A Internacional

__ dementesim . . Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. . _____ . Quem luta pelo comunismo Deve saber lutar e não lutar, Dizer a verdade e não dizer a verdade, Prestar serviços e recusar serviços, Ter fé e não ter fé, Expor-se ao perigo e evitá-lo, Ser reconhecido e não ser reconhecido. Quem luta pelo comunismo . . Só tem uma verdade: A de lutar pelo comunismo. . . Bertold Brecht

terça-feira, julho 30, 2013

João Vilela - O Regresso da «Unidade Moral da Nação»



O Regresso da «Unidade Moral da Nação»

No artigo 6º, 1º, da Constituição de 1933, podia ler-se: «[incumbe ao Estado] Promover a unidade moral e estabelecer a ordem jurídica da Nação, definindo e fazendo respeitar os direitos resultantes da natureza ou da lei, em favor dos indivíduos, das famílias, das autarquias locais, e das corporações». Seriam possíveis páginas e mais páginas de dissecação em detalhe de toda a riqueza e subtileza ideológica inscrita em tão poucas palavras. Hoje, contudo, cingir-me-ei a verificar como a noção de «unidade moral da nação» continua a nortear a actuação política dos agentes da política de direita, maximamente do actual Presidente da República.
Um pressuposto desta «unidade moral» da nação, que de resto é uma pedra angular de qualquer discurso conservador, é o da naturalização da desigualdade social, sob a expressão legitimadora da «hierarquia». O conservador não perscruta as causas históricas, económicas, sociais, da desigualdade social: assume-a como a natureza das coisas, e, mais do que isso, confere-lhe propriedades que a tornam benéfica para a própria sociedade. A igualdade é descrita como desmobilizadora do esforço, como fomentadora da inércia, como destruidora da «motivação» para o trabalho. Se não existissem ricos e pobres, consideram, os pobres não trabalhariam: a posse comum da riqueza social por todos os seus membros geraria indolentes, encostados, preguiçosos: só a posse por poucos dessa riqueza compele os muitos que têm de se esgadanhar para aceder a uma pequena fracção dela a darem-se a tal trabalho. Por outro lado, além desta «justificação» «funcional» da hierarquia, perfila-se uma «justificação» «ética»: a desigualdade é a expressão do resultado do esforço de uns e da indolência dos outros. A riqueza de cada um atesta a capacidade de trabalho que teve, a destreza, a inteligência, a sagacidade, o mérito. Quando somos bombardeados com loas diárias ao empreendedorismo, estamos, fundamentalmente, a revisitar este campo: e isso torna incontornável a heroicização do empresário, hoje tão em voga.
Sagrada que fica a divisão em classes da sociedade (repare-se: essa divisão não é negada nem dissolvida: é justificada!), e «explicada» que está a «razão» «justificativa» da preeminência dos detentores de meios de produção, que papel é o do Estado, sob a lógica corporativa? No que consiste a «unidade moral da nação» depois de termos visto «a natureza» (e, já agora, a lei) estatuir «direitos» de «indivíduos» e «famílias», que o legislador (don’t kill the messenger) se limitou a «definir»? Fundamentalmente, na conservação estrutural da ordem vigente através de mecanismos de (cito directamente a propaganda do regime deposto) harmonização dos interesses de classe. A menos evidente e todavia poderosamente eficaz era a já citada glamourização propagandística dos papéis de classe, com o lambe-botismo ao grande empresário (repetido hoje) e o prestígio dado à Casa Portuguesa onde «a alegria da pobreza/está nesta grande riqueza/de dar e ficar contente». Associava-se a isso uma preocupação caritativa de apoios públicos «a quem precisa» e de crítica desagradada, do próprio Salazar, aos «opulentos», aos «arquimilionários», ao lucro que não era «comedido»: nada a que o Papa Francisco não nos tenha acostumado já. Mas quando não chegavam estes mecanismos, afinal de contenção, e quando não era, ainda, preciso empregar o arsenal dos bufos, dos pides, dos tribunais plenários, dos feijões verdes da Legião, dos polícias-cães e dos cães-polícias, havia a imposição antidemocrática da opção de classe do Estado, pela sobreposição da deliberação administrativa à negociação (aliás, materialmente inexistente) entre os sindicatos nacionais e os grémios, em nome do interesse nacional que este Estado-árbitro julgava e se atribuía o poder de aferir.
