A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht

segunda-feira, dezembro 14, 2015

Elisabete Miranda - As 1000 famílias que mandam nisto tudo (e não pagam impostos)

12 Dezembro 2015, 12:30 por Elisabete Miranda
Depois de ter passado sete anos à frente da Direcção-geral dos Impostos mergulhado num silêncio sepulcral, José Azevedo Pereira concedeu uma entrevista à SIC-Notícias (a segunda no espaço de poucos meses) que vale a pena ouvir.
Entre o muito que não diz mas insinua, e as conclusões que consente que se tirem sobre a manipulação política a que o Fisco terá sido sujeito durante o último Governo, há uma informação que deixou cair sem ambiguidade: em 2014, quando saiu da Autoridade Tributária, uma equipa especial por si chefiada tinha identificado cerca de 1.000 famílias ricas – os chamados "high net worth individuals" – que, por definição, acumulavam 25 milhões de euros de património ou, alternativamente, recebiam 5 milhões de euros de rendimento por ano.

Ora, "em qualquer país que leva os impostos a sério", este grupo de privilegiados garante habitualmente cerca de 25% da receita do IRS do ano (palavras de Azevedo Pereira). Por cá, os nossos multimilionários apenas asseguravam 0,5% do total de imposto pessoal. Ou seja, (conclusão nossa), como estamos em Portugal, onde estas coisas da igualdade perante a lei e a equidade tributária são aplicadas com alguma flexibilidade, os "multimilionários" pagam 500 vezes menos do que seria suposto.


Sem nunca se querer comprometer muito, Azevedo Pereira descreve que, em Portugal como no resto do mundo, estamos perante grupos de cidadãos que têm acesso fácil aos decisores políticos e grande capacidade de influenciar a feitura das leis. Mas se, como assinala e bem, este não é um fenómeno exclusivamente nacional, e lá por fora os ricos sempre vão pagando mais impostos, presume-se que em Portugal a permeabilidade dos nossos governantes e deputados tem sido bem maior (conclusão nossa).

A situação não é uma fatalidade, pode remediar-se "desde que haja  vontade política", sendo certo que o grupo de funcionários do Fisco que estava a trabalhar neste tema até 2014 foi entretanto desmantelado (palavras de Azevedo Pereira). 

Citando apenas meia dúzia de números elucidativos, e sem quebrar qualquer dever de confidencialidade, o antigo director-geral dos impostos prestou um importante serviço público. Só é pena que tenha demorado oito anos a começar a falar e que, oito anos depois, a Autoridade Tributária continue a ser uma estrutura opaca, que silencia informação estatística fundamental para se fazerem debates informados, e que subtrai do conhecimento geral todas as valiosas interpretações que adopta. Não é só o acesso privilegiado de um punhado de contribuintes ao poder que distorce a democracia e desvia milhões dos cofres públicos. A falta de transparência das instituições públicas também. 

http://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/visto_por_dentro/elisabete_miranda/detalhe/as_1000_familias_que_mandam_nisto_tudo_e_nao_pagam_impostos.html

Há 50 anos: «Fala Rádio Portugal Livre!...»




desenho do pintor António Domingues, datado de 1953. 

Há 50 anos: «Fala Rádio Portugal Livre!...»

