A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht

segunda-feira, abril 30, 2012

O 1.º de Maio de 1962 nas colunas do DIÁRIO DE NOTÍCIAS


Memórias do PREC, da resistência anti-salazarista e outras crónicas históricas

Sexta-feira, 1 de Maio de 2009

O 1.º de Maio de 1962 nas colunas do DIÁRIO DE NOTÍCIAS

O ano de 1962 culmina a grave crise política do regime de Salazar, mais atanazado das pulgas, iniciada com o terramoto de Humberto Delgado em 1958, umas nuvens negras a marcar a ronceira agonia do salazarismo. Aquele ano inicia-se com o assalto ao Quartel de Beja, logo na madrugada de 1 de Janeiro de 1962 sob mando do capitão João Varela Gomes, coadjuvado por um grupo civil liderado por Manuel Serra.

Toda esta agitação de massas originada a partir da campanha eleitoral de Humberto Delgado, leva, em si, à reorganização do Partido Comunista Português e a um crescendo de influência dos comunistas, que culminou em Janeiro de 1960 com a espectacular fuga de Peniche empreendida por vários dirigentes do partido, à cabeça dos quais estava Álvaro Cunhal
[1].

O ano de 1962 marca de sobremaneira um pico da radicalização da luta antifascista, em especial junto das camadas mais politizadas dos operários, trabalhadores agrícolas e dos estudantes das zonas urbanas.

A 8 de Março desse ano a polícia reprime uma manifestação popular no Porto, e, a 24 de Março a proibição da comemoração do Dia do Estudante vai despertar a“crise académica de 1962”, marcada por uma série de lutas estudantis nas Universidades de Lisboa e Coimbra, em permanência de Março até Junho, sucessivas manifestações de rua e recontros com a polícia, suscitando mais uma onda repressiva de prisões.

Em plena maré da luta estudantil, ocorrem as grandiosas manifestações populares do 1.º de Maio em Lisboa, Almada e no Barreiro. As artérias da Baixa de Lisboa, entre o Martim Moniz e o Terreiro do Paço, encheram-se de povo, naquela que foi a maior manifestação de rua contra o regime desde 1958, com a presença de 100.000 manifestantes, segundo a propaganda do PCP.

A ferocidade repressiva foi enorme, e da mesma se fizeram eco os jornais da época, uma cantilena melada
[2]. Uma imensa multidão a vozear bem alto contra a repressão fascista, em sucessivas vagas, aproveitando as actividades quotidianas, em especial a hora do almoço e o princípio da noite.

«O dia 1.º de Maio foi assinalado em Lisboa por desagradáveis acontecimentos», noticiava então a imprensa, salientando as loucas «correrias e muito alarido» «lançando a confusão». O articulista chamava particular atenção para o facto dos «elementos subversivos» terem escolhido as horas de ponta da circulação diária da populaça, aquele «constante vaivém», a fim de manifestarem «os seus criminosos fins e também com o propósito de suscitar entre o povo sentimentos de hostilidade» contra as «forças encarregadas de zelar pela ordem pública». Para o jornal não havia falso nem verdadeiro.

A organização da manifestação utilizara, dizia enfaticamente, «uma intensa propaganda por meio de panfletos clandestinos espalhados pela cidade e distribuídos de formas ilícitas», acicatando «as classes trabalhadoras a concentrarem-se» para apresentarem «certas reivindicações» contra a falta de liberdade, a miséria e a guerra colonial emergente e instigando também «a faltar ao trabalho». Um estendal de agravos.

No intuito de manter o povoléu «na ordem, na paz e no trabalho», pois claro,«as entidades governativas», sempre a “bem da Nação”«ordenaram medidas especiais de segurança», e, devido a «aconselháveis precauções», até os«automóveis das brigadas móveis» de choque foram colocados de alerta e bastão em punho, para além de serem «montados serviços de vigilância» nas estações ferroviárias e fluviais, não fosse o diabo tecê-las…

O pormenor dessa sanha repressora era de truz. Para facilitar «o serviço de vigilância da polícia» – porém decerto complicar a vida aos trabalhadores que regressavam ao domicílio depois duma jornada de trabalho – foram «mudadas várias paragens de eléctricos e de autocarros».

Na oportunidade de malhar nos assalariados, o regime duro e impiedoso que não professava grande estima pela arraia-miúda, nada deixava ao acaso. Até na ordem para impedir «paragens e ajuntamentos», havendo o necessário recurso a umas traulitadas para convencer os «recalcitrantes», e calabouço para «três desobedientes».

Quando «tudo parecia decorrer na devida ordem», estas prisões na Praça do Comércio, assegura o noticiário que seguimos par e passo, deram origem ao«pretexto» de diversos «grupos de indivíduos», em alta grita a «injuriaram e vaiaram a Polícia, tentando rodear um carro patrulha». Do pé para a mão,«os grupos de desordeiros engrossavam», enquanto «a força policial tentou afastar a multidão que então se formara num ápice». Toque-se a rebate!

