A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht
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sábado, março 12, 2016

Manuel Loff - Cavaco e o cavaquismo (I)

OPINIÃO



“Agora acabou mesmo”, terá dito. Assim o esperamos. Quando se completarem, dentro de mês e meio, 42 anos de democracia em Portugal, 21 - isto é, metade - terão sido vividos com Cavaco Silva em lugares de topo do Estado: ao mais longo ciclo de governos consecutivos do mesmo primeiro-ministro (1985-95) acrescentou-se outra década, correspondente aos dois mandatos presidenciais de 2006-16. Antes, Cavaco fora já o homem das Finanças de Sá Carneiro, no primeiro governo da AD (1980), nomeado para “ajustara economia ao ciclo político-eleitoral”, isto é, manipular a política económica para ganhar eleições, aquilo em que Cavaco se “revelaria exímio”, segundo Sousa Franco (“A economia”, in Portugal, 20 anos de democracia, 1993). E precisamente o contrário do que nos quis convencer todo este tempo: que nunca governou com os olhos nas sondagens ou nas eleições. Encher os seus discursos de tiradas moralistas que contradizem muito do que ele fez e foi é um dos seus traços de caráter.
Dir-me-ão que é coincidência, mas a verdade é que ele chegou à chefia do Governo seguindo o mesmo percurso de Salazar: começando pela pasta das Finanças. É a partir dela que se controla toda a Administração Pública, é para lá que convergem os interesses todos de quem, nas elites económicas, precisam da cumplicidade ou da tolerância do Estado. Estávamos em janeiro de 1980, Cavaco tinha 40 anos, um ano mais que Salazar quando este, em 1928, é convidado pelos militares para o Governo. A direita tinha ganho pela primeira vez as eleições, cinco anos depois do 25 de Abril. Quando, depois de Camarate, Balsemão substituiu Sá Carneiro, Cavaco abandonou o governo. Hoje é fácil perceber que aquele ano no poder lhe deixara ambições (outra coisa que ele negou sempre). Com o apoio de Eurico de Melo e Santana Lopes, conspirou dois anos seguidos contra Balsemão, levando à sua queda no verão de 1981, mas foi, uma vez mais, preterido ao vê-lo reconstituir governo logo a seguir.
O homem cujos panegiristas juram ser vítima do “preconceito social e cultural da esquerda e direita bem pensantes” (Paulo Rangel, PÚBLICO, 8.3.2016) partilhava a mesma geração com Sá Carneiro e com Balsemão (todos tinham entre 34 e 39 anos no 25 de Abril), mas, ao contrário deles, não podia dizer que havia tido alguma militância minimamente liberal contra a ditadura, ou sequer ter participado naquilo que ele próprio chamaria o combate contra “uma  ditadura marxista e coletivista” que, sempre segundo ele, se tentara impor em 1975. Uma espécie de virgindade politica que o ajudou a ser o primeiro à direita a reunir, mais do que Sá Carneiro ou Freitas do Amaral, um consenso generalizado entre aqueles que nunca se reviram no 25 de Abril e na democracia. Por algum motivo Kaúlza de Arriaga terá percebido nas eleições de 1987, as da primeira maioria absoluta de Cavaco, “o primeiro passo de salvação e recuperação nacionais” (Guerra e política. Em nome da verdade, 1988). Sendo certo que a direita adotara antes dele um primeiro projeto de reversão global do legado revolucionário em que se originou a nossa democracia, foi ele  política e historicamente, o campeão do revanchismo contra o 25 de Abril. Sá Carneiro tinha querido “Um governo, uma maioria, um Presidente”, mas fracassaria no seu confronto com Eanes (que, contudo, havia