A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht

domingo, abril 20, 2014

"Infelicidades verbais várias"

Diário de Notícias
por PEDRO MARQUES LOPES
Não é que seja surpreendente para ninguém a forma como o duo dinâmico, Passos Coelho/Maria Luís Albuquerque, conduz o processo político. O já nosso mais que conhecido cocktail de ignorância, incompetência e desprezo pelos cidadãos, servido com a imprescindível casquinha de limão mentirosa, continua a jorrar em abundantes doses.
Esta semana, Passos Coelho abusou do limão. Ou melhor, como dizia um membro do Conselho de Ministros ao Expresso, o "primeiro-ministro teve infelicidades verbais várias". Pelos vistos, há mais ministros a aderir à novilíngua. A bem verdade, o muitíssimo provável autor da dita frase já começa a ser um especialista: o seu primeiro contributo foi a alteração do significado da palavra irrevogável.
No diálogo televisivo de terça-feira, o primeiro-ministro falou dum alargamentozinho no corte de salários face ao do anterior Governo. Segundo o primeiro-ministro, fazer cortes de 3,5% nos salários a partir de 1500 euros não é muito diferente de cortar 2,5% a partir dos 675. Também, segundo ele, não existirá grande diferença entre o tal corte de 3,5% nos salários de 1500 euros e o atual de 8,5%. Mais do dobro. As brutais diferenças não acabam aqui, mas serão pormenores que não passam duma maçadoria. Infelicidade verbal, pois então. Mas existiram mais aspectos que houve quem achasse claros. Houve tempo para libertar (bem sei que agora esta palavra quer dizer despedir, mas é só enquanto não nos habituamos) uma não verdade, quando disse que os cortes nas despesas de funcionamento do Estado tinham sido de 1600 milhões de euros: não foram, foram de metade desse valor como provou o Jornal de Negócios dois dias depois. Infelicidade verbal, sem dúvida. Também não faltaram, no alegre convívio, momentos de puro entretenimento: o desonerar (isto dos novos significados deve ter como objetivo aumentar a atividade económica das editoras de dicionários, só pode) das pensões e salários em 2016. Se der, eventualmente, às tantas. Tão certo como "termos cumprido as metas". Não houve tempo para explicar como é que não se tendo cumprido uma única meta original se diz exatamente o contrário. Infelicidade verbal, claro.
Depois, e como se fosse a coisa mais natural do mundo num responsável pela condução dos destinos dum país, pôs-se a adivinhar, a achar, a alvitrar, dizendo com a candura dos irresponsáveis que a Segurança Social não é sustentável. Um cidadão faz os seus descontos, acredita no sistema que lhe venderam, e vem alguém que representa a parte com quem ele fez o contrato dizer que aquilo não presta. Estudos que o comprovem? Provas irrefutáveis? Um numerozinho que seja? Nada. Põe-se em causa um pilar fundamental da comunidade utilizando o coeficiente de queixas, fazendo palpites, tendo uma fezada. Infelicidade verbal do líder do seu Governo, sr. ministro escondido com o rabo de fora?
Curiosamente, não faltam personalidades, da esquerda à direita, com provas dadas e estudos publicados, a dizer exatamente o contrário e até, espanto dos espantos, a argumentar com números, apresentando provas.
Se se fala de assuntos que dizem respeito à sobrevivência das pessoas, ao seu mais básico núcleo de direitos como salários, ou a contratos civilizacionais como a Segurança Social, que podíamos esperar da forma como se está a tratar da reforma do sistema de pensões, ou melhor, do método para tornar os cortes definitivamente provisórios ou provisoriamente definitivos? Aquela coisa que não devemos transformar um bicho de sete cabeças, nas palavras de Passos Coelho, aquilo de tirar dinheiro às pessoas que não têm maneira de o ir buscar a mais lado nenhum e que para isso trabalharam toda a vida. Será que nos devemos espantar? Espantar, talvez não. Mas não podemos deixar de nos indignar. É demasiado insultuoso ignorar por completo os cidadãos que se representa, é brincar com a dignidade das pessoas estarmos a 15 dias da apresentação duma medida que altera por completo a vida de tanta gente e percebermos que não existiram estudos sérios, que não se sabe ainda o que fazer, que não houve a mais pequena tentativa de diálogo com os parceiros sociais ou partidos da oposição, que um primeiro-ministro fala de relatórios que os que os deviam ter feito desconhecem, que o Ministério da Segurança Social não é tido nem achado no processo que aparentemente a única reforma se chama cortar.
Também a palavra "pessoas" perdeu significado. Deve ser isso. Talvez a expressão "vida das pessoas" tenha também uma nova dimensão. Algo com que se pode brincar, que pode ser testado, que em quinze dias se arruma.
Infelicidades várias temos tido nós e as piores, de certeza absoluta, não são verbais.

http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=3820850&seccao=Pedro%20Marques%20Lopes&tag=Opini%E3o%20-%20Em%20Foco&page=-1

sábado, abril 19, 2014

Os rostos dos anos de brasa



Os rostos dos anos de brasa



Nunca tive dúvidas de que, na organização da exposição O Nascimento de Uma Democracia, o painel mais controverso seria o dos 200 "rostos". Na verdade, são 202, visto que se acrescentou uma foto de soldados anónimos e outra de civis manifestantes igualmente anónimos, tiradas no próprio dia 25 de Abril.
Havia várias razões pelas quais os "200 rostos" seriam polémicos. Porquê aqueles rostos e não outros? E depois, por que razão estavam associados ao "nascimento da democracia", sendo que muitos deles não desejavam à época que houvesse democracia parlamentar, e muitos lutaram contra a sua institucionalização? Ou seja, não se tratava de 200 "construtores" da democracia, mas sim de 200 pessoas que estavam lá, no processo conflitual de a fazer. Tal está explícito no texto que escrevi "explicando a exposição", mas tinha consciência de que seria assim interpretado e, por opção deliberada, aceitei que fosse essa a leitura. É uma leitura que altera a intenção original, mas não é uma leitura perversa, é uma leitura cujo debate interessa.
Porquê aqueles rostos e não outros? Em primeiro lugar, corrijam-se alguns erros técnicos, nomes que estavam na lista e não aparecem no painel, e uma gralha freudiana. Os erros ocorreram, não sei por que raio do destino, ou porque Deus desejaria que colocássemos na obra perfeita um azulejo errado para mostrar a imperfeição da acção humana. Nós não o fizemos e fomos punidos. Deus colocou lá o azulejo torto para nos ensinar humildade.
O azulejo errado é que da lista que fizemos desde o início, ainda quando eram apenas cem os nomes, constavam por pleno direito Francisco Pinto Balsemão, Costa Gomes e Jaime Neves. Balsemão e Costa Gomes aparecem noutras fotografias, mas deveriam estar na lista e não estão. No caso de Balsemão, levou-se à lista os três fundadores do PPD que estavam na foto de uma conferência de imprensa inicial: Sá Carneiro, Magalhães Mota e Balsemão. No dia da inauguração, um deputado do PSD veio perguntar-me por que razão não estava Balsemão e eu disse-lhe que procurasse por ordem alfabética em Francisco e, com grande espanto meu, não estava lá. O mesmo aconteceu com outros dois nomes desde sempre incluídos na lista, Costa Gomes e Jaime Neves, que também desapareceram entre a execução gráfica e a publicação, visto que constavam da lista dos cem iniciais e se sumiram. Já se pôde a tempo colocar uma errata no nome de Oliveira Dias, militante do CDS de Leiria e quinto presidente da Assembleia da República, que apareceu como Oliveira Costa. As minhas desculpas, mas ninguém deu por ela apesar de várias leituras nome a nome, e aqui deve haver uma maldição que atinge todos aqueles cujo nome começa por "Oliveira" e qualquer coisa a seguir. O dr. Freud tem um ensaio sobre isto. Tudo isto já está numa errata e será corrigido numa nova edição e no painel.
Agora, as omissões e os problemas que levantam. O trabalho de equipa de elaboração da exposição começou pelas fotografias dos eventos de 1974-6, retirando daí os nomes, em particular dos "construtores de partidos", até porque essa era uma intenção da narrativa da exposição: mostrar como, no meio da confusão de 1974-5, surgiu o sistema de partidos da nossa democracia. As fotos retratam o primeiro acto público genético de um novo partido, ou da passagem à legalidade de um partido clandestino, fosse uma conferência de imprensa ou um comício, e terminam no acto de legalização com a entrega das assinaturas no tribunal. No caso do MRPP começam e acabam do mesmo modo, porque o partido fez da entrega das assinaturas um pequeno comício com bandeiras e punhos erguidos nas instalações vetustas do tribunal.
Fizemos primeiro uma lista de cem nomes, mas deu-se um fenómeno típico dos fractais. Sempre que estabelecíamos um número-limite, era impossível fazer caber dentro desse número as pessoas com o mesmo ou semelhante grau de importância de modo a não haver injustiças. Se colocávamos Spínola, teria de estar Vasco Gonçalves; colocando Vasco Gonçalves, teria de vir o "grupo dos nove"; com os nomes do "grupo", teria de vir, do outro lado, Rosa Coutinho e Corvacho; com este par, tinha de entrar Pires Veloso e o cónego Melo, etc., etc. Resolveu-se dar mais espaço e colocar duzentos nomes, o que, de novo com o mesmo problema dos fractais, tornava necessário pela igualdade de critérios mais cem nomes, e por aí adiante. Travou-se nos duzentos pelos limites físicos do painel.
Entraram nomes, saíram nomes, até que a lista teve de ir para a tipografia, com plena consciência de que iriam aparecer logo a seguir outros nomes tão evidentes e inevitáveis como os que lá estavam. Passou-se a uma fase de teste, perguntando a pessoas do PSD, do PS, do CDS, do BE, dos militares de Abril, que dissessem nomes que deveriam lá estar pelo seu papel entre 1974 e 1976, e estavam todos.  Isto dava algum sossego, mas, mal a lista se fechou, vieram-me logo à memória quatro nomes que deveriam lá estar, obrigatoriamente. E não estavam. Tratava-se do padre Mário de Oliveira, o perseguido pároco de Macieira da Lixa; Vítor Cunha Rego, aventureiro, conspirador, intelectual exilado, "consiglieri" do PS e embaixador; Francisco Martins Rodrigues, sem o qual a extrema-esquerda portuguesa não seria o que foi; e José Luís Saldanha Sanches, cuja valentia pessoal atravessou estes anos complicados com todas as cadeias, preso e perseguido como membro do PCP e mais tarde do MRPP. E surgiram alguns desequilíbrios menos importantes, mas que implicavam alguma reflexão. Se, na sombra do PS, estava Bernardino Gomes, não deveria estar Rui Mateus? Deveria. E isto era apenas o intróito, porque mais nomes apareceriam.
Nos últimos dias, entre sugestões e críticas, mais nomes são levados à discussão com todo o sentido. Júlia Matos Silva chamou-me a atenção de duas omissões, a de Fernando Matos Silva e a de Álvaro Guerra. No caso do primeiro, escreveu: "O Fernando Matos Silva e a equipa partiram pelas ruas de Lisboa, captando as imagens grandiosas da expressão generosa de uma aliança entre as armas e o povo. E são muitas dessas imagens que ainda hoje prevalecem para documentar o gesto grandioso de um país que venceu a ditadura, sem lágrimas de sangue. O olhar e a câmara do Fernando Matos Silva - que tinha visto o seu primeiro filme, O Mal-Amado, totalmente proibido pela censura - hão-de ficar indelevelmente livres, testemunhando os actos e as emoções dos militares e do povo." Tem razão, até porque também lá estão Adelino Gomes, Joaquim Furtado e Eduardo Gageiro (e poderiam estar Alfredo Cunha e Miranda Castela), por razões idênticas.
Outros nomes surgirão, quer de militares do MFA (Manuel Monge, Carlos Azeredo, Hugo dos Santos, etc.), quer de civis como Álvaro Guerra, Pedro Batista  (fundador do Grito do Povo), Afonso de Barros (fundador do MES), Manuel Maria Múrias, Nuno Brederode, Adérito Sedas Nunes (que institucionalizou a sociologia em Portugal), e mesmo de alguns estrangeiros cuja presença em Portugal ou cujos escritos sobre a "revolução portuguesa" tiveram grande influência nesses anos, como Jean-Paul Sartre, Tony Cliff e Ernest Mandel. Talvez tenhamos mesmo de ir para os trezentos nomes, até porque assim o corpus biográfico ganha dimensão e significado.
Seja como for, esta lista pode ser acusada de tudo menos de sectarismo. Colocar lá Carlos Antunes e Kaulza de Arriaga, ou Cunhal e o cónego Melo, pode ser incómodo para os próprios, vivos ou mortos, e certamente o é, mas sem esta multiplicidade de nomes, projectos e atitudes não se percebe a democracia portuguesa na sua génese. Ela não se percebe sem os binómios mais intensos da época, socialismo "em liberdade" versus "democracia popular", comunismoversus anticomunismo, colonialismo "federalista" versusanticolonialismo radical, liberdades versus "conquistas da revolução", democracia parlamentar versus socialismo "militar", que são mais eficazes para explicar estes anos de 1974-6 do que o binómio 24 de Abril versus 25 de Abril. No fundo, ninguém estava do lado de Salazar e Caetano, ninguém entrou no debate conflitual desses anos para defender a PIDE ou a Censura. Por ironia do destino, hoje há mais complacência nefelibata com o regime do 24 de Abril do que a que havia na altura: a PIDE não era tão má como isso e não matava muita gente, a Censura afinal deixava passar imensa coisa, havia desenvolvimento e "paz social" num país sem corrupção nem criminalidade violenta, com elites respeitáveis e patrióticas, isentas e sacrificadas e mais seguro nas ruas. Apetece responder como o almirante Pinheiro de Azevedo respondeu quando lhe chamaram "fascista". Está lá na exposição.