Em 12 de Março de 1962, há precisamente 50 anos, estas palavras de esperança e de confiança, antecedidas pelos acordes do hino nacional, entravam nas casas de muitos portugueses.
«A notícia divulgou-se mais que depressa e em pouco tempo o entusiasmo correu de Norte a Sul.» «Finalmente ouviu-se a voz de Portugal Livre, grande aspiração de todos os antifascistas portugueses. Mais um golpe profundo foi dado pelo nosso povo na censura salazarista».
Foi nestes termos que o «Avante!» de Abril de 1962 anunciou na sua primeira página a entrada em funcionamento da emissora clandestina do Partido Comunista Português – a Rádio Portugal Livre (RPL).
Sublinhando que essa voz antifascista, vencendo todas as barreiras e obstáculos, chegava a muitos portugueses, apelando à sua divulgação e envio de sugestões e críticas para ajudar a nossa emissora a «ser um poderoso factor de esclarecimento, propaganda e agitação a favor da luta do nosso povo», o «Avante!» saudou «calorosamente essa nova e bela voz irmã».
A criação da RPL e a sua entrada em funcionamento em Março de 1962 correspondeu a uma exigência colocada pela luta do povo português contra a ditadura fascista, luta que entrara numa nova fase do seu desenvolvimento. O PCP, única força política organizada, vanguarda da resistência ao fascismo, dando uma vez mais provas da sua capacidade e imensa criatividade, foi ao encontro dessa exigência.
Os factores decisivos que tornaram possível a nossa rádio clandestina foram, indiscutivelmente, a dimensão que atingira a luta heróica do povo português pela liberdade e a democracia e a ampla repercussão além-fronteiras; a luta dos comunistas e o enorme prestígio alcançado pelo PCP, tanto no plano nacional como internacional; e, nunca é demais lembrar, a força do internacionalismo proletário, expresso no apoio e solidariedade incondicionais dos países socialistas, designadamente da URSS e da República Socialista da Roménia.
Se, na instalação da emissora do PCP em Bucareste, capital da Roménia, pesaram factores de ordem técnica, também é verdade que para tal contou igualmente a experiência desse país socialista na montagem de rádios revolucionárias clandestinas no seu território e, também, duma rádio do Partido Comunista Romeno no seu próprio país ocupado pelas tropas nazis hitlerianas durante a II Guerra Mundial.
As palavras de abertura da nossa rádio – «Fala Rádio Portugal Livre, Emissora Portuguesa ao Serviço do Povo, da Democracia e da Independência Nacional» – marcaram durante toda a sua existência o conteúdo geral das suas emissões.
Ao ir para o ar pela primeira vez, em Março de 1962, começando logo por divulgar amplamente o manifesto do Comité Central do PCP com os apelos à mobilização dos trabalhadores para a organização e preparação do 1.º de Maio, a RPL identificou-se com esta jornada de luta dos trabalhadores e do povo de tal modo que era corrente ouvir-se designá-la pela «Rádio do 1.º de Maio».
Nos nossos programas denunciámos, através da informação que nos chegava, enviada fundamentalmente pelo Partido, a política da ditadura fascista, a exploração dos trabalhadores, o domínio imperialista; os crimes das guerras coloniais; a situação repressiva (a censura, as perseguições, as prisões, a situação prisional, os julgamentos, as condenações, as torturas, os assassinatos). Divulgámos e apontámos como exemplos os comportamentos heróicos de firmeza perante a PIDE, a luta e a resistência consequentes travadas nas prisões fascistas. Denunciámos e apontámos ao povo os nomes dos torcionários.
Lugar de primeiro plano tiveram nas nossas emissões as lutas dos trabalhadores nas empresas, nos campos, nos portos, nas minas, nos sindicatos; as lutas da juventude nas escolas e universidades; dos intelectuais; das mulheres; dos soldados contra as guerras coloniais e a luta pela paz; a luta dos patriotas da Guiné, Angola e Moçambique pela sua libertação.
De destacar a rubrica «A Voz das Forças Armadas!», transmitida semanalmente aos sábados durante os 12 anos da rádio, de Março de 1962 até às vésperas do 25 de Abril de 1974. As realizações e conquistas do socialismo, as lutas e vitórias da classe operária e das forças revolucionárias mundiais chegavam aos portugueses através da RPL.
Obrigatória nos nossos programas era a leitura do «Avante!» e de «O Militante» e tempo considerável era dedicado à transmissão de todos os documentos centrais do Partido: das reuniões do CC, do Secretariado do CC; o «Rumo à Vitória»; o relatório ao VI Congresso; o Programa do Partido, etc. Assinalámos o 50.º aniversário do Partido, em 1971, com a divulgação, durante um ano, em emissões especiais noutros horários, de materiais e programas sobre a História do Partido, contribuindo também, deste modo, para a preparação política e ideológica dos quadros do Partido e tornando conhecida dos trabalhadores e do povo a luta dos comunistas desde a sua criação, em 1921.
