Terça-feira, 15 de Março de 2011
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Mais de 65 mil militares foram para Angola
Tema de capa
Quando o País mergulhou na guerra
A guerra colonial começou com um massacre, há 50 anos. As histórias dramáticas de quem viveu o conflito na pele
- 13 Março 2011
Jorge tinha 12 anos. "As senhoras do Movimento Nacional Feminino chamaram-me a ir à casa mortuária reconhecer, entre corpos esquartejados, o meu irmão. Só quando vi pessoas sem braços nem pernas é que me apercebi do sítio onde estava. Andei lá o dia todo à procura..." As marcas na memória de Jorge Fontinha são frias como o golpe das catanas dos guerrilheiros da UPA (União dos Povos de Angola) que, a 15 de Março de 1961, trucidaram colonos, trabalhadores rurais e dos postos administrativos no Norte de Angola.
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O pai de Jorge, que era fazendeiro de café entre Nambuangongo, Zala e Quipedro, estava a preparar - nessa manhã de dia 15 - um carregamento de madeira para transportar para outra fazenda. Fernando, o irmão com 18 anos que tinha tido paralisia infantil, assistia aos trabalhos apoiado pelas duas muletas. Aperceberam-se de movimentações no capim. A governanta, julgando que fossem as galinhas, foi ver. Quando avistou um grupo de guerrilheiros empunhando catanas e paus, correu e mandou toda a gente para dentro de casa. Sem conseguir fugir, Fernando escondeu-se dentro da camioneta. "Deram-lhe duas catanadas: uma na testa; outra no peito" - recorda Jorge, hoje com 62 anos.
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Entretanto, os guerrilheiros forçavam a entrada da casa. Heroicamente, um dos homens lá escondidos conseguiu roubar--lhes uma catana, saiu e decapitou um deles - o que fez com que os outros recuassem. O pai de Jorge e os empregados fugiram para a camioneta, onde estava Fernando morto. A caminho de Nambuangongo, já ocupada pelos guerrilheiros da UPA, tiveram que levar à frente os que o queriam parar. Só foram travados e forçados a abandonar a camioneta - e o corpo de Fernando -, quilómetros depois, com a estrada cortada por troncos.
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Andaram pela mata até dia 18, quando o Esquadrão de Cavalaria - conhecido pelos ‘Dragões' - os socorreu e os levou para Luanda. Jorge estava na capital à espera do pai e do irmão - a mãe já havia falecido em 1952. Iam passar as férias da Páscoa em família. "Tive um pressentimento mal o meu pai se agarrou a mim a chorar e eu não vi o meu irmão". Jorge passou à condição de refugiado de guerra. "Desde que fui, em Abril, à morgue procurar o meu irmão e não o encontrei, fiquei com uma máscara de insensibilidade. No dia 1 de Maio, na ponte aérea não falei com ninguém. Só três dias depois de chegar a Portugal é que chorei, no colo de uma tia".
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TRAGÉDIA ANUNCIADA
"Os massacres de 15 de Março, no Norte de Angola, podiam ter sido evitados. A região ficou desguarnecida de propósito. Salazar queria um pretexto para o início da guerra, queria sensibilizar a seu favor a opinião pública internacional e calar a oposição ao regime". Esta é a convicção do então segundo-sargento miliciano José Moura (hoje com 76 anos), da 3ª Companhia de Caçadores Especiais, que considera ainda que "o assalto à esquadra da polícia e às prisões de Luanda [a 4 de Fevereiro] é um reflexo das operações efectuadas [nos dias anteriores] na Baixa do Cassange (Malange)" - onde combateu.
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A resposta militar aos massacres de 15 de Março tardou. Só havia quatro unidades de Caçadores Especiais em Angola e um Esquadrão de Cavalaria - os ‘Dragões' - que seriam depois reforçadas por uma Companhia de Pára-quedistas e outras quatro de Caçadores Especiais vindas de Lisboa. Mas só no início do Verão começa a ‘Operação Viriato', a primeira grande manobra militar, que tinha por objectivo expulsar os rebeldes do Norte de Angola e desalojá-los de Nambuangongo, onde a UPA instalara a base da guerrilha. Três Batalhões - o 114 que atacaria pelo eixo central, o 96 desde Este e o 149, a partir do Oeste - convergiam em direcção aos rebeldes. O plano previa que seria o Batalhão 114 a entrar em Nambuangongo, mas o combate ditou uma sorte diferente.
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VINGANÇA
José Figueira foi um dos militares que participou na operação. À chegada a Luanda, a 14 de Maio de 1961, o alferes miliciano tinha 22 anos e nada sabia da guerra. Era um miúdo, um entre milhares chamado a combater no Ultramar. Foi através de um lote de fotografias, mostradas pelo director do jornal ‘Comércio de Luanda', que conheceu a guerra pela primeira vez.
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"Todas as imagens mostravam brancos mortos pelos terroristas. Os cadáveres estavam em muito mau estado. Sabíamos que eles tinham sido cortados, serrados como madeira, estropiados. Sabíamos que as casas onde moravam ainda tinham o seu sangue, que tínhamos de os vingar. Isso serviu de incentivo para os homens, porque eu disse-lhes: ‘Estão a ver o que aconteceu? Não podemos tolerar isto, pois não?' Foi aí que a guerra começou para nós". O plural refere-se ao Batalhão de Caçadores 96 - comandado pelo famoso comandante Maçanita, a quem as tropas chamavam de ‘paizinho'.
