A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht
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sábado, abril 19, 2014

Os rostos dos anos de brasa



Os rostos dos anos de brasa



Nunca tive dúvidas de que, na organização da exposição O Nascimento de Uma Democracia, o painel mais controverso seria o dos 200 "rostos". Na verdade, são 202, visto que se acrescentou uma foto de soldados anónimos e outra de civis manifestantes igualmente anónimos, tiradas no próprio dia 25 de Abril.
Havia várias razões pelas quais os "200 rostos" seriam polémicos. Porquê aqueles rostos e não outros? E depois, por que razão estavam associados ao "nascimento da democracia", sendo que muitos deles não desejavam à época que houvesse democracia parlamentar, e muitos lutaram contra a sua institucionalização? Ou seja, não se tratava de 200 "construtores" da democracia, mas sim de 200 pessoas que estavam lá, no processo conflitual de a fazer. Tal está explícito no texto que escrevi "explicando a exposição", mas tinha consciência de que seria assim interpretado e, por opção deliberada, aceitei que fosse essa a leitura. É uma leitura que altera a intenção original, mas não é uma leitura perversa, é uma leitura cujo debate interessa.
Porquê aqueles rostos e não outros? Em primeiro lugar, corrijam-se alguns erros técnicos, nomes que estavam na lista e não aparecem no painel, e uma gralha freudiana. Os erros ocorreram, não sei por que raio do destino, ou porque Deus desejaria que colocássemos na obra perfeita um azulejo errado para mostrar a imperfeição da acção humana. Nós não o fizemos e fomos punidos. Deus colocou lá o azulejo torto para nos ensinar humildade.
O azulejo errado é que da lista que fizemos desde o início, ainda quando eram apenas cem os nomes, constavam por pleno direito Francisco Pinto Balsemão, Costa Gomes e Jaime Neves. Balsemão e Costa Gomes aparecem noutras fotografias, mas deveriam estar na lista e não estão. No caso de Balsemão, levou-se à lista os três fundadores do PPD que estavam na foto de uma conferência de imprensa inicial: Sá Carneiro, Magalhães Mota e Balsemão. No dia da inauguração, um deputado do PSD veio perguntar-me por que razão não estava Balsemão e eu disse-lhe que procurasse por ordem alfabética em Francisco e, com grande espanto meu, não estava lá. O mesmo aconteceu com outros dois nomes desde sempre incluídos na lista, Costa Gomes e Jaime Neves, que também desapareceram entre a execução gráfica e a publicação, visto que constavam da lista dos cem iniciais e se sumiram. Já se pôde a tempo colocar uma errata no nome de Oliveira Dias, militante do CDS de Leiria e quinto presidente da Assembleia da República, que apareceu como Oliveira Costa. As minhas desculpas, mas ninguém deu por ela apesar de várias leituras nome a nome, e aqui deve haver uma maldição que atinge todos aqueles cujo nome começa por "Oliveira" e qualquer coisa a seguir. O dr. Freud tem um ensaio sobre isto. Tudo isto já está numa errata e será corrigido numa nova edição e no painel.
Agora, as omissões e os problemas que levantam. O trabalho de equipa de elaboração da exposição começou pelas fotografias dos eventos de 1974-6, retirando daí os nomes, em particular dos "construtores de partidos", até porque essa era uma intenção da narrativa da exposição: mostrar como, no meio da confusão de 1974-5, surgiu o sistema de partidos da nossa democracia. As fotos retratam o primeiro acto público genético de um novo partido, ou da passagem à legalidade de um partido clandestino, fosse uma conferência de imprensa ou um comício, e terminam no acto de legalização com a entrega das assinaturas no tribunal. No caso do MRPP começam e acabam do mesmo modo, porque o partido fez da entrega das assinaturas um pequeno comício com bandeiras e punhos erguidos nas instalações vetustas do tribunal.
Fizemos primeiro uma lista de cem nomes, mas deu-se um fenómeno típico dos fractais. Sempre que estabelecíamos um número-limite, era impossível fazer caber dentro desse número as pessoas com o mesmo ou semelhante grau de importância de modo a não haver injustiças. Se colocávamos Spínola, teria de estar Vasco Gonçalves; colocando Vasco Gonçalves, teria de vir o "grupo dos nove"; com os nomes do "grupo", teria de vir, do outro lado, Rosa Coutinho e Corvacho; com este par, tinha de entrar Pires Veloso e o cónego Melo, etc., etc. Resolveu-se dar mais espaço e colocar duzentos nomes, o que, de novo com o mesmo problema dos fractais, tornava necessário pela igualdade de critérios mais cem nomes, e por aí adiante. Travou-se nos duzentos pelos limites físicos do painel.
