O Regresso da «Unidade Moral da Nação»
No artigo 6º, 1º, da Constituição de 1933, podia ler-se: «[incumbe ao Estado] Promover a unidade moral e estabelecer a ordem jurídica da Nação, definindo e fazendo respeitar os direitos resultantes da natureza ou da lei, em favor dos indivíduos, das famílias, das autarquias locais, e das corporações». Seriam possíveis páginas e mais páginas de dissecação em detalhe de toda a riqueza e subtileza ideológica inscrita em tão poucas palavras. Hoje, contudo, cingir-me-ei a verificar como a noção de «unidade moral da nação» continua a nortear a actuação política dos agentes da política de direita, maximamente do actual Presidente da República.
Um pressuposto desta «unidade moral» da nação, que de resto é uma pedra angular de qualquer discurso conservador, é o da naturalização da desigualdade social, sob a expressão legitimadora da «hierarquia». O conservador não perscruta as causas históricas, económicas, sociais, da desigualdade social: assume-a como a natureza das coisas, e, mais do que isso, confere-lhe propriedades que a tornam benéfica para a própria sociedade. A igualdade é descrita como desmobilizadora do esforço, como fomentadora da inércia, como destruidora da «motivação» para o trabalho. Se não existissem ricos e pobres, consideram, os pobres não trabalhariam: a posse comum da riqueza social por todos os seus membros geraria indolentes, encostados, preguiçosos: só a posse por poucos dessa riqueza compele os muitos que têm de se esgadanhar para aceder a uma pequena fracção dela a darem-se a tal trabalho. Por outro lado, além desta «justificação» «funcional» da hierarquia, perfila-se uma «justificação» «ética»: a desigualdade é a expressão do resultado do esforço de uns e da indolência dos outros. A riqueza de cada um atesta a capacidade de trabalho que teve, a destreza, a inteligência, a sagacidade, o mérito. Quando somos bombardeados com loas diárias ao empreendedorismo, estamos, fundamentalmente, a revisitar este campo: e isso torna incontornável a heroicização do empresário, hoje tão em voga.
Sagrada que fica a divisão em classes da sociedade (repare-se: essa divisão não é negada nem dissolvida: é justificada!), e «explicada» que está a «razão» «justificativa» da preeminência dos detentores de meios de produção, que papel é o do Estado, sob a lógica corporativa? No que consiste a «unidade moral da nação» depois de termos visto «a natureza» (e, já agora, a lei) estatuir «direitos» de «indivíduos» e «famílias», que o legislador (don’t kill the messenger) se limitou a «definir»? Fundamentalmente, na conservação estrutural da ordem vigente através de mecanismos de (cito directamente a propaganda do regime deposto) harmonização dos interesses de classe. A menos evidente e todavia poderosamente eficaz era a já citada glamourização propagandística dos papéis de classe, com o lambe-botismo ao grande empresário (repetido hoje) e o prestígio dado à Casa Portuguesa onde «a alegria da pobreza/está nesta grande riqueza/de dar e ficar contente». Associava-se a isso uma preocupação caritativa de apoios públicos «a quem precisa» e de crítica desagradada, do próprio Salazar, aos «opulentos», aos «arquimilionários», ao lucro que não era «comedido»: nada a que o Papa Francisco não nos tenha acostumado já. Mas quando não chegavam estes mecanismos, afinal de contenção, e quando não era, ainda, preciso empregar o arsenal dos bufos, dos pides, dos tribunais plenários, dos feijões verdes da Legião, dos polícias-cães e dos cães-polícias, havia a imposição antidemocrática da opção de classe do Estado, pela sobreposição da deliberação administrativa à negociação (aliás, materialmente inexistente) entre os sindicatos nacionais e os grémios, em nome do interesse nacional que este Estado-árbitro julgava e se atribuía o poder de aferir.