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A unidade só soube que ia tomar Nambuangongo quando já estava no rio Dange. O caminho foi difícil: "Os gajos faziam buracos de tal forma que lá dentro cabiam viaturas e no fundo estacas afiadas para ver se a gente caía. E isso veio trazer-nos uma carga de trabalhos embora levássemos o alferes Jardim Gonçalves (futuro banqueiro) e um pelotão que cobria esses buracões. Nós íamos com secções apeadas fazer o tiro marchante para um e outro lado da picada".
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A caminho de Nambuangongo sofreram o maior ataque de que José, na guerra conhecido como o homem da granada - andava sempre com uma no bolso - tem memória. "No Mucondo, a 29 de Julho, eram cinco da manhã e estava quase tudo a dormir. Eu ouvi um estalinho e pedi ao sentinela para acordar a malta. A sorte foi que na véspera tínhamos levantado uns seis metros de arame farpado, que estava ligado a um gerador. Estávamos longe de imaginar que 450 homens se escondiam na mata prontos para nos atacar. Preparámos as metralhadoras, os morteiros e começámos a varrê-los. E eles, que não contavam com o arame farpado, acumulavam-se ali mortos, aos nossos pés. Houve dois que tentaram agarrar as metralhadoras que os nossos tinham largado no meio da confusão e um que ficou sem cérebro depois de levar um tiro na cabeça. Foi a primeira vez que vi uns miolos a saltar".
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O Batalhão chefiado pelo tenente-coronel Armando Maçanita foi o primeiro a chegar a Nambuangongo, chegando muitos dias antes do Batalhão 114.
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A poucos quilómetros dali, o alferes de Cavalaria Manuel Monge, acabado de sair da Academia Militar, fazia também o baptismo de fogo na sua primeira comissão em Angola. À chegada, em Julho, juntou-se à Companhia local dos ‘Dragões'. Veio a tempo de participar na ‘Operação Viriato', onde a sua unidade prestou auxílio ao Batalhão 114. Enfrentou os guerrilheiros da UPA, mal armados, mas imbuídos de um espírito guerreiro fora do comum: "Eles avançavam para as nossas tropas armados apenas com canhangulos e catanas. Acreditavam que as balas dos brancos não os podiam ferir. Na altura falou-se que estariam drogados com algum produto fabricado por eles, mas isso nunca se demonstrou". O domínio de Nambuangongo tinha um significado especial para os dois lados do conflito. "Para a UPA, Nambuangongo ficava na capital do antigo reino do Congo, para nós era um ponto estratégico de confluência de várias estradas".
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O agora major-general, actual governador civil de Beja, lembra as dificuldades sentidas pelas tropas portuguesas nos primeiros combates: "Usávamos umas espingardas Mauser do tempo da II Guerra Mundial, que tinham de ser carregadas tiro a tiro. E as viaturas blindadas tinham enormes dificuldades em progredir, chegávamos a demorar um dia inteiro a fazer 14 km".
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BATALHÃO 114 EM APUROS
O alferes Campos pertencia ao Batalhão de Caçadores 114, que era esperado em Nambuangongo antes de qualquer outro. "Achava-se que por termos o itinerário mais fácil, mais directo, seríamos os primeiros a chegar, além de que éramos considerados o batalhão mais eficaz. Mas os negros parece que também acharam o mesmo e apanharam-nos no caminho. A Companhia de Caçadores 115 ia à nossa frente. Quando recebemos a notícia de que estavam a ser atacados acelerou-se a ordem de partida. ‘Prontos a receber tiros a qualquer momento'" - disse António Nobre Campos aos seus homens antes de partirem para aquele que ficou conhecido como o combate de Quicabo.
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A dado momento, a frente da coluna foi atacada e assaltada por vagas sucessivas de combatentes da UPA, com punhais, catanas, fisgas, pistolas artesanais carregadas com ferros em vez de balas. "Em meia hora, a picada ficou pejada de mortos e feridos, de ambos os lados. Lembro-me do Durval, que teve o capacete rachado com uma catanada certeira e outro com as costas abertas por causa de um golpe de catana que lhe abriu uma ferida desde o ombro até ao final das costas, por onde saía o pulmão ao respirar".
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COLONOS EM COMBATE
Os ‘Dragões' eram uma força exclusivamente de intervenção e constituída essencialmente por colonos. "No meu pelotão, em cerca de 30 homens, três eram da região dos Dembos - o Batista, o Brito e o Alexandre - e dois deles ficaram com as famílias trucidadas no 15 de Março", conta o coronel Barão da Cunha. "Eles queriam voltar à sua terra. E todo o pelotão estava solidário. Nós estávamos empenhados na missão de recuperação de Nambuangongo. Estávamos todos empenhados em encontrar os corpos dos pais do Brito e do Batista e recuperar a fazenda da família do Alexandre". Em 36 dias e 36 noites percorreram 1420 quilómetros. Não tiveram baixas, mas alguns destes homens ficaram feridos em emboscadas. "Foi preciso muito empenho. Era a nossa terra".
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José Marinhas era segundo sargento no grupo dos Dragões de Angola, quando chegou à então colónia portuguesa, em Outubro de 1960, numa missão que pouco parecia ter de arriscada. O 15 de Março apanhou-os de surpresa pelo rádio e mudou-lhes o trilho. "A nossa função foi, durante os dias mais terríveis dos massacres, retirar as pessoas o mais rápido possível das zonas de alto risco. Quando somos deslocados para o Norte, onde estava o batalhão do Maçanita e o 149, deixámos vários homens pelo caminho, dezenas de mortos num ataque em massa que sofremos, em que até houve um corpo a corpo", recorda Marinhas, que esteve na Índia, antes de desembarcar em Angola, depois conheceu as agruras da Guiné, antes de regressar novamente a Angola. O ouvido, que lhe falha, foi dos tiros, dizem os médicos. "Dei muitos, daí este zumbido permanente".
