Memórias do PREC, da resistência anti-salazarista e outras crónicas históricas
Memórias do PREC, da resistência anti-salazarista e outras crónicas históricas
Sexta-feira, 1 de Maio de 2009
O 1.º de Maio de 1962 nas colunas do DIÁRIO DE NOTÍCIAS
O ano de 1962 culmina a grave crise política do regime de Salazar, mais atanazado das pulgas, iniciada com o terramoto de Humberto Delgado em 1958, umas nuvens negras a marcar a ronceira agonia do salazarismo. Aquele ano inicia-se com o assalto ao Quartel de Beja, logo na madrugada de 1 de Janeiro de 1962 sob mando do capitão João Varela Gomes, coadjuvado por um grupo civil liderado por Manuel Serra.
Toda esta agitação de massas originada a partir da campanha eleitoral de Humberto Delgado, leva, em si, à reorganização do Partido Comunista Português e a um crescendo de influência dos comunistas, que culminou em Janeiro de 1960 com a espectacular fuga de Peniche empreendida por vários dirigentes do partido, à cabeça dos quais estava Álvaro Cunhal[1].
O ano de 1962 marca de sobremaneira um pico da radicalização da luta antifascista, em especial junto das camadas mais politizadas dos operários, trabalhadores agrícolas e dos estudantes das zonas urbanas.
A 8 de Março desse ano a polícia reprime uma manifestação popular no Porto, e, a 24 de Março a proibição da comemoração do Dia do Estudante vai despertar a“crise académica de 1962”, marcada por uma série de lutas estudantis nas Universidades de Lisboa e Coimbra, em permanência de Março até Junho, sucessivas manifestações de rua e recontros com a polícia, suscitando mais uma onda repressiva de prisões.
Em plena maré da luta estudantil, ocorrem as grandiosas manifestações populares do 1.º de Maio em Lisboa, Almada e no Barreiro. As artérias da Baixa de Lisboa, entre o Martim Moniz e o Terreiro do Paço, encheram-se de povo, naquela que foi a maior manifestação de rua contra o regime desde 1958, com a presença de 100.000 manifestantes, segundo a propaganda do PCP.
A ferocidade repressiva foi enorme, e da mesma se fizeram eco os jornais da época, uma cantilena melada[2]. Uma imensa multidão a vozear bem alto contra a repressão fascista, em sucessivas vagas, aproveitando as actividades quotidianas, em especial a hora do almoço e o princípio da noite.
«O dia 1.º de Maio foi assinalado em Lisboa por desagradáveis acontecimentos», noticiava então a imprensa, salientando as loucas «correrias e muito alarido» e «lançando a confusão». O articulista chamava particular atenção para o facto dos «elementos subversivos» terem escolhido as horas de ponta da circulação diária da populaça, aquele «constante vaivém», a fim de manifestarem «os seus criminosos fins e também com o propósito de suscitar entre o povo sentimentos de hostilidade» contra as «forças encarregadas de zelar pela ordem pública». Para o jornal não havia falso nem verdadeiro.
A organização da manifestação utilizara, dizia enfaticamente, «uma intensa propaganda por meio de panfletos clandestinos espalhados pela cidade e distribuídos de formas ilícitas», acicatando «as classes trabalhadoras a concentrarem-se» para apresentarem «certas reivindicações» contra a falta de liberdade, a miséria e a guerra colonial emergente e instigando também «a faltar ao trabalho». Um estendal de agravos.
No intuito de manter o povoléu «na ordem, na paz e no trabalho», pois claro,«as entidades governativas», sempre a “bem da Nação”, «ordenaram medidas especiais de segurança», e, devido a «aconselháveis precauções», até os«automóveis das brigadas móveis» de choque foram colocados de alerta e bastão em punho, para além de serem «montados serviços de vigilância» nas estações ferroviárias e fluviais, não fosse o diabo tecê-las…
O pormenor dessa sanha repressora era de truz. Para facilitar «o serviço de vigilância da polícia» – porém decerto complicar a vida aos trabalhadores que regressavam ao domicílio depois duma jornada de trabalho – foram «mudadas várias paragens de eléctricos e de autocarros».
