A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht
Mostrar mensagens com a etiqueta João Céu e Silva. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta João Céu e Silva. Mostrar todas as mensagens

domingo, janeiro 02, 2011

"Com as medidas de austeridade Portugal não vai pagar a dívida"

Movimentos

Vermelho 2 de Janeiro de 2011 - 17h22

Em uma longa entrevista a João Céu e Silva, do site português Diário de Notícias, o sociólogo Boaventura Souza Santos, que recebeu o Prêmio México de Ciência e Tecnologia, analisa a situação de Portugal e a crise mundial provocada pela especulação dos mercados financeiros. Será o Presidente mexicano que, dia 14, lhe entregará o galardão pelo trabalho no espaço ibero-americano, semanas após lhe ter também sido concedida uma bolsa de 2,4 milhões de euros para desenvolver as suas idéias.

Diário de Notícias- Por que razão é que os portugueses não se revoltam perante a imposição destas medidas de austeridade tão violentas?
Boaventura Souza Santos - Reformularia a pergunta para "porque é que ainda não se revoltaram?", ou faz parecer que nunca se revoltarão. Basta lembrar que também pensávamos que não haveria mudança na sociedade portuguesa devido aos nossos brandos costumes, e houve o 25 de Abril.

DN- Que foi uma revolta tirada a ferros!
BSS- Sim, que começou como uma revolta militar dos que tinham o poder e ficaram desafetos dele porque os tinha metido no pesadelo e na armadilha de uma guerra colonial que nunca se poderia vencer. E o povo respondeu de uma maneira criativa a esse processo.

DN- Desta vez não se vislumbram capitães para liderar a contestação.
BSS- Neste momento, não. Em primeiro lugar, porque os portugueses ainda não se deram conta de todas as consequências das medidas que estão a ser tomadas. Que nem serão as medidas definitivas, porque enquanto não forem regulados os mercados financeiros quaisquer planos de austeridade vão ser seguidos por novos planos de austeridade, porque os mercados estão numa fase absolutamente insaciável. Em segundo lugar, ainda estamos numa fase do susto.

DN- Por isso é que a reação demora?
BSS- Após um discurso de austeridade, as pessoas começaram a ver os salários, as pensões e as participações nos medicamentos a ser cortados, mas este tratamento ainda não entrou tão profundamente nos bolsos quanto acontecerá no futuro. Sobretudo, ainda não entrou na cabeça das pessoas e elas não se deram conta de que a erosão é irreversível e não ficará por aqui.

DN- Irreversível em que sentido?
BSS- De que o nível de vida a que se habituaram nas últimas duas ou três décadas vai deixar de existir. Os filhos, eventualmente, podem vir a retomá-lo, mas eles, certamente, estão num período de declínio do nível de vida e não vão recuperá-lo nos próximos anos.

DN- Mesmo com tantas promessas?
BSS- Por mais que os políticos digam que vai demorar cinco anos, os danos são muito mais profundos do que se pode imaginar agora e ainda vai levar tempo para se darem conta dos verdadeiros efeitos. A verdade é que Portugal passou 48 anos em ditadura e os hábitos democráticos expressos nos conflitos e contradições sociais não foram vividos tão intensamente como noutros países da Europa.

DN- Tal como a Grécia ou a Itália?
BSS- A Grécia teve um período de ditadura entre 1967 e 1974, mas tem uma tradição de sociedade civil organizada, enquanto a Itália tem um sistema político relativamente desconectado das formas de organização da sociedade civil. Portugal perdeu nesse meio século o período em que as sociedades se organizaram para a convivência democrática que originou a actual Europa.

DN- Mas conseguiram unir forças para derrotar o projeto de reformas do 1.º Governo de José Sócrates.
BSS- Os portugueses têm-se organizado para questões pontuais e setoriais em que os interesses estão mais organizados. No caso dos professores, tal como na função pública, há uma forma de organização sindical bastante forte, mas é evidente que não reagem espontaneamente para grandes manifestações como vemos em França, onde não foram apenas os sindicalistas que se revoltam, mas o cidadão comum, quando chegou à conclusão de que bastava.

DN- Estranhou que tivéssemos sido o único país que realiza uma Cimeira da Nato [Otan] sem um único conflito?
BSS- Não temos grande tradição de mobilização e de contestação social. Mesmo as greves gerais, ao contrário doutros países, não foram complementadas com grandes manifestações de rua, porque as centrais sindicais têm temor do fracasso. Isto é característico da sociedade portuguesa, mas nada diz que amanhã não seja diferente.