Como «as pessoas ordeiras» entraram em horda de franca «desobediência» e até resistiam à intimação dos «potentes altifalantes portáteis» no sentido de se afastarem, foi usada a dialéctica da força bruta e espancamento para afastar a canalha e «fazer evacuar a praça». Assim, a autoridade, certamente pouco contrariada, e zás, «viu-se obrigada a carregar de bastão em riste, no meio de gritaria e insultos dos manifestantes, sucedendo-se as correrias», ofensa gravíssima.

A confusão e as cargas policiais alastraram às ruas Augusta, do Ouro, da Prata, dos Fanqueiros, da Madalena, ao Largo da Sé, ao Rossio e Restauradores, e os manifestantes recebiam tratamento diferenciado de «díscolos»«desordeiros»,«provocadores» e outros mimos na pena servil do redactor, e, claro, bordoada e remetidas dos cívicos, naquela missão patriótica de rachar cabeças à bastonada, mais um crivo de pontapés e coronhadas.

A polícia, coitada, botava-se de corrida e lá «teve de carregar novamente» sobre «os desordeiros, muito aumentados» no número, que«fugiam dum lado, para logo aparecerem e se reagruparem noutro», desalmados desconformes que não ficavam quietos a levar pancada de criar bicho como mandava a lei…

A coisa foi de tal monta, imaginem, «em dada altura a situação piorou por motivo de alguns amotinados começarem a apedrejar os agentes da autoridade», e assim, os «motins aumentaram» de intensidade. Para pôr fim a tal despautério, e mais a meia dúzia de pedradas, «agressão praticada pelos desordeiros», a polícia «viu-se na necessidade de empunhar armas de fogo para impor respeito e intimidar».

Aqui se prova que o povo português é dos mais altos do mundo – ou tinha a polícia pouca pontaria –, pois tão-somente atirou umas «descargas» de «armas automáticas», dando «alguns tiros para o ar», as balas a uivar, mesmo assim, cortavam a carne, num banho de sangue e rasto de vítimas.

Apesar do tiroteio à carga cerrada, «durante algum tempo», os elementos«provocadores não cessaram» a actividade, sendo necessário recorrer a frenéticas cargas de «um esquadrão de cavalaria da GNR». O jornal, narração feito para crédulos e tolos, realçava uns parágrafos à frente, que «a despeito de a Polícia haver feito as descargas para o ar, com a preocupação de não atirar para a multidão, alguns projécteis» atingiram «seis dos manifestantes». A ordem salazarista, assim pintada, parecia alma dócil e piedade cristã.

«Dos desordeiros atingidos, um deles teve morte imediata, pois um projéctil atravessou-lhe o crânio», relatava dando um ar cândido à tirânica morte de Estêvão José Dangue Giro, caiu cerce aos 25 anos, servente de tipografia, natural e residente em Alcochete. Os maltratados, afinal veio a constatar-se serem muitos mais, foram transportados para o banco de urgência do Hospital de S. José e o posto de socorros do Terreiro do Paço.

Entrementes, o teatro das operações mudava-se para o Rossio, onde a polícia utilizou «o chamado carro de água», e com «fortes jactos» de «água colorida de azul» lá «dispersou os desordeiros», tingindo também «paredes, portas e o pavimento». Dias de muita bicheza!

O resto, para não saturar a moleirinha, vai o relato do tamanho dum mantéu, foi respingo de violência, com a «força pública» a «agir com energia» na Praça da Figueira e no Martim Moniz. Mais cacetadas da polícia na Rua da Palma, uso de«bombas lacrimogéneas» por todo o lado, açoitando além, rompendo adiante, desde o Rossio ao Largo do Duque de Cadaval, intercalados por galopes de quadrúpedes da cavalaria e «tiros de advertência» para o ar.

E ainda outras «desordens» de «menor importância» nas zonas do Largo do Carmo, Chiado e Escola de Veiga Beirão, «facilmente dominadas pela GNR e pela Polícia». Os tumultos com os «grupos de desordeiros» reacenderam-se à noite «depois de terminarem os espectáculos», levando a lesta e desembaraçadas intervenções dos pelotões da PSP e GNR no Rossio, Largo de D. João da Câmara, Praça da Figueira, S. Domingos e ruas do Ouro e Augusta. Nova carga de disparos e rajadas de metralhadora sobre a multidão, a turbamulta em carne viva, os pimpões a calcar em pé de guerra.

Nessa ocasião a polícia mandou «encerrar os cafés e as casas de pasto» entre o Rossio e o Terreiro do Paço. A situação amainou lá para a 1h30, altura em que a «cidade voltou à normalidade», embora debaixo de «intenso patrulhamento» das forças policiais, dormitando com um olho, o trabuco aperrado para a fuzilaria, o bastão da vergalhada à mão de semear.