http://www.publico.pt/opiniao/jornal/os-rostos-dos-anos-de-brasa-28167578

sexta-feira, abril 18, 2014

Portugal 1974-1976: o nascimento de uma democracia







Portugal 1974-1976: o nascimento de uma democracia

No dia em que é inaugurada, na Assembleia da República, a exposição O nascimento de uma democracia, o PÚBLICO antecipa o texto que fundamenta a exposição, adaptado pelo seu autor, José Pacheco Pereira.

1. A exposição que podem ver na Assembleia da República não é sobre o dia 25 de Abril de 1974, cujo 40.º aniversário se comemora este ano. É sobre o que esse dia permitiu, fez nascer, “abriu”, é sobre o nascimento da democracia portuguesa no meio da turbulência de um país que saía de 48 anos de ditadura.
2. Nos 40 anos do 25 de Abril de 1974, muitas das comemorações vão centrar-se no que aconteceu nesse dia. As interpretações variam: golpe de Estado, revolução, golpe de Estado seguido de uma revolução, etc. Mas uma coisa é incontroversa: no dia 25 de Abril começou a nascer uma democracia e ela apenas foi possível pelo que aconteceu nesse dia. O que aconteceu em 25 de Abril com a ação do MFA foi de facto o “dia lustral”. O dia do começo. Mas, a partir desse dia, o nascimento de uma democracia fez-se na sociedade e com a sociedade, com os portugueses. Como se passa em todas as democracias, foi um processo essencialmente civil, e numa democracia que nasceu de uma ação militar, foram os civis que se revelaram fundamentais para a sua construção.
3. Como se retrata o nascimento de uma democracia? Em primeiro lugar, pela diferença em relação ao que havia. Pelo tempo de acabar, da PIDE, da Censura, da União Nacional, da ditadura. Depois, e esse é um dos objetivos desta exposição, começar, mostrar como se começa: o direito e o exercício de vir à rua manifestar-se, o direito e o exercício de organizar-se, a passagem à legalidade dos partidos clandestinos e a génese de novos partidos, o direito de falar e escrever livremente, o direito de votar em liberdade e escolher quem nos representa e quem nos governa. A democracia faz-se com política em liberdade, instituições e representação com génese eleitoral, partidos, participação cívica numa miríade de organizações, discurso público e propaganda política. No nascimento da nossa democracia, os sinais da sua pujança revelaram-se em todos estes símbolos, com uma nova iconografia, paisagem sonora e visual: cartazes, autocolantes, emblemas, faixas, panfletos, brochuras e livros, fotografias, imagens, filmes e sons. O objetivo desta exposição é  mostrar o rastro que no nosso olhar ficou desses tempos. Privilegia o que nos envolve, imagens e sons, valoriza o retorno ao passado pela recriação da sua paisagem.
4. A democracia significou direitos. Nenhum destes direitos foi concedido, todos foram conquistados. Foi um processo difícil, caótico, com avanços e recuos, que durou muito mais do que alguns anos. Em bom rigor, é um processo que continua em curso. Todos os dias. Não foi um nascimento fácil, nem o poderia ser, devido à longa duração da ditadura, ímpar na história da Europa ocidental. Não o podia ser também no meio de uma guerra colonial ativa, com três frentes distintas em África. Mas foi nessa turbulência que tudo começou, marcada pelos eventos, quer em Portugal, quer nas colónias, pela vontade muitas vezes contraditória dos seus fundadores, pelo “ruído” inerente à democracia, dos conflitos culturais, sociais e políticos. Aliás, o primeiro sinal de que Portugal estava a mudar foi exatamente o facto de podermos, pela primeira vez, ouvir sem censura, nem polícia política, nem partido único, e acima de tudo sem medo, esse “ruído” sem o qual não há democracia.
5. Na elaboração desta exposição não se partiu do presente para o passado, nem se projetou sobre o passado qualquer interpretação programática sobre o que neste período foi “bom” ou “mau” para a génese da nossa democracia. Há interpretação que se revela na própria escolha de tratar o aniversário do 25 de Abril não a partir dos eventos nesse dia, mas da génese do regime democrático, cuja casa primordial é o local onde se realiza a exposição, o Parlamento. No entanto, tentou evitar-se uma seleção de eventos, rostos e sinais, que chegaram aos nossos dias como os “politicamente corretos”. A história foi o que aconteceu e não o que muitos dos seus atores queriam que acontecesse, e o que aconteceu foi que Portugal vive em democracia nos últimos 40 anos.
6. Quando olhamos para os atores desses anos de génese, em que há quem tivesse lutado pela democracia e quem desejasse outras formas de poder não democráticas, vemos bem, pelas biografias a posterioride todos, o enorme poder de “normalização” que teve a democracia portuguesa. Não foi perfeito, nada é perfeito nos negócios humanos, mas foi muito eficaz. A democracia impôs-se em termos racionais, éticos e afetivos na vida de todos e tornou-os parte dela, deixando de haver “democratas imperfeitos” ou “não democratas”, e atirando para as trevas exteriores quem continua a combatê-la. Quarenta anos depois, mesmo para esses, a democracia venceu. Não sabemos como vai ser no futuro, mas sabemos que foi assim neste passado que nos é ainda íntimo, dos 40 anos depois do 25 de Abril.
7. A nossa democracia conheceu uma primeira fase de moldagem com os processos eleitorais de 1975 e 1976, que nos deram a Assembleia Constituinte, a primeira Assembleia legislativa, as eleições autárquicas e presidenciais. A essa moldagem soma-se a ação dos governos provisórios, ainda num período de transição política, que foi também fundamental para criar práticas de governação que depois se institucionalizaram nos governos constitucionais. De novo, convém lembrar que nenhum dos atores deste período, fossem políticos vindos da oposição, fossem políticos gerados pela democracia, fossem militares, fossem profissionais liberais, estudantes, padres, operários, trabalhadores rurais, empregados, funcionários, revolucionários e conservadores, agitadores e institucionalistas, nenhum tinha qualquer experiência de fazer política em liberdade, porque entre 1926 e o 25 de Abril de 1974 não houvera um dia de liberdade. Governar era uma experiência nova.
8. Usou-se o ano de 1976 como termo, sendo só excecionalmente utilizados materiais de data posterior, mas sem com isso significar que a consolidação da nossa democracia tivesse sido adquirida nessa data. Bem pelo contrário, o acolhimento pacífico dos “retornados”, o acesso ao governo por eleições de partidos representando posições políticas muito distintas, as sucessivas revisões constitucionais, o fim da tutela do MFA, a entrada na União Europeia, profundas mudanças no enquadramento legal da economia e da sociedade, a possibilidade de haver governos de coligação e de maioria absoluta, a consolidação do poder local, a construção de autonomias regionais, tudo foram passos na estabilização da democracia.
9. Nem tudo correu bem, nem tudo corre bem. A prevalência de fenómenos de corrupção deslegitima a imagem do poder político, o crescimento da partidocracia, a ineficácia no combate às desigualdades e à pobreza, as fragilidades da nossa independência financeira, um alarmante divórcio entre os portugueses e a sua representação política são sinais de que nenhuma democracia pode ser considerada adquirida sem um contínuo esforço com uma dimensão política, mas também cultural, económica e social. A democracia não é um regime “natural”, não existe inscrito na natureza das coisas, mas é uma escolha cultural, no sentido lato, que só sobrevive quando os homens e mulheres que fizeram essa escolha não duvidam dela e estão dispostos a defendê-la. Olhando os anos de génese da nossa democracia, é muito nítido que é assim, quer para estes anos de brasa, quer para os dias de hoje.