Na oportunidade de malhar nos assalariados, o regime duro e impiedoso que não professava grande estima pela arraia-miúda, nada deixava ao acaso. Até na ordem para impedir «paragens e ajuntamentos», havendo o necessário recurso a umas traulitadas para convencer os «recalcitrantes», e calabouço para «três desobedientes».
Quando «tudo parecia decorrer na devida ordem», estas prisões na Praça do Comércio, assegura o noticiário que seguimos par e passo, deram origem ao«pretexto» de diversos «grupos de indivíduos», em alta grita a «injuriaram e vaiaram a Polícia, tentando rodear um carro patrulha». Do pé para a mão,«os grupos de desordeiros engrossavam», enquanto «a força policial tentou afastar a multidão que então se formara num ápice». Toque-se a rebate!
Como «as pessoas ordeiras» entraram em horda de franca «desobediência» e até resistiam à intimação dos «potentes altifalantes portáteis» no sentido de se afastarem, foi usada a dialéctica da força bruta e espancamento para afastar a canalha e «fazer evacuar a praça». Assim, a autoridade, certamente pouco contrariada, e zás, «viu-se obrigada a carregar de bastão em riste, no meio de gritaria e insultos dos manifestantes, sucedendo-se as correrias», ofensa gravíssima.
A confusão e as cargas policiais alastraram às ruas Augusta, do Ouro, da Prata, dos Fanqueiros, da Madalena, ao Largo da Sé, ao Rossio e Restauradores, e os manifestantes recebiam tratamento diferenciado de «díscolos», «desordeiros»,«provocadores» e outros mimos na pena servil do redactor, e, claro, bordoada e remetidas dos cívicos, naquela missão patriótica de rachar cabeças à bastonada, mais um crivo de pontapés e coronhadas.
A polícia, coitada, botava-se de corrida e lá «teve de carregar novamente» sobre «os desordeiros, muito aumentados» no número, que«fugiam dum lado, para logo aparecerem e se reagruparem noutro», desalmados desconformes que não ficavam quietos a levar pancada de criar bicho como mandava a lei…
A coisa foi de tal monta, imaginem, «em dada altura a situação piorou por motivo de alguns amotinados começarem a apedrejar os agentes da autoridade», e assim, os «motins aumentaram» de intensidade. Para pôr fim a tal despautério, e mais a meia dúzia de pedradas, «agressão praticada pelos desordeiros», a polícia «viu-se na necessidade de empunhar armas de fogo para impor respeito e intimidar».
Aqui se prova que o povo português é dos mais altos do mundo – ou tinha a polícia pouca pontaria –, pois tão-somente atirou umas «descargas» de «armas automáticas», dando «alguns tiros para o ar», as balas a uivar, mesmo assim, cortavam a carne, num banho de sangue e rasto de vítimas.
Apesar do tiroteio à carga cerrada, «durante algum tempo», os elementos«provocadores não cessaram» a actividade, sendo necessário recorrer a frenéticas cargas de «um esquadrão de cavalaria da GNR». O jornal, narração feito para crédulos e tolos, realçava uns parágrafos à frente, que «a despeito de a Polícia haver feito as descargas para o ar, com a preocupação de não atirar para a multidão, alguns projécteis» atingiram «seis dos manifestantes». A ordem salazarista, assim pintada, parecia alma dócil e piedade cristã.
«Dos desordeiros atingidos, um deles teve morte imediata, pois um projéctil atravessou-lhe o crânio», relatava dando um ar cândido à tirânica morte de Estêvão José Dangue Giro, caiu cerce aos 25 anos, servente de tipografia, natural e residente em Alcochete. Os maltratados, afinal veio a constatar-se serem muitos mais, foram transportados para o banco de urgência do Hospital de S. José e o posto de socorros do Terreiro do Paço.
Entrementes, o teatro das operações mudava-se para o Rossio, onde a polícia utilizou «o chamado carro de água», e com «fortes jactos» de «água colorida de azul» lá «dispersou os desordeiros», tingindo também «paredes, portas e o pavimento». Dias de muita bicheza!
O resto, para não saturar a moleirinha, vai o relato do tamanho dum mantéu, foi respingo de violência, com a «força pública» a «agir com energia» na Praça da Figueira e no Martim Moniz. Mais cacetadas da polícia na Rua da Palma, uso de«bombas lacrimogéneas» por todo o lado, açoitando além, rompendo adiante, desde o Rossio ao Largo do Duque de Cadaval, intercalados por galopes de quadrúpedes da cavalaria e «tiros de advertência» para o ar.