DN- As grandes contestações às medidas de austeridade vieram de sectores inesperados: do presidente socialista do Governo dos Açores e dos magistrados. Porquê?
BSS- São formas diferentes de contestação e processos políticos distintos. Temos, por um lado, as ações sindicais, os movimentos e as organizações da sociedade que se associam aos sindicatos e o cidadão em geral. Por outro lado, temos os interesses organizados e, mais complicados, quando mete órgãos de soberania na contestação.

DN- Quando os magistrados não aceitam o mesmo corte de grande parte dos portugueses, estamos perante uma defesa corporativa?
BSS- Nesse caso, sim. Mas as providências cautelares não se dirigem apenas aos salários dos magistrados.

DN- Até agora, quem lidera a contestação é o poder judicial. É normal?
BSS- O que temos neste momento é uma iniciativa judicial que em democracia é saudável. Não está a ser feita por desobediência civil a greve de magistrados judiciais, mas através de um mecanismo judicial que visa confrontar estas medidas com a nossa própria Constituição.

DN- Ao dizer que os portugueses ainda não se revoltaram é porque prevê que haja alguma convulsão?
BSS- É muito difícil fazer essa previsão. Aliás, penso que os sociólogos são muito bons a prever o passado e muito maus no que respeita ao futuro. Principalmente, em situações de grande turbulência como a que estamos a assistir. Aliás, podemos dizer que aquilo que é impensável hoje pode ser inevitável amanhã: que o euro acabe, por exemplo. Pode ser que daqui a um tempo passe de impensável a inevitável com uma fratura dentro do euro. Por outro lado, sabemos que não são as desigualdades sociais nem as formas de empobrecimento que automaticamente provocam contestação, ou os sistemas despóticos não tinham funcionado. Os sistemas mais autoritários e desiguais criam formas de resignação que tiram às pessoas a capacidade de autonomia para se revoltarem. Ficam com medo do patrão e do que lhes pode acontecer, ou seja, não é automático que o agravamento das condições econômicas leve à contestação política.

DN- Mesmo em democracia?
BSS- É evidente que as situações de conflito vão surgir em Portugal e em toda a Europa. É evidente que, quando se fala de contágio dos mercados, não se deve pensar que está apenas a esse nível mas que quando os portugueses vêem os espanhóis, os gregos ou os franceses a revoltar-se é natural que se questionem: "Afinal, por que razão é que nós não nos revoltamos perante uma situação que até é mais injusta?" É bom não esquecer que Portugal tinha em 2009 as contas muito mais equilibradas do que a Grécia ou a Irlanda.

DN- Mas se vier um PEC IV?
BSS- O que é bem provável vir a acontecer porque os portugueses ainda não se deram conta de que estão numa situação em que a soberania dos Estados - não havendo uma regulação dos mercados financeiros - está sujeita aos abutres financeiros. Uma das coisas que me horroriza é dizer-se na comunicação social cobras e lagartos do Estado ou que a festa acabou e que Portugal é insustentável, enquanto ninguém é tão veemente no que respeita ao fato de os mercados financeiros poderem ganhar rios de dinheiro com a nossa crise e até se façam apostas para ver se a dívida portuguesa será paga e que se ganhe muito dinheiro na aposta. Isto é crime contra a humanidade!

DN- Há anos dizia que o mundo pós- guerra tinha duas superpotências: Estados Unidos e agência Moody's. O que mudou foi deixarem de ser contra o Terceiro Mundo e virarem-se para a União Europeia?
BSS- Exatamente, essa minha previsão deu certo! Neste momento, estamos nas mãos das agências de notação e algo deve estar profundamente errado quando os juros da dívida de Espanha são iguais aos do Paquistão. Acho que estamos a entrar numa disjunção que pode provocar contestação e é provável que ocorra ao nível europeu em geral e, portanto, em Portugal.

DN-Voltemos a prever. O que se segue?
BSS- Penso que nos próximos anos vamos estar perante esta opção: mercados sem fim ou democracia sem fim. Ou seja, os mercados vão regular tudo e assistiremos a um empobrecimento da grande maioria e ao enriquecimento absolutamente injusto de uns poucos.