10. A democracia portuguesa é de génese revolucionária e não admira que a “rua” tenha tido um papel decisivo. Na exposição é nítido esse papel, como palco de manifestações, protestos, incidentes, golpes e contragolpes. Logo no próprio dia do 25 de Abril, milhares de portugueses desceram à rua e definiram o sentido de uma revolução, tornando a ação dos militares em algo mais do que um golpe de Estado corporativo. Tal seria sempre uma impossibilidade nos seus termos, como, aliás, os mais clarividentes dos “capitães de abril” sabiam e desejavam. Depois, indo à “rua” com liberdade, não mais de lá saíram, em múltiplas encarnações a favor de tudo e contra tudo, fazendo a democracia, ou mesmo tentando evitá-la. As imagens de manifestações que podem ser vistas na exposição incluem esse mundo contraditório, desde as grandes manifestações iniciais do 1.º de Maio, passando pelo “cerco” à Assembleia, pelas manifestações pela liberdade de informação ou pelas lutas laborais e camponesas.
11. Dessa “rua” saía uma nuvem de mensagens contraditórias, mas irmanadas pela liberdade de poderem ser ditas. Parte da cacofonia destes tempos encontra-se retratada em múltiplas palavras de ordem, frases e falsos slogans irónicos, que preenchem um painel da exposição e que também aparecem na “paisagem” sonora que a acompanha. Pretendeu-se dar deste tempo a mesma visão que revelam as fotografias e os cartazes, um emaranhado de vozes, sérias e menos sérias, puras asneiras e apelos dramáticos, falando ao mesmo tempo, dizendo coisas muito diferentes, com nexo e sem nexo, até porque tinham passado 48 anos sem poderem falar com liberdade. Pode considerar-se que o “abaixo a guerra colonial” é infinitamente mais sério do que a “promoção imediata do leitão a porco” ou o “nem mais um anticiclone para os Açores”, mas o que une estas frases é sublinharem a mesma vontade de liberdade e de fim da opressão e um antiautoritarismo que tinha força porque a canga tinha sido pesada.
12. Este aspeto de “explosão” icónica, sonora, verbal, na qual está presente uma nova força vital de Portugal e dos portugueses, é um dos que pode dar aos visitantes do presente, que não viveram este tempo, essa alegria da liberdade que, felizmente para eles, pela sua juventude, não podem contrastar com a vil tristeza claustrofóbica de um regime de violência institucionalizada.
13. Quando olhamos para trás, como se víssemos aquele “país estrangeiro” que é o passado, por estranho que tal possa parecer, percebemos como a nossa democracia nasceu nos anos a que chamamos, muitas vezes pejorativamente, de “processo revolucionário em curso”, o “prec”, um momento em que muitos não a desejavam, mas em que outros lutaram por ela com imenso risco. Não foi um processo linear, higiénico, “limpo”, deixando para trás o “dia lustral”, mas seria da ordem dos milagres se o fosse. Não foi um processo sem custos, enormes custos, a começar pelos custos em vidas humanas ocorrido nas antigas colónias portuguesas, onde deixamos como herança conflitos e guerras, com o pano de fundo de uma longa guerra colonial, de um colonialismo tardio e mergulhado na violência e de uma descolonização feita sem instrumentos de poder militar para ser controlada. Tudo isto pode “explicar”, mas não lhe tira a dimensão trágica. Uma ideia benévola do 25 de Abril esquece muitas vezes esta dimensão trágica dos eventos que desencadeou.
14. Tratando-se do nascimento de uma democracia, é normal que cada vez menos apareçam nas suas imagens militares, e cada vez haja mais civis. A dívida que todos temos aos homens que fizeram o 25 de Abril, que ninguém pretende nem minimizar, nem ignorar, nem esconder, é uma coisa de natureza diferente do processo de construção de uma democracia em que o retorno dos militares aos quartéis, o apagamento progressivo da sua dimensão como agentes da “revolução”, é fundamental. Também não foi um processo simples e isento de avanços e recuos.
15. Numa parte que será provavelmente a mais controversa da exposição, escolhemos 200 rostos daquilo que hoje chamaríamos, por influência crescente do marketing, os “protagonistas” desse nascimento de uma democracia. De novo, não fizemos qualquer julgamento a posteriori  sobre o seu papel nestes anos, sobre os méritos ou deméritos da sua ação no futuro. Sabemos apenas que, nestes anos da génese, todos foram “parte” do processo, todos estiveram lá. Nem todos foram importantes no futuro, mas todos a seu modo foram importantes no presente que durou de 1974 a 1976. Estão lá, nas fotografias e na ação, criando partidos políticos, organizando e intervindo, manifestando-se, planeando resistências e reações, golpes e contragolpes, violências e tolerâncias.
16. Estão presentes entre esses rostos lutadores quase tolstoianos pela democracia e opositores violentos da democracia, gente que matou e que foi morta, gente que lutou nas ruas pela liberdade e gente que desejava que não houvesse democracia “parlamentar”, ou seja, que não houvesse democracia. Pode parecer estranho que todos apareçam no mesmo painel, mas o tempo juntá-los-á numa mesma história, mesmo que lhes dê papéis diferentes. No entanto, no início e no fim desses 200 rostos, há dois grupos de anónimos: alguns militares do 25 de Abril, sem patente nem protagonismo, e alguns civis nas manifestações de risco desse mesmo dia, também sem nome e sem fama. Sabemos que foi deles que veio a força vital que transformou uma ditadura numa democracia.

http://www.publico.pt/politica/noticia/portugal-19741976-o-nascimento-de-uma-democracia-1632346

 Comissariada por José Pacheco Pereira,  a exposição "O nascimento de uma democracia (1974-1976)" integra cartazes, materiais de propaganda e reproduções fotográficas do período de 1974-1976. Esta mostra pretende, nas palavras do comissário, “retratar o nascimento da democracia portuguesa: o direito e o exercício de vir à rua manifestar-se, o direito e o exercício de organizar-se, a passagem à legalidade dos partidos clandestinos e a génese de novos partidos, o direito de falar e escrever livremente”.

DESCOLONIZAÇÃO: MELO ANTUNES ROMPE O SILÊNCIO


      “ AS  ACUSAÇÕES  QUE  SPÍNOLA  ME  FAZ 
CONSTITUEM  MONTAGEM  GROSSEIRA ” 

Ernesto Augusto Melo Antunes, tenente-coronel e conselheiro da Revolução, é, ao mesmo tempo, um dos homens mais conhecidos e um dos mais desconhecidos. Porque Melo Antunes foi elevado à categoria de símbolo. E de bode expiatório para os inimigos do processo da independência das ex-colónias e para os anticomunistas de vários matizes que não lhe perdoam ter vindo à Televisão em 25 de Novembro dizer, no fundo, que em nome da democracia o PC não podia ser eliminado. Foi Melo Antunes o teórico do “Grupo dos Nove”, opondo-se ao projecto inegemónico do PCP e tentando, depois contrariar, no plano internacional, a sua estratégia política. A direita colou-se-lhe, então, por razões de ocasião, uma parte da mesma direita que agora o ataca enquanto símbolo. E o PCP deixou de o atacar por razões opostas.  

          António de Spínola critica-o duramente no “País Sem Rumo” e diversos órgãos de Comunicação Social não cessam também de o atacar. Sem conhecimento de causa. Emocionalmente. A história do processo da descolonização não foi, porém, feita até agora. Por isso mesmo o EXPRESSO resolveu ouvir os intervenientes mais responsáveis por ela ao nível das cúpulas políticas de então. E não podia de deixar de ouvir Melo Antunes que continua a assumir toda a sua actuação. Como parece não assumir, por exemplo, Mário Soares que quisemos ouvir, mas não teve tempo para nos receber. Esperamos, entretanto, a oportunidade prometida. 

Pedimos, por isso, a Melo Antunes que nos desse a sua versão de como correram as coisas, que se pronunciasse sobre o livro do general António Spínola, que pensa do comportamento de Mário Soares, de então e de agora e quais as suas relações com o PCP. 
          Melo Antunes falou longamente da sua experiência e revelou alguns episódios até agora pouco conhecidos e alguns mesmo inéditos, entre eles, o encontro em Amesterdão entre ele próprio, Almeida Santos e Óscar Monteiro da FRLIMO. Situa, também, o célebre texto dactilografado que tanta admiração causaria no major Casanova Ferreira, se entendermos ao que sobre o assunto disse o general Spínola. E muito mais. A entrevista aí fica. Entrevista de um político-militar que continua a gozar de vasta audiência em diversos sectores do mundo africano. Uma entrevista que o EXPRESSO pensa fará história. A que outrAs certamente se seguirão – A. de C. 

