A propósito de lugares-comuns e ideias feitas
O voluntarismo niilista implícito no Que se lixe! é a força motriz de qualquer fascismo. Por Passa Palavra
Comentários insultuosos e irrelevantes não podem servir de base a nenhum debate fundamentado, por isso o Passa Palavra não costuma ocupar-se com eles. Fazêmo-lo agora porque, embora não sendo produtivos, são significativos. E assim neste artigo deixaremos de lado todas as contribuições sérias para o debate. Reconhecemos que é uma injustiça, mas se as ideias se convertem numa força social quando mobilizam massas, então as trivialidades, que se difundem mais facilmente do que as análises críticas, constituem uma força social mais imediata.
A democracia do insulto
É elucidativo que os comentadores histéricos tenham preferido insultar-nos nos blogs que frequentam habitualmente e onde encontram linkspara os nossos artigos em vez de colocarem observações no Passa Palavra, onde esses artigos foram originariamente publicados. Sucedeu mesmo que um sujeito não inseriu o linkpara o artigo que criticava, alegando que não queria aumentar-lhe as visualizações. E assim se aplicam os princípios do marketing ao que deveria ser um confronto ideológico.
Esta propensão a criticar de longe e como que em casa caracteriza igualmente os insultos no trânsito, em que cada um, fechado dentro do seu automóvel, grita impropérios que nunca teria coragem de dizer sem a protecção dos vidros e das portas trancadas. O trânsito e a internet constituem a infra-estrutura de uma forma política nova — a democracia do insulto.
Ora, como sempre sucede na arte, a forma é o principal conteúdo e neste caso é mesmo o único conteúdo. O insulto é a modalidade escrita do que na oralidade são os gritos, o barulho.
Os lugares-comuns
Quanto mais procuramos num artigo questionar lugares-comuns e fazer apelo ao raciocínio, tanto mais os comentadores histéricos gritam. Para quê, para se fazerem ouvir? Não, para eles próprios não ouvirem. E assim constroem uma câmara de eco numa sala de espelhos.
Pode obrigar-se as pessoas a muita coisa, mas não a pensar. Frequentemente os artigos que se criticam não são lidos ou, no máximo, passa-se a vista em diagonal, porque quem está habituado a ouvir-se a si mesmo não suporta outros sons. Lêem-se então só os comentários, ou alguns se forem muitos, e desanca-se o que se presume que o texto diz. Falha-se o alvo, mas quem se importa com isso, se os amigos também não lêem o texto?
Quanto mais estes comentadores se ouvem a eles próprios e quanto mais ouvem opiniões iguais às suas, mais acreditam que são muitos. Já repararam que se a embalagem de um produto reproduzir a sua imagem no rótulo se alcança o infinito? A repetição de uma imagem no interior dela própria é igual ao infinito. Sucede exactamente o mesmo com os comentadores histéricos. A democracia do insulto é simultaneamente um mecanismo de reprodução do infinito.
Mas como os insultos são desprovidos de conteúdo substantivo e os ecos e os espelhos são auto-referentes, deparamos com a multiplicação infindável do vazio.
O espantalho e a máscara
O argumento principal que temos defendido a propósito da permanência ou da saída de Portugal do euro é o de que o abandono do euro não só levará a uma deterioração maior ainda das condições de vida da classe trabalhadora portuguesa como deteriorará a situação dos pequenos e médios capitalistas, correndo-se o sério risco de que todos eles se precipitem juntos numa «nação em cólera», que — segundo a análise de um fascista sabedor e experiente — é o próprio caldo de cultura do fascismo.
Trata-se de um argumento com duas faces. A primeira diz respeito ao agravamento das condições de vida dos trabalhadores; a segunda, a uma possível convergência dos trabalhadores com a maioria dos capitalistas. Ora, este argumento tem sido ignorado.
Que se lixe!
Os comentadores que nos servem aqui de matéria-prima recusam-se a analisar os custos da saída do euro, sob o pretexto de que os custos da permanência são muito elevados. Sem dúvida, mas trata-se de saber quais são os mais elevados.
Querem debater seriamente os custos comparados de uma manutenção no euro ou de um abandono da zona euro? Querem debater seriamente as limitações do empresariado português e uma marginalização económica que se deve à estrutura social deste país e não à malevolência dos outros? Querem debater seriamente as alternativas económicas que se colocam dentro e fora da zona euro? Mas como discutir estas questões económicas sem falar de economia em termos económicos?