DN- A União Europeia não conseguirá responder aos mercados?
BSS- Essa é outra questão que nem os portugueses nem os europeus estão a ver bem. Porquê? Se para Portugal a Europa foi até agora um benefício líquido que, desde 1986, alavancou um desenvolvimento notável através dos fundos estruturais e de coesão que nos deram oportunidades que se pensavam que eram sustentáveis, o que estamos a verificar é que a Europa desse período não é a de agora. Mudou, sem que se tenha alterado institucionalmente situações como o aprofundamento. Por isso, é dominada por interesses egoísticos nacionais.

DN- A solução da atual crise passa pela forte ajuda da União Europeia?
BSS- De uma coisa estou certo, a Grécia nunca vai poder pagar esta dívida à União Europeia se não houver uma reestruturação da dívida. Nem a Irlanda vai conseguir! Estes processos só se resolvem com um perdão de parte dessa dívida. Como se fez à Alemanha em 1950. As dívidas pagam-se com dinheiro, não é? De onde é que vem o dinheiro para o Estado? Dos impostos. De onde é que vem o dinheiro dos impostos? Do crescimento econômico! Se não houver emprego e crescimento econômico não encontro forma de a Grécia, a Irlanda, e de amanhã Portugal, a Espanha ou a Itália também pagarem. São os que estão na fila - Portugal, Espanha e Itália - e os mercados financeiros estão a apostar na bancarrota destes países porque vão ganhar muito dinheiro até que ela ocorra. Como é que é possível que os países funcionem nesta base quando se aposta na nossa falência e no lucro que ela dá?

DN- Então, Portugal não será capaz de pagar a sua dívida?
BSS- Se estas medidas de austeridade de curto prazo não forem compensadas com as de médio prazo, que só podem vir da União Europeia, para poder repor o crescimento econômico, Portugal, Espanha, Grécia e Irlanda não poderão pagar a sua dívida porque entrarão numa fase de estagnação econômica e ficarão sem recursos para pagar. Precisamos de medidas em médio prazo e de uma refundação da Europa com políticas conjuntas e solidárias, de modo a que a Europa se afirme como uma alternativa aos Estados Unidos e não permaneça totalmente subserviente da desregulação dos mercados.

DN- Mesmo quando a economia dos Estados Unidos já não é tão forte?
BSS- Os mercados favorecem, acima de tudo, os Estados Unidos, e não se pode deixar de pensar que estavam preocupados com a estabilidade do euro. Os Estados Unidos não tinham interesse em que o euro fosse uma moeda estável e, portanto, o ataque especulativo à Zona Euro começou pelos países mais fracos. Como os dirigentes europeus, com grande miopia e desconhecimento histórico, aceitaram que esta lógica suicida avançasse, bipolarizou-se a periferia e o centro da Europa perante a crise. Só que o que acontece à periferia hoje aparecerá no centro amanhã.

DN- O Presidente Obama defraudou a confiança europeia?
BSS- Penso que sim.

DN- Não é o tal amigo europeu?
BSS- Não é, de modo nenhum. Aliás, Obama desilude a muitos outros níveis porque tem a concepção de que acima de tudo é preciso defender os Estados Unidos. Está numa lógica nacionalista e como o seu país está em crise, procura ganhar alguns pontos à Europa.

DN- Houve boa aplicação dos fundos estruturais em Portugal?
BSS- Acho que não. Deveríamos tê-los utilizado de uma maneira muito diferente: numa aposta na educação que foi menos forte do que poderia ter sido. Temos, no entanto, feito uma boa aposta na ciência e na promoção do sistema científico nacional, apesar de não se ter feito a articulação da investigação científica com o desenvolvimento tecnológico. Para isso, falta-nos uma economia mais assente na grande inovação tecnológica, só que os lobbies ganharam e grande parte dos investimentos foram em exagero, mesmo se necessitássemos deles para auto-estradas.

DN- Se Portugal não consegue liderar na agricultura e na indústria, como é que iria fazê-lo na revolução tecnológica ou do conhecimento?
BSS- A agricultura foi um péssimo negócio em que Portugal entrou. Tínhamos uma das agriculturas familiares mais fortes da Europa e foi destruída em meia dúzia de anos porque o modelo agrícola da Europa é de grande extensão e de grandes empresas agrícolas e industriais. A nossa produção familiar até era produtiva ao seu nível e produzia, por vezes, também para o mercado. Hoje, está-se a tentar recuperar na Europa a agricultura familiar e nós, que tínhamos o potencial de ser a reserva da Europa da agricultura orgânica, ficamos para trás. As coisas foram feitas em Portugal sob complexos históricos do colonialismo e da ditadura e, quando se deu a entrada na União Europeia, aceitamos as coisas de uma maneira totalmente acrítica. A negociação não foi tão boa quanto devia ser feita.