sido o seu candidato em 1976). Mais grave, tinha querido passar por cima de todas as regras e rever a Constituição por referendo, sem passar pelo Parlamento, mas seria já o seu sucessor, Balsemão, a chegar a acordo com o PS na primeira revisão constitucional, em 1982, para eliminar o Conselho da Revolução, que, último órgão de soberania diretamente herdeiro do 25 de Abril, e apesar de tomado pelos militares conservadores nomeados por Eanes, ainda era uma “força do bloqueio” daqueles projetos. Seria, contudo, só em 1989, já com Cavaco, que se eliminaria a maioria do programa económico (nacionalizações, setor empresarial público, Reforma Agrária, controlo operário) que a Constituição de 1976 prescrevia. Claro que ela fora aprovada pelo então PPD (incluído o então deputado constituinte Marcelo Rebelo de Sousa), mas, para Cavaco, ela não passava de um documento eivado de “coletivismo” redigido sob a “ameaça de totalitarismo de Estado [que se] instalou em Lisboa” (discursos de 1988 e 1990). Mais longe da origem da democracia portuguesa não se podia estar.
O homem que tanto fala de lealdade e de amplos consensos politicos rompeu o Bloco Central com o PS mal chegou à liderança do PSD, forçando novas eleições, que ganhou com a mais pequena das vitórias eleitorais (29,8% dos votos). Sabia que valia a pena arriscar um governo minoritário: mesmo que a direita não tivesse maioria parlamentar, a esquerda estava mais dividida que nunca pela irrupção do PRD e pela teimosia de Soares em querer ser candidato presidencial; acima de tudo, esmagada a força de trabalho por dois resgates do FMI (1978-79 e 1983-84), regressada a pobreza às ruas e às casas, mas ainda com a banca nacionalizada, o banco central e a política cambial nas mãos do Estado e uma maré de fundos europeus que começariam a fluir dois meses depois do seu regresso ao Governo, Cavaco sabia que disporia das condições que nenhum antecessor seu havia disposto.
Foi, desde o início, um teimoso da autovimização - o que Sócrates, vinte anos depois, tentaria imitar. O seu “deixem-nos trabalhar!” adaptava-se quer à curta fase (1985-87) de governo minoritário (orçamentos alterados na Assembleia, ...), quer aos oito anos de maiorias absolutas em que as suas queixas contra o Tribunal Constitucional e o de Contas, ou contra os vetos presidenciais, diziam bem de quanto ele é avesso à lógica mais básica da divisão de poderes de todo o constitucionalismo. O seu “Nunca me engano e raramente tenho dúvidas” ocupa, neste sentido, o mesmo lugar simbólico do “Sei muito bem o que quero e para onde vou!” de Salazar. Cavaco, mais do que qualquer outro líder da direita portuguesa desde 1974, quis encarnar aquilo de que não prescinde nenhum projeto autoritário: umdecisionismo que não reconhece legitimidade a obstáculos legais, no seu caso, ainda por cima, envernizado de competência técnica (um catedrático à frente do Governo, exatamente como Salazar e Caetano).
O homem que garante que “para serem mais honestos do que eu tinham que nascer duas vezes” rodeou-se nesses dez anos de uma clique de oportunistas que teve no BPN a sua representação mais acabada. O seu governo não consolidou apenas um padrão de co-gestão do Estado pelos novos oligarcas. Ele inverteu em tudo quanto pôde do projeto emancipador do 25 de Abril e abriu o caminho que nos trouxe, via privatizações, financeirização e euro, até ao estado desgraçado em que estamos.
https://www.publico.pt/opiniao/noticia/cavaco-e-o-cavaquismo-i-1725915?page=-1