Entraram nomes, saíram nomes, até que a lista teve de ir para a tipografia, com plena consciência de que iriam aparecer logo a seguir outros nomes tão evidentes e inevitáveis como os que lá estavam. Passou-se a uma fase de teste, perguntando a pessoas do PSD, do PS, do CDS, do BE, dos militares de Abril, que dissessem nomes que deveriam lá estar pelo seu papel entre 1974 e 1976, e estavam todos.  Isto dava algum sossego, mas, mal a lista se fechou, vieram-me logo à memória quatro nomes que deveriam lá estar, obrigatoriamente. E não estavam. Tratava-se do padre Mário de Oliveira, o perseguido pároco de Macieira da Lixa; Vítor Cunha Rego, aventureiro, conspirador, intelectual exilado, "consiglieri" do PS e embaixador; Francisco Martins Rodrigues, sem o qual a extrema-esquerda portuguesa não seria o que foi; e José Luís Saldanha Sanches, cuja valentia pessoal atravessou estes anos complicados com todas as cadeias, preso e perseguido como membro do PCP e mais tarde do MRPP. E surgiram alguns desequilíbrios menos importantes, mas que implicavam alguma reflexão. Se, na sombra do PS, estava Bernardino Gomes, não deveria estar Rui Mateus? Deveria. E isto era apenas o intróito, porque mais nomes apareceriam.
Nos últimos dias, entre sugestões e críticas, mais nomes são levados à discussão com todo o sentido. Júlia Matos Silva chamou-me a atenção de duas omissões, a de Fernando Matos Silva e a de Álvaro Guerra. No caso do primeiro, escreveu: "O Fernando Matos Silva e a equipa partiram pelas ruas de Lisboa, captando as imagens grandiosas da expressão generosa de uma aliança entre as armas e o povo. E são muitas dessas imagens que ainda hoje prevalecem para documentar o gesto grandioso de um país que venceu a ditadura, sem lágrimas de sangue. O olhar e a câmara do Fernando Matos Silva - que tinha visto o seu primeiro filme, O Mal-Amado, totalmente proibido pela censura - hão-de ficar indelevelmente livres, testemunhando os actos e as emoções dos militares e do povo." Tem razão, até porque também lá estão Adelino Gomes, Joaquim Furtado e Eduardo Gageiro (e poderiam estar Alfredo Cunha e Miranda Castela), por razões idênticas.
Outros nomes surgirão, quer de militares do MFA (Manuel Monge, Carlos Azeredo, Hugo dos Santos, etc.), quer de civis como Álvaro Guerra, Pedro Batista  (fundador do Grito do Povo), Afonso de Barros (fundador do MES), Manuel Maria Múrias, Nuno Brederode, Adérito Sedas Nunes (que institucionalizou a sociologia em Portugal), e mesmo de alguns estrangeiros cuja presença em Portugal ou cujos escritos sobre a "revolução portuguesa" tiveram grande influência nesses anos, como Jean-Paul Sartre, Tony Cliff e Ernest Mandel. Talvez tenhamos mesmo de ir para os trezentos nomes, até porque assim o corpus biográfico ganha dimensão e significado.
Seja como for, esta lista pode ser acusada de tudo menos de sectarismo. Colocar lá Carlos Antunes e Kaulza de Arriaga, ou Cunhal e o cónego Melo, pode ser incómodo para os próprios, vivos ou mortos, e certamente o é, mas sem esta multiplicidade de nomes, projectos e atitudes não se percebe a democracia portuguesa na sua génese. Ela não se percebe sem os binómios mais intensos da época, socialismo "em liberdade" versus "democracia popular", comunismoversus anticomunismo, colonialismo "federalista" versusanticolonialismo radical, liberdades versus "conquistas da revolução", democracia parlamentar versus socialismo "militar", que são mais eficazes para explicar estes anos de 1974-6 do que o binómio 24 de Abril versus 25 de Abril. No fundo, ninguém estava do lado de Salazar e Caetano, ninguém entrou no debate conflitual desses anos para defender a PIDE ou a Censura. Por ironia do destino, hoje há mais complacência nefelibata com o regime do 24 de Abril do que a que havia na altura: a PIDE não era tão má como isso e não matava muita gente, a Censura afinal deixava passar imensa coisa, havia desenvolvimento e "paz social" num país sem corrupção nem criminalidade violenta, com elites respeitáveis e patrióticas, isentas e sacrificadas e mais seguro nas ruas. Apetece responder como o almirante Pinheiro de Azevedo respondeu quando lhe chamaram "fascista". Está lá na exposição.

http://www.publico.pt/opiniao/jornal/os-rostos-dos-anos-de-brasa-28167578

sexta-feira, abril 18, 2014

Portugal 1974-1976: o nascimento de uma democracia







Portugal 1974-1976: o nascimento de uma democracia

No dia em que é inaugurada, na Assembleia da República, a exposição O nascimento de uma democracia, o PÚBLICO antecipa o texto que fundamenta a exposição, adaptado pelo seu autor, José Pacheco Pereira.