Entrevistámos e recolhemos depoimentos de numerosos dirigentes do nosso Partido, entre os quais Álvaro Cunhal, Sérgio Vilarigues, José Vitoriano, Francisco Miguel, Manuel Rodrigues da Silva. Transmitimos igualmente entrevistas com dirigentes dos partidos comunistas irmãos, com velhos bolcheviques, com cosmonautas soviéticos, com dirigentes dos movimentos de libertação das colónias portuguesas. Recordo ainda com emoção a entrevista que gravei, em Praga, em Fevereiro de 1967, com Amílcar Cabral e, pouco tempo depois, nessa mesma cidade, a entrevista com o nosso camarada José Vitoriano, libertado após longos anos de prisão graças a uma campanha mundial pela sua libertação e em que a nossa rádio também participou.
Gravámos entrevistas, anónimas, de trabalhadores, mulheres, dirigentes estudantis, jovens desertores. Emitimos programas especiais dirigidos a várias terras, baluartes da luta antifascista: Couço, Baleizão, Pias, Vale de Vargo, Grândola, Aljustrel, Montemor-o-Novo, etc.
Aos domingos, ao meio dia, ia para o ar a nossa «Emissão Especial de Domingo» dirigida aos trabalhadores do campo.
Com cuidado especial tratámos a ilustração musical dos nossos programas utilizando música portuguesa de qualidade: Lopes Graça, corais alentejanos, Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire, Luís Cília, etc. Aos microfones da RPL os portugueses puderam escutar pela primeira vez a voz de Luísa Basto cantando o que viria a ser um hino da nossa luta: a canção «Avante, camarada Avante!».
Divulgámos igualmente canções revolucionárias e música popular de outros países: da URSS e de outros países socialistas; canções da guerra civil de Espanha; canções italianas e francesas da resistência na II Guerra Mundial.
Tudo isto só foi possível graças aos enormes esforços desenvolvidos pela Direcção do nosso Partido, designadamente do seu Secretariado, que, dando provas da sua imensa capacidade e criatividade encontraram formas, eficazes e habilidosas, de iludir a apertada vigilância policial fascista e canalizar para a rádio toda a informação necessária à elaboração de programas ligados às realidades do nosso país, do nosso povo, da nossa luta, apesar dos milhares de quilómetros que nos separavam.
Além da informação interna do Partido, e com o apoio também de outros partidos irmãos, recebíamos, embora com algum atraso, os principais jornais portugueses, as notícias das agências France Press, Reuters, Prensa Latina, Tass, Agência de Notícias Romena, imprensa comunista diária e revistas – da França, Itália, URSS, etc.
Por outro lado, diariamente fazíamos a escuta da chamada «Emissora Nacional» e de várias rádios estrangeiras.
Alguns trânsfugas, pretendendo denegrir o trabalho e a imagem do PCP, procuraram, depois do 25 de Abril, em entrevistas e jornais, rádio, televisões, fazer crer que a RPL não era ouvida e que o PCP, como se atreveram a dizer, andou «a falar para o boneco».
A prova de que a rádio do PCP era ouvida, e muito, e nalgumas regiões até em óptimas condições auditivas, foi o facto do governo fascista e da PIDE terem procurado prejudicar a sua audição com interferências a partir dos potentes meios técnicos americanos instalados na antena da RARET, em Glória do Ribatejo.
E, também, nos anos 60, o facto do então Governador Civil de Beja, o fascista António Marques Fragoso ter dirigido circulares aos presidentes das Câmaras do distrito para que fizessem um inquérito a quem comprasse rádios portáteis: em que condições, a pronto ou a crédito; se os recebiam gratuitamente; as marcas dos aparelhos; ondas que captavam, etc. Nas ditas circulares recomendava-se a apreensão do aparelho em caso de suspeita de actividade política e participação à PIDE.
Ao assinalar os 50 anos da rádio clandestina do PCP, que esteve presente, acompanhou e participou diariamente na luta do povo português contra a ditadura e pela liberdade, de Março de 1962 a Outubro de 1974, «O Militante» não esquece aqueles que contribuíram para isso e não desertaram e ainda hoje estão presentes na luta diária, e tão difícil, que o Partido está a travar. Mas é com especial gratidão que «O Militante» evoca aqui a memória do nosso saudoso camarada Pedro Soares, membro do Comité Central, falecido em 1975, primeiro responsável por essa exaltante e pioneira tarefa na História do PCP que foi a criação de uma rádio revolucionária clandestina: ao Serviço do Povo, da Democracia e da Independência Nacional.