sábado, janeiro 30, 2016

Manuel Loff - Profecias Políticas


OPINIÃO

Profecias políticas

tempo novo de que falava Nóvoa não acabou, claro. Mas vai ter em Marcelo um adversário de peso. 
… e o herdeiro está eleito! Não arrasou, longe disso, mas acrescentou 200 mil votos aos 2,2 milhões que a PAF e o resto da direita juntaram em outubro Cavaco foi eleito em 2006 com 360 mil votos mais, Sampaio (1996) e Soares (1986) com mais 700 mil. Marcelo fica para a história da democracia como o Presidente eleito pela primeira vez com menos votos. Persistente como ninguém, arguto como poucos, reunia algumas condições para poder ser imbatível: a campanha dos afetos, dos pastéis e das pastilhas, sossegou muitos dos que querem que o governo Costa tenha sucesso, o professor que desde 2000 se fez passar por apartidário. As que lhe faltassem, ofereceu-lhas a esquerda, e o PS em primeiro lugar.
Como profecia, prever a sua eleição era a menos difícil de acertar; sempre pensei que, com 10 candidatos, e a esquerda mais dispersa que nunca, era dificílimo derrotá-lo. Outra coisa seria, claro, se o candidato à direita fosse Rui Rio ou Santana Lopes! O que é revelador é como, a propósito das presidenciais, e coincidindo com a discussão do Orçamento, tão depressa se voltou ao clima político dos meses de preparação do(s) acordo(s) à esquerda. As mesmas vozes da desgraça que antes gritavam “the Reds are coming!”, são as que agora os veem moribundos e, por isso, raivosos: “declínio definitivo” do PCP e Bloco reforçado levará a “exigências inaceitáveis” e à rutura! Chama-se a isto wishful thinking: ler na realidade o que se quer que a realidade seja.
O anúncio da morte do PCP (como em 1987, 1989-91, 2002...) é o mesmo da morte do BE nos últimos quatro anos e a da “inconsistência” de Catarina Martins. Há aqui uma obsessão pela profecia, uma vontade de encontrar em cada momento vivido um “fim da história”, produzindo interpretações que morrem em cada novo dia, para serem logo substituídas por outras que terão mesmo destino...
Se se tem generalizado a tendência para personalizar todas as eleições em Portugal, há uma eleição em que as candidaturas são estritamente individuais: a do Presidente da República. Mais do que nos demais casos, nesta são sistematicamente desfavorecidas as candidaturas que, aos olhos dos eleitores, aparecem com menos chances de eleição. Se o mesmo pode acontecer nas legislativas (ainda que não se eleja nunca um Primeiro-Ministro), esta é a natureza própria da eleição uninominal: a apreciação do candidato depende da perceção da sua elegibilidade - a menos que ele consiga apresentar-se como um candidato anti-sistémico, de protesto, o que (quase nunca) é o caso dos candidatos partidários. Neste contexto, o PCP, o BE ou o CDS sabem que, se assumirem candidaturas de iniciativa exclusiva sua (Marisa Matias e de Edgar Silva nesta eleição, ou Louçã, Fernando Rosas, Jerónimo, Francisco Lopes, etc...), se arriscam mais fortemente do que em qualquer outra a que o voto útil dos eleitores da sua área se dirija ao candidato mais bem posicionado à esquerda ou à direita. É por isso que nas eleições presidenciais se tende – ou melhor, tendeu - à convergência da indicação de voto no mesmo candidato por parte de forças políticas por vezes muito díspares: Eanes teve o apoio do PS, PPD e CDS (1976), ou do PS e do PCP (1980); Sampaio de toda a esquerda (1996). É por isto que o CDS apresentou sozinho um candidato uma única vez (1991, Basílio Horta contra Soares apoiado pelo PSD), e que o PSD nunca o fez. Cavaco foi apoiado por toda a direita nas três presidenciais a que se apresentou – e em duas delas (1996, 2011), depois de Manuel Monteiro e Paulo Portas terem dito dele o que disseram... À direita, só nas duas primeiras eleições se apresentaram candidatos alternativos ao cavalo ganhador: Pinheiro de Azevedo (1976), Pires Veloso e Galvão de Melo (1980). Desde então, o que vigora é a unicidade - e engolem-se os elefantes que houver que engolir.