Ora, é aqui que reside a razão de ser, incontornável, da antidemocraticidade do fascismo. O Estado, no corporativismo, entregando-se a arbitragem dos conflitos entre classes por se considerar intérprete supraclassista do «interesse nacional», tinha uma legitimidade própria, «orgânica», dentro desta arquitectura social. Os seus agentes não careciam de sufrágio, de ver justificado por ninguém o poder que tinham, de prestar contas, de nada. O Estado era: como o cérebro no corpo, o motor num carro, o cavalo numa carruagem. Sem ele, a lógica das coisas ficava comprometida. A natureza ficava incompleta. Se a sociedade tem uma configuração natural e um andamento inerente a essa configuração, que quem lidera conhece e trilha, o que se fará? Perguntar aos guiados para onde devem ser guiados? Mas acaso o cérebro põe à discussão do fígado, do estômago, das mãos e dos pés, o que lhes cumpre fazer num corpo? Nada: ordena, e eles fazem. Não discutem. Não reflectem. Executam ordens que lhes chegam, e, possivelmente, se lhes fosse dado escolher o seu papel, sem serem merecedores de constar do «escol» cerebral, levariam o corpo, todo ele, à desorganização e à morte.
O que pensam Cavaco, Passos, e os que hoje nos impedem de, indo a votos, solucionarmos os problemas que o país atravessa? Nada de essencialmente diferente, neste ponto. Em situação de conflito entre os interesses dos trabalhadores portugueses e os do imperialismo alemão, o Estado arbitra e decreta o «interesse nacional» de aplicar o memorando da troika, mesmo que o povo se rebele contra ele e as manifestações antitroika encham praças e ruas com centenas e centenas de milhares de pessoas. Isso de nada importa. Intérpretes do interesse da nação (que em nada se distingue, por sinal, do interesse do imperialismo e das fracções da burguesia nacional que dependem dele), aplicam-no sem sentirem dever contas a ninguém e recusando, mesmo em caso de grave crise política, que o povo seja chamado a pronunciar-se. Julgam, aliás, perigosa essa veleidade (e dizem-no): acarretaria insuportável instabilidade, desconfiança dos mercados, seria a desordem e o caos absoluto. O povo não é senhor de definir o que é do seu interesse. O povo submete-se «ao país», mítica abstracção que no fundo significa «quem manda». E o país precisa, porque o Estado interpretou que precisa, de cumprir o memorando. Se o povo se esticar muito, o Estado, em nome do país, descarregará sobre ele os bastões da PSP.
Lenine dizia que só a classe dominante pode falar em nome da nação. Marx recordava que a primeira missão do proletariado revolucionário era tornar-se classe nacional «mas jamais nacional no sentido burguês». Entre nós, esta verdade torna-se cada dia que passa mais agudamente sentida, pelo uso sistemático, recorrente, incessante, do abusivo estribilho do «interesse nacional» subsumindo o interesse dos dominantes. E à medida que o interesse desses dominantes colidir mais e mais com o dos dominados, tanto maior será a cadência repetitiva desta linguagem chauvinista e patrioteira. É contudo verdade que os trabalhadores não desconhecerão muito longamente que quando lhes falam do país, lhes falam acima de tudo do patrão. E quando o compreenderem, todos, e aos esquemas de manipulação e mentira que em nome do patrão lhe vão aplicando, os trabalhadores não abdicarão, ainda aí do país – mas vão querê-lo para si próprios.
A Sagração da Desigualdade – I: Mérito e Excelência
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Sobre João Vilela
Professor de História da Arte algures na cidade do Porto, licenciado em História e mestre em História e Educação, portista e comunista, falo de política, economia, educação, cultura, e, se me der na veneta, até de nudez feminina. Este blogue é para me entreter, e contará com «a little help from my friends» volta e meia.23 respostas a A Sagração da Desigualdade – I: Mérito e Excelência
Uma janela aberta para se respirar um pouco de ar não poluído.
É o que posso acrescentar às palavras elogiosas que os outros participantes escreveram.
Interessantes e honestas me parecem também as posições – sua e do Nuno Cardoso da Silva – no que respeita à doutrina social da Igreja. Em tempos de transicção (e nós estamos nesse tempo) perscrutar em todas as portas, janelas e frestas, parece-me vital. Mas isto, sem me desviar do propósito essencial, que é dar-lhe os parabéns.
A burguesia tem medo do povo e dos trabalhadores organizados, por esse facto dificulta ou nega o apoio à formação de Cooperativas de iniciativa popular.
Onde e quando esse mito foi, não só realidade, como factor de progresso material e cultural!
Talvez me abalasse a convicção de que quem sempre menoriza o individualismo muito ambiciona que outros por si muito façam!