1. A exposição que podem ver na Assembleia da República não é sobre o dia 25 de Abril de 1974, cujo 40.º aniversário se comemora este ano. É sobre o que esse dia permitiu, fez nascer, “abriu”, é sobre o nascimento da democracia portuguesa no meio da turbulência de um país que saía de 48 anos de ditadura.
2. Nos 40 anos do 25 de Abril de 1974, muitas das comemorações vão centrar-se no que aconteceu nesse dia. As interpretações variam: golpe de Estado, revolução, golpe de Estado seguido de uma revolução, etc. Mas uma coisa é incontroversa: no dia 25 de Abril começou a nascer uma democracia e ela apenas foi possível pelo que aconteceu nesse dia. O que aconteceu em 25 de Abril com a ação do MFA foi de facto o “dia lustral”. O dia do começo. Mas, a partir desse dia, o nascimento de uma democracia fez-se na sociedade e com a sociedade, com os portugueses. Como se passa em todas as democracias, foi um processo essencialmente civil, e numa democracia que nasceu de uma ação militar, foram os civis que se revelaram fundamentais para a sua construção.
3. Como se retrata o nascimento de uma democracia? Em primeiro lugar, pela diferença em relação ao que havia. Pelo tempo de acabar, da PIDE, da Censura, da União Nacional, da ditadura. Depois, e esse é um dos objetivos desta exposição, começar, mostrar como se começa: o direito e o exercício de vir à rua manifestar-se, o direito e o exercício de organizar-se, a passagem à legalidade dos partidos clandestinos e a génese de novos partidos, o direito de falar e escrever livremente, o direito de votar em liberdade e escolher quem nos representa e quem nos governa. A democracia faz-se com política em liberdade, instituições e representação com génese eleitoral, partidos, participação cívica numa miríade de organizações, discurso público e propaganda política. No nascimento da nossa democracia, os sinais da sua pujança revelaram-se em todos estes símbolos, com uma nova iconografia, paisagem sonora e visual: cartazes, autocolantes, emblemas, faixas, panfletos, brochuras e livros, fotografias, imagens, filmes e sons. O objetivo desta exposição é  mostrar o rastro que no nosso olhar ficou desses tempos. Privilegia o que nos envolve, imagens e sons, valoriza o retorno ao passado pela recriação da sua paisagem.
4. A democracia significou direitos. Nenhum destes direitos foi concedido, todos foram conquistados. Foi um processo difícil, caótico, com avanços e recuos, que durou muito mais do que alguns anos. Em bom rigor, é um processo que continua em curso. Todos os dias. Não foi um nascimento fácil, nem o poderia ser, devido à longa duração da ditadura, ímpar na história da Europa ocidental. Não o podia ser também no meio de uma guerra colonial ativa, com três frentes distintas em África. Mas foi nessa turbulência que tudo começou, marcada pelos eventos, quer em Portugal, quer nas colónias, pela vontade muitas vezes contraditória dos seus fundadores, pelo “ruído” inerente à democracia, dos conflitos culturais, sociais e políticos. Aliás, o primeiro sinal de que Portugal estava a mudar foi exatamente o facto de podermos, pela primeira vez, ouvir sem censura, nem polícia política, nem partido único, e acima de tudo sem medo, esse “ruído” sem o qual não há democracia.
5. Na elaboração desta exposição não se partiu do presente para o passado, nem se projetou sobre o passado qualquer interpretação programática sobre o que neste período foi “bom” ou “mau” para a génese da nossa democracia. Há interpretação que se revela na própria escolha de tratar o aniversário do 25 de Abril não a partir dos eventos nesse dia, mas da génese do regime democrático, cuja casa primordial é o local onde se realiza a exposição, o Parlamento. No entanto, tentou evitar-se uma seleção de eventos, rostos e sinais, que chegaram aos nossos dias como os “politicamente corretos”. A história foi o que aconteceu e não o que muitos dos seus atores queriam que acontecesse, e o que aconteceu foi que Portugal vive em democracia nos últimos 40 anos.
6. Quando olhamos para os atores desses anos de génese, em que há quem tivesse lutado pela democracia e quem desejasse outras formas de poder não democráticas, vemos bem, pelas biografias a posterioride todos, o enorme poder de “normalização” que teve a democracia portuguesa. Não foi perfeito, nada é perfeito nos negócios humanos, mas foi muito eficaz. A democracia impôs-se em termos racionais, éticos e afetivos na vida de todos e tornou-os parte dela, deixando de haver “democratas imperfeitos” ou “não democratas”, e atirando para as trevas exteriores quem continua a combatê-la. Quarenta anos depois, mesmo para esses, a democracia venceu. Não sabemos como vai ser no futuro, mas sabemos que foi assim neste passado que nos é ainda íntimo, dos 40 anos depois do 25 de Abril.