Acusam-nos então de falarmos «economês». Mas com que direito querem extrair conclusões económicas se se abstêm de proceder ao mínimo raciocínio económico? Abrem-se as portas, perdão, ficam escancaradas para o mais despudorado exercício de demagogia.
Reclamam contra os banqueiros, a quem atribuem todas as culpas do crédito oferecido, esquecendo-se aliás de observar como ele foi utilizado. Logicamente, protestam também contra os subsídios adiantados pelo Estado à banca. E deste modo colocam-se na actual crise exactamente na mesma posição em que, durante a crise da década de 1930, se colocavam as tendências mais conservadoras, também elas opostas ao salvamento dos bancos através de subsídios estatais. Esquerda e direita não são posições geográficas, mas políticas e ideológicas. Como devemos considerar a esquerda que adopta hoje posições que a direita conservadora defendia há oitenta anos atrás?
Vejamos a questão dos bancos e dos subsídios. O abandono do euro e a adopção do escudo, com todas as dificuldades e turbulências provocadas por esta mudança, implicaria a estatização do sistema bancário, o que obrigaria não ao fim do crédito aos bancos mas, pelo contrário, a novas injecções de crédito, só que feitas mais ocultamente do que agora.
E como a saída da zona euro e a adopção de uma moeda de pechisbeque traria condições de vida ainda piores do que as que já sofremos, provocaria uma considerável desilusão dos trabalhadores, que tinham esperado salvar-se ou pelo menos emergir e ver-se-iam mais afundados. Daqui resultaria muito provavelmente uma agudização das reivindicações e das lutas, numa situação em que os patrões e os governantes teriam ainda menos margem de manobra do que hoje. A resposta só poderia ser o agravamento da repressão e a tentativa de pôr fim às greves sob o pretexto de que precisamos de defender a economia nacional. Os mais velhos de entre nós já ouviram esta música.
Ora, como escreveu Nuno Cardoso da Silva, um comentador que neste contexto citamos por excepção, já que destoa das futilidades e dos delírios, «não precisamos efectivamente de nenhum capitalismo de Estado para resolver os problemas do capitalismo privado».
Nada disto convence os comentadores histéricos, que repetem em todos os tons Não importa o que virá depois. Mas isto significa que se derruba a actual situação sem saber em benefício de quem. O Que se lixe! tem uma função exclusiva de ocultamento político.
Os cegos e o precipício
O voluntarismo niilista implícito no Que se lixe! é a força motriz de qualquer fascismo.
Ora, os nossos comentadores histéricos buscam precisamente, nestes dias de agora, contribuir para que se junte nas ruas uma «nação em cólera». Veremos se o conseguem, se as ruas servirão para marcar as clivagens entre classes ou para as confundir na amálgama nacional, porque o fascismo surge quando aquela cólera mobiliza em conjunto toda a nação. Um comentador chegou ao ponto de afirmar que queremos que as pessoas não entrem «em cólera», sem se dar conta de que para nós o problema não está na cólera, mas na nação.
Para quê demonstrar o que os próprios comentadores afirmam? Não é só depois de um eventual abandono do euro que serão criadas condições para o aparecimento de um fascismo, mas é desde já que alguns, ou muitos, se esforçam por fazê-lo. Veja-se este comentário, que reproduzimos extensamente: «E um bom Nacionalismo deve ser agnóstico em relação à estupidez imbecilizante e divisionária do paradigma “Esquerda/Direita”. Isso só serve para dividir e não para unir. Não queremos cá marxismos, nem capitalismos, nem liberalismos. Defender os trabalhadores e empresários de igual modo, fomentando a criação de PME e diminuindo os impostos e pornográficos IRS e IRC». Mas é precisamente isto que temos dito e repetido desde o nosso artigo sobre Os perigos da «nação em cólera». Será que não dão conta do fascismo quando o têm diante dos olhos, como sucede neste comentário? E quantas e quantas pessoas dizem o mesmo todos os dias nas ruas, nos empregos, nos cafés, nos transportes públicos?
