige o Estado de acordo com essa resposta. Torna-se evidente que se trata de uma questão tipicamente burguesa e não proletária. Além do mais, a justeza da resposta dada só se determina na prática; e estamos longe de poder testar na prática a opinião do João acerca da saída do euro.
     
    (A este respeito vale acrescentar que os estudos sistematizados na parte 3 do artigo do João supõem que a desvalorização da moeda nos países que sairiam do euro seriam compensada por um aumento das taxas aduaneiras do comércio desse país para a zona euro. Assim, os ganhos de competitividade externa devido à desvalorização da moeda seriam anulados pela imposição de taxas de importação. Deste modo, os custos da saída do euro seria até 10 vezes maiores que o pagamento da dívida. Ora, este suposto tem muito que se lhe diga: a Islândia desvalorizou a moeda em relação ao euro em 40%. Nem por isso a zona euro aumentou os impostos sobre os seus produtos. Por outro lado, a saída da Grécia da zona euro poria em causa a credibilidade do euro assim como do novo dracma. As consequências disto poderiam ser insignificantes e ao fim de uns meses essa credibilidade podia estar reestabelecidas. Mas como os homens são difíceis de prever, elas poderiam ser enormes. E a Europa poderia entrar num  buraco sem fundo. Em suma: as consequências do fim do euro são imprevisíveis. Só arriscando poderemos verificá-las).
     
    4. É preciso lembrar que a classe operária saiu de uma situação de refluxo para uma situação de acumulo de forças para identificar as questões que realmente se colocam a essa classe. A primeira delas é ‘como vamos acelerar esse processo de acumulação de forças?’. O movimento avança a passo de tartaruga. Exige-se da vanguarda revolucionária o estudo da composição de classe da sociedade de modo a identificar estratégias do tipo bola de neve. Em poucas palavras, qual é a aliança entre classes mais pertinente nesta fase e como devem dirigir-se ao governo? A minha intuição é que a disputa acerca desta questão na primeira metade do séc. XX enrijeceu este debate. Assim hoje temos modelos prontos: seja a aliança operário-camponês leninista; seja a aliança operário-capas médias da era pós-stalinista da União soviética. A verdade é que a sociedade se complexificou muito após a II Guerra Mundial e, portanto, é provável que nenhuma destas soluções sirva. Colocar a questão não em termos de classe, mas em termos de frações de classe, pode ajudar a 1) romper com os modelos prontos e 2) apreender a complexidade da sociedade contemporânea.
     
    Isto não implica que os partidos de esquerda não devam ter uma posição sobre questões tipicamente burguesas nesta época de acumulação de forças. É cedo para romper de vez com as instituições capitalistas – por exemplo, a Assembleia da República – e, portanto, somos obrigados a ter soluções para gerir o capitalismo. Mas deixa-me preocupado ver a esquerda a gastar rios de tinta sobre se é preciso ou não sair do euro, se é preciso ou não pagar a dívida, etc., isto é, ver a esquerda mais ocupada com questões tipicamente burguesas do que com questões operárias. É o efeito, mas também a causa, do atraso na “tomada de consciência” da classe operária. Mais do que superar estes desacordos, é imprescindível que entremos em desacordo – que é uma maneira de ver as várias faces de uma questão – sobre as questões realmente de esquerda.
     
    5. A minha análise das questões que eu considero realmente de esquerda está aqui. A base em que esse resumo se apoia está aqui e aqui.
     
    http://falaferreira.wordpress.com/2012/08/19/nacionalismo-e-anticapitalismo/


    Crítica do Passa a Palavra (rev.)

    Alguém me disse, com razão, que um texto que escrevi há dias estava confuso. É a crítica de um texto do blog Passa a Palavra disponível aqui. Respondi, nos comentários, a essa crítica com um esclarecimento do meu argumento. Não obstante, porque acho que a crítica é acertada, publico aqui a resposta.