7. A nossa democracia conheceu uma primeira fase de moldagem com os processos eleitorais de 1975 e 1976, que nos deram a Assembleia Constituinte, a primeira Assembleia legislativa, as eleições autárquicas e presidenciais. A essa moldagem soma-se a ação dos governos provisórios, ainda num período de transição política, que foi também fundamental para criar práticas de governação que depois se institucionalizaram nos governos constitucionais. De novo, convém lembrar que nenhum dos atores deste período, fossem políticos vindos da oposição, fossem políticos gerados pela democracia, fossem militares, fossem profissionais liberais, estudantes, padres, operários, trabalhadores rurais, empregados, funcionários, revolucionários e conservadores, agitadores e institucionalistas, nenhum tinha qualquer experiência de fazer política em liberdade, porque entre 1926 e o 25 de Abril de 1974 não houvera um dia de liberdade. Governar era uma experiência nova.
8. Usou-se o ano de 1976 como termo, sendo só excecionalmente utilizados materiais de data posterior, mas sem com isso significar que a consolidação da nossa democracia tivesse sido adquirida nessa data. Bem pelo contrário, o acolhimento pacífico dos “retornados”, o acesso ao governo por eleições de partidos representando posições políticas muito distintas, as sucessivas revisões constitucionais, o fim da tutela do MFA, a entrada na União Europeia, profundas mudanças no enquadramento legal da economia e da sociedade, a possibilidade de haver governos de coligação e de maioria absoluta, a consolidação do poder local, a construção de autonomias regionais, tudo foram passos na estabilização da democracia.
9. Nem tudo correu bem, nem tudo corre bem. A prevalência de fenómenos de corrupção deslegitima a imagem do poder político, o crescimento da partidocracia, a ineficácia no combate às desigualdades e à pobreza, as fragilidades da nossa independência financeira, um alarmante divórcio entre os portugueses e a sua representação política são sinais de que nenhuma democracia pode ser considerada adquirida sem um contínuo esforço com uma dimensão política, mas também cultural, económica e social. A democracia não é um regime “natural”, não existe inscrito na natureza das coisas, mas é uma escolha cultural, no sentido lato, que só sobrevive quando os homens e mulheres que fizeram essa escolha não duvidam dela e estão dispostos a defendê-la. Olhando os anos de génese da nossa democracia, é muito nítido que é assim, quer para estes anos de brasa, quer para os dias de hoje.
10. A democracia portuguesa é de génese revolucionária e não admira que a “rua” tenha tido um papel decisivo. Na exposição é nítido esse papel, como palco de manifestações, protestos, incidentes, golpes e contragolpes. Logo no próprio dia do 25 de Abril, milhares de portugueses desceram à rua e definiram o sentido de uma revolução, tornando a ação dos militares em algo mais do que um golpe de Estado corporativo. Tal seria sempre uma impossibilidade nos seus termos, como, aliás, os mais clarividentes dos “capitães de abril” sabiam e desejavam. Depois, indo à “rua” com liberdade, não mais de lá saíram, em múltiplas encarnações a favor de tudo e contra tudo, fazendo a democracia, ou mesmo tentando evitá-la. As imagens de manifestações que podem ser vistas na exposição incluem esse mundo contraditório, desde as grandes manifestações iniciais do 1.º de Maio, passando pelo “cerco” à Assembleia, pelas manifestações pela liberdade de informação ou pelas lutas laborais e camponesas.
11. Dessa “rua” saía uma nuvem de mensagens contraditórias, mas irmanadas pela liberdade de poderem ser ditas. Parte da cacofonia destes tempos encontra-se retratada em múltiplas palavras de ordem, frases e falsos slogans irónicos, que preenchem um painel da exposição e que também aparecem na “paisagem” sonora que a acompanha. Pretendeu-se dar deste tempo a mesma visão que revelam as fotografias e os cartazes, um emaranhado de vozes, sérias e menos sérias, puras asneiras e apelos dramáticos, falando ao mesmo tempo, dizendo coisas muito diferentes, com nexo e sem nexo, até porque tinham passado 48 anos sem poderem falar com liberdade. Pode considerar-se que o “abaixo a guerra colonial” é infinitamente mais sério do que a “promoção imediata do leitão a porco” ou o “nem mais um anticiclone para os Açores”, mas o que une estas frases é sublinharem a mesma vontade de liberdade e de fim da opressão e um antiautoritarismo que tinha força porque a canga tinha sido pesada.