E ainda outras «desordens» de «menor importância» nas zonas do Largo do Carmo, Chiado e Escola de Veiga Beirão, «facilmente dominadas pela GNR e pela Polícia». Os tumultos com os «grupos de desordeiros» reacenderam-se à noite «depois de terminarem os espectáculos», levando a lesta e desembaraçadas intervenções dos pelotões da PSP e GNR no Rossio, Largo de D. João da Câmara, Praça da Figueira, S. Domingos e ruas do Ouro e Augusta. Nova carga de disparos e rajadas de metralhadora sobre a multidão, a turbamulta em carne viva, os pimpões a calcar em pé de guerra.
Nessa ocasião a polícia mandou «encerrar os cafés e as casas de pasto» entre o Rossio e o Terreiro do Paço. A situação amainou lá para a 1h30, altura em que a «cidade voltou à normalidade», embora debaixo de «intenso patrulhamento» das forças policiais, dormitando com um olho, o trabuco aperrado para a fuzilaria, o bastão da vergalhada à mão de semear.
No decorrer dos «acontecimentos da tarde e da noite» foram detidos na esquadra vizinha ao Teatro Nacional cerca de 150 indivíduos, «entregues à PIDE» para «apurar as responsabilidades que lhes competem». Entre as detenções, a notícia faz relevo para duas senhoras por «injuriaram e ameaçaram a Polícia», um perigo público eminente, certamente.
Um dos trincafiados, lata suprema, fora detido pela lesa-nação de atirar «pedras a um esquadrão de cavalaria» que espezinhava os manifestantes, e ao mesmo tempo «foram-lhe apreendidos numerosos panfletos de propaganda subversiva».
Dos feridos, a rebolarem pelo chão, seis ficaram hospitalizados no Hospital de S. José, cinco dos quais «feridos a tiro»[3]. Entre eles, um elemento da polícia[4]atingido por “fogo amigo” das próprias forças repressivas.
Na sua santa indignação de virgem melindrada o jornal destacava que, para além do cívico baleado, ficaram feridos mais um guarda da PSP[5], um agente da PIDE[6], um guarda prisional[7] e um oficial do Exército[8]. Os restantes 28 indivíduos feridos receberam tratamento hospitalar e passaram de imediato para o calabouço do Governo Civil, detidos à ordem da PIDE, velhaca e traiçoeira.
No dia seguinte, a 2 de Maio de 1962, o ministro do Interior, o finório dr. Santos Júnior[9], percorreu as ruas de Lisboa onde se deram os«lamentáveis acontecimentos da alteração da ordem pública», certamente com ar consternado, dada a dimensão dos estragos, mas soberbo da sua força.
Para outra oportunidade ficará o relato que o AVANTE! fez dos mesmos acontecimentos, assim como as demais manifestações que ocorreram no Porto, Setúbal, Alentejo e de novo em Lisboa. Aqui e agora, fica a exposição duma jornada antifascista que o regime salazarista, gente desvairada, tentou esmagar por entre clamores, tiros e bordoadas de partir tudo. Tudo, menos a vontade dum povo em grito de revolta a sair do peito.
Toda esta agitação de massas originada a partir da campanha eleitoral de Humberto Delgado, leva, em si, à reorganização do Partido Comunista Português e a um crescendo de influência dos comunistas, que culminou em Janeiro de 1960 com a espectacular fuga de Peniche empreendida por vários dirigentes do partido, à cabeça dos quais estava Álvaro Cunhal[1].
O ano de 1962 marca de sobremaneira um pico da radicalização da luta antifascista, em especial junto das camadas mais politizadas dos operários, trabalhadores agrícolas e dos estudantes das zonas urbanas.
A 8 de Março desse ano a polícia reprime uma manifestação popular no Porto, e, a 24 de Março a proibição da comemoração do Dia do Estudante vai despertar a“crise académica de 1962”, marcada por uma série de lutas estudantis nas Universidades de Lisboa e Coimbra, em permanência de Março até Junho, sucessivas manifestações de rua e recontros com a polícia, suscitando mais uma onda repressiva de prisões.