No decorrer dos «acontecimentos da tarde e da noite» foram detidos na esquadra vizinha ao Teatro Nacional cerca de 150 indivíduos, «entregues à PIDE» para «apurar as responsabilidades que lhes competem». Entre as detenções, a notícia faz relevo para duas senhoras por «injuriaram e ameaçaram a Polícia», um perigo público eminente, certamente.

Um dos trincafiados, lata suprema, fora detido pela lesa-nação de atirar «pedras a um esquadrão de cavalaria» que espezinhava os manifestantes, e ao mesmo tempo «foram-lhe apreendidos numerosos panfletos de propaganda subversiva».

Dos feridos, a rebolarem pelo chão, seis ficaram hospitalizados no Hospital de S. José, cinco dos quais «feridos a tiro»
[3]. Entre eles, um elemento da polícia[4]atingido por “fogo amigo” das próprias forças repressivas.

Na sua santa indignação de virgem melindrada o jornal destacava que, para além do cívico baleado, ficaram feridos mais um guarda da PSP
[5], um agente da PIDE[6], um guarda prisional[7] e um oficial do Exército[8]. Os restantes 28 indivíduos feridos receberam tratamento hospitalar e passaram de imediato para o calabouço do Governo Civil, detidos à ordem da PIDE, velhaca e traiçoeira.

No dia seguinte, a 2 de Maio de 1962, o ministro do Interior, o finório dr. Santos Júnior
[9], percorreu as ruas de Lisboa onde se deram os«lamentáveis acontecimentos da alteração da ordem pública», certamente com ar consternado, dada a dimensão dos estragos, mas soberbo da sua força.

Para outra oportunidade ficará o relato que o AVANTE! fez dos mesmos acontecimentos, assim como as demais manifestações que ocorreram no Porto, Setúbal, Alentejo e de novo em Lisboa. Aqui e agora, fica a exposição duma jornada antifascista que o regime salazarista, gente desvairada, tentou esmagar por entre clamores, tiros e bordoadas de partir tudo. Tudo, menos a vontade dum povo em grito de revolta a sair do peito.


[1] Do Forte de Peniche fugiram os seguintes elementos, numa das fugas mais espectaculares: Álvaro Barreirinhas CunhalJoaquim Gomes dos Santos, Jaimedos Santos SerraCarlos Campos Rodrigues da CostaFrancisco Miguel Duarte (“Chico Sapateiro”), José CarlosPedro dos Santos SoaresGuilherme da Costa CarvalhoRogério Rodrigues de Carvalho e Francisco Martins Rodrigues (“Chico Martins”). A comissão de fuga do interior era composta por Álvaro Cunhal, Jaime Serra e Joaquim Gomes, e do exterior organizaram a fuga Joaquim Pires Jorge, António Dias Lourenço, Octávio Pato e Rogério Paulo.
[2] Cf. DIÁRIO DE NOTÍCIAS, de 3 de Maio de 1962. Todas citações são tiradas deste periódico.
[3] Ficaram internados e detidos no Hospital de São José: Eugénio Baptista, 64 anos, carpinteiro; José Augusto Rosendo, 42 anos, marinheiro; António José Mendes de Andrade, 16 anos, empregado de livraria; Armando Correia de Carvalho, 30 anos, maleiro; António Bernardino Poças Lopes, 27 anos, torneiro mecânico.
[4] Manuel Antunes Jacinto, de 22 anos, guarda da PSP, no quartel da Parede.
[5] António Maia de Morais, 25 anos, agente da PSP do quartel da Parede.
[6] Luís Martins Ferreira, 46 anos, agente da PIDE, morador na Amadora.
[7] José da Costa Quebrada, 37 anos, guarda dos Serviços Prisionais do Reduto Sul de Caxias.
[8] Jorge Marques Ferreira, tenente do Exército, de 49 anos.
[9] Alfredo Rodrigues do Santos Júnior (1908+1990), formado em Medicina pela Universidade de Coimbra, foi presidente do Centro Académico de Democracia Cristã (1933-1934), médico do Hospital de Gouveia, director do posto médico da Caixa de Previdência dos Lanifícios de Gouveia, presidente da Câmara Municipal de Gouveia (1946-1959), subdelegado regional da Mocidade Portuguesa em Gouveia, presidente da Comissão Distrital da Guarda da União Nacional (1952), deputado da Nação pelo distrito da Guarda (1957-1960), governador civil do distrito da Guarda (1960-1961) e Ministro do Interior (1961-1968). Foi condecorado como oficial da Ordem de Cristo. A sua actuação no Ministério do Interior ficou marcada pelo notório reforço da acção repressiva do regime.

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