DN- A culpa é só dos governos ou também dos próprios portugueses?
BSS
- É muito difícil responder porque eu sou daqueles que pensam que o Estado e a sociedade não se opõem mas crescem organicamente. Os Estados que são fortes e as sociedades civis fortes - o caso da Suécia e dos países nórdicos - têm sociedades civis muito organizadas e autônomas a par de Estados democraticamente fortes. Portanto, de alguma maneira, o Estado é o espelho da sociedade e não o seu oposto. Também, por isso, muitas críticas que se fazem ao Estado deviam fazer-se também aos empresários que não estiveram à altura das circunstâncias e das oportunidades dadas.

DN- Qual deveria ter sido a resposta?
BSS- Tivemos sempre uma burguesia muito dependente de mercados cativos - o das colônias, anteriormente - e mantivemo-los com as benesses dos fundos estruturais da Europa. E isso pode resultar da ineficiência do Estado e pode estar também ao nível dos cidadãos e da sua pequena motivação dentro da organização social. O que é estranho porque os portugueses motivam-se extraordinariamente quando emigram e são extraordinários produtores e empresários.

DN- Mas só em condições adversas?
BSS- Sempre disse que o nosso grande problema está nos empresários, que não estiveram à altura do risco e da capacidade de criar riqueza numa janela de oportunidade que tivemos e que praticamente se começou a esgotar no ano 2000. Foi a partir daí que começamos a derrapar e a deixar de nos aproximarmos da Europa. Desde então, temos vindo a distanciar-nos da média europeia e iremos continuar por esse caminho.

DN- Nem com as medidas já tomadas se pode evitá-lo?
BSS- Estes planos de austeridade podem acalmar os mercados - que são essa coisa mítica, mas que têm uma alma e vontade política por detrás desses falsos automatismos - e resolver a curto prazo o problema do déficit orçamentário, que é o problema de 2011. Mas não irão resolver em médio prazo porque nesse caso só temos uma solução: criar emprego e ter algum crescimento econômico.

DN- Que vai contra todas as medidas que o Governo está a tomar?
BSS- Neste momento, é essa a situação. Em médio prazo, podemos vir a ter uma recessão, ainda por cima num conjunto europeu em que o nosso maior cliente é a Espanha, que, provavelmente, vai estar em situação muito semelhante. Precisaríamos de golpes de asa, de medidas europeias e também de políticas inovadoras por parte dos nossos líderes. Situações excepcionais exigem soluções também excepcionais.

DN- Considera que este Governo já não conseguirá dar esse golpe de asa?
BSS- Nos governos europeus em geral criou-se uma ortodoxia que está a atravessar todos os líderes, sejam de esquerda ou de direita, que provoca uma certa exaustão em relação àquilo que é preciso fazer. Sabemos muito bem que, se neste momento queremos criar crescimento, é necessário ser mais tolerante com a inflação. Se calhar, o Estado pode ter de privatizar e até nacionalizar! Isto pode parecer um escândalo, mas se não houver a regulação dos mercados financeiros ou o Estado nacionaliza os bancos ou os bancos nacionalizam o Estado.

DN- Que é o que está a verificar-se?
BSS- É isso que está a suceder, os bancos estão a nacionalizar o Estado ao fazerem o que querem, ao terem perdas como as que se observam. Como os bancos não podem falir, nem pagam IRC como as restantes empresas, é evidente que estão a nacionalizar o Estado português porque cometem todos os erros que querem e têm os lucros que se vê, para os quais os portugueses continuarão a contribuir.

DN- Então, este Governo não será capaz de ter o golpe de asa que sugere?
BSS- Vejo com muita dificuldade que possa ocorrer. Penso que neste momento o Governo poderia aproveitar alguma transformação que ocorresse ao nível do Banco Central Europeu, onde há medidas urgentes que têm de ser tomadas. O Banco Central Europeu não pode continuar a ter o papel de emprestar aos bancos a um juro baixo e deixar que estes emprestem caro aos Estados. Nem podemos continuar a ter 10% do nosso PIB em offshores!