Em plena maré da luta estudantil, ocorrem as grandiosas manifestações populares do 1.º de Maio em Lisboa, Almada e no Barreiro. As artérias da Baixa de Lisboa, entre o Martim Moniz e o Terreiro do Paço, encheram-se de povo, naquela que foi a maior manifestação de rua contra o regime desde 1958, com a presença de 100.000 manifestantes, segundo a propaganda do PCP.
A ferocidade repressiva foi enorme, e da mesma se fizeram eco os jornais da época, uma cantilena melada[2]. Uma imensa multidão a vozear bem alto contra a repressão fascista, em sucessivas vagas, aproveitando as actividades quotidianas, em especial a hora do almoço e o princípio da noite.
«O dia 1.º de Maio foi assinalado em Lisboa por desagradáveis acontecimentos», noticiava então a imprensa, salientando as loucas «correrias e muito alarido» e «lançando a confusão». O articulista chamava particular atenção para o facto dos «elementos subversivos» terem escolhido as horas de ponta da circulação diária da populaça, aquele «constante vaivém», a fim de manifestarem «os seus criminosos fins e também com o propósito de suscitar entre o povo sentimentos de hostilidade» contra as «forças encarregadas de zelar pela ordem pública». Para o jornal não havia falso nem verdadeiro.
A organização da manifestação utilizara, dizia enfaticamente, «uma intensa propaganda por meio de panfletos clandestinos espalhados pela cidade e distribuídos de formas ilícitas», acicatando «as classes trabalhadoras a concentrarem-se» para apresentarem «certas reivindicações» contra a falta de liberdade, a miséria e a guerra colonial emergente e instigando também «a faltar ao trabalho». Um estendal de agravos.
No intuito de manter o povoléu «na ordem, na paz e no trabalho», pois claro,«as entidades governativas», sempre a “bem da Nação”, «ordenaram medidas especiais de segurança», e, devido a «aconselháveis precauções», até os«automóveis das brigadas móveis» de choque foram colocados de alerta e bastão em punho, para além de serem «montados serviços de vigilância» nas estações ferroviárias e fluviais, não fosse o diabo tecê-las…
O pormenor dessa sanha repressora era de truz. Para facilitar «o serviço de vigilância da polícia» – porém decerto complicar a vida aos trabalhadores que regressavam ao domicílio depois duma jornada de trabalho – foram «mudadas várias paragens de eléctricos e de autocarros».
Na oportunidade de malhar nos assalariados, o regime duro e impiedoso que não professava grande estima pela arraia-miúda, nada deixava ao acaso. Até na ordem para impedir «paragens e ajuntamentos», havendo o necessário recurso a umas traulitadas para convencer os «recalcitrantes», e calabouço para «três desobedientes».
Quando «tudo parecia decorrer na devida ordem», estas prisões na Praça do Comércio, assegura o noticiário que seguimos par e passo, deram origem ao«pretexto» de diversos «grupos de indivíduos», em alta grita a «injuriaram e vaiaram a Polícia, tentando rodear um carro patrulha». Do pé para a mão,«os grupos de desordeiros engrossavam», enquanto «a força policial tentou afastar a multidão que então se formara num ápice». Toque-se a rebate!
Como «as pessoas ordeiras» entraram em horda de franca «desobediência» e até resistiam à intimação dos «potentes altifalantes portáteis» no sentido de se afastarem, foi usada a dialéctica da força bruta e espancamento para afastar a canalha e «fazer evacuar a praça». Assim, a autoridade, certamente pouco contrariada, e zás, «viu-se obrigada a carregar de bastão em riste, no meio de gritaria e insultos dos manifestantes, sucedendo-se as correrias», ofensa gravíssima.
A confusão e as cargas policiais alastraram às ruas Augusta, do Ouro, da Prata, dos Fanqueiros, da Madalena, ao Largo da Sé, ao Rossio e Restauradores, e os manifestantes recebiam tratamento diferenciado de «díscolos», «desordeiros»,«provocadores» e outros mimos na pena servil do redactor, e, claro, bordoada e remetidas dos cívicos, naquela missão patriótica de rachar cabeças à bastonada, mais um crivo de pontapés e coronhadas.