Ora, é aqui que reside a razão de ser, incontornável, da antidemocraticidade do fascismo. O Estado, no corporativismo, entregando-se a arbitragem dos conflitos entre classes por se considerar intérprete supraclassista do «interesse nacional», tinha uma legitimidade própria, «orgânica», dentro desta arquitectura social. Os seus agentes não careciam de sufrágio, de ver justificado por ninguém o poder que tinham, de prestar contas, de nada. O Estado era: como o cérebro no corpo, o motor num carro, o cavalo numa carruagem. Sem ele, a lógica das coisas ficava comprometida. A natureza ficava incompleta. Se a sociedade tem uma configuração natural e um andamento inerente a essa configuração, que quem lidera conhece e trilha, o que se fará? Perguntar aos guiados para onde devem ser guiados? Mas acaso o cérebro põe à discussão do fígado, do estômago, das mãos e dos pés, o que lhes cumpre fazer num corpo? Nada: ordena, e eles fazem. Não discutem. Não reflectem. Executam ordens que lhes chegam, e, possivelmente, se lhes fosse dado escolher o seu papel, sem serem merecedores de constar do «escol» cerebral, levariam o corpo, todo ele, à desorganização e à morte.
O que pensam Cavaco, Passos, e os que hoje nos impedem de, indo a votos, solucionarmos os problemas que o país atravessa? Nada de essencialmente diferente, neste ponto. Em situação de conflito entre os interesses dos trabalhadores portugueses e os do imperialismo alemão, o Estado arbitra e decreta o «interesse nacional» de aplicar o memorando da troika, mesmo que o povo se rebele contra ele e as manifestações antitroika encham praças e ruas com centenas e centenas de milhares de pessoas. Isso de nada importa. Intérpretes do interesse da nação (que em nada se distingue, por sinal, do interesse do imperialismo e das fracções da burguesia nacional que dependem dele), aplicam-no sem sentirem dever contas a ninguém e recusando, mesmo em caso de grave crise política, que o povo seja chamado a pronunciar-se. Julgam, aliás, perigosa essa veleidade (e dizem-no): acarretaria insuportável instabilidade, desconfiança dos mercados, seria a desordem e o caos absoluto. O povo não é senhor de definir o que é do seu interesse. O povo submete-se «ao país», mítica abstracção que no fundo significa «quem manda». E o país precisa, porque o Estado interpretou que precisa, de cumprir o memorando. Se o povo se esticar muito, o Estado, em nome do país, descarregará sobre ele os bastões da PSP.
Lenine dizia que só a classe dominante pode falar em nome da nação. Marx recordava que a primeira missão do proletariado revolucionário era tornar-se classe nacional «mas jamais nacional no sentido burguês». Entre nós, esta verdade torna-se cada dia que passa mais agudamente sentida, pelo uso sistemático, recorrente, incessante, do abusivo estribilho do «interesse nacional» subsumindo o interesse dos dominantes. E à medida que o interesse desses dominantes colidir mais e mais com o dos dominados, tanto maior será a cadência repetitiva desta linguagem chauvinista e patrioteira. É contudo verdade que os trabalhadores não desconhecerão muito longamente que quando lhes falam do país, lhes falam acima de tudo do patrão. E quando o compreenderem, todos, e aos esquemas de manipulação e mentira que em nome do patrão lhe vão aplicando, os trabalhadores não abdicarão, ainda aí do país – mas vão querê-lo para si próprios.