O meu silêncio não significa arrependimento ou prudência

EXPRESSO – O tenente-coronel Melo Antunes é um dos homens mais em foco no processo que levou à descolonização de Moçambique. Um dos mais em foco e um dos mais atacados. Atacado pela chamada direita e silenciado pela chamada esquerda. 

Foi atacado recentemente pelo general António de Spínola no livro “País Sem Rumo” e o próprio Mário Soares secretário geral do PS, parece ter-se solidarizado com as afirmações do ex-Governador da Guiné e primeiro Presidente da República a seguir ao 25 de Abril. Já passou muito tempo. Já vários livros foram publicados e o tenente-coronel Melo Antunes tem-se mantido silencioso. Como interpretar tal silêncio? Arrependimento ou prudência? 

 MELO ANTUNES – Sobre o processo de descolonização levado a cabo após o 25 de Abril muito se tem dito e escrito, em Portugal, em tais condições de emotividade ou buscando efeitos políticos, partidários ou sociais que quase sempre se tem adulterado a verdade histórica ao ponto de desfigurar quase por completo esse capítulo fundamental da nossa História que levou à independência de territórios durante séculos submetidos à dominação colonial portuguesa. 
          O meu silêncio perante os constantes e, por vezes, inqualificáveis ataques de sectores bastante diferenciados da direita portuguesa ou de grupos sociais com estreitos interesses ligados à antiga exploração colonial (e que de um modo tão transparente, e frequentemente iníquo, exploram justos sentimentos de saudade e de desgosto de tantos que viveram nas colónias do seu honrado e penoso trabalho) – o meu silêncio não significa, de modo algum, “arrependimento” ou “prudência”. O que penso é que a “história da descolonização”só poderá ser feita, em termos do mínimo rigor científico exigível, em condições de muito maior serenidade, numa atmosfera política muitíssimo mais distendida, quanto à hermenêutica dos acontecimentos puder ser realizada com a distanciação que permita uma visão mais lúcida e global. 
          Até hoje, nesta matéria, não houve qualquer “investigação histórica” digna desse nome. Quase todos aqueles que sobre a “descolonização” têm escrito procuram atingir objectivos políticos conjunturais. E, consoante as “modas” ou “oportunidades”, assim se fazem ouvir mais ou menos, as vozes dos que por forma sistemática procuram destruir a acção dos que tentaram em condições extremamente difíceis, soluções simultaneamente patrióticas, pragmáticas e progressistas (no sentido de se enquadrarem no movimento universal de luta contra todas as formas de colonialismo) para o problema da autodeterminação e independência dos antigos territórios coloniais portugueses; dos que procuram, a todo o custo, alijar responsabilidades e desviar a atenção da opinião pública sobre um número muito restrito de “bodes expiatórios” (aos quais tenho a honra de pertencer), tentando simultaneamente aparecer como “vítimas” inocentes de cavilosas intrigas, “mártires” de não sei que tenebrosas conspirações, alvos ingénuos e virginais de horrendas e pérfidas traições; dos que ensaiam, enfim – não se cansando jamais, jamais corando, das inúmeras contradições com que parecem apostados em pautar a sua quota de responsabilidade no processo histórico da descolonização, por razões de mero eleitoralismo umas vezes, por razões de conveniência política outras (quando os ventos parecem soprar favoravelmente no sentido da condenação global da descolonização), por razões enfim que, tendo a ver com o que disse antes, se resumem no fundo a isto: necessidade que alguns sentem de “redourar o seu brazão”, isto é, pintar de fresco uma imagem que, por motivos diversos está profundamente deteriorada na opinião pública. 
          Ora bem, o livro do general António de Spínola pertence a um “género” que integra algumas das “espécies” que rapidamente antes esbocei, pelo menos no que toca às passagens respeitantes à descolonização – em particular aquelas em que sou focado, porquanto foram essas que examinei com mais cuidado. 
          Quanto à “solidariedade” manifestada por Mário Soares, direi por enquanto apenas que lamento desde já duas coisas: a primeira é que um homem que, em tantas ocasiões, antes e depois do 25 de Abri, manifestou ser possuidor de incontestável coragem política, se tenha obrigado a fazer o elogio do livro e da figura do general Spínola, conhecendo ele tão bem como eu, pelo menos, quais os verdadeiros projectos do general quanto à descolonização (e que o próprio Mário Soares, então, criticava, em nome dos princípios socialistas e da luta anticolonial); a segunda é que Mário Soares tenha chegado ao ponto de invocar o livro para “cobrir” a sua acção nas negociações do Alvor, invocando a autoridade do autor de “País Sem Rumo” para fazer a “demonstração” do seu discreto papel na descolonização de Angola, por um lado, e da sua relevante e patriótica intervenção nas negociações com a FRELIMO, por outro lado. 
  Reflectindo sobre esta questão, hesito em classificar esta, para mim mais do que surpreendente, atitude de Mário Soares. 

A inviabilidade do projecto de Spínola 

EXP. – Que a descolonização deveria ter sido desta ou daquela maneira ouve dizer-se e escrever-se com frequência. Acha que poderia ter sido de maneira diferente? 

M.A. – Poderia, talvez, ter sido de maneira diferente. Inclusivamente, poderia ter sido tentada de acordo com as ideias do general Spínola. 

Simplesmente, para que isso tivesse acontecido, teria sido necessário que a própria revolução tivesse tido uma natureza diferente. Quer isto dizer que o “25 de Abril” se tivesse limitado a um mero “pronunciamento militar”, a um simples “golpe de Estado” que, derrubando o governo e algumas das principais instituições do fascismo, levasse ao poder o conjunto de generais, com Spínola à frente, interessado em mudar no regime aquilo que permitisse a transferência efectiva do poder de uma secção ou parcela da classe dominante para outra secção (aspirando a certas formas de democratização e modernização no regime, condição fundamental para o pleno desenvolvimento dos seus projectos de capitalismo avançado) – se o “25 de Abril” se tivesse resumido a isto tão esquematicamente delineado, sem qualquer dúvida que Spínola poderia ter beneficiado das condições políticas necessárias para pôr em prática o seu projecto descolonizador, já esboçado no seu livro “Portugal e o Futuro” e que, no essencial, apontava para uma comunidade de expressão lusíada, composta por uma federação de Estados aos quais se reconhecia, em grau maior ou menor, o acesso a certas formas de independência. 
          Aconteceu, porém, o seguinte: primeiro, o projecto de Spínola vinha com um atraso de mais de 13 anos (admitindo, sem discutir, que antes de eclodirem as guerras tal projecto poderia ter sido posto em prática), não tendo em consideração o factor capital do desencadeamento das lutas armadas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné que fizeram mudar perfeitamente a natureza das relações políticas, sociais, culturais e humanas entre Portugal e as suas colónias; em segundo lugar, o golpe militar de “25 de Abril” transformou-se em poucas horas numa autêntica “revolução popular”, com uma dinâmica interna que ninguém estaria em condições de prever e que condicionou de tal forma as decisões dos responsáveis políticos da época, nos meses que se seguiram ao “25 de Abril” que bem podemos já hoje afirmar que o processo histórico da descolonização faz parte integrante do processo histórico da liquidação e, paralelamente, edificação, contraditória embora, de um novo estado democrático em Portugal. Digamos que o mesmo impulso revolucionário, gerado no seio de um povo oprimido e explorado durante perto de 50 anos, criou as condições políticas únicas e específicas que levaram, não só ao derrube das estruturas do fascismo e ao começo de um novo ciclo histórico, como, conduziram o poder político a abandonar uma postura ambígua perante o problema colonial e a reconhecer o direito dos povos à autodeterminação e independência (discurso do general Spínola de 27 de Julho de 1974 e Lei 7/74), abrindo-se  a possibilidade de uma negociação até aí bloqueada; em terceiro lugar, levar por diante o projecto de Spínola que comportava a chamada consulta por referendo, contra o curso da história, as esperanças suscitadas em toda a comunidade internacional e sobretudo, contra a vontade nacional que se manifestava de forma inequívoca de mil maneiras, significava pura e simplesmente acontinuação de guerra: os movimentos de libertação não aceitavam obviamente que a sua legitimidade, conquistada por via revolucionária e pela luta armada no campo de batalha, viesse a ser posta em causa através de um instrumento, não só de impossível aplicação prática mas sobretudo a realizar em territórios cujas populações continuavam enquadradas pela mesma administração colonial e com a presença, por toda a parte, de tropas portuguesas. O referendo era, portanto, uma utopia e uma utopia perigosa nas condições então existentes. Mas, ao contrário do que pretende Spínola, não foram as tropas portuguesas que, segundo ele, recusando-se a combater ou negando-se a cumprir mais qualquer missão, tornaram o seu tão acarinhado projecto impossível. O general Spínola, fiel ao seu mítico ideal de um exército colocado exteriormente e acima do povo – no fundo imbuído dos ideais elitistas dos exércitos prussianos que nada têm a ver, nem nunca tiveram nada de comum com os exércitos nacionais de países como Portugal (mas isto é outra história que nos levaria muito mais longe) – considera-se traído, não só por políticos, militares e pelo MFA, como também, e sobretudo, pelas Forças Armadas que não teriam garantido, no terreno, as condições necessárias, ao desenvolvimento da sua política. Ora traição só existe na verdade na sua imaginação exaltada, povoada de fantasmas de outras épocas e outras latitudes, obcecada por esquemas políticos rígidos (e que, de resto, nem no essencial eram originariamente da sua autoria…). O Exército, na generalidade, e salvo casos excepcionais que em todas as épocas e em semelhantes circunstâncias sempre se verificaram, portou-se com a dignidade, a coragem e espírito de missão que a situação exigia. O que se passou, porém, é que as Forças Armadas não podiam, por impossibilidade histórica, psicológica e política ficar imunes ao grande movimento colectivo que transformava Portugal. Pretender que o exército agisse contra o processo de transformação que sacudia a Nação é não entender, por preconceito ideológico ou má-fé, (a menos que se trate de pura ignorância) que tinha sido o exército a iniciar o processo revolucionário, libertando forças sociais e políticas que identificando-se com o acto libertador, não se mostravam dispostas a pactuar com os desígnios, declarados ou ocultos, das forças e personalidades que pretendiam controlar a revolução e canalizá-la a seu favor; é não entender também que o Exército português era, e é, mais do que nenhum outro da Europa, por razões da história e cultura nacional, das características específicas da nossa formação social e económica, da tradição militar portuguesa, um exército de povo, um exército no qual, mau grado as incidências elitistas, os elementos de articulação ao povo são muito fortes e determinantes, não sendo por isso de admirar que uma revolução que tão profundamente abalou as estruturas da sociedade portuguesa arrastasse consigo, esmagadoramente, o Exército.  
          Isto não explica, nem desculpa, erros capitais cometidos em Portugal por certos sectores das Forças Armadas e certos grupos políticos anarquizantes. Quando, por exemplo, se gritava em comícios e em manifestações de rua, palavras de ordem tão irresponsáveis e imbecis como por exemplo “nem mais um soldado para as colónias”, pretendia-se não só criar, internamente, uma situação de caos político que favorecesse a implantação de um projecto esquerdista, como conduzir à desmoralização completa das tropas cuja principal missão era, nos territórios a descolonizar, garantir uma transição pacífica para a independência, o que supunha um empenhamento activo no cumprimento rigoroso dos acordos com os movimentos de libertação, uma defesa intransigente de pessoas e bens, a oposição frontal às tentativas oportunistas de personalidades e grupos políticos fantoches de fazer reverter o processo em seu favor. Impunha-se ainda uma coordenação fraterna com as autoridades militares dos novos países por forma a facilitar-lhes a tarefa de controlo e defesa dos territórios. 
      Nem tudo, neste como noutros capítulos da descolonização, se passou na prática como se pretendia. Mas nunca ao Exército, nem à sua honra se podem assacar as culpas principais, como – ia a dizer vergonhosamente mas, no fundo , por completa incapacidade de compreender – o faz o general Spínola no seu livro.  