A polícia, coitada, botava-se de corrida e lá «teve de carregar novamente» sobre «os desordeiros, muito aumentados» no número, que«fugiam dum lado, para logo aparecerem e se reagruparem noutro», desalmados desconformes que não ficavam quietos a levar pancada de criar bicho como mandava a lei…
A coisa foi de tal monta, imaginem, «em dada altura a situação piorou por motivo de alguns amotinados começarem a apedrejar os agentes da autoridade», e assim, os «motins aumentaram» de intensidade. Para pôr fim a tal despautério, e mais a meia dúzia de pedradas, «agressão praticada pelos desordeiros», a polícia «viu-se na necessidade de empunhar armas de fogo para impor respeito e intimidar».
Aqui se prova que o povo português é dos mais altos do mundo – ou tinha a polícia pouca pontaria –, pois tão-somente atirou umas «descargas» de «armas automáticas», dando «alguns tiros para o ar», as balas a uivar, mesmo assim, cortavam a carne, num banho de sangue e rasto de vítimas.
Apesar do tiroteio à carga cerrada, «durante algum tempo», os elementos«provocadores não cessaram» a actividade, sendo necessário recorrer a frenéticas cargas de «um esquadrão de cavalaria da GNR». O jornal, narração feito para crédulos e tolos, realçava uns parágrafos à frente, que «a despeito de a Polícia haver feito as descargas para o ar, com a preocupação de não atirar para a multidão, alguns projécteis» atingiram «seis dos manifestantes». A ordem salazarista, assim pintada, parecia alma dócil e piedade cristã.
«Dos desordeiros atingidos, um deles teve morte imediata, pois um projéctil atravessou-lhe o crânio», relatava dando um ar cândido à tirânica morte de Estêvão José Dangue Giro, caiu cerce aos 25 anos, servente de tipografia, natural e residente em Alcochete. Os maltratados, afinal veio a constatar-se serem muitos mais, foram transportados para o banco de urgência do Hospital de S. José e o posto de socorros do Terreiro do Paço.
Entrementes, o teatro das operações mudava-se para o Rossio, onde a polícia utilizou «o chamado carro de água», e com «fortes jactos» de «água colorida de azul» lá «dispersou os desordeiros», tingindo também «paredes, portas e o pavimento». Dias de muita bicheza!
O resto, para não saturar a moleirinha, vai o relato do tamanho dum mantéu, foi respingo de violência, com a «força pública» a «agir com energia» na Praça da Figueira e no Martim Moniz. Mais cacetadas da polícia na Rua da Palma, uso de«bombas lacrimogéneas» por todo o lado, açoitando além, rompendo adiante, desde o Rossio ao Largo do Duque de Cadaval, intercalados por galopes de quadrúpedes da cavalaria e «tiros de advertência» para o ar.
E ainda outras «desordens» de «menor importância» nas zonas do Largo do Carmo, Chiado e Escola de Veiga Beirão, «facilmente dominadas pela GNR e pela Polícia». Os tumultos com os «grupos de desordeiros» reacenderam-se à noite «depois de terminarem os espectáculos», levando a lesta e desembaraçadas intervenções dos pelotões da PSP e GNR no Rossio, Largo de D. João da Câmara, Praça da Figueira, S. Domingos e ruas do Ouro e Augusta. Nova carga de disparos e rajadas de metralhadora sobre a multidão, a turbamulta em carne viva, os pimpões a calcar em pé de guerra.
Nessa ocasião a polícia mandou «encerrar os cafés e as casas de pasto» entre o Rossio e o Terreiro do Paço. A situação amainou lá para a 1h30, altura em que a «cidade voltou à normalidade», embora debaixo de «intenso patrulhamento» das forças policiais, dormitando com um olho, o trabuco aperrado para a fuzilaria, o bastão da vergalhada à mão de semear.
No decorrer dos «acontecimentos da tarde e da noite» foram detidos na esquadra vizinha ao Teatro Nacional cerca de 150 indivíduos, «entregues à PIDE» para «apurar as responsabilidades que lhes competem». Entre as detenções, a notícia faz relevo para duas senhoras por «injuriaram e ameaçaram a Polícia», um perigo público eminente, certamente.