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COMANDANTE HERÓICO
É no combate que se revelam os grandes líderes e António de Spínola cedo se evidenciou um militar de excepção. Em Novembro de 1961, o então tenente-coronel comandou o Grupo de Cavalaria 345, colocado no Norte, em Ambrizete, e depois em Bessa Monteiro, mais para o interior. António Veiga era o motorista de Spínola e acompanhava-o para todo o lado. Numa operação em Quidilo, um ataque dos guerrilheiros fez 9 mortos e 21 feridos de uma das companhias do Grupo.
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António Veiga conta a reacção de Spínola. "Quando os homens regressaram, muito desanimados, Spínola anunciou que, daí para a frente, seria ele sempre o primeiro homem da coluna quando saíssemos para o mato. E cumpriu a sua palavra. Houve acções em que as companhias que estavam a combater foram rendidas ao fim de muitas horas, mas ele permaneceu sempre na frente", conta António Veiga.
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Em 1962, o motorista salvou a vida ao homem que mais tarde haveria de liderar o esforço de guerra na Guiné - e fazer tremer o regime com a publicação do livro ‘Portugal e o Futuro'. "Estávamos numa missão perto do Congo e fomos emboscados. Atirámo-nos todos para o chão e reparei que Spínola tinha perdido o seu capacete. Corri para ele e enfiei-lho na cabeça. Pouco depois, foi atingido por uma bala, que raspou no capacete e desviou-se", lembra António Veiga, hoje com 70 anos. Spínola ficou-lhe grato e fez questão de ser o seu padrinho de casamento após o fim da comissão, em 1964.
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STRESS DE GUERRA
A guerra estava cheia de pesadelos para muitos dos combatentes. José Rafael de Almeida ficou preso a este passado. Sofre de stress de guerra. O dia 4 de Julho de 1965 é das suas piores memórias. Integrando o Batalhão de Cavalaria 1851, a caminho de Nambuangongo foi emboscado numa zona minada à beira da estrada. José tropeçou no arame da mina que rebentou e o projectou para o chão.
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"A descarga de adrenalina é de tal ordem que não sentimos dor. Nesse momento, entro pelo palmar adentro a disparar. Os meus colegas dizem: ‘O Rato [como era conhecido] é maluco, vai-se matar'". Mas o que é certo é que esta iniciativa obrigou à retirada do atacante. Rafael tinha estilhaços na perna esquerda e no braço direito, mas nem mesmo este sangue derramado o faz sentir-se orgulhoso da condecoração que se seguiu: Cruz de Guerra de 4ª Classe. Rafael ficou psicologicamente incapacitado. Para ele, a justa recompensa seria considerarem-no deficiente permanente das Forças Armadas, porque hoje precisa da pensão para viver condignamente.
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A CENA MAIS CHOCANTE
Mário Silva tinha 21 anos quando chegou, a 21 de Outubro de 1968, para uma experiência que tantos anos depois lhe apareceu nos pesadelos. "A primeira baixa que tivemos foi um acidente, no Norte. O inimigo ia de noite a uma lixeira e o comandante pediu que fizéssemos um cerco. A meio da noite, um lembra-se de ir fazer as necessidades e afasta-se. O furriel viu um vulto, perguntou quem era e ele não respondeu. O furriel disparou e matou-o". Catorze meses depois, o trilho faz-se para Leste, para o Cassange. "A cena mais chocante que vi foi um furriel, que ia numa Berliet (viatura de guerra) que pisou uma mina. Ficou pendurado numa árvore, todo desfeito".
O BENFICA-PORTO
José Marques pertenceu à primeira companhia de combate. O pára-quedista esteve em Angola entre 1971 e 73, onde muitas vezes se sentia "desalmado". "Não me sentia herói. Era incapaz de poupar o semelhante que à minha frente via fugir da morte. Não me sentia com remorsos por lhes tirar a alma e a vida".
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As operações que mais o marcaram "foram a primeira e a última". A estreia, pelo choque - "fomos procurar um pelotão do exército que tinha sido apanhado pelo inimigo a ouvir o relato do Benfica-Porto, que na imensidão do mato se ouvia a quilómetros. Morreram seis ou sete, o cenário era de horror. Alguns mortos, outros feridos, estropiados. O furriel miliciano estava a chorar que nem um perdido perante os seus soldados. Fizemos um cerco ao MPLA e era como abater coelhos, fiquei tão desumanizado que dava tiros como se fosse para animais. Era a única saída" - recorda Marques, agora pintor, de 61 anos.
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VER A MORTE
Vinte e quatro meses depois, José Marques viu a morte de frente uma segunda vez. "Íamos a persegui-los na margem de um rio com os heli-canhões e no meio da euforia resolvi descer o rio para ir buscar as armas do inimigo, que para nós eram troféus. Só que o helicóptero, que andava no ar, viu um vulto a mexer-se no meio dos mortos e começou a metralhar-me, sem saber que eu era dos dele. O piloto só percebeu quando as nossas tropas dispararam contra o helicóptero. Para me proteger refugiei-me entre os corpos, quietinho, porque alguns ainda se mexiam. Sobrevivi, apenas com queimaduras na cara".