Qual o papel do Dr. Mário Soares

EXP. – Segundo o general Spínola no livro supracitado os primeiros contactos com a FRELIMO foram realizados pelo Dr. Mário Soares (ministro dos negócios estrangeiros), pelo Dr. Manuel Sá Machado do mesmo Ministério, pelo major Otelo Saraiva de Carvalho na qualidade de representante do MFA central e pelo tenente-coronel Nuno Lousada, como representante do MFA.  

“Neste primeiro contacto, diz o general Spínola, Saraiva de Carvalho sobrepondo-se ao ministro dos Negócios estrangeiros, advogou a entrega, sem condições, de Moçambique à FRELIMO”… 

 Resulta deste texto e de outros de semelhante teor que Mário Soares não estava de acordo com a linha do MFA para a descolonização. Qual seria então o pensamento e a actuação do Dr. Mário Soares? Teve com ele divergências acerca da forma de conduzir os acontecimentos? Mário Soares vem afirmando que é fundamentalmente certo o que Spínola escreve.  
M. A. – Antes de responder à sua pergunta deixe-me dizer-lhe – em jeito de questão prévia fundamental relativa a todas as questões que quiser pôr-me – que por agora apenas revelarei dos factos que com ela possam estar relacionados aquilo que julgue não ser, ainda hoje, do domínio reservado e confidencial dos negócios de Estado. Eu sei que a sua pergunta tem a ver com afirmações contidas num livro em que tal critério não foi observado. Tal não me levará, porém, a contrariar uma prática legítima e universalmente respeitada e que, em nome de razões opostas, tem sido, com grande leviandade, posta em causa entre nós. 
          Mas vamos à resposta. 
          As primeiras negociações com a FRELIMO iniciaram-se, efectivamente, em Lusaka, nos primeiros dias de Junho de 1974, sendo a delegação portuguesa chefiada por Mário Soares.  O encontro e as negociações com a FRELIMO abrem-se com o célebre abraço de Mário Soares a Samora Machel, rompendo todas as regras do protocolo, como então foi dito e repetido. Este gesto era revelador (pelo menos assim foi interpretado na altura por mim próprio e por muitos sectores progressistas, militares e civis) de um espírito de generosa abertura e fraternidade, de uma franca disposição de ultrapassar com rapidez as enormes dificuldades de um processo naturalmente completo como era o da descolonização de Moçambique. A capacidade de negociação de Mário Soares era, no entanto, muito limitada. Na prática, o seu mandato consistia em tentar obter da FRELIMO um rápido, se possível imediato, “cessar fogo”, sem poder, em troca, conceder à FRELIMO mais do que vagas promessas de respeito pelo princípio da autodeterminação. Dir-se-ia que Spínola, ao enviar Mário Soares a Lusaka, não tinha feito mais de que tentar ganhar tempo com uma manobra dilatória que não poderia deixar de ser interpretada pelo FRELIMO, com alguma razoabilidade e sem qualquer proveito para Portugal, como a um compasso de espera necessário à organização de formas políticas fantoches em Moçambique que aparecessem oportunamente no tabuleiro a reclamar representatividade no diálogo com Portugal; e, simultaneamente, ao enfraquecimento do ardor combativo das forças guerrilheiras, naturalmente desejosas também de uma paz rápida, mas justa. 
          Desta reunião de Lusaka nada resultou de positivo, a não ser um conhecimento mais exacto das posições da FRELIMO e a promessa da delegação portuguesa de voltar a contactar depois de estudo ponderado da situação, em Portugal. 
          E é importante referir aqui que, após este encontro em Lusaka, a FRELIMO intensifica o esforço de luta armada em diversas zonas de Moçambique, provocando uma certa desorientação em meios políticos e militares portugueses que com dificuldade entendiam que esta era a única resposta possível da FRELIMO ao que ela interpretava ser a manobra de Spínola e o trunfo maior que podia jogar para manter o espaço de negociação em ulteriores contactos. 
          As nossas tropas, desejosas de alcançar uma paz honrosa limitavam-se a responder aos ataques da FRELIMO, a tentar garantir a liberdade de circulação nas vias de comunicação e a proteger as populações civis, abstendo-se de operações ofensivas, em obediência de resto a instruções superiores oriundas de Lisboa, transmitidas pelo general Costa Gomes, com a plena concordância do general Spínola. 
          Das posições defendidas por Mário Soares nessa época, não posso concluir que defendesse um conceito de descolonização diferente do que prevalecia nas estruturas dirigentes do MFA. O que aconteceu em concreto, foi que Mário Soares não tinha mandato para ir mais longe nas conversações com a FRELIMO. Mas é inegável que as consequências políticas deste encontro de Lusaka são fundamentais para o processo que internamente se desenvolveu em Portugal, até ao discurso de Spínola de 27 de Julho de 1974 e à lei 7/74, de 26 de Julho. Efectivamente o que a delegação trouxe de Lusaka foi a ideia mestra que o prosseguimento das conversações com a FRELIMO exigia de Portugal três coisas: o reconhecimento do direito do povo moçambicano à independência completa e total; a aceitação do princípio da transferência da soberania exercida por Portugal às instituições representativas do povo moçambicano, isto é, à FRELIMO; o reconhecimento da FRELIMO como legítimo representante do povo moçambicano. Estas eram, na realidade, as condições postas à delegação portuguesa para o prosseguimento das negociações. 
          Foi, por isso, nos quase dois meses que se seguiram ao encontro de 5 a 6 de Junho em Lusaka, o debate aceso em torno destas questões fulcrais, a nível de várias instâncias do poder que, a par dos acontecimentos registados em Portugal e nas colónias, determinando uma aceleração inusitada do processo histórico, acabou por conduzir à Lei 7/74 e ao discurso de 27 de Julho do general Spínola (que curiosamente não figura entre os documentos publicados em anexo ao “País sem Rumo”…). É durante este período que as mais acesas controvérsias têm lugar, acabando Spínola por aceitar a prevalência das teses do MFA sobre as suas próprias teses.  
          E não me recordo de ter visto nessa altura M. Soares manifestar-se em oposição ao MFA. 

Spínola queria um protocolo secreto com a FRELIMO 

EXP. – O general Spínola acusa Melo Antunes, então ministro sem Pasta, de se haver deslocado a Dar-es-Salam sem o seu conhecimento e sem que tal deslocação tivesse sido concertada com os ministros dos Negócios Estrangeiros e da Coordenação Interterritorial. Acrescenta que o propósito de Melo Antunes era estabelecer um plano de entrega de Moçambique à FRELIMO. 

Foi assim que se passaram os factos?  