Ou será que não sabem o que é fascismo, quando sistematicamente o confundem com a repressão? Um regime não é fascista só por empregar a repressão. Senão, veja-se o exemplo da União Soviética, que nunca foi fascista mas em matéria de repressão não precisava de lições de ninguém. O fascismo caracteriza-se por mobilizar vastas massas operárias em favor de um programa nacionalista. É isso o fascismo, uma renovação nacionalista do capitalismo e das instituições conservadoras graças a um impulso vindo da rua.
Ora, estes comentadores falam muito em atacar o euro e a União Europeia e pouco ou nada em atacar o capitalismo. Mas reduzir o capitalismo, que é um sistema global de exploração, a uma das suas modalidades é a receita directa para perpetuá-lo. Nestes termos, em vez de abalarem o sistema, as lutas sociais renovam-no e reforçam-no. Tem sido esta a função do fascismo.
A economia real e os delírios nacionais
Talvez por não dominarem o «economês», nenhum dos comentadores respondeu aos nossos argumentos a respeito da transnacionalização do capital. No entanto, sem isto não tem qualquer sentido falar de nacionalismo e de internacionalismo.
Nós nunca defendemos «a unificação de Estados burgueses em super-Estados», como nos acusou um comentador que treslê. Pelo contrário, escrevemos que foi ultrapassada a época da internacionalização do capital e se desenvolveu uma época nova, em que hoje vivemos, a da transnacionalização do capital, que ultrapassa as fronteiras nacionais e lhes tira a relevância económica e que esvazia progressivamente os Estados e governos nacionais. É neste contexto que deve falar-se hoje de internacionalismo.
Há quem nos acuse de «prostração perante a grande burguesia europeia e a oligarquia financeira europeia». Mas interessam-nos sobretudo as conjunturas sociais e as potencialidades de luta. E não deixamos de analisar e de criticar o capitalismo português e as características do seu tecido empresarial. Ora, como sucede frequentemente, o anti-imperialismo destes comentadores serve para absolver os capitalismos nacionais. Aliás, alguns comentadores mais histéricos postulam a equivalência entre o internacionalismo do Passa Palalvra e o imperialismo dos Estados Unidos ou da Alemanha.
Mas aqueles que «por anticolonialismo» defendem «a saída imediata de Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha da União Europeia» será que há alguns anos atrás defenderam também que saíssem imediatamente da União Soviética a Ucrânia, a Bielo-Rússia, a Geórgia, a Arménia, o Azerbeijão, a Estónia, a Letónia, a Lituânia, o Uzbequistão, o Turquemenistão e desculpem-nos os esquecimentos? Ou será que a balcanização, que é uma catástrofe visível no Leste da Europa, se transformará numa benção a Ocidente?
Será que imaginam que, saindo da zona euro, Portugal poria em causa os centros imperialistas? Ora, a economia portuguesa representa uma parcela ínfima do Produto Interno Bruto da zona euro e não é com estas migalhas que os centros capitalistas europeus enriquecem, mas com a exploração dos seus próprios trabalhadores. É elucidativo do estado de coisas a que chegámos que seja necessário explicar aos «marxistas patrióticos» que é o aumento da produtividade — mediante a qualificação crescente da força de trabalho, a passagem a sistemas produtivos mais complexos e a intensificação dos ritmos laborais — que constitui o principal motor da acumulação ampliada do capital. Esqueceram-se da mais-valia relativa. Mas este b-a-bá tem de ser esquecido pelos defensores do nacionalismo, que vitimizam como um todo a sociedade do jardim à beira-mar e atacam como um todo a sociedade dos países mais produtivos.
Nós falamos de classes, coisa que estes comentadores não vêem quando falam só de nações. Por isso nem lhes passa pela cabeça analisar as contradições sociais nos centros mais produtivos da União Europeia e confundem os «trabalhadores do centro e norte ricos da Europa» entre o saco sem fundo dos defensores da chanceler Merkel. Um dos comentadores evocou mesmo «uma União Europeia, comandada sobretudo pelos capitalistas do Norte e fortemente apoiada pela classe trabalhadora bem instalada nesses países e que não sente a crise». Voltámos assim à oposição entre nações proletárias e nações plutocráticas, típica da panóplia de conceitos dos fascismos.
Depois acham que não temos razão para estar preocupados?
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