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O major-general José Ferreira Pinto conheceu três fases da guerra de Angola. A primeira foi em 1965, antes de ser transferido para Moçambique; as seguintes foram em 69-72 e em 74-75. Todas foram diferentes mas de todas se recorda com a precisão de um relógio.
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Era comandante da força de operações e chegou a liderar mil homens. Não esquece, não esquecerá nunca, o dia em que foi obrigado pelas circunstâncias a tomar a mais difícil decisão da carreira.
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‘Diana' - assim ficou conhecida a operação - tem lugar cativo na memória. Três helicópteros procuravam os trilhos do "inimigo". Oito pisteiros são colocados em terra, e 18 outros homens são chamados a avançar.
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"São recebidos com um tiroteio enorme que fere o capitão Pinhão, um soldado e o sargento Albertino Cardeira". Ferreira Pinto tem de optar entre os oito homens que ficaram isolados no meio de 120 guerrilheiros e a vida do capitão Pinhão: não há transporte para todos e a hora tardia não ajuda. O capitão sente que vai morrer e dita o testamento ao seu comandante. Fica no terreno com o sargento Cardeira, a guardá-lo.
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"Achei que ele ia morrer, mas um helicóptero conseguiu ir buscá-lo algumas horas depois". Eis que o imponderável acontece - "ao evacuar o capitão, gravemente ferido, para dentro do helicóptero, o sargento Cardeira é morto com uma rajada de metralhadora. O capitão sobreviveu. Era 3 de Julho de 1974 e a guerra tinha começado há 13 anos. Estava perto do fim, mas continuava a matar.
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FREI EUGÉNIO BOLÉO - O CAMINHO DA FÉ
"A minha comissão em Angola como oficial de Marinha fuzileiro especial foi de 1963 a 65 e quase toda nas fronteiras, no rio Zaire e Cabinda. A meio da comissão, tive que ficar a comandar o meu destacamento e a ter que lidar com os Serviços de Informações Militares, a colaborar com a PIDE, a tratar de questões com informadores e refugiados no outro lado das fronteiras e a participar em reuniões operacionais a um nível habitual para quem era comandante de batalhão.
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Aos 25 anos ‘entrei' na podridão da guerra. Foi neste ‘quadro' que dentro de mim surgiu a convicção de que esse Deus que nunca ninguém viu era mesmo Pai, como Jesus de Nazaré veio dizer."
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GUERRILHEIROS FRAGILIZADOS
O cabo fuzileiro Manuel Pires da Silva conta no livro ‘Homem Ferro' que, em 1965, a UPA, apesar de responsável pelo 15 de Março de 61, "se encontrava limitada na sua acção após a ‘reconquista'" pelas tropas portuguesas, pouco mais fazendo que "saquear postos administrativos, assaltar fazendas" e pequenas acções terroristas.
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A GUERRA NÃO O LARGA
José Ferreira Vieira, 64 anos, sofre de stress de guerra. Como o próprio diz, transporta "a dor física e psicológica", causada em grande parte "pela morte dos colegas ali mesmo ao lado. Às vezes, corpos estilhaçados. Pela população local a pedir comida à porta do quartel para não morrer à fome. Por ficar oito dias no mato sem saber se iria voltar com vida". José transporta na cabeça os estilhaços de uma bala, que já causaram dois tumores. Foi o que trouxe da guerra.
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UM MÉDICO EM ANGOLA
No embarque para Angola, o alferes miliciano médico Luiz Damas Mora ouviu do seu pai palavras emocionadas: "Vê se não matas ninguém". Chegou em Junho de 1961 para dois anos de comissão. Impressionou-se com os refugiados, principalmente com as crianças desnutridas. Na década de 60, os hospitais angolanos eram "comparáveis aos da Misericórdia de há 40 anos em Portugal", afirma o cirurgião de 74 anos.
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"DEUS ESTAVA COM ELES"
Deus não abandonou os combatentes. "No meio da tragédia da guerra, é difícil manter-se o equilíbrio. Por isso há traumas. E nós [capelães] damos uma palavra de apoio. No meu caso, nunca lhes falei [aos militares] se a guerra era justa ou injusta. O importante era dizer que Deus estava com eles" - conta, aos 77 anos, o padre Agostinho Brígido, recordando os anos de capelão militar, de 1967 a 1975, em Angola.
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COSTUROU FARDAS DURANTE TODA A GUERRA
Albina Luís começou a trabalhar para o Casão Militar em 1961 - pela mão da sogra, que já fazia fardas militares. "Precisavam tanto que nem tive de prestar provas. Na altura da guerra em Angola eles precisavam tanto de fardas novas que íamos buscar num dia quatro fatos (camisa e calças) para entregar no dia seguinte. Trabalhava pela noite dentro para engordar o magro orçamento - "as camisas mais bem pagas eram a 7 escudos e 500, umas que tinham mangas de casaco".
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55 MIL SOFREM DE STRESS DE GUERRA
O psiquiatra Afonso de Albuquerque, especialista em stress de guerra, coordenou em 2003 um estudo determinante para estimar a prevalência nacional de uma doença a que os especialistas chamam de perturbação pós-stress traumático (PTSD): 55 mil ex-combatentes, provavelmente, têm sintomas de stress pós-traumático produzido pela guerra.