Um dos trincafiados, lata suprema, fora detido pela lesa-nação de atirar «pedras a um esquadrão de cavalaria» que espezinhava os manifestantes, e ao mesmo tempo «foram-lhe apreendidos numerosos panfletos de propaganda subversiva».
Dos feridos, a rebolarem pelo chão, seis ficaram hospitalizados no Hospital de S. José, cinco dos quais «feridos a tiro»[3]. Entre eles, um elemento da polícia[4]atingido por “fogo amigo” das próprias forças repressivas.
Na sua santa indignação de virgem melindrada o jornal destacava que, para além do cívico baleado, ficaram feridos mais um guarda da PSP[5], um agente da PIDE[6], um guarda prisional[7] e um oficial do Exército[8]. Os restantes 28 indivíduos feridos receberam tratamento hospitalar e passaram de imediato para o calabouço do Governo Civil, detidos à ordem da PIDE, velhaca e traiçoeira.
No dia seguinte, a 2 de Maio de 1962, o ministro do Interior, o finório dr. Santos Júnior[9], percorreu as ruas de Lisboa onde se deram os«lamentáveis acontecimentos da alteração da ordem pública», certamente com ar consternado, dada a dimensão dos estragos, mas soberbo da sua força.
Para outra oportunidade ficará o relato que o AVANTE! fez dos mesmos acontecimentos, assim como as demais manifestações que ocorreram no Porto, Setúbal, Alentejo e de novo em Lisboa. Aqui e agora, fica a exposição duma jornada antifascista que o regime salazarista, gente desvairada, tentou esmagar por entre clamores, tiros e bordoadas de partir tudo. Tudo, menos a vontade dum povo em grito de revolta a sair do peito.
[1] Do Forte de Peniche fugiram os seguintes elementos, numa das fugas mais espectaculares: Álvaro Barreirinhas Cunhal, Joaquim Gomes dos Santos, Jaimedos Santos Serra, Carlos Campos Rodrigues da Costa, Francisco Miguel Duarte (“Chico Sapateiro”), José Carlos, Pedro dos Santos Soares, Guilherme da Costa Carvalho, Rogério Rodrigues de Carvalho e Francisco Martins Rodrigues (“Chico Martins”). A comissão de fuga do interior era composta por Álvaro Cunhal, Jaime Serra e Joaquim Gomes, e do exterior organizaram a fuga Joaquim Pires Jorge, António Dias Lourenço, Octávio Pato e Rogério Paulo.
[2] Cf. DIÁRIO DE NOTÍCIAS, de 3 de Maio de 1962. Todas citações são tiradas deste periódico.
[3] Ficaram internados e detidos no Hospital de São José: Eugénio Baptista, 64 anos, carpinteiro; José Augusto Rosendo, 42 anos, marinheiro; António José Mendes de Andrade, 16 anos, empregado de livraria; Armando Correia de Carvalho, 30 anos, maleiro; António Bernardino Poças Lopes, 27 anos, torneiro mecânico.
[4] Manuel Antunes Jacinto, de 22 anos, guarda da PSP, no quartel da Parede.
[5] António Maia de Morais, 25 anos, agente da PSP do quartel da Parede.
[6] Luís Martins Ferreira, 46 anos, agente da PIDE, morador na Amadora.
[7] José da Costa Quebrada, 37 anos, guarda dos Serviços Prisionais do Reduto Sul de Caxias.
[8] Jorge Marques Ferreira, tenente do Exército, de 49 anos.
[9] Alfredo Rodrigues do Santos Júnior (1908+1990), formado em Medicina pela Universidade de Coimbra, foi presidente do Centro Académico de Democracia Cristã (1933-1934), médico do Hospital de Gouveia, director do posto médico da Caixa de Previdência dos Lanifícios de Gouveia, presidente da Câmara Municipal de Gouveia (1946-1959), subdelegado regional da Mocidade Portuguesa em Gouveia, presidente da Comissão Distrital da Guarda da União Nacional (1952), deputado da Nação pelo distrito da Guarda (1957-1960), governador civil do distrito da Guarda (1960-1961) e Ministro do Interior (1961-1968). Foi condecorado como oficial da Ordem de Cristo. A sua actuação no Ministério do Interior ficou marcada pelo notório reforço da acção repressiva do regime.
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