DN- Será preciso um novo governo?
BSS- Creio que tem de haver medidas mas não acredito que, na situação em que vivemos, elas venham por iniciativa própria. Nem deste governo nem, provavelmente, do que lhe suceder! Porque o que se vê num outro governo é que vão aprofundar-se medidas iguais. Será uma austeridade multiplicada.

DN- Você é um dos protagonistas do Fórum Social Mundial. Acha que o fórum poderá alterar a atual realidade?
BSS- O Fórum Social Mundial tem conseguido alterar mais do que se pode pensar e basta ver ao nível de temáticas que entraram na agenda política da última década. Provavelmente não teriam entrado de outra forma a questão da redução da pobreza, a das desigualdades sociais ou a consciência ecológica e ambiental. O fórum esteve também por detrás dos governos progressistas que existem na América Latina, onde aconteceu uma década gloriosa para países de grande instabilidade democrática e que tinham passado recentemente por ditaduras.

DN- A consciência ecológica não foi derrotada na Cimeira de Copenhague?
BSS- É evidente que parece que a agenda ambiental ficou para segundas núpcias. Não só em Copenhague como em Cancún, aqui até houve a ideia de que tinha havido finalmente algum progresso mas se analisarmos bem o que foi decidido deparamo-nos mais com obrigações para os países em desenvolvimento do que para os desenvolvidos, que continuaram sem grandes compromissos na redução ambiental. Aliás, Portugal tem dado uma lição - para que nem tudo seja negativo - com a reconversão energética que já atinge cerca de 25% da produção sob formas alternativas e renováveis.

DN- Disse em tempos que o Fórum Social Mundial era a grande invenção da 1.ª década do 3.º milénio e que a WikiLeaks é a grande da segunda década. Ainda pensa assim?
BSS- Creio que sim e que tem condições para o ser. A WikiLeaks ainda é muito recente para se verem todas as implicações que pode ter. O que o Fórum Social Mundial veio dizer foi que o neoliberalismo não é uma fatalidade e é possível criar espaços de manobra para reagir contra essa prática econômica. A WikiLeaks é, na mesma linha, um reforço da transparência dos governos. O que estamos a ver é que há um enorme despotismo por debaixo do verniz da democracia. As palavras que os políticos usam em público não têm nada que ver com as que utilizam em privado. As alianças que dizem estar a fazer estão completamente atraiçoadas pelas verdadeiras adotadas clandestinamente. Faz-se um discurso pró-democracia e tem-se uma tolerância total para com os crimes contra a humanidade.

DN- Mas a transparência da WikiLeaks não é só pela metade?
BSS- Não é uma transparência total, mas, penso, que uma das muitas WikiLeaks futuras possa vir a trazer mais. Como será o caso da dissidência OpenLeaks, tudo depende de saber se aquilo que há para saber foi destruído ou se ainda está em condições de ser utilizado. Para mim é muito estranho que Israel saia tão bem do retrato da WikiLeaks. Será que as suspeitas de que terá havido um acordo entre Julian Assange e Netanyahu são fundadas? Sob que condições, sob que ameaças? Os serviços secretos israelitas não olham os meios quando é preciso destruir inimigos como vimos recentemente com os líderes palestinos.

DN- Quem mais vai beneficiar-se?
BSS- O que acontece sempre é que os governos mais autoritários aproveitam mais estas oportunidades do que os movimentos sociais. Segundo Régis Debray, a revolução de Cuba apanhou os norte- -americanos de surpresa, mas foram eles que acabaram por aprender mais que os partidos de esquerda da América Latina com o fato.

DN- Qual será a lição da WikiLeaks?
BSS- Neste momento já estão a surgir novas medidas de segurança e penalizações ao nível do direito para tornar o Estado "wikiseguro". Os governos estão a tomar medidas no sentido de evitar que isto possa voltar a repetir-se. Não têm nenhuma garantia a não ser que a política volte a ser sob a forma diplomática presencial ou oral, o que é uma utopia porque não pode ser realizada. Muitas destas informações que temos hoje disponíveis foram dadas por quem tinha acesso à informação, ou seja, o poder está a perder a lealdade dos seus funcionários. Não podemos criar sociedades muito injustas e depois querer que aqueles que estão ao serviço do Estado sejam completamente leais para com ele.
.

segunda-feira, agosto 06, 2007




"Não entendo porque ainda se paga indemnizações da Reforma Agrária"
.