    Olá Ermelinda
    É verdade que está confuso. É difícil meter o Rossio na Betesga. O Passa a Palavra, como podes ver seguindo os links (aqui e aqui, para além destes: 1, 2, 3 e 4), tem defendido a permanência de Portugal no euro – assumindo, por vezes um sectarismo anti-PCP – por duas ordens de razão.

    a) A saída de Portugal do euro era pior para os trabalhadores.
    b) Quem defende isso parte de um ponto de vista patriótico e, ainda que lhe chame “patriotismo de esquerda” (como o PCP), comete um erro. Todo o patriotismo/nacionalismo é de direita.

    Quando a a) eu acho que o debate está mal feito. Mas não vou alongar-me na questão. Fica para outro post neste blog. Até porque o Passa a Palavra limita-se a concordar com o Louçã e, já agora, com o Eugénio Rosa contra o Octávio Teixeira e o João Rodrigues. (Ponho estes quatro nomes para mostrar que é algo que não divide o PCP do BE, mas divide internamente o PCP e o BE).

    A questão central do Passa a Palavra e do JVA é a segunda e, a meu ver, está meio errada. Há três pontos que devem ser tocados:

    1.º O aspeto em que ele está certo. O “patriotismo de esquerda” nada tem de esquerda. Em primeiro lugar, foi inventado por Stálin para estancar a sangria de operários do PC Espanhol, quando estes foram atraídos pelo nacionalismo fascista. Em segundo lugar, está nas antípodas do “internacionalismo proletário” que sempre fundou o pensamento de Marx e Lénin e que se traduz na frase “nem guerra entre nações, nem paz entre classes. Em terceiro lugar, quando o PCP, o PCTP/MRPP ou mesmo o BE se perguntam “o que os Portugueses devem fazer?”, e procuram dar uma resposta, estão a pensar – consciente ou inconscientemente – do ponto de vista burguês. Pois só a classe dominante ou em vias de tornar-se dominante coloca os problemas a partir da nação e não de si mesma. Afinal, quando se pergunta “o que Portugal pode fazer?”, está-se, na realidade, a perguntar “o que quem manda em Portugal pode fazer?”, logo “o que é que a burguesia portuguesa pode fazer?”.

    A minha crítica ao Passa a Palavra, e a todo o debate acerca da saída do euro, é que ele é sempre posto, por todos, do ponto de vista nacional… logo burguês. Mesmo o Passa a Palavra, defendendo o contrário, não consegue evitá-lo.

    2.º O aspeto em que ele está meio certo. O patriotismo é sempre fascista, porque a caraterística fundamental do fascismo é o chauvinismo. Com a defesa de um “patriotismo de esquerda”, as organizações de esquerda estão, na verdade, a defender um valor caro ao fascismo, portanto a estender-lhe um tapete vermelho para crescer. Isto é falso! Só é verdade se aceitarmos que o fascismo do século XX será igual ao fascismo do segundo quartel do século XX. Mas a coisa é complicada e temos que ver duas coisa.

    i) A iminência do fascismo. Nisto o JVA tem mais razão que o PCP que erra ao defender uma “democracia avançada”, isto é, um capitalismo com direitos sociais para os trabalhadores. Isto só é possível com um crescimento do PIB na ordem dos 5% ao ano. Nós estamos com um decrescimento de 1 a 3%. Nestas condições objetivas, só é possível duas coisas: ou a destruição violenta do capitalismo; ou a reorganização igualmente violenta do capitalismo. Por outras palavras, estamos condenados a optar entre o Socialismo e o fascismo.

    (Aliás, em abono de verdade, o JVA considera não haver condições para fazer o socialismo, mas sim para evitar o fascismo. Quer dizer que, como o PCP, ele também supõe a possibilidade de uma “democracia avançada”. Mas, ao contrário do PCP, o JVA acredita que este “capitalismo bom” só é possível se for construído com toda a Europa e não apenas em Portugal. Partido da esfera nacional ele é impossível).

    ii) As determinantes subjetiva do fascismo. Para o JVA, a principal determinante subjetiva do fascismo é o nacionalismo. Não só para ele: conheço inúmeros intelectuais de esquerda que defendem o mesmo. Leandro Konder tem um excelente trabalho argumentado isso. Contudo, eu baseio-me tanto nas minhas análises da conjuntura atual quanto numa análise recente sobre porque é que os pobres brasileiros votavam, até 2003, na direita (não conheço análises semelhantes para Portugal).