O PAPEL DA RÁDIO E IMPRENSA CLANDESTINAS NO COMBATE À DITADURA SALAZARISTA



desenho do pintor António Domingues, datado de 1953. 






O PAPEL DA RÁDIO E IMPRENSA CLANDESTINAS NO COMBATE À DITADURA SALAZARISTA
Amigos, companheiros e camaradas, daqui fala a Rádio Voz da Liberdade

Nos tempos da ditadura salazarista, ouvir uma rádio clandestina ou trazer no bolso um jornal proibido tinha valor simbólico, equivalia à assunção de uma cidadania que se opunha à noite negra. No colóquio realizado em Abril passado, no Edifício Chiado, em Coimbra, sobre a rádio e imprensa clandestinas durante o salazarismo, Mário Mesquita lembrou a função simbólica destes meios, ajuntando-lhe quatro outras características. Rádio e imprensa clandestinas informavam, porque difundiam o que a censura proibia; doutrinavam, porque potenciavam o debate de ideias então proscrito; organizavam, funcionando como elemento estruturante em relação às organizações políticas a que se encontravam ligadas. Por último, a própria formação dos fazedores da rádio e dos jornais clandestinos, que dealbaram no jornalismo sem amarras que o 25 de Abril nos propiciou.

Estela Piteira Santos foi a primeira voz feminina da Rádio Voz da Liberdade, emitindo desde Argel. Fez questão de saudar os presentes com a mesma fala de há muitos anos, a primeira aos microfones da estação clandestina:

“Amigos, companheiros e camaradas, daqui fala a Rádio Voz da Liberdade, em nome da Frente Patriótica de Libertação Nacional”. 

Manuel Alegre foi director da Rádio Voz da Liberdade. Alegre, segundo Mesquita “a Voz da Liberdade”, desfiou estórias daquele tempo, por exemplo a primeira entrevista dada por Amílcar Cabral dirigida aos portugueses. Alegre lembrou ter Cabral assumido Camões, os Lusíadas, ousando dizer “aquilo que a esquerda portuguesa não assumia, por inibição”. Agostinho Neto, Samora Machel, Eduardo Mondlane também foram entrevistados por Manuel Alegre, vozes amplificadas por uma “rádio de indignação”, “um grito na noite contra a censura e contra o medo”. 

A canção era uma arma, os microfones da RVL também, apontados a campanhas para a libertação dos presos políticos, revelando dados sobre a guerra colonial submersos pelos censores portugueses, recebendo correio de muitos exilados, interrogando-se todos os dias sobre as audiências. Quem os ouviria ao tempo, num tempo em que o audímetro era palavra desconhecida, e o “share” não interessava para vender anúncios, mas para propagandear a Liberdade? 
Eram ouvidos país fora, melhor no Algarve e no Alentejo. 


Por cá, quem arriscava a sintonia colocava um copo de água em cima do receptor, obediente à lenda de que o copo mais a água afugentavam as carrinhas detectoras da Pide. 

Aurélio Santos, outro resistente, militante do PCP, que animou em Bucareste a Rádio Portugal Livre, lembrava outro truque: “havia quem pusesse o receptor junto às canalizações da água”. Se o truque não despistava os detectores, os canos sempre serviam de reforço de antena. 

A aura clandestina alimenta-se de mitos, também, já se disse. Um deles criou-se em torno desta rádio em português, vinda lá de longe, da Roménia. Mas se em Portugal os portugueses pensassem que a rádio emitia nas barbas da PIDE, a mensagem ganhava coragem. Durante algum tempo, circulou o mito de que a Rádio Portugal Livre emitia desde a Serra da Estrela! 

Os sons clandestinos que o éter vertia subvertiam mesmo a noção clássica que julgávamos assente, da actualidade, do que aconteceu nos momentos anteriores. A rádio clandestina noticiava greves promovidas em Portugal, e se só conseguia dar a notícia um mês depois, pouco importava: a notícia era actual, porque em Portugal não tinha havido qualquer notícia da greve. 

A organização do PCP reflectia-se no próprio arquivo da estação: as entradas começavam todas por “L”, de luta: lutas dos estudantes, lutas dos camponeses, lutas dos metalúrgicos. 

Havia a hora dos camponeses, também a Voz das Forças Armadas, que Santos afiançou ser ouvida até no remanso das casernas. 