À esquerda do PS, e desde 2006 no próprio PS, pelo contrário, a norma é a dispersão de candidaturas, apresentados para marcar posição - e para condicionar uma eventual 2.ª volta que uma só vez (1986) ocorreu. Nas nove eleições presidenciais, o PCP apresentou sempre um candidato autónomo, mas apenas em seis (Pato, 1976; Carvalhas, 1991; Abreu, 2001; Jerónimo, 2006; Lopes, 2011; e agora Edgar Silva, 2016) as suas candidaturas foram até ao fim. Destes, apenas Carvalhas e Jerónimo tiveram melhores resultados que a CDU em legislativas; nos outros casos, a desmobilização dos eleitores típica das eleições presidenciais e o voto (considerado mais) útil (em Otelo, em 1976; em Sampaio, em 2001; em Nóvoa, há uma semana atrás) fez com que os candidatos comunistas perdessem 25%-50% dos votos obtidos em legislativas precedentes. O PCP defendeu sempre a máxima de dever manter uma voz autónoma em cada ato eleitoral – mas não teve problemas em convergir em candidaturas mais amplas: na da reeleição de Eanes (1980) contra o sonho da AD de “um Governo, uma maioria, um Presidente”; na de Zenha (1986), para impedir que o chefe do governo do Bloco Central (Soares) pudesse passar à 2ª volta; na de Sampaio (1996), para impedir a eleição de Cavaco logo depois de este ter deixado o Governo. Em suma, o PCP não precisou de ir sempre até às urnas para manter a autonomia da sua voz. O aparecimento do Bloco, em 1999, acabou por acrescentar um novo obstáculo a que à esquerda do PS se encontrassem candidaturas de convergência alternativas a um PS que, como se confirma, não apoia nunca candidatos que não sejam estritamente partidários (Eanes foi a exceção, explicável pelo contexto pós-revolucionário). Em 2001, 2006 e 2016, o PCP e BE competiram entre si – quase sempre (salvo Rosas, 2001, e Jerónimo, 2006) para ambos perderem votos. Em 2011, o BE convergiu com o PS para apoiar Alegre; o seu mau resultado não reverteu a favor do candidato comunista (Francisco Lopes), ainda que este tenha conservado mais eleitores da sua área que Alegre.
2016 podia ser a exceção: o PS não tinha candidato próprio, deixando que Nóvoa, com uma identidade cívica e política que parecia coerente com a convergência que se conseguiria à esquerda em torno de um programa mínimo de governo, fosse ocupando o espaço. O aparecimento de Maria de Belém, contra a “esquerda radical” que Nóvoa representaria, fez com que muitos pensassem que Marisa e Edgar poderiam desistir no último momento a favor de Nóvoa. Foi o que muitos eleitores da CDU pensaram, mas não os do BE. Pelo caminho, muitos se convenceram que Marcelo ganharia à primeira, pelo que seria inútil desistir a favor de alguém que não disputaria uma 2.ª volta. Pela sua parte, o PCP deixou que se queimasse um dos candidatos mais interessantes e originais que alguma vez apresentou. Cumpriu uma regra – mas perdeu, mais do que outros, esta batalha política. Mas nada disto é a sua morte nem o seu declínio.
tempo novo de que falava Nóvoa não acabou, claro. Mas vai ter em Marcelo um adversário de peso.
https://www.publico.pt/politica/noticia/profecias-politicas-1721846?page=-1

