por PEDRO MARQUES LOPES
Não é que seja surpreendente para ninguém a forma como o duo dinâmico, Passos Coelho/Maria Luís Albuquerque, conduz o processo político. O já nosso mais que conhecido cocktail de ignorância, incompetência e desprezo pelos cidadãos, servido com a imprescindível casquinha de limão mentirosa, continua a jorrar em abundantes doses.
Esta semana, Passos Coelho abusou do limão. Ou melhor, como dizia um membro do Conselho de Ministros ao Expresso, o "primeiro-ministro teve infelicidades verbais várias". Pelos vistos, há mais ministros a aderir à novilíngua. A bem verdade, o muitíssimo provável autor da dita frase já começa a ser um especialista: o seu primeiro contributo foi a alteração do significado da palavra irrevogável.
No diálogo televisivo de terça-feira, o primeiro-ministro falou dum alargamentozinho no corte de salários face ao do anterior Governo. Segundo o primeiro-ministro, fazer cortes de 3,5% nos salários a partir de 1500 euros não é muito diferente de cortar 2,5% a partir dos 675. Também, segundo ele, não existirá grande diferença entre o tal corte de 3,5% nos salários de 1500 euros e o atual de 8,5%. Mais do dobro. As brutais diferenças não acabam aqui, mas serão pormenores que não passam duma maçadoria. Infelicidade verbal, pois então. Mas existiram mais aspectos que houve quem achasse claros. Houve tempo para libertar (bem sei que agora esta palavra quer dizer despedir, mas é só enquanto não nos habituamos) uma não verdade, quando disse que os cortes nas despesas de funcionamento do Estado tinham sido de 1600 milhões de euros: não foram, foram de metade desse valor como provou o Jornal de Negócios dois dias depois. Infelicidade verbal, sem dúvida. Também não faltaram, no alegre convívio, momentos de puro entretenimento: o desonerar (isto dos novos significados deve ter como objetivo aumentar a atividade económica das editoras de dicionários, só pode) das pensões e salários em 2016. Se der, eventualmente, às tantas. Tão certo como "termos cumprido as metas". Não houve tempo para explicar como é que não se tendo cumprido uma única meta original se diz exatamente o contrário. Infelicidade verbal, claro.
Depois, e como se fosse a coisa mais natural do mundo num responsável pela condução dos destinos dum país, pôs-se a adivinhar, a achar, a alvitrar, dizendo com a candura dos irresponsáveis que a Segurança Social não é sustentável. Um cidadão faz os seus descontos, acredita no sistema que lhe venderam, e vem alguém que representa a parte com quem ele fez o contrato dizer que aquilo não presta. Estudos que o comprovem? Provas irrefutáveis? Um numerozinho que seja? Nada. Põe-se em causa um pilar fundamental da comunidade utilizando o coeficiente de queixas, fazendo palpites, tendo uma fezada. Infelicidade verbal do líder do seu Governo, sr. ministro escondido com o rabo de fora?
Curiosamente, não faltam personalidades, da esquerda à direita, com provas dadas e estudos publicados, a dizer exatamente o contrário e até, espanto dos espantos, a argumentar com números, apresentando provas.
Se se fala de assuntos que dizem respeito à sobrevivência das pessoas, ao seu mais básico núcleo de direitos como salários, ou a contratos civilizacionais como a Segurança Social, que podíamos esperar da forma como se está a tratar da reforma do sistema de pensões, ou melhor, do método para tornar os cortes definitivamente provisórios ou provisoriamente definitivos? Aquela coisa que não devemos transformar um bicho de sete cabeças, nas palavras de Passos Coelho, aquilo de tirar dinheiro às pessoas que não têm maneira de o ir buscar a mais lado nenhum e que para isso trabalharam toda a vida. Será que nos devemos espantar? Espantar, talvez não. Mas não podemos deixar de nos indignar. É demasiado insultuoso ignorar por completo os cidadãos que se representa, é brincar com a dignidade das pessoas estarmos a 15 dias da apresentação duma medida que altera por completo a vida de tanta gente e percebermos que não existiram estudos sérios, que não se sabe ainda o que fazer, que não houve a mais pequena tentativa de diálogo com os parceiros sociais ou partidos da oposição, que um primeiro-ministro fala de relatórios que os que os deviam ter feito desconhecem, que o Ministério da Segurança Social não é tido nem achado no processo que aparentemente a única reforma se chama cortar.
Também a palavra "pessoas" perdeu significado. Deve ser isso. Talvez a expressão "vida das pessoas" tenha também uma nova dimensão. Algo com que se pode brincar, que pode ser testado, que em quinze dias se arruma.
Infelicidades várias temos tido nós e as piores, de certeza absoluta, não são verbais.
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