Donas de casa exiladas cerziam o éter de invectivas às donas exiladas em suas casas portuguesas, com certeza: 

“Como dona de casa, daqui me dirijo a todas as donas de casa, exortando-as a que protestem nos mercados, nas lojas, e que façam sentir por toda a parte o seu descontentamento e revolta contra a actual carestia de vida. Exorto ainda a que se formem comissões de rua ou de bairro e também nas fábricas para organizar e coordenar este movimento de protesto que é necessário desencadear para o bem de todos nós”. 

Os sons da rádio que se assumia como “Voz do Partido Comunista Português” perenizaram-se em cassete preciosa que o “partidão” editou logo após o murchar das rosas que a primavera marcelista não conseguira fazer brotar. O país calado abriu tímpanos para Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Álvaro Cunhal. Por cá, e para os de mais difícil sintonia, o “Avante” funcionava como spot impresso, publicitando os metros das ondas clandestinas: “Pelas ondas de 26,31 e 32 metros, das 15 e 10 às 15 e 40, ou pela onda de 31 metros das 22 e 15 às 22 e 45, já podemos escutar: “Atenção, povo português! Aqui Rádio Portugal Livre, uma Emissora Portuguesa ao serviço do Povo, da Democracia e da Independência Nacional! ” 

“Que todos divulguem a nova voz anti-fascista, de modo a poder ser escutada em todo o país” — pregoava-se em Abril de 1962. 

Oito anos volvidos, a fidelidade às ondas esmorecera, razão para “O Militante”, boletim do Comité Central do PCP, puxar as orelhas aos de escuta mais relaxada: 

“A justificação mais usada dos que não ouvem com regularidade a Rádio é a falta de tempo ou já sei o que vão dizer. A falta de tempo traduz uma falta de interesse e uma evidente subestimação do papel da Rádio do Partido. Os que dizem já sei o que vão dizer manifestam uma atitude de autosuficiência para com a nossa Rádio. Estas atitudes são incorrectas devendo fazer-se um esforço para as eliminar dentro do Partido”. 

Escuta então como dever militante. 



Carlos Brito andou pelos media clandestinos, mas em vez da voz leve que o vento leva tratou das letras de chumbo que se não cansaram de imprimir o “Avante”, o jornal clandestino de maior longevidade que há memória, mesmo que ninguém se tenha lembrado de o registar no “Guiness Book”. 

A história do PCP até se pode fazer olhando às tiragens do “Avante”. Em 1936 foi tempo de deslumbramento para os tipógrafos clandestinos: dez mil exemplares de tiragem. No balanço eufórico passou a semanário em 1938, para logo a seguir ser silenciado três longos anos. Voltou então para não mais esmorecer até ao alvorecer dos cravos, vestindo-se depois, até aos dias hoje, com as roupas da legalidade. 

Em 1942 imprimiam-se, por edição, 2.700 exemplares; no ano seguinte subiu aos três mil; em 1946 voltou aos dez mil, porque era tempo de pujança do partido, no pós-guerra. Álvaro Cunhal foi preso, acompanharam-no uma série de camaradas, a organização tremeu e o “Avante” deu sinal disso mesmo, baixando a tiragem para os cinco mil. Haveria de subir aos sete mil passados anos, número que se aguentou firme até ao 25 de Abril. 

Imprimia-se em tipografias de cidade, e as que funcionavam com mais segurança eram as localizadas em prédios de habitação, de preferência com móveis grandes. O bojo destes permitiria guardar o rolo, as tintas, o papel, os chumbos. 

Os chumbos que uma vez viraram soldadinhos falsos. Carlos Brito tratava de transferir uma tipografia clandestina para uma zona mais segura na cidade do Porto. Levava nesse dia uma caixa em madeira, com os chumbos dentro. Pesava que se fartava, a caixa embrulhada com papel de sapataria. Tanto pesava que Brito se fez de coxo. Deixou o táxi e parou numa farmácia, pedindo remédios para a “maleita” que lhe afectava o pé. Sentou-se esperando que lhe aviassem a receita. Apesar dos cuidados extremos, quando se levantou deixou a caixa na cadeira. Senhora solícita tratou de pegar na caixa de sapatos para a entregar ao desditoso “coxo”. É o pegas, que a caixa pesava toneladas! 

A senhora fez a pergunta incómoda a Carlos Brito. Afinal, lá dentro não levava sapatos: 

“São soldadinhos de chumbo para as crianças, minha senhora!” 