M.A. – É inteiramente falsa, para começar, a afirmação que me desloquei a Dar-es-Salam sem o conhecimento do então Presidente da República. 
As acusações que Spínola me faz constituem uma montagem extraordinariamente grosseira de alguns factos reais, o primeiro dos quais é a minha deslocação a Dar-es-Salam em fins de Julho de 1974.  
          Procurarei descrever o mais sinteticamente possível o que então se passou. 
          Depois do encontro de Lusaka a que já fizemos larga referência e no mais aceso do debate travado em torno dos princípios que haveriam de regular o prosseguimento das negociações com a FRELIMO (e que obviamente iriam repercutir-se nas negociações para a independência de Angola), desloquei-me com Almeida Santos e a convite deste, a Amesterdão, para um encontro que permaneceu secreto com Óscar Monteiro, membro proeminente da FRELIMO. Esta deslocação tinha em vista, em face do relativo malogro das conversações de Lusaka, assentar com a FRELIMO a metodologia mais conveniente para a manutenção dos contactos, tendo-se chegado à conclusão que deveriam evitar-se mais encontros formais do tipo do “encontro de Lusaka”, enquanto não se tivesse avançado na remoção dos obstáculos que permaneciam após aquele encontro. Foi, assim, reconhecida a conveniência de, logo que a parte portuguesa estivesse em condições de avançar com propostas concretas, sobre as quais se pudesse estabelecer um diálogo positivo, se combinaria novo encontro secreto, a fim de evitar que se dele não resultasse nada de concreto, a publicidade dada às posições de ambas as partes limitasse de maneira fatal a sua capacidade de negociação, comprometendo seriamente a continuação do diálogo. Deste encontro de Amesterdão foi dado conhecimento completo ao general Spínola. E quando, decidido o discurso de 27 de Julho e aprovada a lei 7/74 se verificou estarem reunidas as condições políticas mínimas para o prosseguimento do diálogo com a FRELIMO, foi formalmente deliberada a minha ida a Dar-es-Salam, com plena concordância do general Spínola, general Costa Gomes (que na mesma altura fez a proposta da minha nomeação para Alto-Comissário em Moçambique, proposta que foi aceite) e primeiro-ministro Vasco Gonçalves e, pelo menos, o conhecimento e acordo do Dr. Almeida Santos e Dr. Mário Soares. 
          Propus, então, que me acompanhasse na missão o comandante Almeida e Costa, representante em Lisboa do MFA de Moçambique e que nessa qualidade seguia atentamente o evoluir da situação, proposta que foi aceite. Antes de partir tive uma conversa com o general Spínola durante a qual foram acordados os termos em que deveria, nesta fase preliminar, negociar com a representação da FRELIMO. Assim e de harmonia com o discurso de 27 de Julho e a lei 7/74, deveríamos considerar como adquiridos e, portanto, aceites por Portugal, dois dos três princípios já referidos: o reconhecimento do direito do povo de Moçambique à independência; o princípio da transferência de poderes para a FRELIMO. Quanto ao reconhecimento da FRELIMO, o general Spínola adiantou a ideia da assinatura de um protocolo secreto no qual aquele movimento seria reconhecido como representante legítimo do povo de Moçambique, sem prejuízo das negociações que se seguiram com a FRELIMO (erigida, assim, e de facto, em interlocutor único) com vista à transferência de poderes. 
A insistência do general Spínola na questão do segredo do protocolo reconhecendo a FRELIMO baseava-se nos seguintes argumentos: impedir a África do Sul e a Rodésia de contestarem, no plano internacional , a legitimidade de tal representatividade, tirando partido de “preconceitos democráticos burgueses” do Ocidente, o que nos criaria dificuldades na Europa; impedir a África do Sul e a Rodésia de utilizarem o pretexto formal da ilegitimidade para intervirem militarmente em Moçambique, tentando concretizar o velho sonho colonialista de cortar Moçambique em dois pela Zambézia provavelmente; e retirar às minorias racistas e colonialistas de Moçambique, bem como aos sectores mais reaccionários em Portugal, o argumento da “traição” pela “rendição e entrega vergonhosa”, o que poderia levantar em Moçambique sérios problemas de ordem pública e em Portugal graves dificuldades políticas. 
          Foi com este mandato precioso que parti com o comandante Almeida e Costa para Dar-es-Salam. Nesta cidade decorreram, entre 30/7/74 e 2/2/74, as difíceis conversações entre a delegação portuguesa e a delegação da FRELIMO que conduziram à elaboração de um documento contendo os conceitos básicos e as linhas mestras do acordo a negociar, formalmente, caso Portugal concordasse em que este documento era uma base de partida aceitável para a continuação do diálogo. Uma vez que este encontro de Dar-es-Salam havia permanecido secreto, mantinha-se a margem de negociação de ambas as partes, caso Portugal viesse a considerar inaceitável a posição de partida de Dar-es-Salam. 
      Regressado a Portugal, dirigi-me imediatamente com Almeida Santos, de helicóptero, ao Buçaco, onde se encontrava o Presidente da República. Entreguei o documento ao general e expliquei-lhe detalhadamente a forma como tinham corrido as conversações e as principais dificuldades encontradas e que, no fundamental, eram as seguintes: a questão do não reconhecimento público da FRELIMO; e, quanto ao mecanismo de transferência de poderes, o problema da composição do Governo de transição. O Presidente da República não reagiu desfavoravelmente ao documento que lhe foi apresentado, nem fez qualquer comentário negativo às explicações suplementares que lhe forneci. Mais. O Presidente da República dá o seu pleno acordo para que se façam os preparativos necessários à constituição de uma delegação portuguesa que, no mais curto prazo de tempo, se deslocaria a Dar-es-Salam, a fim de prosseguir, agora a “céu aberto” e, portanto, formalmente, as negociações com a FRELIMO, partindo das bases provisórias contidas no documento de que lhe fiz entrega. 
          É esse documento que o general chama agora hipócrita e despudoradamente um plano de entrega de Moçambique à FRELIMO. Por aqui se pode avaliar da seriedade política, intelectual e moral do autor do “País sem Rumo”. 
          Discutido, pois, o documento, já no âmbito da Comissão Nacional de Descolonização, constitui-se a delegação portuguesa que, em 15 e 16 de Agosto seguintes, continua em Dar-es-Salam a discussão com a FRELIMO,procurando então formalizar os seguintes objectivos, já por mim defendidos e pelo com. Almeida e Costa no 1º encontro de Dar-es-Salam: obter uma composição do Governo de transição e uma definição de competências (do Alto-Comissário e do Governo) que evitasse a Portugal ficar em posição desvantajosa e desprestigiante no período de transição: obter a máxima garantia para os interesses legítimos dos portugueses residentes em Moçambique, sobretudo para aqueles que lá desejassem continuar a viver após a independência: lançar as bases políticas e jurídicas das futuras relações Portugal-Moçambique, no quadro de uma cooperação marcada pela fraternidade, o respeito pelos interesses mútuos, a igualdade, a não ingerência nos assuntos internos de cada país, o reconhecimento do factor linguístico como laço permanente e privilegiado das relações entre os dois países e elemento de importância capital no incremento futuro da cooperação cultural, técnica e científica e económica; os problemas decorrentes do cessar-fogo e a cooperação militar. 
          Foi com este espírito que participei nesta 2ª reunião de Dar-es-Salam, procurando o desenvolvimento de princípios já adquiridos na 1ª reunião, e constantes do documento já referido. 
          Almeida Santos tem nesta segunda reunião uma intervenção muito importante, a dois níveis: dando forma jurídica ao acordo, à medida que se chegava a entendimento sobre cada questão concreta; contribuindo largamente para a criação de uma atmosfera distendida e propícia ao diálogo. 
          Mário Soares participou largamente nos debates, inteiramente integrado no espírito do documento que serviu de base a esta 2ª reunião de Dar-es-Salam. 
          Reportando-me ao livro de Spínola e na sequência desta mesma questão, é verdade que tive um encontro com Nyerere a pedido deste após a minha chegada a Dar-es-Salam. Considerei natural o pedido, dado a forma como tinham decorrido os nossos anteriores contactos. Nyerere, porém, não tentou interferir nas negociações. Naturalmente que estava vivamente interessado em acompanhá-las, mas nunca fez qualquer pressão inaceitável. Recomendou sempre compreensão e espírito de abertura, chamando a atenção da importância que aquelas conversações tinham para a África e para o Mundo, bem como para o processo geral de libertação dos povos colonizados. O seu interesse em falar comigo resultava também da necessidade de confrontar ideias sobre questões de política geral relativas à África (e dos problemas decorrentes das relações África-Europa); de questões ligadas ao desenvolvimento dos países pobres de África (e a Tanzânia é um deles), de questões sobre a paz e segurança internacionais. Dir-se-á que eram problemas da competência do ministro dos Negócios Estrangeiros. Inteiramente de acordo. Simplesmente, Nyerere não me ouviu enquanto representante de Portugal nos encontros que tivemos. Falámos, sim, como dois cidadãos com idênticas e públicas preocupações e, em muitos aspectos, com ópticas semelhantes sobre vários problemas concretos respeitantes à ordem internacional existente. Quando muito, o que Nyerere via em mim seria o representante de uma revolução que tinha tido um enorme impacto em todo o mundo e que se enchia de prestígio à medida que se tornava clara a boa-fé e a sinceridade com que se procedia à democratização e descolonização. 
          Não houve, portanto, ultrapassagem de ninguém. E se alguém tivesse, nessa altura, considerado que a minha atitude era menos correcta e mais límpida, deveria ter-me dito e discutido comigo, pois sempre foi traço característico dos meus métodos de trabalho, a transparência de atitudes e a lealdade nas relações. Pena é que aqueles que fundamentalmente ou não, têm motivos de queixa ou de crítica, não o manifestem no tempo e no lugar próprios, preferindo, ao que parece, a insinuação ou a denúncia como meios privilegiados de, conjuntural e oportunisticamente, fazer realçar os seus próprios méritos e virtudes. 
          Foi assim que procederam, sejam eles quem forem e a dar-se credibilidade ao que diz o general Spínola, aqueles que depois do regresso de Dar-es-Salam “informaram” o Presidente da República dos meus encontros com Nyerere e dos meus supostos contactos com a FRELIMO “sem conhecimento dos outros membros da delegação portuguesa”. 
          Quanto a esta última “acusação”, de extrema gravidade pelas suspeitas que levanta (e que, de resto são claramente expressas poucas linhas adiante no livro de Spínola), ela é inteiramente descabida e falsa. Não houve encontros formais entre mim e a delegação da FRELIMO, antes das conversações oficiais. Encontrei elementos da delegação da FRELIMO com quem conversei, nomeadamente no hotel onde nos instalámos, sem discutir nenhum aspecto substancial das negociações em curso. Trocaram-se impressões muito gerais, tal como estou convencido que aconteceu aos outros membros da delegação portuguesa, sem que tal me parecesse estranho ou suspeito. Só posso dizer, para finalizar, que toda essa “construção” é inteiramente revoltante e infamante. 

O famoso texto dactilografado e a intervenção de Casanova Ferreira

EXP. – Ainda no mesmo livro e como pano de fundo de aliado da FRELIMO contra os interesses portugueses, António de Spínola atribui a Melo Antunes a entrega de um texto dactilografado antes da partida para a Zâmbia em 4 de Setembro de 1974. Desse texto constariam as cláusulas do acordo com a FRELIMO, o que teria levado o major Casanova Ferreira a dizer a Mário Soares e Almeida Santos que, perante tais condições não valeria a pena irem a Lusaka. 