  1. De diz:
    Desculpem lá mas estes textos constituem um esqueleto preciosíssimo para uma bagagem ideológica mais funda, mais consistente e mais consolidada.
    Constituem reflexões importantes que abrem fendas enormes no argumentário estereotipado que ouvimos a cada dia que passa aos personagens menores dos propagandistas do regime.
    A “naturalização da desigualdade social”, a inevitabilidade de ricos e pobres ( ou a de exploradores e explorados), a hierarquização e a ostracização, o darwinismo social, os mecanismos de contenção, como as prestações caritativas (já focadas aqui recentemente num post de Frederico Aleixo), ou de repressão , o papel do Estado, a luta de classes…tudo isto e muito mais num texto que é uma pedrada (estruturada) nos discursos conservadores ( mas não só) que por aí se ouvem ad nauseum.

    …chapeau!

    A Sagração da Desigualdade – I: Mérito e Excelência

    running businessman
    «Houve outrora, em tempos muito remotos, uma elite laboriosa, inteligente, e sobretudo poupada, e uma população constituída por vadios, trapalhões, que gastavam mais do que tinham (…) a elite foi acumulando riqueza, e a população vadia ficou, finalmente, sem ter outra coisa que vender além da própria pele». Assim define Marx, n’O Capital, com a ironia que lhe é reconhecida, o mitologema legitimador da dinâmica capitalista. Para os mitógrafos burgueses encarregues da «explicação» «histórica» da exploração do homem pelo homem, da desigualdade, da estruturação da sociedade em classes, em suma, para aqueles que não afirmam sem se rir que «capitalismo sempre houve, chama-se economia» (e sim, eu já ouvi estas e piores) e pretendem, toscamente que seja, adiantar uma explicação simultaneamente funcional e ética para a desigualdade social do mundo em que vivemos. Como indicia a imagem que ilustra este texto, o mito presume (mas nunca indica onde está nem quando foi) um determinado ponto na história em que todos os homens estavam em rigorosíssima igualdade de circunstâncias, salvo as «naturais» diferenças entre fracos e fortes, espertos e parvos, belos e feios, e demais aspectos de igual primarismo. Começou aí, não se sabe bem por que tiro de partida dado talvez por Deus, uma corrida de cem metros opondo todos os seres humanos nascidos até então, e até hoje: alguns de nós terão dedicado a essa corrida o melhor de si, suplantado dificuldades, inventado forças, ignorado sofrimentos, e com o poder de uma vontade férrea terão chegado longe; outros, por indolência ou atrapalhação, mas no fundo por incapacidade, terão preguiçado, mostrado insuficiência, inevitavelmente ficado pelo caminho. Ninguém tem para culpar por isso se não a Mãe Natureza ou, no limite, a si próprios. O seu estatuto social é natural, como a cor dos olhos ou a altura que tiveram. Podem, com dedicação e trabalho, eventualmente mudá-lo, assim como se emagrece fazendo dieta ou se ganha músculo indo ao ginásio. A menos que a sua seja uma genética condenada, circunstância em que, por mais voltas que dêem, nada poderão fazer.
    Gostem ou não disso, dos pretensos teóricos que hoje em dia se socorrem desta mitologia, quando já não é fino nem de bom-tom ser-se religioso, estão, no fundamental, a reproduzir a tese da doutrina social católica quanto ao fundamento moral da propriedade e da hierarquia social. A Rerum Novarum, encíclica do Papa Leão XIII que funda a citada doutrina, afirma, com pretensões de seriedade, aquilo que Marx refere de forma jocosa: «como é fácil compreender, a razão intrínseca do trabalho empreendido por quem exerce uma arte lucrativa, o fim imediato visado pelo trabalhador, é conquistar um bem que possuirá como próprio e como pertencendo-lhe; porque, se põe à disposição de outrem as suas forças e a sua indústria, não é, evidentemente, por outro motivo senão para conseguir com que possa prover à sua sustentação e às necessidades da vida, e espera do seu trabalho, não só o direito ao salário, mas ainda um direito estrito e rigoroso para usar dele como entender. Portanto, se, reduzindo as suas despesas, chegou a fazer algumas economias, e se, para assegurar a sua conservação, as emprega, por exemplo, num campo, torna-se evidente que esse campo não é outra coisa senão o salário transformado: o terreno assim adquirido será propriedade do artista com o mesmo título que a remuneração do seu trabalho. Mas, quem não vê que é precisamente nisso que consiste o direito da propriedade mobiliária e imobiliária?». Poderíamos ouvir qualquer João César das Neves, qualquer Cantiga Esteves, qualquer João Duque dizer semelhante coisa. Isto é, quanto a eles, historiografia assente. Nem mais, nem menos. Ainda há dias, J. Beleza dizia na TV que «a concorrência é o maior factor de desenvolvimento desde que o mundo é mundo». É aliás de crer que a gregariedade humana, que lhe vem dos seus antepassados hominídeos, se funda puramente no desejo irreprimível da gabarolice e da competição, de mostrar ao Neandertal do lado uma caverna melhor, como hoje se esfrega na cara dos vizinhos o carrão que se acabou de comprar.