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"A minha impressão é a de que a maioria nunca terá pedido ajuda, ou, se pediu, terá sido ao médico de família mas sem nunca falar propriamente da guerra", estima o especialista.
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UM LÍDER SEMPRE NA FRENTE DE COMBATE
Em 1961, o tenente-coronel António de Spínola, oficial de Cavalaria, era comandante do Regimento de Lanceiros 2, em Lisboa, a quem estava atribuída a Polícia Militar. Com o rebentar da guerra em Angola, Spínola quer estar no terreno e oferece-se como voluntário para combater.
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É-lhe dada a missão de organizar o Grupo de Cavalaria 345, mobilizado para as zonas de Bessa Moreira e São Salvador do Congo, junto à fronteira com a antiga colónia belga, agora um estado independente de onde partiam forças da guerrilha para atacar em Angola. Spínola mostra a sua bravura e coragem.
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Lidera os pelotões para a frente de combate e insiste em ser o primeiro da coluna. Quando saiu de Angola, em 1963, era um líder respeitado. Haveria de voltar à guerra para ser comandante-chefe e governador da Guiné, entre 1968 e 1972.
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PROTAGONISTAS DOS ANOS DA GUERRA EM ANGOLA
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ANTÓNIO DE OLIVEIRA SALAZAR (Presidente do Conselho)
Presidente do Conselho de Ministros desde 1932, Salazar livrou Portugal da Guerra Civil de Espanha e da II Guerra Mundial, mas não conseguiu (ou não quis) evitar a Guerra Colonial. Intransigente, recusou sempre negociar com os movimentos de libertação.
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MARCELO CAETANO (Presidente do Conselho)
O sucessor de Salazar chega à liderança do Governo em 1968. As esperanças de democratização do regime e de uma nova atitude perante a questão colonial rapidamente se desvanecem. Marcelo continua a política de manter as colónias, custe o que custar.
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COSTA GOMES (comandante da Região Militar de Angola 1970)
Militar de grande craveira intelectual, era também um homem prático. Foi um dos obreiros da mudança do conceito estratégico militar, que apontou África como a prioridade da defesa. Em Angola, negociou com a UNITA e reorganizou a estrutura militar.
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AGOSTINHO NETO (líder do MPLA)
Estudante de Medicina em Portugal, cedo abraça a causa da luta pela independência de Angola. Preso várias vezes pela PIDE, em Angola e Portugal, conduz o MPLA desde 1962. Foi o primeiro presidente da Angola independente. Morreu em 1979.
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HOLDEN ROBERTO (líder da UPA/FNLA)
O homem que ordenou os massacres de 15 de Março nasceu em Angola, mas viveu muitos anos no Congo Belga. Em 1954 fundou e dirigiu a UPA e depois a FNLA, desde 1962. Derrotado pelo MPLA após o fim da guerra, viu a sua força perder influência.
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JONAS SAVIMBI (líder da UNITA)
Membro do governo do FNLA no exílio, torna-se dissidente em 1966 e funda a UNITA. Combate as forças portuguesas, mas chega a acordo para um cessar-fogo em 1971. Retoma depois os combates, mas é a luta contra o MPLA que o move, antes e depois de 1975.
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‘A MINHA GUERRA' NAS BANCAS DIA 20
O livro ‘A Minha Guerra', editado pelo Correio da Manhã e disponível nas bancas no próximo domingo, dia 20, reúne os testemunhos de 74 combatentes que passaram pela guerra em Angola.
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Trata-se de um conjunto de depoimentos na primeira pessoa, histórias de quem viveu momentos marcados pelo heroísmo, pela dor e pela camaradagem.
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"SALAZAR SABIA QUE IA HAVER ATAQUES" (Coronel Matos Gomes)
Comando do exército em África e historiador do conflito explica como o regime permitiu os massacres de Angola.
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- O governo português foi várias vezes avisado para a eminência de um ataque da UPA em 1961. Como se explica que pouco ou nada tenha sido feito para prevenir os massacres?
- Há uma questão inicial para nós conseguirmos entender o início da Guerra Colonial. Desde a Conferência de Berlim de 1885, em que Portugal recebe as colónias que depois vão constituir o seu Império, nunca houve uma política ultramarina. Nem a Monarquia, nem a República nem o Estado Novo tiveram uma política para as colónias. A questão do início da Guerra em 1961 e os massacres do 15 de Março são consequência da ausência dessa política. Desde 1960 que o Governo e o regime de Salazar começam a receber informações de que algo de importante e decisivo ia ocorrer em Angola. A 30 de Junho de 1960 o Congo Belga tornou-se independente. Foi um processo traumático que criou um grande número de refugiados europeus (incluindo belgas e portugueses). Esta revolta transmitiu sinais que seriam evidentes para qualquer governo competente de que algo iria acontecer em Angola.
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- Que avisos foram feitos?
- Há uma primeira informação concreta dos Serviços de Informações Franceses, transmitida ao governo do Dr. Salazar em Dezembro de 1960, de que iria haver uma contestação violenta ao colonialismo português no início de 1961. Houve uma conferência internacional em Moscovo onde essas questões foram debatidas. A partir daí, eu e o Aniceto Afonso (co-autor, com Matos Gomes, de vários livros sobre a Guerra Colonial) detectámos no mínimo dez informações, de diferentes origens, que dizem que em Março ia ocorrer no Norte de Angola um movimento de sublevação. O que nos parece incompreensível é o facto de o Dr. Salazar não ter tomado qualquer medida para contrariar o que ele sabia que ia suceder.