* JOÃO CÉU E SILVA
.
António Barreto Nasceu em 1942 É sociólogo e actualmente é investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa Foi ministro da Agricultura e Pescas no I Governo Constitucional (1976-1978) no Governo liderado por Mário Soares Investigador e autor de vários livros.
.
A cinco dias de completar 30 anos sobre a aprovação da lei que ficou com o seu nome, o sociólogo relembra os dias quentes das ocupações de terras no Alentejo e o cenário político da revolução. Longe dos tempos de ministro, hoje documenta na televisão o retrato dos portugueses e escreve a sua coluna semanal na imprensa. Amarga, porque "tem um compromisso de escrever sobre o que não está bem"
.
Trinta anos após a aprovação da Lei Barreto, ainda acredita nela?
.
Revejo-me no conteúdo da lei, porque naquelas circunstâncias era o que eu julgava ser possível fazer e que devia ser feito. Ainda há pouco tempo estive a relê-la e revi-me no que lá estava, no espírito essencial da reforma e da alteração da estrutura da propriedade. É claro que hoje tenho uma visão crítica em relação ao que se passou à época.
.
E naquela altura acreditava na lei?
.
Completamente, mesmo que até então em toda a minha vida como sociólogo e político tenha estado do lado das reformas e do lado dos sem-poder. Só que as circunstâncias da História foram tais que o que tive de fazer parecia o contrário, houve até alguém que disse a brincar que era a primeira pessoa que estava a fazer uma reforma agrária para tirar a terra aos pobres e dar aos ricos.
.
Foi o que aconteceu?
.
Não creio que isso fosse verdade no sentido profundo, mas quando cheguei ao Governo o que encontrei foi a inversão total do que se passaria em condições normais para se fazer uma reforma agrária que distribuísse as terras dos grandes proprietários pelos pequenos agricultores e trabalhadores sem ela. Parecia que estava a fazer o contrário, mas o facto é que as terras já estavam nas mãos das UCP (unidades colectivas de produção), dos sindicatos e do Partido Comunista Português (PCP) - não vale a pena estarmos com eufemismos! - e havia que retirar-lhas para que se pudesse legalizar a situação criada e devolver aos proprietários as reservas a que tinham direito. Portanto, era preciso retirar as terras a quem já as tinha como se fosse um poder soberano. Evidentemente, a Reforma Agrária que eu gostaria de ter feito era a primeira e não esta.
.
Que era mais uma contra-reforma agrária?
.
Hoje, entendo que em Portugal se deu uma contra-revolução e foi preciso repor o rumo que a revolução tinha tomado. Em certo sentido, houve uma contra--reforma agrária. Até hoje pagam-se indemnizações.
.
Porquê tanto tempo?
.
De vez em quando leio no jornal que o Estado pagou mais uma indemnização! Gostava de saber a razão, porque não me parece normal que 30 anos depois ainda estejamos nisto. É possível que haja gente que se aproveite.
.
Foi complicado tirar a terra a quem a estava a trabalhar?
.
Não. Eu tinha absoluta convicção e certeza de que não estava a tirar as terras aos verdadeiros agricultores, mas a uma espécie de cartel entre o PCP, os sindicatos e as direcções das UCP. Além disso, sabia que tinha o apoio eleitoral e político da maior parte dos trabalhadores do resto do País. Estamos a falar de dezenas de milhares de trabalhadores rurais para com os quais eu tinha de ter compreensão, mas, por outro lado, havia em Portugal mais uns milhares de trabalhadores que tinham votado nas eleições meses antes - contra uma votação muito reduzida no PCP - com um enorme voto no PS e no PSD.
.
Fala em compreensão porquê?
.
Porque eram homens e mulheres que não tinham outra solução para viver a não ser integrar as cooperativas. Não havia emprego privado, os proprietários tinham fugido, abandonado ou ficado sem terras e não iriam investir na região, por isso não havia emprego ou trabalho e a única solução era emigrar para a cidade ou para o estrangeiro ou, então, aderirem às cooperativas. Até porque nas UCP tinham o vencimento mensal garantido - que era coberto pelo sindicato, pelo ministério e recoberto pelo Banco de Portugal - e eles precisavam de educar os filhos, viver e sobreviver.
.
Mesmo assim avançou com a sua lei?
.
Não hesitei um segundo porque se o Alentejo fosse deixado conforme estava não haveria regime democrático que vingasse. O que se fez no Alentejo foi contra a própria lei que o PCP aprovara seis meses antes, e as cooperativas desrespeitaram o dispositivo legal para seguirem em frente. O próprio PS propunha a Reforma Agrária no seu programa!Mas deixou-se ultrapassar pelo PCP.
.