quinta-feira, dezembro 12, 2013

Manuel Loff - Violência ?

OPINIÃO

Violência? (I)

A resistência tem-se feito sem violência física! E a direita é a primeira a não se conformar com a sua ausência. Porquê?
A polémica está aí: aproxima-se um ciclo de violência social em Portugal? Ou de violência é já feito o nosso quotidiano desde há, pelo menos, os três anos do protetorado da troika? Haverá entre nós uma cultura da violência que propicie a sua expressão sociopolítica nos próximos tempos?
Aquilo que estamos a viver e o pavoroso processo de degradação da democracia têm pouco ou nada a ver com tudo quanto foi a nossa história recente, desde que, pelo menos, a Constituição entrou em vigor. Não é preciso estarmos radicalmente contra a receita que nos prescrevem (mas a que não se submetem aqueles que prescrevem) para perceber esta natureza diferente do que nos está a acontecer. É a própria ministra Maria Luís dos Swaps que apresenta o OE como produto daexcecionalidade em que vivemos.
Já aqui o escrevi várias vezes: não estamos face a uma simples viragem de política económica, nem a uma mera reforma do Estado. O que se está a fazer em Portugal é uma mudança de regime! Ela decorre do austeritarismo que nos impõe este Governo e nos começaram a impor os três anteriores, escorados, desde 2011, numa troika que ninguém elegeu e que ninguém submete a controlo democrático. Os vencedores das últimas quatro eleições não levaram a votos nenhuma destas medidas, escudando-se, uma vez chegados ao poder, na excecionalidade. Essa é a regra de qualquer ditadura: em nome do que os governantes definem como o bem comum, toda a norma se auto-justifica pela sua origem num sistema de decisão que não tem – aliás: não deve! (cf. Salazar e apureza da decisão) – que consultar os dominados, muito menos ratificar qualquer coisa que eles próprios não saberiam entender. Os súbditos de semelhantes regimes são tratados como pacientes que não entendem o diagnóstico do que sofrem, muito menos entenderão a cura! É o que anda por aí a pregar João César das Neves, essa pobre e lutadora “voz da consciência”, “merecendo insulto e agressão”, que se confronta com um povo para quem “revelar a realidade é intolerável”. Neves é outro dos intelectuais orgânicos da direita para quem a democracia em que vivíamos era uma ilusão, que há que substituir pelo realismo – e um realismo moral: “Portugal viveu décadas de grandezas a crédito, que só podia acabar numa crise terrível. Agora, quando a inelutabilidade da dívida nos apanhou, inventamos novas ilusões para nos eximirmos às responsabilidades e justificarmos a raiva contra os cortes inevitáveis.” É isso mesmo: você, que não se chama Oliveira e Costa, Dias Loureiro ou Alberto João, por exemplo, andou, admita-o!, a viver de “grandeza a crédito” e quer agora fugir com o rabo à seringa, e “justificar” a sua “raiva” com “novas ilusões” – por exemplo, renegociar a dívida, querer saber se é legítima toda ela, querer que a pague quem a contraiu. “E ai de quem desmascarar essas tolices!”, “esta fantasia, em que todo o aparelho político-mediático anda apostado desde então”, esta “magna operação de desinformação”, escreve o profeta da Universidade Católica (DN, 25.11.2013). Neves não é um qualquer ministro (chegará o dia...) a dizer-nos que é “excecional” o que se nos impõe, que tudo pode até ser reversível quando nos voltarmos a portar bem. Ele quer convencer-nos da nossa culpa coletiva: fomos nós e só nós a correr para o precipício!
Perante semelhante manipulação e inversão dos fatores da história recente da economia e das relações sociais em Portugal (quem decretou a entrada no euro?, quem liberalizou as transações financeiras e a circulação de capitais?, quem fechou os olhos a todas as trapaças da banca?, quem privatizou tudo o que pôde e substituiu empresas públicas por PPP ruinosas?, quem congelou, e depois degradou, salários e empurrou assalariados ao crédito?, quem disse depois que isso era prosperidade?), é de admirar que a “raiva” (Neves dixit) tome conta de quem se vê esbulhado, hostilizado, empobrecido, angustiado, e, ainda por cima, responsabilizado por tudo isto?...
A direita, ou pelo menos os intelectuais orgânicos que por ela fazem o serviço de soltar nos media o que a maioria dos governantes ainda se não atreve a verbalizar, está há anos à espera da violência dos resistentes e dos inconformados; não precisa que Mário Soares ou Helena Roseta a invoquem, advertindo da sua eventualidade. A direita sabe bem das consequências sociais do que anda a fazer e surpreende-se (e não só ela) da ausência de violência física nas manifestações e nas greves desde que começou a mais intensa (desde 1975) fase de mobilização social em que os portugueses se envolveram, começada ainda em pleno Governo Sócrates. Anda à espera das montras partidas, dos polícias agredidos, de assaltos a supermercados, quem sabe se de algum atentado. Anda há meses a gritar que “vem aí o lobo!” Veja-se a reação patética da presidente da Assembleia, que comparou com nazis os manifestantes indignados nas bancadas do público que interromperam uma votação; veja-se os disparates daqueles que acharam que grandolar Relvas, Passos ou Crato era pôr em causa a liberdade de expressão (excluída, claro está, a expressão no Diário da República...).
Essa é a realidade, surpreendente ou não: a resistência tem-se feito sem violência física! E a direita é a primeira a não se conformar com a sua ausência. Porquê?
 

OPINIÃO

Violência? (II)