    Esta é todavia das maquinações que em menos se assemelham ao que quer que se saiba sobre a história e a antropologia. Nada podia ser mais rotundamente anticientífico do que este postulado. Sem me alongar muito, esta ideia ignora, em gala, o que quer que seja sobre o processo de divisão social do trabalho, a começar pela repartição de funções sociais entre géneros e a acabar na influência da patria potestas e da conquista militar na definição radical de papéis sociais inultrapassáveis; escamoteia a ulterior autonomização social do estamento dos guerreiros, e o estabelecimento por eles de situações de dominação da sociedade como um todo; faz de conta que não sabe do resultado do desenvolvimento do comércio, posterior a esta prévia divisão, rígida, das sociedades, na consagração de uma clique de comerciantes-prestamistas que ombreavam com os guerreiros e, em aliança ou frontal combate, disputavam com eles a exploração dos desapossados; desconhece o processo histórico de esbulho dos escassos haveres dos minifundistas correlativos à ascensão social da burguesia a partir do séc. XVI, com cercamento de terras comuns, expulsão de camponeses das suas aldeias, prisão e subjugação a trabalhos forçados dos que, sem emprego, tinham de vadiar, emprego do poder de Estado na sua deslocação forçada para outras regiões, legitimação das relações de força desproporcionadas entre classes – nada disso interessa. Isso, clamam irracionalistamente, são «desculpas». E o que visam com isto é claro e transparente: a um tempo, individualizar os comportamentos sociais, tornando-os atitudes de pessoas específicas e não de classes (e menos ainda de classes em luta), e, por outro lado, estabelecer a base sobre a qual o lucro e a exploração resultam do senso comum. Vejamos o que visa o primeiro e como nasce dele o segundo.
    Num curioso movimento dialéctico, a desclassização que o discurso individualista empreende promove quer a consciencialização de uma classe (e a sua predisposição para se aliar com os dominantes), quer a desmobilização de outra. A classe cuja consciencialização se procura, como se percebe, é a pequena burguesia: a ela sim, e a ninguém mais, se aplica o mitologema da força da vontade na ascensão social, e mesmo aí, uma ascensão precária, titubeante, ao arrepio das dinâmicas estruturais do capitalismo, sujeita a rápido desaparecimento como atestam as falências de PMEs desde o começo da crise. Poupando salário abre-se uma mercearia, nunca uma SONAE. Mas estabelece-se a impressão – que o capitalismo em crise cedo prova ser nada mais que uma impressão – que entre o merceeiro de bairro e o merceeiro Belmiro de Azevedo a diferença é, meramente, de grau. E com isso se leva para o lado dos dominantes estes sectores intermédios, por mais que o engrandecimento desses sectores dominantes seja, a prazo, a morte das tais classes intermédias. Quanto aos trabalhadores, pouco é preciso explicar: promove-se desta forma a sua desunião, vende-se-lhe o sonho ilusório de resolver o seu problema individual tornando-se burguês, e não o problema colectivo da sua classe, fazendo, com ela, a revolução. E de caminho retarda-se a sua consciencialização, deslegitimando junto dele a classe a que pertence, e associando o bom e o belo a quem pode e manda.
    Ao mesmo tempo, descarnada da sua estruturação em classes e reduzida a organização associativa de indivíduos livres, a sociedade assim inventada pelo discurso burguês justifica todas as suas práticas e desobriga-o de toda a moralidade. Não existe correlação de forças, desigualdade de circunstâncias, coordenação grupal. Nada. O proletário que discute quanto ganha com quem o contrata é um homem livre perante um homem livre. O inquilino que discute a renda com o senhorio, outro homem livre perante outro homem livre. O pequeno produtor que vende cebolas ao Belmiro de Azevedo, também ele um homem livre, como homem livre é Belmiro de Azevedo – estranhamente, a margem de manobra do homem livre Belmiro é prodigiosamente maior que a do não menos homem livre merceeiro de esquina que lhe sucede na fila para negociar com o produtor agrícola…
    Se as relações forem puramente individuais, o que resulta de benefício ou de prejuízo para cada parte é fruto, estritamente, da sua capacidade negocial. E aqui voltamos à corrida de 100 metros, à natureza, à responsabilidade individual única e exclusiva. O que é o lucro? Mérito, excelência. O que é o sucesso? Mérito, excelência. O que dita a posição social? O mesmo. É tudo muito fácil e claro quando a descrição da sociedade é assim feita. Fácil e claro, sim. Verdadeiro, bem pouco.
    [NOTA: escreverei quatro textos sob o título «A Sagração da Desigualdade». O de amanhã chamar-se-á «Pobres mas honestos»]