    Ora, os trabalhadores mais pobres votam à direita por uma razão muito simples: eles detestam quem faz greves e manifestações, portanto, a esquerda. Deixa-me explicar-te porquê. Primeiro, eles não têm um emprego seguro; segundo, por isso mesmo, é raro participarem em sindicatos e outras organizações. Por outras palavras, eles são duplamente vulneráveis: económica e politicamente. Ora, as greves e as manifestações só funcionam – só obrigam a burguesia a ceder – porque geram incerteza. Mas se essa incerteza é aceitável para os trabalhadores que fazem a greve – quase sempre trabalhadores do Estado – , ela é inaceitável para outros que já vivem numa situação de vulnerabilidade.

    Contudo, trata-se de uma direita sui generis, pois é uma direita que defende (no caso brasileiro) uma elevada participação do Estado na economia. No caso português é distinto: estes trabalhadores desorganizados politicamente acusam o Estado e a corrupção de estar na origem da crise. Mas os trabalhadores brasileiros de direita acreditam no Estado porque veem nele um D. Sebastião capaz de resolver a sua situação de pobreza. E nós também vemos, nos trabalhadores de direita portuguesa, a mesma esperança em salvadores sebastianicos. Ou, no caso particular de Portugal, a esperança no salazarismo.

    Aqui chego a um dos pontos em que eu discordo do JVA. O nacionalismo chauvinista só foi uma caraterística do fascismo do segundo quartel do séc. XX na medida em que o Estado nacional surgiu como salvador. Hoje é muito mais provável que a Comissão Europeia e o recém criado Banco Europeu de Investimento assumam esse papel. Portanto, é provável que o fascismo do séc. XXI seja, não internacionalista, mas europeísta. Daí todo o apoio à “regra de ouro” que a Alemanha impôs ao resto da Europa. Se eu tenho razão, o argumento do JVA volta-se contra ele mesmo. (Vale acrescentar que, se o nacionalismo hoje é bem mais forte que o europeísmo, o nacionalismo do início do séc. XX era pouco mais forte que o europeísmo de hoje. Basta ver que unificação alemã e italiana foram terminadas por volta de 1870 e a criação de uma identidade nacional portuguesa só esteve completa no final do séc. XIX).

    3.º O aspeto que ele esquece. Existe uma relação imperialista entre a Alemanha e o sul da Europa por detrás da crise. Uma das razões porque as taxas de juro da dívida pública portuguesa são tão altas é para ajudar os bancos portugueses (que cobram essa taxa de juro) a pagar o que “devem” aos bancos alemães. Os bancos alemães investiram muito na especulação imobiliária em Portugal, Grécia, Espanha, etc. E a Alemanha não está disposta agora a ficar com o prejuízo desse arranjinho de comadres entre alguns empresários do sul e toda a banca europeia (incluindo a alemã). Ao fazer tábua rasa de qualquer discussão ao nível da nação, o JVA perde de vista o imperialismo alemão
    .
    Pela minha parte, considero que é necessário sair do euro com parte do desmonte desse jogo imperialista e não por algum sentimento patriótico. A questão é: como não cair no discurso patriótico, inevitavelmente enganador (nisso estou de acordo com o JVA), e ao mesmo tempo fazer a crítica do imperialismo alemão? Isso Floristã Fernandes já resolveu há muito tempo: não havia imperialismo se a burguesia nacional – ou uma fração dela – não tivesse interesse nisso. Uma coutada no campo de um burguês da cidade não passa sem um mordomo. No caso português, o mordomo da Alemanha que transforma Portugal numa coutada alemã é a banca. Por isso, a solução não é nem a defesa vazia da soberania nacional (como faz o PCP), nem uma europeização da luta (como defende o JVA), mas a estatização da banca.
     

domingo, fevereiro 10, 2013

Raquel Varela - Não emigrem

Não Emigrem!