O “Avante” era clandestino, parido por partido clandestino. Outros aproveitavam fissuras legais para editarem textos semi-clandestinos em nome de organizações semi-legais. Aconteceu com o “Boletim da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos”. O regime autorizara cidadãos reunidos em socorro de vítimas de catástrofes, haveria maior desdita que a Ideia de Liberdade agrilhoada nas masmorras da PIDE? 

Eugénia Varela Gomes, Cecília Feio, Levy Baptista, Nuno Teotónio Pereira e Luís Moita criaram a comissão que aparecia no cabeçalho do boletim, este feito a cheirar ao carbono do stencil albergado em cozinha esconsa de escritório de advogado desactivado, para as bandas de Campo de Ourique. 

“Denunciávamos, no boletim, os crimes de guerra praticados pelo exército português, divulgávamos as posições dos movimentos de libertação, estatísticas das baixas dos soldados portugueses, e vituperávamos a solidariedade da Nato e outras organizações para com a política colonial portuguesa” — lembrou Luís Moita. 

Decidido pelos membros da Comissão que a guerra colonial era o calcanhar de Marcelo que haveria de pôr o regime a coxear, avançaram para outra publicação: o B.A.C., Boletim anti colonial. O grupo, respaldado por plêiade de católicos “altamente politizados”, sofrendo “enormíssimas influências marxistas”, conseguiu publicar sete números do B.A.C., para logo depois integrarem o contingente dos presos políticos de que a outra publicação tratava. O “Boletim da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos” haveria de despedir-se dos leitores já Abril dos cravos ia alto, com notícia requentada da prisão de Luís Moita e companheiros de jornada. 



Lá por fora, ”estrangeirados” de nome Aquiles de Oliveira, Alberto Melo, Fernando Medeiros, Rodrigues dos Santos, Alfredo Margarido e Manuel Villaverde Cabral chegaram à conclusão, nos idos de 67, que a crítica ao regime salazarista padecia de “informação objectiva e firmeza ideológica”. Denunciaram a maleita nos “Cadernos de Circunstância”, impressos em Paris até 1970, aventura recordada no colóquio por Villaverde Cabral: 

“Pretendíamos dar um contributo diferente à luta política, fornecer à oposição elementos de debate, se possível ancorados em estatísticas; uma missão mais informativa, mais de reflexão do que de propaganda” — sinalizou aquele docente universitário. 

O primeiro número tratava da morte do Che, “capitán atado por la muerte”, pretexto para ferroadas várias aos partidos comunistas da América do Sul, Europa Ocidental também, máxima de Guevara transcrita para lembrar uma sua tese “demasiado simples, demasiado luminosa, límpida como todas as ideias generosas e objectivas”: 

“Só há uma maneira de se opôr às ameaças crescentes do imperialismo e à ofensiva do seu agente mundial — os USA — é pegar em armas e criar no mundo um, dois, três novos Viêt-Nam!” 

Cadernos fruto da sangria que tornava Portugal exangue de “trabalhadores intelectuais”, a circunstância mandaria que se escrevesse sobre “a violência na luta política e na vida quotidiana”, “os TUBARÕES e as sardinhas”, “o 3º plano de fomento”, “os investimentos estrangeiros em Portugal”. 

Ou que se respigasse texto de Cohn-Bendit, onde se falava da universidade “termómetro da resistência contra a uniformização e a integração social”; onde se falava da revolução-miríade, “um luxo, um sonho” se os estudantes não fossem capazes de “virar o saber ao contrário”. 



O “luxo” da revolução estudantil francesa era necessidade em Portugal, metamorfoseou-se em cravos vermelhos numa madrugada embalada por Zeca Afonso e Paulo de Carvalho, ia-se afogueando num Verão que foi Quente, cumpriu as urnas onde a democracia nasce feita voto, passou a celebração, depois evocação, depois amareleceu. 