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- O Governo agiu de propósito para que os massacres servissem de pretexto para justificar a guerra?
- Há duas explicações para esta incompreensível inacção do Dr. Salazar. O professor Adriano Moreira, em vários dos seus escrito defende que Salazar tinha 73 anos e seria já um homem fora do seu tempo - Seria um homem velho, gasto e que já não tinha energia para perceber um mundo em mudança. Nós entendemos que, pelo contrário, o Dr. Salazar era um político cheio de manha, com todas as cartas na mão para jogar aquilo que para ele era decisivo - a manutenção do poder. E daí que ele tenha tentado dramatizar e levar ao limite a questão colonial e as convulsões que a luta inicial em Angola provocou. O deliberado responsável pelos massacres do 15 de Março - que fazem 700 a 800 mortos brancos e cerca de 10 mil mortos negros - é o Dr. Salazar. A independência do Congo Belga deveria ter obrigado o regime a colocar em Angola forças que fossem capazes de controlar o território.
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- O dispositivo militar de Angola em 1961 era incipiente...
- Mas não era só o tecido militar que era incipiente, o dispositivo administrativo também o era. O norte de Angola, como o resto da colónia, não tinha uma administração civil digna desse nome. Não se garantiam os serviços mínimos de um Governo - a segurança das populações, serviços de saúde, educação e da justiça. No Norte de Angola, onde ocorrem os massacres, não existia, de facto, uma soberania nacional portuguesa. Por não existir é que, em Janeiro de 1961, aconteceram as graves sublevações da Baixa de Cassange. Todas aquelas populações que estavam no Norte de Angola, por ausência do Estado português, estavam nas mãos das grandes companhias monopolistas como eram a Cotonang, e nas mãos dos grandes fazendeiros e de uma administração completamente corrupta. O Estado português não tinha controlo soberano sobre o seu território. Isto permitiu que tenham vindo do Congo Belga todos os agentes - uns religiosos como é o caso do António Maria outros políticos, ligados ao FNLA, à UPA e outros movimentos independentistas - tenham vindo impunemente, sem nenhum controlo das autoridades portuguesas, fazer a sua predicação. São estes factores que fazem com que Portugal pareça aparentemente surpreendido pelos acontecimentos de 15 de Março.
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- Em que é que o conflito de Angola beneficiava Salazar?
- Para o Dr. Salazar, o essencial era a manutenção do poder em Lisboa. E enquanto a disputa pelo poder se estava a travar entre ele e o seu ministro da Defesa, General Botelho Moniz, não foi resolvida, Salazar não mandou nenhum soldado para as colónias. Só depois de resolvido o golpe de Botelho Moniz, quando Salazar está como primeiro-ministro, ministro da Defesa e ministro dos Negócios Estrangeiros é que ele diz a tal frase "Para Angola e em Força".
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- Mas o aparelho militar estava pronto para reagir contra uma insurreição armada em África?
- A questão militar é muito interessante. A alteração do chamado conceito estratégico português inicia-se entre 1958 e 1959, com a colocação no Ministério do Exército de Almeida Fernandes que tinha como secretário de Estado o então tenente-coronel Costa Gomes. E são eles que fazem a alteração do conceito estratégico, transferindo para África a prioridade do esforço de defesa. São feitos estudos, e um conjunto de determinações que fazem com que o Exército Português em África passe a depender pela primeira vez do Ministério do Exército, o que nunca tinha acontecido. Até aí, a forças que estavam em África dependiam do Ministério do Ultramar. São criadas as regiões militares de Angola, Moçambique e Guiné, ou seja, é criado um dispositivo militar legislativo centrado em Lisboa. São também criadas as regiões aéreas e os comandos navais. Mas enquanto as transformações foram no papel e não induziram despesas, Salazar aceitou tudo perfeitamente. Fizeram-se as alterações legislativas necessárias, mas não se colocaram tropas, nem viaturas, nem aviões, nem navios. Quando começa a guerra tínhamos uma articulação legislativa perfeita, mas os soldados não tinham armas, os aviadores não tinham aviões e os marinheiros não tinham navios.
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- Mas porquê manter territórios e não fazer nada para os defender?
- Podemos dizer que o Salazar é responsável pelo facto de a guerra ter começado em Angola sem que os dispositivos militar e político estivessem preparados. Mas a questão é mais complexa do que isto. Nós, a partir da conferência de Berlim, que é o momento em que recebemos as colónias nesta configuração, nunca soubemos o que havíamos de fazer com elas. Como não éramos uma potência industrial, servíamos de intermediários dos produtos que saíam de África para serem transformados na Europa. Salazar era um financeiro e sabia que, se saísse daquele circuito, a Metrópole deixava de ganhar dinheiro. Esta é a razão pela qual Portugal é a última potência a descolonizar.
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- Apesar da falta de meios, é enviada uma força de Pára-Quedistas para Angola no dia 15 de Março, data dos Massacres. Isto não é sinal de que haveria um esforço de defesa?
- Não, isso mostra que existia alguma organização. No Exército, destacavam-se os militares ligados à criação de Unidades afectas à NATO em Portugal. A partir de 1959, passámos a enviar para a Argélia oficiais portugueses que vão em missão tentar perceber este novo tipo de guerra, contra-subversiva ou contra-guerrilha. Vieram a Portugal militares ingleses e franceses proferir conferências sobre esta realidade, que surge após o movimento descolonizador. É nesta altura que se cria a unidade de Operações Especiais em Lamego e se formam Companhias de Caçadores Especiais.