Merkel acredita em mercado de trabalho europeu único
Um jornalista holandês perguntou-me, em tom de desafio, se fosse holandesa, se também defenderia a suspensão da dívida no sul. Claro, respondi-lhe, se a pagarmos é porque o valor da força de trabalho desceu tanto no sul que acabarão por emigrar para o norte e 1) ou tirar-vos os postos de trabalho ou 2)ser uma pressão objectiva para vos obrigar a aceitar salários mais baixos para não perderem para nós os postos de trabalho.
 
A  crise da dívida, se não tiver uma resposta de confronto social, vai precarizar os trabalhadores do sul, que agora não são beirões ou alentejanos com a 2ª classe mas mão de obra altamente formada e produtiva, que vão ser a pressão sobre os do norte para aceitarem salários baixos. Disse-lhe que isso chama-se «a criação de um mercado de trabalho na Europa». Da mesma forma que se usaram os desempregados e os precários para descer os salários dos trabalhadores com contratos e reformados vai-se usar o contingente de precários do sul para fazer descer os salários dos do norte. Merkel disse-o hoje com todas as letras.
 
Fica o incentivo de Merkel e o meu modesto aviso. Programas como os «portugueses lá fora» foram cuidadosamente seleccionados para incentivar a emigração. Estive na minha vida em algumas dezenas de conferências de trabalho migrante, em países ricos e pobres, com ou sem escolaridade, e é um calvário. Um penoso caminho que enfrenta baixos salários, descriminação, competição, xenofobia e, claro, saudades, muitas saudades. Comum nos estudos da emigração é que quase «todos querem voltar». O emigrante, médio, formado ou não, não tem nem boas condições de vida nem é feliz, porque partiu expulso do seu país. Quem emigra para ganhar 4 vezes mais vai gastar 4 vezes mais e o seu salário não será o do português feliz no estrangeiro a enviar divisas mas, na minha opinião, um salário de subsistência. Em Londres não vão jantar fora peixe grelhado, nem em Berlim vão à praia (lago) dar um mergulho porque salário não é aquilo que se recebe ao fim do mês mas o que se consegue fazer com o que se recebe no fim do mês, isto é, salário social, salário família (apoios da família não só em dinheiro mas em espécie,  ajuda a cuidar de filhos e netos, etc), salário real (poder comprar peixe ou legumes), ter dinheiro para se deslocar na cidade, no país, ter uma imensa rede de solidariedade social e familiar, tudo isso é salário. Ver o sol e o Tejo, o Douro, o oceano, sorrir ao lado dos amigos, ver crescer os irmãos, isso também é salário.
 
Emigrar não é uma saída, a saída é perceber que não há saída enquanto o governo for assente na política de acumulação por elevação das dívidas públicas, destruição do Estado social e construção do salário nacional de subsistência, o tal com que Merkel sonha para partir a espinha aos seus sindicatos
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sexta-feira, novembro 23, 2012

Raquel Varela - O Estado social é totalmente auto-sustentado por quem vive do salário



O Estado social é totalmente auto-sustentado por quem vive do salário
23 de Novembro de 2012 por Raquel Varela
Artigo meu publicado no Público de ontem

Nas últimas semanas fortaleceu-se um discurso, que vem de longe, sobre a impossibilidade de os Portugueses pagarem o Estado social. O aumento da dívida pública é associado à impossibilidade de sustentar os gastos sociais do Estado. Primeiro-ministro, ministros vários, comentadores dos media assumem esta premissa como verdadeira, com escasso contraditório. Mas ela é falsa. Quem vive do salário em Portugal (e não de lucro, renda ou juro) paga todos os seus gastos sociais.