    Sobre João Vilela

    Professor de História da Arte algures na cidade do Porto, licenciado em História e mestre em História e Educação, portista e comunista, falo de política, economia, educação, cultura, e, se me der na veneta, até de nudez feminina. Este blogue é para me entreter, e contará com «a little help from my friends» volta e meia.
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    23 respostas a A Sagração da Desigualdade – I: Mérito e Excelência

    1. André Carapinha diz:
      Excelente texto. Está cá tudo, limpinho, limpinho. Aguardo ansiosamente pelos outros, e deixo desde já o meu elogio ao João Vilela, grande aquisição para o 5 Dias.
    2. De diz:
      Não é só o conteúdo, é também a forma.Não é só esta ,é sobretudo aquela. Notável.
      … é um prazer ler textos com cabeça,tronco e membros,pedagógicos na forma, também instrumentais na acção, que nos conduzem ao exercício da inteligência e do pensar.
      Uma janela aberta para se respirar um pouco de ar não poluído.
      ( não…não me canso de o repetir)
    3. Nuno Cardoso da Silva diz:
      Pode-se brincar com a doutrina social da Igreja, mas é essa Igreja que há quase duzentos anos vem dizendo que o direito de propriedade não é absoluto, é relativo, e está condicionado ao proprietário colocar essa propriedade ao serviço da comunidade, não guardando do seu produto para si senão o que é necessário ao seu sustento. A Rerum novarum pode ainda ser um pouco ambígua, mas a Populorum progressio, de Paulo VI, já não deixa sobre a matéria muitas dúvidas a quem quer que seja. Se há figuras da Igreja que foram – e são – cúmplices da burguesia, já a doutrina da Igreja é altamente crítica do capitalismo e da exploração que ele engendra. Não é preciso ser-se católico – e eu não sou – para se reconhecer a posição crítica da Igreja face à exploração capitalista. Agora não se espere é que a Igreja encabece tomadas da Bastilha ou do Palácio de Inverno… Embora tenha havido sacerdotes seguidores da teologia da libertação que andaram lá bem perto, como Camilo Torres.
      • A crítica, terá percebido, não é dirigida à doutrina social católica (de que discordo, mas que nem me aquece nem arrefece): uso apenas a explicação, soi disant, que essa doutrina convoca para fundamentar a desigualdade social, e que em meu entender é igual em tudo à que os economistas liberais usam e que, em qualquer dos casos, não tem ponta por onde se lhe pegue.
        • Nuno Cardoso da Silva diz:
          É curioso, porque a Igreja considera que só o trabalho cria valor, o que está um pouco longe das doutrinas liberais. Não convém pegar da doutrina católica apenas aquilo que nos dá jeito para a criticar porque em muitos aspectos – como a teologia da libertação demonstrou – ela pode ser tão radical e revolucionária como o marxismo mais duro. Volto a dizer que não sou católico, mas o catolicismo, quando é coerente, é verdadeiramente revolucionário nas questões económicas e sociais. Por isso o reacionário do Ratzinger não descansou enquanto não silenciou os teólogos da libertação.
          • Eu escuso-me de repetir que não critiquei a doutrina social católica, que por sinal não me aquece nem me arrefece, mas tão-só a sua concepção e explicação das origens da propriedade privada. Se quer discutir doutrina social católica com quem a critica, dirija-se ao guiché ao lado.