Quem é que lidera o processo de ocupação de terras, o PCP ou os camponeses?
.
É o PCP que lidera. Ainda não havia legislação para avançar com a Reforma Agrária, ainda não tinham tido lugar os acontecimentos do 11 de Março de 1975 nem o acelerar da Revolução de Abril e o PCP já tinha colocados no Alentejo muitos quadros e uma organização incomparavelmente mais poderosa que qualquer outro partido. Além de que são apoiados pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), onde há comunistas e soldados e oficiais de esquerda e de extrema-esquerda que estão muito activos na questão agrária. Muitas das ocupações são efectuadas com jipes e metralhadoras como se fosse uma ocupação militar.
.
Houve uma estratégia programada?
.
Os militares sabiam o que ia ser ocupado no dia seguinte e na próxima semana. Confirmei-o sete anos depois quando realizei e coordenei uma série de estudos sobre a Reforma Agrária e consultei os arquivos da Região Militar Sul. Havia relatórios enviados para os centros da Região Militar pelos sindicatos de trabalhadores agrícolas - nunca pelo PCP - em que listavam as herdades que seriam ocupadas e as horas, assinados por conhecidos membros do PCP. Militantes que enviavam também memorandos ao general Vasco Gonçalves sobre vários assuntos da agricultura.
.
Qual foi o papel de Vasco Gonçalves?
.
Com vontade própria, mas totalmente associado ao PCP. Ele não andava a reboque, tinha vontade própria, que era igual à do PCP. Até penso que em certos momentos Álvaro Cunhal queria moderar e deixou o primeiro-ministro e os militares correrem sozinhos. O PCP tinha de pensar no futuro, sempre foi uma organização com uma visão meticulosa da correlação de forças e quando se apercebia que corria riscos, travava.
.
Há uma altura em que há pouco para ocupar?
.
Havia ainda uma grande área no Ribatejo por ocupar, de grandes herdades. Se a correlação de forças tivesse permitido, teriam seguido pelo Ribatejo, Castelo Branco e Portalegre. Até às eleições de Abril de 1976 ainda se fizeram ocupações e o ministro Lopes Cardoso (PS) não as impediu.
.
Que determina a sua demissão?
.
Ele queria fazê-lo legalmente, ao contrário dos comunistas. Foi um erro estratégico fazerem-lhe a vida difícil, pois serão derrotados no Parlamento e no terreno. Faltou-lhes autocrítica, deixaram de ser ofensivos e passaram à resistência. No entanto, se o PCP deixasse de ser resistente, talvez vinte anos após não fosse o mais importante na Europa. E a agricultura acabou no Alentejo... Não é só no Alentejo, é no País, por causa da UE.
.
in Diário de Notícias 2007.08.05
.
NOTA
.
* Victor Nogueira
.
O Senhor Dr. Barreto acha altamente censurável que sectores das Forças Armadas apoiassem os assalariados agrícolas do Alentejo na ocupação de terras, muitas delas ao abandono ou trabalhadas de modo primitivo. Mas o mesmo senhor acha natural que as Forças Armadas tivessem posteriormente apoiado os latifundiários na expulsão dos trabalhadores da UCP. O sociólogo senhor Barreto escuda-se na maioria obtida pelo PS/PSD a norte do Tejo para dizer que o Sul minoritário não podia impôr a sua vontade - a propriedade colectiva do solo - ao resto do País, esquecendo que no Norte, com o sentido individualista da posse da terra, a Reforma Agrária passava pelo emparcelamento e cooperação entre os pequenos proprietários - e aí, graças à mentira e à rede bombista, venceram os que falsamente defendiam uma vida melhor para todo o Povo.
.
No Sul, onde não havia o sentido da posse individual da terra, formaram-se as Unidades Colectivas de Produção, logo boicotadas pelos «constitucionais» Governos do PS/PSD. Mas no Sul, então, venceu esmagadoramente o Partido Comunista.
.
Estranho que um sociólogo e estudioso de alto gabarito como o senhor Barreto desconheça esta verdade elementar, este b-a-bá da realidade agrícola portuguesa.
.
As terras voltaram para os agrários mas a produção agrícola, piscícola e transfomadora foram extintas graças aos interesses da UE e à subserviência dos Governantes e Políticos do PS/PSD.
.
Na história da classe capitalista talvez o senhor Barreto seja um herói, um nome a citar, quiçá com direito a estátua. Para os assalariados agrícolas alentejanos e na história de quem foi aparentemente derrotado será sempre o autor da lei da contra-reforma agrária, que ele confessa ter sido. Foi um homem que saíu do PCP para a extrema esquerda que hostilizava o PCP, para acabar no seio do PS.
.
A talhe de foice: onde param as pequenas propriedades agrícolas que, no Alentejo, o senhor Sá Carneiro distribuíu por pequenos rendeiros, em grande aparato televisivo?