O argumento do peso «excessivo» do Estado-providência deve ser rebatido com factos. Num estudo que publicámos (Quem Paga o Estado Social em Portugal?, Bertrand, 2012) calculámos quanto quem trabalha e vive do salário entrega ao Estado em contribuições e impostos (directos e indirectos) e quanto recebe deste em serviços públicos prestados (saúde, educação, segurança social, transportes, desporto, espaços públicos, cultura). Chegámos à conclusão de que os défices do Estado não podem ser imputados aos gastos sociais e na maioria dos anos há mesmo um excedente, isto é, os trabalhadores entregam mais ao Estado do que recebem dele em gastos sociais. Não nos surpreenderam os resultados, estando Portugal neste campo a par de outros países da OCDE, onde foram já realizados estudos semelhantes, como o do economista norte-americano Anwar Shaikh, que traduzimos no referido livro.

Acrescenta-se nas nossas conclusões que, em Portugal, o rendimento dos trabalhadores correspondia já em 2010 e 2011 a cerca de 50% do PIB (incluindo os pagamentos para a Segurança Social, tanto dos trabalhadores como a TSU, e antes de impostos); mas cerca de 75% da tributação entregue ao Estado provinha desses mesmos trabalhadores[1].

Um governo de um país não tem legitimidade para apresentar uma dívida, uma factura para pagar, sem explicar porque a contraiu, como a contraiu, em benefício de quem. Mas não é indispensável auditar a dívida para concluir que quem trabalha em Portugal não deve.

O montante da dívida gera uma renda sempre crescente na forma de juros – estando acordado no plano com a Troika a constante subida da dívida portuguesa a pagar: 2007 (68,3% do PIB), 2011 (107,8% do PIB), 2013 (117,1% do PIB) (previsão do governo)[2]. Este grande aumento da dívida é acompanhado por um gigantesco aumento da massa de juros. Na sua aparência trata-se de uma dívida – que apela à honestidade dos trabalhadores para pagarem –, mas na sua essência é uma renda fixa de capital.

O Orçamento do Estado para 2013 (OE-2013) explica porque aumentou a produtividade (aumentou porque a queda do PIB foi acompanhada de uma queda maior no emprego) e diminuiu o custo unitário do trabalho (CUT)[3]. Mas não explica porquê mesmo assim a dívida cresce, e cresce cada vez mais. Nós avançamos uma explicação que ainda ninguém rebateu: a dívida cresce porque os trabalhadores pagam cada vez mais para o Estado social e esse valor é desviado das funções sociais do Estado para o pagamento de «rendas privadas», entre elas os casos óbvios das parcerias público-privadas, do BPN, das subcontratações externas nos hospitais-empresa.

Uma das conclusões que apresentamos é a de que, desde que se iniciam os hospitais-empresa, o custo com salários baixa (de 2,4% do PIB em 1995 para 0,9% em 2010), a contratação de serviços externos aumenta (no mesmo período passa de 2% do PIB para mais de 5%) e o custo final do serviço prestado ao utente aumenta (aumenta mais que o aumento dos gastos totais em cerca de 0,5% do PIB). Ou seja, a produtividade cai, com um custo acrescido para os contribuintes. A «refundação do Estado social» proposta pelo governo não parece ser mais do que pegar nestes exemplos infelizes e generalizá-los.

Menos óbvio, mas essencial para explicar os gastos sociais foi o uso do dinheiro da Segurança Social (resultado da poupança dos trabalhadores) para financiar a reestruturação das empresas privadas e privatizadas, impelindo os trabalhadores para a reforma antecipada. Ainda menos perceptível é a forma como o Governo, em nome do equilíbrio das contas públicas, opta por uma política de queda da produção e de aumento do desemprego, de forma a reforçar os ganhos dos sectores exportadores (e abrindo um conflito nacional com as empresas que vivem do consumo interno), financiando essa política de desemprego massivo com os recursos da Segurança Social. O desemprego não é uma inevitabilidade, mas sim uma política consciente deste Governo e estipulada no Memorando de Entendimento com a Troika. No OE‑2013 prevê-se um aumento do desemprego até 16,4% (pp. 24 e 25 do Relatório OE 2013).