A morte de Nelson Mandela trouxe de novo à ribalta o debate sobre a legitimidade da violência como forma de resistência perante a injustiça, a opressão. Não creio ser preciso retomar os exemplos da desavergonhada hipocrisia que por aí vai (Cavaco, Durão Barroso, Cameron e tutti quanti) relativamente ao homem que, em 1964, explicara porque se “sentira moralmente obrigado” a recorrer à violência contra o apartheid perante o tribunal que o condenaria a prisão perpétua. Bastará reler o que ele então disse: “A dura realidade era que a única coisa que o povo africano tinha conseguido depois de 50 anos de não violência era uma legislação cada vez mais repressiva e direitos cada vez mais mitigados. Nesse momento, a violência já se tinha convertido, de facto, num elemento caraterístico da cena política sul-africana”, porque decorria do próprio sistema de “supremacia branca”. “Cheguei à conclusão de que a violência era, neste país, inevitável, seria pouco realista continuar a pregar a paz e a não violênci
O que Helena Roseta disse há dias atrás, no chamado Encontro das Esquerdas da Aula Magna, não é muito diferente: "Quando um povo é privado dos seus direitos e de uma forma violenta se vê privado dos seus meios de subsistência e se vê privado do direito a uma vida decente em todas as idades – em particular na idade mais idosa –, quando isso acontece, toda a doutrina, incluindo a doutrina social da igreja, diz que nesses casos a violência é legítima para pôr cobro à violência" (Negócios online, 22.11.2013). Onde está, afinal, a surpresa? Um dos documentos fundadores da modernidade política e do Estado liberal, a Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, não dizia já em 1789, no seu artigo III, que um dos “direitos naturais e imprescritíveis do homem” era o da “resistência à opressão”?

Não sei se Roseta pensa que é iminente em Portugal a irrupção da violência por motivos sociais, praticada por quem é vítima desta vastíssima operação de expropriação dos assalariados e dos mais pobres que estamos a viver. Pessoalmente, não estou convencido que assim seja. Nem convencido, nem desejoso – nem ela o estará. A violência dos oprimidos coloca-os, antes de mais, à mercê do imenso poder opressivo do Estado (vale a pena recordar o que hoje sabemos sobre o controlo e a vigilância totalitárias a que estamos sujeitos por parte dos serviços de informação?) e dos ricos que dispõem de dinheiro para pagarem a quem, dentro ou fora do Estado, consiga replicar a violência que este pode praticar. Por outro lado, a degradação moral que é intrínseca à violência física, e que raramente incomoda algum dos opressores que a ela recorre, é o primeiro dos fatores de divisão dos oprimidos. Foi sempre assim na história portuguesa desde o séc. XIX: enquanto as direitas raramente hesitaram em recorrer à violência contra a mudança, as esquerdas dividiram-se perante a utilidade, a finalidade e a legitimidade desta. Se é certo que a ditadura caiu em 1974 pela força militar, é sintomático que tal tenha acontecido sem derramamento de sangue (salvo o dos assassinados pela PIDE no próprio dia 25 de abril). E é identicamente revelador que em todo o processo revolucionário português tenham morrido 16 pessoas por motivos políticos, quase todos assassinados pela extrema-direita bombista – contra quase 591 na tão modelar transição democrática espanhola, quase 200 dos quais, segundo Mariano Sánchez (La Transición Sangrienta, Península), vítimas de violência “organizada, animada ou instrumentalizada pelas instituições do Estado”. Não digo que sejamos uma sociedade imune à violência, nada disso. Digo é que ela não tem, desde há muito tempo, sustentação social representativa no terreno sociopolítico.

Estou, sim, convencido que vivemos uma mudança de regime que não precisa (ainda...) de carros armados nas ruas e esquadrilhas aéreas a sobrevoar cidades. Mas a violência está aí, contamina todo o nosso quotidiano. A violência que exerce o patrão sobre o trabalhador, impondo-lhe regras não negociadas, ameaçando-o de desemprego, ainda por cima respaldado por um governo que descreve o processo como “flexibilidade laboral”. A do banco sobre o devedor, o mesmo banco que esbanjou fortunas em aventuras offshorianas para alguns dos seus acionistas, que abriu um buraco negro de proporções cósmicas na nossa economia que está a ser pago por quem sofre cortes salariais que ajudam a tornar impossível pagar dívidas. A violência do ministro que decreta e a do deputado que aprova o empobrecimento dos assalariados e o agravamento da miséria daquele a quem esta violência já despojou do emprego. Ou a violência, muito mais direta, do polícia sobre o manifestante (até mesmo quando ele é outro polícia...) – ou julgar-se-á, por acaso, que todas estas não são formas de violência?

A direita bem pode fingir que anda à espera da violência nas ruas. O que ela procura esconder é que a violência já cá está há muito tempo. E não é da responsabilidade de nenhum manifestante.

http://www.publico.pt/politica/noticia/violencia-ii-1615952