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- Salazar precisava de tropas em Lisboa para se aguentar no poder?
- Entre a independência do Congo e o 4 de Fevereiro (assalto à prisão de Luanda), Salazar só enviou quatro companhias de caçadores especiais. Podia ter enviado muito mais tropas e podia ter-se criado um dispositivo militar no norte de Angola.
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Após o 15 de Março são enviadas mais duas companhias de caçadores especiais, mas não é enviado nenhum dispositivo de peso até Salazar resolver o problema fulcral de neutralizar o golpe de Botelho Moniz.
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- As forças iniciais da UPA estavam mal armadas, mas acreditavam que em feitiços que protegiam os soldados das "balas dos brancos". A determinação era a maior arma dos combatentes?
- Os fazendeiros do norte de Angola estavam a centenas de quilómetros uns dos outros e sem contacto com alguma administração local. Os massacres são feitos com armas que eram usadas no dia a dia para caçar, como os canhangulos. Muitas das mortes são causadas por catanas, que são armas primárias. No início não havia uma organização militar, nem podemos considerar que quem fez os massacres eram guerrilheiros. Muitos deles têm até uma face religiosa, ligada ao pregador António Maria.
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- A partir de que momento é que podemos dizer que existe uma força organizada de combate contra as tropas portuguesas?
- Essa força só vai surgir a partir da resistência que esses grupos vão fazer ao avanço das tropas portuguesas que atacam e depois ocupam Nambuangongo, Mucaba e as posições do Norte. Isto vai-se processar a partir de Junho, Julho e Agosto de 1961. Aquelas quatro companhias de Caçadores Especiais que já estavam em Angola a 15 de Março tinham estado em Nambuangongo. Não encontraram nada de especial na zona que depois viria a ser a base da guerrilha. A partir da formação das colunas militares portuguesas, a UPA tenta reorganizar toda aquela massa de contestatários e rebeldes e dar-lhes o mínimo de organização militar. Até Maio, o que aconteceu era puro terrorismo.
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- Quando é que começou a sua participação na guerra?
- Entrei para a Academia Militar em 1963, mas só fui para os comandos em 1969. Em 1967, fui mobilizado pela primeira vez para Moçambique, integrado numa unidade de Cavalaria. Estive na zona do lago de Niassa. Depois, em 1969, fui para Angola.
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- Na altura questionava a justeza da guerra?
- A justeza da guerra depende sempre de quem a faz. O problema da Guerra Colonial portuguesa era a questão que o Dr. Salazar também tinha - é que ele era um rural, um camponês. Aquilo que há de mais importante para um camponês é a terra. Ele recebe a terra, como os seus antecessores tinham recebido. Um camponês nuca larga a terra, mesmo que não saiba para que é que a terra lhe serve. Esta era uma ideia generalizada, que também era a minha. Achávamos que Portugal fazia sentido há 500 anos, sendo uma pequena nação europeia que tinha grandes quintas em África, embora nenhum de nós -e muito menos Salazar - soubéssemos para que serviam as colónias. Toda a sociedade, e mesmo a oposição política, eram colonialistas. O general Norton de Matos chegou a fazer uma proposta absurda que era a da colocação da capital de Portugal em Nova Lisboa, onde hoje é o Huambo, em Angola.
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- Como foi a sua experiência de guerra em Angola?
- Em 1969 era tenente dos comandos em Angola. Encontrei uma guerra violenta. Andei pelo Norte, nas zonas da Bela Vista e Úcua, onde combatíamos tanto a FNLA como o MPLA. A minha companhia, da qual eu era adjunto do comando, foi depois transferida de Angola para Moçambique.
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- Da experiência em Angola lembra alguma operação em especial?
- Lembro-me de uma na zona da Bela Vista, em que fizemos um heli-assalto a uma base da FNLA. Os guerrilheiros, quer da FNLA, quer do MPLA estavam numa situação crítica. Tinham muito pouco armamento e efectivos muito pequenos. Eles lutavam até ao limite das munições. E isto é a luta mais pessoalizada, deixa de ser um combate para ser uma luta de combate olhos nos olhos com o adversário. Neste assalto, nós éramos 25 comandos e eles tinham poucas metralhadoras. Lutavam até à última munição, com uma arma para cada dois homens. Se eu matava um guerrilheiro, outro puxava a arma dele, que estava presa ao seu braço com um cordel.
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- Em Angola, havia um tratamento desigual para com as populações indígenas. Esta mentalidade mudou durante os anos da guerra?
- Não estive em Angola desde o início da Guerra mas conheci muitos desses colonos de 1961. A partir de certa altura, distinguiam-se duas gerações de colonos. Uma era a dos colonos iniciais que tinham ido para Angola antes de 1961, e que tinham fazendas de café no Norte. Era o colonialismo puro e duro. Submetiam os pretos que vinham lá de baixo a um regime de exploração até ao limite. Havia trabalho obrigatório e escravo. Mas, a partir do início da guerra, os colonos perceberam que a situação se tinha alterado. As pessoas que vêm de Portugal percebem que não podem tratar o negro da mesma maneira, porque senão vão ter o reflexo que viram nas fotografias dos massacres de 1961. Passa a haver dois tipos, os velhos e os novos colonos. Os novos passam a tratar o negro quase de igual para igual.
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- Olhando para trás, arrepende-se de ter sido voluntário na Guerra Colonial?