O dogma neoliberal é um dogma porque assume a economia como uma ciência a-histórica, ou seja, o homem não seria artífice da sua história, não faria escolhas na forma como a sociedade produz e se reproduz, ou seja, não escolheria as suas relações de trabalho, mas estaria fadado a aceitar a produção para o lucro, o desemprego, as dívidas “públicas” como se de inexoráveis leis da gravidade se tratasse.

Na verdade a primeira questão que nos devemos colocar hoje, em Portugal, é a seguinte: somos um país que produz uma riqueza anual em torno de 170 mil milhões de euros, podendo esse valor ser bem maior caso toda a mão-de-obra desempregada fosse utilizada, e não temos riqueza para pagar as necessidades mais básicas de qualquer sociedade? Se a riqueza de uma sociedade que tem um dos salários mais baixos da Europa e mais longas jornadas de trabalho, de acordo com a OCDE, não vai para a saúde, educação, auxílio mútuo e bem-estar na reforma, vai para onde?

[1] VARELA, Raquel  (coord), Quem Paga o Estado Social em Portugal?, Lisboa, Bertrand, 2012. Ver em particular artigos de GUEDES, Renato, e PEREIRA, Rui Viana; ROSA, Eugénio; SHAIKH, Anwar.

[2] GENERAL GOVERNMENT DATA, General Government Revenue, Expenditure, Balances and Gross Debt, PART I: Tables by country, primavera de 2012, Eurostat.

[3]    Relatório Orçamento de Estado, pp. 13-17.

http://5dias.net/2012/11/23/o-estado-social-e-totalmente-auto-sustentado-por-quem-vive-do-salario/

quinta-feira, novembro 15, 2012

o estado a que chegámos [ texto de Sara Figueiredo Costa ]