O colóquio de Coimbra, se serviu para debater o papel da rádio e imprensa clandestinas durante a noite negra, serviu também para lembrar aos mais distraídos o sagrado valor da Liberdade "a noiva eterna das almas juvenis, o ideal sublime por que combatem todos", conforme definição de outras clandestinidades, as que antecederam a aurora republicana de 1910. 
Evocação que se quer tonitruante, que o amarelecer da memória lava mais rápido que o “OMO”. Manuel Alegre deixou repositório cáustico contra o que considera ser uma operação de branqueamento da ditadura: 

“O 25 de Abril foi uma revolução triunfante que não soube fazer a pedagogia dos seus valores. Vencedora no plano político não substituiu — e ainda bem —, uma cultura oficial por outra cultura oficial. Mas permitiu que pouco a pouco a estratégia do revisionismo fosse fazendo o seu caminho. Ora, como disse alguém, a luta pelo poder é sempre uma luta entre a memória e o esquecimento. Neste últimos anos a memória perdeu algumas batalhas. Tem-se procurado branquear o fascismo e denegrir o 25 de Abril e a Resistência. E mais, tem-se tentado aos poucos reabilitar o Estado Novo e ilegitimar moralmente o 25 de Abril. No plano das ideias e até no da própria linguagem os ditadores passaram a ser tratados respeitosamente por professores; o regime fascista passou a ser o regime anterior. Nada disto é inocente nem acontece por acaso, e só é possível porque, como tive ocasião de dizer no congresso “Portugal: Que Futuro”, há em Portugal uma questão de regime, uma questão que resulta do facto de nem todas as forças políticas representativas se reconhecerem na matriz fundadora da democracia portuguesa. 

Não é problema de somenos: há da parte de alguns dos principais beneficiários do regime democrático um divórcio afectivo e político com a natureza e o imaginário que estão na origem da liberdade portuguesa: a cultura da resistência, o imaginário do 25 de Abril. 

Enquanto por exemplo em França há uma memória da resistência e uma cultura republicana que são património tanto da esquerda como da direita democrática, tal não acontece em Portugal. E não acontece porque, com raras excepções, entre nós, a memória da resistência começa e acaba na esquerda, tal como a relação afectiva com o 25 de Abril e o seu imaginário. É por isso que o revisionismo tem avançado nos últimos anos, mas não só. A estratégia do branqueamento e do esquecimento é fruto de um certo amorfismo e de uma certa distracção, fruto da ausência de uma persistente e contiunuada pedagogia dos valores cívicos e democráticos, fruto também de omissões e ambiguidades que os nostálgicos do passado interpretam por vezes como convite ao revanchismo. A tolerância é a superioridade moral da democracia, mas a tolerância não deve ser confundida com masoquismo; a verdade é que o fascismo existiu e a Resistência também; a verdade é que o 25 de Abril restituiu a liberdade aos portugueses, mesmo a liberdade de o discutir, denegrir e pôr em causa. Essa é a diferença do 25 de Abril e também a sua superioridade. E por isso é que, mesmo quando parece estar a perder é o 25 de Abril que está a tornar-se vencedor. Porque não substituiu um dogma por outro dogma, nem um pensamento único por outro pensamento único (…)”. 



Hoje, aqui ao lado, na Europa que brasileiros e namibianos chamam de Primeiro Mundo, ainda há quem lute pela Liberdade com instrumentos iguais aos que ganharam corpo nas vozes de Manuel Alegre e Aurélio Santos, nas penas de Carlos Brito, Luís Moita, Villaverde Cabral. Há rádios clandestinas clamando pela Liberdade na Sérvia, mas as ondas da “B92” vão morrendo às mãos do sofisticado sistema de interferências do regime sérvio. Mas “o ideal sublime por que combatem todos” não se rende, e a Internet aí está, mesmo que arrogante, lembrando a todos que já foi tempo o tempo do panfleto, do stencil, da rádio da revolta em ondas hertzianas: 

“Even revolutions aren’t what they used to be, since there is internet. The times of illegal printing-presses in wet cellars, seditious pamphlets spread by revolutionaries in dufle coats, are over” — lê-se hoje no cabeçalho de página da Net, rodapé de título: “The revolution in Serbia begins with a homepage on Internet”. 

Se nos permitem terminar perguntando, quantos anos mais cedo teria chegado Abril se Carlos Brito tivesse um telemóvel, Estela Piteira Santos um modem, Manuel Alegre um fax, Mário Soares um bip, Álvaro Cunhal um PowerBook…? 



Dinis Manuel Alves 
29 de Outubro 1997


Data: 2006-01-11


http://www.mediatico.com.pt/sartigo/index.php?x=21