- Não tenho uma posição moral. Os estados não têm estados de alma. Nós tínhamos colónias, e em determinado momento entendemos que devíamos defendê-las. Eu lutei para que essa possibilidade existisse. É evidente que a existência de colónias não era uma situação final. Eu lutei, como membro das Forças Armadas portuguesas, para que fosse possível encontrar a melhor solução para a questão ultramarina portuguesa. Sinto-me em paz comigo próprio por ter contribuído para a resolução do problema colonial e que essa solução tenha dado origem aos novos países de expressão portuguesa, que partilham connosco a mesma língua, as mesmas partes da história, e as mesmas afectividades. Esta comunidade dos países lusófonos, mais do que económica é uma comunidade de afectos, e isso é bom.
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- Falando da sua actividade como historiador e romancista da Guerra Colonial, quando estava no terreno sentiu logo que tinha ali material para escrever depois de terminado o conflito?
- Depois do final da guerra, entendi que deveria escrever as histórias dos que estiveram comigo. Aquilo que eu escrevo é um tema universal, que são as histórias dos homens colocados na situação da guerra e não propriamente naquela guerra específica.
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- Quando começou a escrever, a guerra era um tema tabu?
- Nunca senti que fosse um tema tabu. Mas as pessoas que tinham feito a guerra não queiram falar dela. Cada um entendia que não tinha condições especiais para falar, mas eu entendi que as tinha. Eu entendi que a experiência que eu tinha tido fazia parte da história do meu país. Se mais ninguém queria escrever sobre o assunto, eu achei que devia fazê-lo. Fazia parte do meu dever enquanto militar profissional.
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- Temos hoje uma boa historiografia sobre a guerra?
- Há muito poucas coisas hoje em dia que sejam decisivas para nós nos compreendermos. A minha geração de portugueses que fez a guerra está a contar hoje as suas histórias pessoais. Será uma área muito interessante para cada um deles, hoje há mais gente a escrever sobre histórias da guerra do que a lê-las. O importante não é fazer a história da minha guerra - que é o que se está muito a fazer - mas sim perceber o que foi aquela guerra na história de Portugal. A história colonial e a história da guerra fazem parte de um movimento de descolonização e fazem parte da história da Europa. Portugal teve um papel central porque foi a última potência colonial a largar os seus territórios. É esse momento que aqueles que escrevem devem contribuir para esclarecer.
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- E o que é que falta esclarecer?
- Há duas ou três grandes questões por clarificar. A primeira é perceber porque é que Portugal optou por se envolver numa guerra quando podia optar pela negociação. O segundo ponto é entender porque é que houve da parte do Governo português uma incompetência na gestão da guerra. A falha mais importante é que não soube gerir os seus quadros permanentes e criou uma absurda dictomia em que tinha de um lado os milicianos e do outro os militares profissionais. As guerras fazem-se com uma comunidade, com um exército nacional. O governo não soube gerir as suas Forças Armadas. A terceira grande questão é o processo muito complexo em que se envolveu o professor Marcelo Caetano para estabelecer alianças com a Rodésia e com a África do Sul para manter os poderes brancos na África Austral. Nunca se soube como iríamos gerir essas alianças. Não sabemos se íamos continuar a ser um país europeu, ou se íamos passar a ser um país africano.
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- Em termos estritamente militares, havia condições para continuar a guerra em Angola para além de 1974/75?
- Podia. A guerra não tinha um prazo. A guerra não estava perdida; era uma guerra perdida, independentemente do momento em que fosse efectivamente dada como perdida, porque assentava em bases que não tinham resolução. A política nunca foi capaz de dizer às Forças Armadas qual era a sua missão. A única missão era permanecer, mas permanecer não é uma missão. Não é cumprível. E daí que as Forças Armadas, a dado momento se tenham interrogado ‘permanecer como e porquê?' A partir de um momento histórico nada daquilo fazia sentido. A Guiné era um prejuízo em termos de vidas humanas e de recursos. E em Angola e Moçambique também ninguém sabe se a manutenção daqueles territórios era rentável para se manter uma guerra. Justificava-se que uma metrópole tivesse aqueles dois territórios quando os seus dois vizinhos eram repúblicas independentes, como a África da Sul e a Rodésia? Como é que íamos manter as nossas províncias ultramarinas em pé de igualdade perante uma potência como a África do Sul ou a Rodésia, que tinha a agricultura mais desenvolvida de toda a África?
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- Tem alguma nova edição no horizonte
- Eu e o Aniceto Afonso vamos publicar um livro sobre as relações entre Portugal, África do Sul e a Rodésia. Que tinham uma aliança militar efectiva. Vamos tentar apresentar aos nossos leitores as contradições que estavam na base da política ultramarina portuguesa.
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- Olhando para trás, arrepende-se de ter sido voluntário na Guerra Colonial?
- Não tenho uma posição moral. Os estados não têm estados de alma. Nós tínhamos colónias, e em determinado momento entendemos que devíamos defendê-las. Eu lutei para que essa possibilidade existisse. É evidente que a existência de colónias não era uma situação final. Eu lutei, como membro das Forças Armadas portuguesas, para que fosse possível encontrar a melhor solução para a questão ultramarina portuguesa. Sinto-me em paz comigo próprio por ter contribuído para a resolução do problema colonial e que essa solução tenha dado origem aos novos países de expressão portuguesa, que partilham connosco a mesma língua, as mesmas partes da história, e as mesmas afectividades. Esta comunidade dos países lusófonos, mais do que económica é uma comunidade de afectos, e isso é bom.
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