O texto é grande, mas tinha de ser.
Não tenho vontade nenhuma de discutir as pedras. E não tenho vontade nenhuma de discutir as pedras porque não posso tolerar que sirvam de argumento para o que se passou ontem em S. Bento, nas ruas adjacentes, no Cais do Sodré. Discutamos as pedras mais tarde – e discutamos também a quantidade (e a visibilidade) de polícias à paisana, o mistério que pode explicar a incapacidade de a polícia resolver um distúrbio localizado (como já fez noutras manifestações, recentes, sem espancar a eito tudo o que mexia), o modo de nos continuarmos a manifestar todos juntos, etc, etc, etc. O que não é aceitável é pensar que as pedras sejam uma justificação para a polícia de choque varrer indiscriminadamente o Largo de São Bento, perseguir as pessoas pelas ruas à volta e andar a caçar manifestantes pelo Cais do Sodré. Quem esteve em S. Bento ontem viu bem que, na linha da frente da manifestação, algumas pessoas atiravam calhaus contra os escudos da polícia, e que puderam fazer isto durante muito tempo. Quem lá esteve também viu como de repente a polícia avançou em bloco, sem nenhuma intenção de cercar quem a apedrejava, sem nenhum gesto que mostrasse que estavam a tentar deter os autores das pedradas; a polícia avançou para carregar indiscriminadamente, e fê-lo porque tinha ordens para limpar o perímetro (talvez porque havia gente na Assembleia da República? É uma pergunta, não uma afirmação disfarçada) e tinha carta branca para arrasar tudo. É importante que se perceba isso: a polícia obedece a ordens, não decide sozinha que vai espancar todas as pessoas, novas ou velhas, que lhe aparecerem à frente (e isto não é uma forma de desculpabilizar a polícia; é só para não nos esquecermos de onde vêm as ordens). E quem lá esteve viu o resto: as bastonadas cegas, as pessoas apanhadas, deitadas no chão e espancadas sem apelo nem agravo, as mãos no ar com pedidos de ‘parem com isso, não fizemos nada de mal’ a terem como resposta mais bastonadas, e depois a perseguição. Não sei como foi na Rua de S. Bento, na Calçada da Estrela e na rua que vai dar ao ISEG, porque eu fugi pela D. Carlos I. Aí, pude ver as sucessivas investidas da polícia de choque, empurrando toda a gente, obrigando-nos a correr como se tivéssemos cometido algum crime, mas sobretudo como se fossemos peões de um jogo, um daqueles jogos onde manda o menino que tem a bola – corram, porque nós não vamos parar, e corram muito, porque depois de os termos espalhado ainda vos vamos caçar. Foi isto que aconteceu depois. Não me contaram, eu vi. E vi porque fiquei pela D. Carlos I, tentando perceber se a polícia ia recuar, se ainda teríamos força para nos reagruparmos, se poderíamos voltar a juntar vozes contra o medo. Fiquei também para tentar perceber onde estava um amigo que tinha ficado para trás, e depois fiquei porque falei com ele e soube que tinha a cabeça partida e que estava no quartel dos bombeiros a meio da rua. Não pude ficar muito tempo no mesmo lugar, porque a caça tinha começado. Algumas pessoas pegavam fogo a caixotes do lixo, a maioria tentava perceber se era seguro continuar na rua ou se a polícia iria continuar a perseguição. Quando soube que o meu amigo já estava numa ambulância a caminho do Egas Moniz, decidi sair dali. E quando estava a chegar à 24 de Julho, a polícia voltou a avançar, as pessoas que por ali estavam desataram a fugir e a notícia das balas de borracha chegou num instantinho, obrigando toda a gente a correr, incluindo muitas pessoas que passavam pela 24 de Junho sem virem da manifestação (provavelmente, algumas dessas pessoas foram as que deram com os costados nos calabouços de Monsanto passado pouco tempo, sem saberem porquê nem como, e que por lá ficaram sem acesso a advogado). Isto é o que posso relatar sobre o que vi nos locais onde estive. Mas mais importante do que os relatos é marcar estes pontos: a carga policial de ontem não tem, não pode ter, nenhuma justificação; a polícia não agiu para parar a “meia dúzia de manifestantes” (palavras do ministro da Administração Interna, não minhas) que estavam a atirar pedras, porque ninguém trava meia dúzia de pessoas à pedrada com uma carga militar que acerta em todas as outras; pessoas perseguidas pelas ruas, gente detida aleatoriamente, detidos impedidos de falar com os advogados e autos em branco não são, nunca serão, coisas toleráveis numa democracia, sendo, pelo contrário, coisas que ajudam a definir a ausência de democracia.
Que depois de tudo isto tenhamos assistido ao desfile dos painéis de comentadores a falarem das pedras, discutindo se quem as atirava era estrangeiro, estivador, anarquista, mal vestido ou outra coisa qualquer daquelas que incomoda os painéis de comentadores, em vez de os ouvirmos falar sobre a gravidade do que tinha acontecido e estava a acontecer; que depois de tudo isto tenhamos ouvido o secretário da CGTP, que convocou uma greve que foi gigantesca e um enorme sucesso, dizer que lamentava o sucedido, mas sem um comentário sobre a violência policial e as questões que referi atrás e que, parece-me, são graves e muito importantes, independentemente de afectarem os trabalhadores da CGTP (de quem o secretário geral fala como se fossem os únicos trabalhadores legítimos, os únicos que sofrem na pele a crise, os únicos que podem, sabem, estão legitimados para protestar e pensar em mudar alguma coisa); que tenhamos tido relatos televisivos onde muitos jornalistas deram a entender que a polícia teve de agir assim porque havia petardos e pedras (não sei se esses jornalistas têm estado nas manifestações, mas tem havido petardos e pedras em todas sem que a polícia tenha usado esse pretexto para espancar e perseguir pessoas indiscriminadamente, e com isto não quero dizer que petardos e pedras são uma boa forma de protesto); que tudo isto tenha acontecido num país que se diz uma democracia e nas televisões que se anunciam plurais, atentas à realidade e preocupadas com essa democracia, só pode acentuar a nossa miséria, a do pão e a outra, a que nos reduz o pensamento à conversa de café e o debate político à bisca lambida.
Sara Figueiredo Costa
jornalista free-lancer