12. Este aspeto de “explosão” icónica, sonora, verbal, na qual está presente uma nova força vital de Portugal e dos portugueses, é um dos que pode dar aos visitantes do presente, que não viveram este tempo, essa alegria da liberdade que, felizmente para eles, pela sua juventude, não podem contrastar com a vil tristeza claustrofóbica de um regime de violência institucionalizada.
13. Quando olhamos para trás, como se víssemos aquele “país estrangeiro” que é o passado, por estranho que tal possa parecer, percebemos como a nossa democracia nasceu nos anos a que chamamos, muitas vezes pejorativamente, de “processo revolucionário em curso”, o “prec”, um momento em que muitos não a desejavam, mas em que outros lutaram por ela com imenso risco. Não foi um processo linear, higiénico, “limpo”, deixando para trás o “dia lustral”, mas seria da ordem dos milagres se o fosse. Não foi um processo sem custos, enormes custos, a começar pelos custos em vidas humanas ocorrido nas antigas colónias portuguesas, onde deixamos como herança conflitos e guerras, com o pano de fundo de uma longa guerra colonial, de um colonialismo tardio e mergulhado na violência e de uma descolonização feita sem instrumentos de poder militar para ser controlada. Tudo isto pode “explicar”, mas não lhe tira a dimensão trágica. Uma ideia benévola do 25 de Abril esquece muitas vezes esta dimensão trágica dos eventos que desencadeou.
14. Tratando-se do nascimento de uma democracia, é normal que cada vez menos apareçam nas suas imagens militares, e cada vez haja mais civis. A dívida que todos temos aos homens que fizeram o 25 de Abril, que ninguém pretende nem minimizar, nem ignorar, nem esconder, é uma coisa de natureza diferente do processo de construção de uma democracia em que o retorno dos militares aos quartéis, o apagamento progressivo da sua dimensão como agentes da “revolução”, é fundamental. Também não foi um processo simples e isento de avanços e recuos.
15. Numa parte que será provavelmente a mais controversa da exposição, escolhemos 200 rostos daquilo que hoje chamaríamos, por influência crescente do marketing, os “protagonistas” desse nascimento de uma democracia. De novo, não fizemos qualquer julgamento a posteriori  sobre o seu papel nestes anos, sobre os méritos ou deméritos da sua ação no futuro. Sabemos apenas que, nestes anos da génese, todos foram “parte” do processo, todos estiveram lá. Nem todos foram importantes no futuro, mas todos a seu modo foram importantes no presente que durou de 1974 a 1976. Estão lá, nas fotografias e na ação, criando partidos políticos, organizando e intervindo, manifestando-se, planeando resistências e reações, golpes e contragolpes, violências e tolerâncias.
16. Estão presentes entre esses rostos lutadores quase tolstoianos pela democracia e opositores violentos da democracia, gente que matou e que foi morta, gente que lutou nas ruas pela liberdade e gente que desejava que não houvesse democracia “parlamentar”, ou seja, que não houvesse democracia. Pode parecer estranho que todos apareçam no mesmo painel, mas o tempo juntá-los-á numa mesma história, mesmo que lhes dê papéis diferentes. No entanto, no início e no fim desses 200 rostos, há dois grupos de anónimos: alguns militares do 25 de Abril, sem patente nem protagonismo, e alguns civis nas manifestações de risco desse mesmo dia, também sem nome e sem fama. Sabemos que foi deles que veio a força vital que transformou uma ditadura numa democracia.

http://www.publico.pt/politica/noticia/portugal-19741976-o-nascimento-de-uma-democracia-1632346

 Comissariada por José Pacheco Pereira,  a exposição "O nascimento de uma democracia (1974-1976)" integra cartazes, materiais de propaganda e reproduções fotográficas do período de 1974-1976. Esta mostra pretende, nas palavras do comissário, “retratar o nascimento da democracia portuguesa: o direito e o exercício de vir à rua manifestar-se, o direito e o exercício de organizar-se, a passagem à legalidade dos partidos clandestinos e a génese de novos partidos, o direito de falar e escrever livremente”.