quarta-feira, abril 18, 2007


Álvaro Cunhal e as mulheres que tomaram partido (*)

Novo livro de João Céu e Silva


Esta é uma edição que honra a Asa, pelo esmero e beleza do livro como objecto, mas sobretudo pelo paciente, interessantíssimo (e tão rico de resultados) jornalismo de investigação que João Céu e Silva levou a cabo, unindo o rigor à sensibilidade e ao tacto. Está sempre presente a sua profunda compreensão dos seres humanos, uma desvelada atenção, onde transparece o afecto a cada uma destas mulheres que, como ele diz no título, «tomaram partido».

Tomar partido era, nesse tempo de trevas, sujeitarem?se ao desconforto, ao mau passadio e correr o risco da prisão, da tortura, de todos os vexames que é possível infligir a uma mulher.

João Céu e Silva interroga e elas respondem, mulheres de Lisboa ou do Couço, de origem burguesa ou operária ou camponesa e nos depoimentos, geralmente muito simples e directos, falam das famílias, dos estudos, as que os tiveram, da tomada de consciência, das privações da clandestinidade, do seu sentido de missão (de como se sacrificavam para dar apoio à imprensa clandestina e quanto sofriam por vezes de solidão), dos companheiros que acabavam por escolher, dos camaradas com quem por vezes simulavam estar casadas, das qualidades de uns e outros, do machismo residual de alguns. E uma luz de sacrifício, de coragem, de superação dos limites banha muitas dessas páginas.

É um documento valiosíssimo e, na sua humildade, cheio de grandeza.

Álvaro Cunhal está, mesmo quando ausente, muito presente neste livro, a partir de memórias, do conhecimento que dele tiveram muitas dessas heroínas apagadas.

Aqui surgem figuras brilhantes, no coração da batalha, como outras menos notórias mas não menos generosas, que foram nalguns casos terrivelmente marcadas pelo sofrimento e por experiências de autêntico martírio, quase incríveis, tão sujos e brutais nos surgem aqui descritos os «interrogatórios».

Registo alguns nomes (o inventário está longe de se esgotar na história destas tão naturais, tão singelas heroínas) para vos convidar a mergulhar nestas conversas reais, na descoberta de um mundo sempre surpreendente: Maria Júlia Mendes Brito, Maria Machado, Georgette Ferreira, Sofia Ferreira e Mercedes Ferreira, Maria Armanda Serra, Maria Carvalho, a já citada Margarida Tengarrinha, Maria da Piedade Gomes, Teodósia Gregório, Isaura Moreira, Sisaltina Santos, Conceição Matos, talvez de todas a mais cruelmente torturada, Veríssima Rodrigues, Maria Lourença Cabecinha, Laura Vieira, Olímpia Braz, Ortelinda Nunes, Narcisa Aleixo, Vitalina Pires, Francisca Aço, Margarida Nunes, Maria Galveias, Catarina Pires.

Maria Eugénia Cunhal fala das lembranças que tem do irmão Álvaro. João Céu e Silva esteve em muitos centros de trabalho do PCP, andou pelo Couço e pelo Barreiro, recolheu todo este material vivo e autêntico, forte e comovente, compilou testemunhos riquíssimos do ponto de vista histórico, sociológico e humano.

Mostra?nos o Portugal secreto dos anos do fascismo, com incidência nos duros anos quarenta e cinquenta.

Devemos?lhe uma palavra de agradecimento, não só os comunistas, mas os portugueses em geral por esta desocultação da história, por este contacto tão próximo que nos proporciona com as mulheres que, afrontando todos os riscos e dificuldades, especialmente a prisão, que a muitas arruinou a saúde, consagraram os melhores anos das suas existências às tarefas clandestinas da resistência.

(*)Asa Editora, Porto, 2006, 332 pp.

in AVANTE 2006.11.16