Qual o sentido deste gesto se é que existiu? 

M.A. – O “texto dactilografado” a que se refere o general era, pura e simplesmente e no fundamental o projecto de acordo que havia sido elaborado em Dar-es-Salam e que constituía a base das negociações finais de Lusaka, visto não serem previsíveis grandes alterações ao que já havia sido negociado. Esse texto foi discutido em Lisboa com o general Spínola, no âmbito da Comissão Nacional de Descolonização e, depois de aprovado no essencial, dele foi necessário fazer o número de cópias suficientes para todos os membros da delegação portuguesa, nomeadamente para o major Casanova Ferreira que à última hora, e sem qualquer razão visível, por designação expressa de Spínola, integraria a delegação portuguesa. 
          Do documento, já discutido e aprovado, foram tiradas cópias apenas na véspera do embarque da delegação, por razões que têm apenas a ver com a sequência dos acontecimentos e a falta material de tempo para proceder doutra maneira. Daí a sua distribuição no aeroporto. Mas o importante é que os membros activos da delegação tinham pleno conhecimento dele, uma vez que era o resultado do seu próprio trabalho. Se o major Casanova Ferreira produziu o comentário a que se refere, isso só evidencia o carácter anómalo da sua presença na delegação e o desconhecimento da “história” de todas as conversações. Se lhe foi respondido como se diz no livro que “apesar de tudo iriam modificar as condições expressas no referido texto”, é uma vez mais lamentável porque era perfeitamente sabido que os problemas de fundo estavam discutidos e aceites as condições essenciais do acordo, se bem que alguns pormenores, nomeadamente ao nível da linguagem e, de qualquer modo, relativamente secundários, poderiam ser melhorados. Em todo o caso, o que em Lusaka iria ser discutido de importante já não era o texto final do acordo de cessar-fogo, cujas cláusulas eram fundamentais para o enquadramento político-militar e jurídico da fase de transição. 
          Foi, efectivamente, o que veio a passar-se, não com o “significativo silêncio do major Melo Antunes e do comandante Vítor Crespo”, mas sim com a sua participação activa num honroso acordo. 
          Desconheço se os “dois ministros” a que se faz referência no livro teriam do general Spínola “prescrições” (para reproduzir o pitoresco termo que o autor utiliza) especiais a cumprir. E não me dei conta de nenhum comportamento particularmente notável e que mereça, passados estes anos, uma tão singular e espectacular referência a Mário Soares e Almeida Santos pela forma como “se bateram”. Que eu saiba não houve “heróis”. E ainda mais ignorava que alguém se julgasse merecedor dos elogios do general Spínola no contexto das conversações de Lusaka.  

Seria útil que o Secretário Geral do PS se explicasse em definitivo 

 EXP. – Acompanhámos de perto os Acordos do Alvor e pareceu-nos na altura que Mário Soares havia desempenhado um papel preponderante, embora, o MFA não ficasse em segundo plano. No entanto, recentes declarações dão-nos a entender o contrário, como se o PS se envergonhasse da descolonização (a afirmação é minha). Por uma questão de fidelidade à História que será escrita gostava que se referisse ao papel então desempenhado pelo Dr. Mário Soares. 

 M.A. – Em primeiro lugar desejaria esclarecer o seguinte. Mantenho, de há muito, com Mário Soares boas relações pessoais explicáveis por um respeito e consideração que suponho recíprocos. A qualidade das relações pessoais não tem, porém, nada a ver com a possibilidade de, em muitos campos, se poder estar em desacordo, manifestável até com recurso a alguma veemência quando tal for justo e necessário. Tal não envolve que deixe, entretanto, de ter em mente, a necessidade de controlar a emoção naturalmente decorrente de atitudes tão injustas quanto inesperadas, de tal modo que o que é apenas reposição de factos e emissão de juízos críticos não se veja reconvertido – como vai sendo moda na nossa terra – em arma de desbragado aviltamento de pessoas, das posições que detém, das missões que servem ou serviram. Por mim não desejo prestar esse serviço aos diversos peritos e agentes da maledicência e do mexerico nacionais; mas também não se me peça que em nome dos “princípios” esqueça o que, à absoluta revelia deles, foi escrito, dito, insinuado ou consentido, principalmente quando se trata de homens com pesadas responsabilidades políticas. 

           Nesta perspectiva, encaremos a questão que me põe. 
           Sempre considerei – até recentes declarações do visado que a si próprio atribui uma “discreta” actuação – que o papel de Mário Soares nos acordos do Alvor teria sido importante. Ele não chefiava a delegação portuguesa mas teve, na qualidade de ministro dos Negócios Estrangeiro, não só à mesa das negociações como nas conversações de “corredor”, uma participação activa e cujo peso específico me parecia indiscutível. 
          Ora, em face das campanhas em curso contra a descolonização e reagindo a declarações de Savimbi, ou a ele atribuídas, na sequência de um encontro daquele dirigente da UNITA com personalidades portuguesas confessadamente envolvidas em intrigantes e equívocas diligências políticas contra a República Popular de Angola e o seu Governo e que tão gravemente prejudicam o interesse nacional, é, no mínimo, estranho que Mário Soares procure defender-se, e tão debilmente, ao reservar-se um papel discreto nas negociações do Alvor embora acrescentando que sempre pautou a sua actividade pela defesa dos interesses dos portugueses, etc. (cito de cor). 
           O que, porém considero mais grave é que alguém se reclame da “autoridade” de Spínola, ao referir “País sem Rumo” como um livro que “fala por si”. 
           As apreciações laudatórias que Spínola faz de Mário Soares são inseparáveis das condenações que o autor do livro faz de outras personagens, incluindo eu próprio. Donde terá forçosamente de se concluir que M. Soares está de acordo não só com os elogios que Spínola lhe tece (o que seria o menos), mas, fundamentalmente, com a interpretação que Spínola faz dos acontecimentos e com a condenação que o mesmo faz recair sobre os outros intervenientes nos mesmos acontecimentos. E não basta, para o desmentir, uma simples frase de conteúdo abstracto, em que afirma estar em frontal desacordo com “apreciações de acontecimentos e pessoas” feitas pelo general. É uma posição, a meu ver contraditória com as posições definidas durante o próprio processo de descolonização, em que, como ministro dos Negócios Estrangeiros, acabou por defender os pontos de vista e as orientações que vieram a prevalecer – únicos de resto que tinham audiência no plano internacional e ele tinha consciência disso. E esta atitude de M. Soares traduziu-se não só nas posições assumidas como ministro como também nas inúmeras ocasiões em que claramente entendeu dever manifestar o seu apoio e encorajamento à luta política travada pelo MFA, nomeadamente no plano da descolonização. Luta que, como se sabe e me parece ter ficado bem saliente no decorrer desta entrevista, se travou em grande parte contra Spínola e as suas concepções. Concepções por um lado ultrapassadas e inexequíveis, por outro lado revelando uma ideia de história, porventura sinceramente assumida, mas que tentava reproduzir, em novos moldes, o sistema de denominação colonial e imperial. 
          Em face destas contradições, seria extremamente útil que o secretário-geral do Partido Socialista Português se explicasse, em definitivo, perante o fenómeno histórico das lutas de libertação dos povos submetidos ao domínio colonial. Saberíamos o alcance que para ele tem o fenómeno do acesso à independência das antigas colónias portuguesas e o fim do ciclo do império na história pátria; saberíamos como se define perante os cálculos políticos da direita portuguesa que cada vez mais ferozmente se lança contra a descolonização e os seus principais responsáveis; saberíamos, enfim, se concorda ou não com Spínola nos seus injustos e levianos ataques às Forças Armadas Portuguesas (arvorando-se, ao mesmo tempo, em defensor das “forças políticas” que, em seu entender, não seriam senão as vítimas inocentes dos “desvarios” revolucionários do 25 de Abril). 
           E é tanto mais importante saber o que pensam os responsáveis do Partido Socialista sobre estas questões. Quanto à política da Internacional Socialista é avaliada em Portugal e pelos portugueses em geral (assim como em boa parte de África, sobretudo na de “expressão portuguesa”) mais pelas atitudes e o discurso político dos responsáveis portugueses do que pelo que faz ou deixa de fazer o Sr. Willy Brandt, por exemplo.  
           Uma última observação. Se o livro de Spínola (talvez “malgré lui”, mas sem sombra de dúvida obedecendo às intenções dos que o estimularam e lhe guiaram a mão…) constituiu, até certo ponto, uma “luz verde” para que a ofensiva contra a descolonização começasse em grande estilo e envolvendo até uma “inteligentzia” pouco suspeita à primeira vista, de reaccionarismo (vide o triste artigo de António José Saraiva no “Diário de Notícias” e o delirante editorial que se lhe seguiu n`”A Capital” de Francisco de Sousa Tavares), foram as posições políticas, por acção ou abstenção, de alguns políticos de esquerda, que “autorizaram” a ofensiva e forneceram a criação de uma atmosfera geral de intoxicação e desorientação propícia à aceitação das teses mais retrógradas e perigosas para o próprio desenvolvimento dos ideais democráticos e progressistas em Portugal. 

Foi diminuta a participação do PC no processo de descolonização 

 EXP. – Melo Antunes é acusado pela direita de se haver conluiado com o Partido Comunista Português, para aquilo que chamam a entrega do Ultramar. 

 Qual, na realidade o papel do Partido Comunista no processo da descolonização? 