            • Nuno Cardoso da Silva diz:
              Da Doutrina Social da Igreja:
              “O direito à propriedade privada subordina-se ao princípio da destinação universal dos bens e não deve constituir motivo de impedimento ao trabalho e ao crescimento de outrem. A propriedade, que se adquire antes de tudo através do trabalho, deve servir ao trabalho. Isto vale de modo particular no que diz respeito à posse dos meios de produção; mas tal princípio concerne também aos bens próprios do mundo financeiro, técnico, intelectual, pessoal.”
              “Deus destinou a terra e tudo o que ela contém para o uso de todos os homens e de todos os povos, de sorte que os bens criados devem chegar eqüitativamente às mãos de todos, segundo a regra da justiça”
              Se queria referir-se à doutrina da Igreja quanto à propriedade privada, talvez valesse a pena procurar com mais cuidado…
            • Homem, você é chato. Eu especifiquei claramente que criticava a teorização daorigem da propriedade, não da sua função social, na DSC. E pela terceira vez lhe digo: nem critiquei essa doutrina, nem estou para a discutir. Quer, fale do fulcro do texto. Não quer, deixe-me sossegado!
            • Nuno Cardoso da Silva diz:
              Eu sei bem qual é a origem do incómodo. É que enquanto na década de sessenta, na América Latina, a maioria dos comunistas ficou sentada à espera que a revolução burguesa se consolidasse para só depois promover a revolução proletária, os padres defensores da teologia da libertação estavam no terreno a organizar e a alfabetizar os mais pobres, a lutar sem concessões contra a exploração oligárquica capitalista. Eram eles que exigiam a entrega da terra aos camponeses, e não os partidos comunistas locais. É por isso que discutir a doutrina social da Igreja e a subsequente teologia da libertação incomoda alguns. Porque esta póe em causa a ficção do monopólio do materialismo histórico na luta contra a exploração e o capitalismo.
            • Não, o incómodo procede mesmo do apego patético a um ponto lateral do post e à forma desonesta como as minhas respostas aos seus comentários foram contraditadas por si. Mas enfim, acabemos com isto. Passe bem.
      • Carlos Carapeto diz:
        E essa igreja tem cumprido com o que lá tem escrito?
        O Vaticano é um dos Estados mais ricos do mundo, no entanto suga benesses e isenções até aos países mais miseráveis.
        Por outro lado o bem que a igreja pratica é fazendo caridade, caridade essa que tem apenas como finalidade tornar as pessoas subservientes aos seus dogmas.
        Nunca a igreja em tempo algum se interessou por combater as causas que provocam a pobreza e as desigualdades sociais.
        Interessa-lhe o perpetuar dessa situação. Verga as pessoas por o estomago, doma-lhes a mente, captando dessa forma mais militantes para as suas fileiras e evitando conflitos sociais.
        E qual foi o tratamento que a igreja reservou a muitos teólogos da libertação que se atreveram ir para além das regras doutrinarias estabelecidas ?
        Leonardo Boff, Ernesto e Fernando Cardenal por exemplo.
        Camilo Torres ao contrario destes decidiu pegar em armas.
        • Nuno Cardoso da Silva diz:
          O problema não está se, no seu todo, a Igreja foi fiel à sua doutrina. Todos sabemos que não foi. O importante é constatar que há outras formas de lutar contra a exploração, a opressão e o capitalismo, e que uma dessas formas resulta de uma leitura coerente da doutrina da Igreja. A teologia da libertação é a prova de que é possível desenvolver-se essa luta pelos oprimidos a partir de princípios que nada têm a ver com a leitura marxista. O que não invalida a importância da análise marxista mas lhe retira o carácter de única via para a libertação dos povos. É até particularmente importante verificar-se que marxistas e teólogos da libertação, com pontos de partida muito diversos, conseguem um grau interessante de convergência nas soluções. É verdade que a Igreja oficial maltratou os teólogos da libertação, mas não os aniquilou. E o actual Papa até pode vir a abrir de novo a porta às experiências dos teólogos da libertação. O que, espero, não incomode excessivamente os marxistas, porque é pelas duas vias que se poderá liquidar a exploração capitalista.
    4. Carlos Carapeto diz:
      Muito obrigado João Vilela por o esforço que fez em esclarecer-me.
      É o que posso acrescentar às palavras elogiosas que os outros participantes escreveram.
    5. João diz:
      Isto agora já cheira m bocadinho a “sopas depois de almoço” ou a “Maria vai com as outras”, mas mesmo correndo e sabendo que ele é grande, não posso deixar de me juntar a todos os que o elogiaram. Parabéns, quanto a essa produção.
      Interessantes e honestas me parecem também as posições – sua e do Nuno Cardoso da Silva – no que respeita à doutrina social da Igreja. Em tempos de transicção (e nós estamos nesse tempo) perscrutar em todas as portas, janelas e frestas, parece-me vital. Mas isto, sem me desviar do propósito essencial, que é dar-lhe os parabéns.
    6. RG diz:
      Esquecem-se alguns historiadores que houve mais evolução e desenvolvimento humano em sociedade cooperativas do que quando passaram à matriz competitiva.
      • Carlos Carapeto diz:
        Na muche!
        A burguesia tem medo do povo e dos trabalhadores organizados, por esse facto dificulta ou nega o apoio à formação de Cooperativas de iniciativa popular.
        • Nuno Cardoso da Silva diz:
          Talvez seja altura dos trabalhadores dispensarem as autorizações ou apoios da burguesia e avançarem de motu proprio para a criação de cooperativas e para a transformação de empresas capitalistas em empresas cooperativas. E poder-se-ia começar pela ocupação de empresas em vias de encerramento, impedindo o desmantelamento dos seus activos e continuando a produzir, agora sob controlo dos próprios trabalhadores.
        • RG diz:
          Nem referia tanto a cooperativas enquanto modo de organização da produção (aliás estas podem ser tão competitivas com uma vulgar empresa) mas sim ao modo como as sociedades, na história, se organizaram para satisfazer as necessidade básicas e comuns, reproduzindo-se pelo trabalho cooperativo, por divisão igualitária do produto comunitário.
    7. JgMenos diz:
      Muito mais me entusiasmaria lê-lo sobre a ‘sagração da igualdade’.
      Onde e quando esse mito foi, não só realidade, como factor de progresso material e cultural!
      Talvez me abalasse a convicção de que quem sempre menoriza o individualismo muito ambiciona que outros por si muito façam!

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