 M.A. – O que teria sido o “conluio” entre mim e o PCP está bem patente na história do período mais agudo da revolução portuguesa, o Verão de 1975, e o papel que nesse período desempenhei. 
           Não se perdoa, nem à esquerda nem à direita, a minha independência política e a coerência que procurei imprimir, desde o princípio, a toda a minha actividade política. Sei disso muito bem, mas não serão as incompreensões ( e muito menos os ataques, as calúnias ou as intrigas) que me farão desviar um milímetro da minha firme determinação de lutar pelas minhas ideias com total independência de juízo, sentido crítico, coerência política e a constante preocupação de não perder a dimensão ética de toda a acção humana. 
           Sei, também, que muitas das minhas ideias (todas elas de resto) são discutíveis e passíveis de crítica e estive sempre (como estarei sempre) aberto ao diálogo livre e democrático. Sou antidogmático e anti-sectário por natureza e convicção e por isso susceptível de evoluir. Mas só aceitarei a evolução num quadro de debate democrático e não de um clima de violência verbal ou física, numa atmosfera social e política inquinada pelas manipulações demolidoras de personalidades e as campanhas deformadoras da realidade. 
           Vem tudo isto a propósito da pergunta que me fez. 
           E vem a propósito lembrar que a “direita”, fingindo precisamente ignorar o papel que tive na luta contra as tentativas de hegemonização do processo revolucionário pelo PCP e forças militares e civis seus aliados, grita em altos bravos desde a noite de 26 de Novembro que “o 25 de Novembro não foi até ao fim”, em grande medida pela “defesa” que fiz do Partido Comunista, essa noite, perante as câmaras da Televisão, no próprio momento em que a tal “direita” julgava chegado o momento da “caça às bruxas”. 
           É verdade que ajudei a impedir a “caça às bruxas”; é verdade que intervim em defesa da democracia; é verdade que repetiria hoje, sem hesitar, o gesto dessa noite, fosse qual fosse o preço a pagar; é verdade que penso que os comunistas portugueses fazem parte de pleno direito da sociedade política portuguesa e que a liquidação do PCP corresponderia à liquidação da democracia em Portugal. 
           Dito isto, nada autoriza pensar-se numa qualquer possível identificação minha com o PCP, incluindo o projecto descolonizador. Divergimos profundamente em aspectos ideológicos fundamentais, divergimos totalmente quanto ao projecto de sociedade para Portugal, divergimos em aspectos essenciais da estratégia das relações internacionais e, portanto, quanto à política externa portuguesa.(E sobre este ponto, se não me explico mais detalhadamente, é porque, como é óbvio, me afastaria completamente do objecto principal desta entrevista). 
           Quanto à descolonização, é preciso reconhecer, antes de mais nada, que o PCP foi, das forças de resistência contra a ditadura fascista,  a que mais longa e consequentemente se empenhou na luta anticolonial, tendo contribuído decisivamente, antes de 25 de Abril, para a criação de uma consciência de massas contra a guerra e o colonialismo. (É certo que o Partido Socialista também lutou na mesma linha mas, como se sabe, o PS é de criação muito recente embora muitas das personalidades fundadoras militassem há muito na resistência antifascista e participassem activamente na luta anticolonial. É entre outros, o caso de Mário Soares).  
           Contudo, a participação visível do PCP no processo de descolonização foi diminuta. Não aparecem militantes seus directamente envolvidos nas negociações com os diferentes movimentos de libertação. Não estavam representados na Comissão Nacional de Descolonização. Nada se conhece, publicamente, dos contactos que certamente tiveram com responsáveis dos movimentos de independência; nem há “provas” bastantes, até este momento, da sua identificação total com a estratégia africana de inspiração soviética. 
           Sem prejuízo da história que, um dia, se fará, liberta de preconceitos, de interesses pessoais ou de grupos e de paixões alienantes, tenho para mim que o PCP sempre preferiu na descolonização, métodos indirectos de pressão, formas subtis de influenciar os centros de decisão, evitando a todo o custo “sujar as mãos”. 
          Há, no entanto, pelo menos quanto a Angola, algumas razões que me levam a pensar que o PCP tenha influenciado de maneira decisiva centros importantes de decisão ao nível do MFA. No final do IV Governo Provisório, em meados de Julho de 1975, quando me desloquei a Angola no mais aceso da luta entre os movimentos, e Luanda se encontrava dominada pelo MPLA e defendida militarmente por forças portuguesas contra uma iminente ofensiva da FNLA apoiada por forças regulares zairenses (depois de ordens expressas minhas nesse sentido), defendi a tese, tanto em Angola como depois em Lisboa que os acordos do Alvor tinham sido completamente ultrapassados pela realidade e que Portugal os deveria denunciar, abandonar a tese da “neutralidade activa” e assumir corajosamente e claramente o apoio ao MPLA com ou, sem ligação à UNITA, tese que se justificaria naquela altura pelo relativo neutralismo deste movimento nas violentas confrontações entre o MPLA e a FNLA e pela imperiosa necessidade prática de isolar a FNLA, movimento que aparecia cada vez mais claramente a tentar converter Angola num satélite do Zaire, submetendo-a ao imperialismo. 
           O MPLA emergindo como o movimento que mais legitimamente representava os verdadeiros interesses do povo angolano e o que visivelmente dispunha de maior apoio nas camadas mais conscientes da população, era a solução que pragmaticamente melhor correspondia à situação real e aquela que daria garantias, a meu ver sólidas, de defesa dos portugueses instalados em Angola e dos seus interesses legítimos e evitaria a debandada geral. Teria como contrapartida a continuação do empenhamento militar português a fundo, de acordo com o MPLA. Mas era possível que, nestas circunstâncias, e com a negociação de novos acordos, se evitassem ingerências de países estrangeiros, isto é, a intervenção militar da República da África do Sul e o consequente aparecimento de cubanos e soviéticos (embora fosse de admitir a intervenção do Zaire). Ora, é neste momento que senti, como nunca, a oposição de “sectores progressistas” do MFA à tese por mim defendida e, paralelamente, uma estranha indiferença do PCP (que tinha pelo menos, um óbvio significado de assentimento). A tese “esquerdista” da impossibilidade de exigir dos militares um esforço suplementar em Angola generaliza-se e a argumentação entrincheira-se obstinadamente na estafada doutrina da “neutralidade activa”, sem atender às mudanças operadas na prática. Note-se uma vez mais, que não foram as Forças Armadas que se recusaram a combater. O seu espírito de missão e o seu patriotismo ficaram bem patenteados quando aceitaram, sem hesitar, a missão por mim imposta de defesa de Luanda a todo o custo quando isso significava, objectivamente uma aliança com o MPLA. 
           Foram as indecisões políticas de Lisboa a incapacidade do poder político em definir a única via correcta para a independência de Angola que desmoralizou as Forças Armadas e as impediu de actuar até final como seria legítimo esperar que actuassem. 
           A recusa em dar o “golpe de rins” absolutamente indispensável para uma alteração radical da relação de forças políticas e militares em Angola e iniciar um novo processo naquele território (que poderia respeitar ou não a data de 11 de Novembro de 1975 para a independência, consoante os novos acordos que fossem feitos), foi, em minha opinião, uma das causas fundamentais (a nas) que conduzem à queda do IV Governo Provisório e à constituição do V Governo Provisório, criando-se assim condições políticas que impediriam por completo a continuação do debate sobre Angola. Quando se forma VI G.P. já era demasiado tarde (além que as contradições internas estavam longe de ter desaparecido). 
           Foi esta a fase, também, que viu mais profundamente comprometida a tese da autonomia do MFA relativamente aos partidos, tese ciosamente defendida pelo chamado “grupo dos nove” e que não cessou de constituir até hoje uma das traves mestras da sua acção política. Mas os sectores do MFA que se deixaram infiltrar partidariamente, provocando rupturas irreparáveis no movimento militar revolucionário, são também responsáveis pelo que veio a acontecer em Angola. 
           Influência dos sectores “esquerdistas”? Influência do PCP? Ou pelo contrário, influências dos militares naqueles sectores e no PCP? 

Assumo inteiramente as minhas responsabilidades

 EXP. – Você assume a descolonização que conduziu? 

 M.A. – Creio que resulta claro de toda esta entrevista que assumo por completo a minha parte de responsabilidade no processo de descolonização. 

           Sei muito bem que foram cometidos erros, alguns deles absolutamente inevitáveis; outros erros foram consequência da extrema complexidade do próprio processo revolucionário português; outros ainda derivados de insuficiências humanas. 
           Não desconheço também, o sofrimento de muita gente inocente os dramas pungentes que se abateram sobre muitas famílias portuguesas, obrigadas a refluir para Portugal (quando muitas delas sentiam como a sua terra onde viviam e trabalhavam honestamente, há mais do que uma geração), a tragédia de lares desfeitos e de bens destroçados, o penoso esforço de adaptação a Portugal e ao refazer de uma nova vida. 
           Nada disto, porém, foi querido ou sequer admitido por aqueles que, como eu, se lançaram na ingrata mas histórica e necessária tarefa da descolonização. Processo que teria inevitavelmente de produzir feridas e dramas humanos como acontece em todos os momentos de mutação profunda da história. Feridas e dramas que, apesar de tudo, não tiveram a dimensão atingida, em circunstâncias semelhantes, noutros lugares. (Jamais se deram os massacres e os “genocídios” de que fala uma certa direita – e que ocorreram em outros processos descolonizadores  - embora vítimas haja a lamentar).  
           Poderia ter sido realizada de outro modo, a descolonização? Sem dúvida. Mas não entrando neste momento na análise detalhada das alternativas teoricamente possíveis (já me tendo referido, em particular, ao longo desta entrevista, a inexequível e inaceitável alternativa Spínola) – quem poderá em boa consciência garantir que alguma delas teria sido menos dispendiosa em termos de custos humanos, sociais e até económicos? 
           Seria, também, demasiado fácil, e, além do mais, demagógico, atirar as culpas dos “custos da descolonização” para quem teve a ingrata tarefa de executar, fosse a que nível fosse. 
           As responsabilidades devem e têm que ser assumidas por quem teve de tomar as decisões políticas de fundo. Eu fui um deles – e assumo por isso tudo de que fui responsável. Considero, entretanto, lastimável que outros não assumam, como lhes competia, a sua quota parte de responsabilidades. 


Processo de Descolonização: Melo Antunes rompe o silêncio em entrevista ao EXPRESSO  

Entrevista de Augusto Carvalho 

In o “EXPRESSO” de 17 Fevereiro de1979 

http://www.espoliadosultramar.com/n8.html