Por Ana Sá Lopes
publicado em 26 Ago 2013 - 05:00
publicado em 26 Ago 2013 - 05:00
O histórico do PSR afirma que a saída de Louçã foi má para o Bloco, mas a sua gestão de tendências também
Os jardins do Hospital Júlio de Matos foram o local escolhido para a entrevista com o psiquiatra João Cabral Fernandes, fundador em 1973 da LCI, Liga Comunista Internacionalista (formação política que depois daria origem ao PSR, Partido Socialista Revolucionário, que se integrou no Bloco de Esquerda). Ex-director clínico do Júlio de Matos, Cabral Fernandes é hoje um grande crítico dos partidos de esquerda - embora não se tenha passado para a direita e ainda acredite na revolução. Fiel à correlação de forças, votou no "traidor" Sócrates, para não se sentir responsável por colocar a direita no poder. A entrevista é sobre política e psiquiatria.
Como é que o fundador da LCI, que é uma coisa que as pessoas com menos de 45 anos não sabem o que foi, vê o Bloco de Esquerda que é um partido novo mas também herdeiro daquele projecto da Liga Comunista Internacionalista?
O Bloco de Esquerda seria só herdeiro parcialmente, numa tradição de uma prática revolucionária, de uma prática de ruptura social com o sistema. Mas o que eu acho - e isso pode chocar muitas pessoas, mas é a minha visão - é que depois da derrota do 25 de Novembro e do afundamento dos partidos de extrema-esquerda, as direcções de alguns partidos procuraram a unidade a todo o custo e fundaram o Bloco de Esquerda. Poderia ter representado um avanço... Mas o bloco de Esquerda é um saco de gatos. Podia não ter sido, se houvesse uma clarificação das práticas, desde que houvesse democracia interna, prática unitária na acção e nas lutas e uma atitude inteligente para os grandes partidos da esquerda, quer face ao PS quer face ao PCP.
Acha que isso nunca existiu no Bloco?
Havia muitos militantes que tinham essa perspectiva, mas ficaram defraudados porque o Bloco entrou no parlamento e não foi capaz de representar a acção social, a ligação com a acção de massas. Hoje, o Bloco é um partido que aparece às oito horas.
À hora dos telejornais?
Sim. Não tem figuras, nós não conhecemos os dirigentes em vários campos.
Acusou o Bloco de ter uma grande falta de democracia interna. De quem é a culpa disso? Porque é que isso aconteceu, na sua opinião?
Acho que tem a ver com ser difícil manter a democracia interna e os dirigentes da altura procurarem um sucesso fácil, mantendo uma concepção fácil do que é uma vanguarda política. Uma vanguarda política não pode destruir as vozes de quem quer transformar o movimento social.
Mas foi a carismática liderança de Louçã, em conjugação com Luís Fazenda, que provocou isso?
Francisco Louçã era o melhor quadro do Bloco de Esquerda e hoje está reduzido ao papel de comentador. Ele acabou com o PSR, os outros ficaram no parlamento e não vão sair de lá. Estão lá encostados como uma lapa. No último congresso, a lista B teve 23,5% e não estava presente nos órgãos dirigentes fundamentais. O Louçã era o melhor quadro político, com uma força muito grande, e teve de fazer um papel muito ingrato: o papel de um cesarista omnipresente e de um bonapartista omnipresente. Ele era o resultado vectorial de todas aquelas tendências e de todas as coisas ocultas dos partidos que estavam dentro do Bloco de Esquerda. Podemos dizer que foi um grande impulsionador e um quadro que tinha uma grande vivacidade e que mais sabia de política - o quadro político mais antigo - mas também foi em parte um destruidor porque ficou cego com a necessidade de apressar o processo de transformar o Bloco de Esquerda num partido mediático e eleitoralista. O sistema de organização tem impedido o Bloco de ser um partido de militantes. Não quero falar muito da palavra estalinismo. Mas a cultura estalinista está muito presente no Bloco.
Acha? É uma coisa muito violenta...
Depois da descida eleitoral nas eleições de 2011 houve um balanço. Eu fui assistir a uma reunião. E quando o debate se resume a cada pessoa poder falar só três minutos e à meia-noite tinha de acabar porque era esse o contrato que tinham feito com o hotel... Isto é uma rendição ao sistema burguês! Aqui, neste caso, à hotelaria portuguesa (risos). O Bloco não é um partido totalmente livre, é um partido que perdeu aquilo que nos anos 74-75 foi muito exagerada, a discussão política. Na altura discutia-se de mais, agora perdeu-se.
Portanto, acha que no Bloco de Esquerda, antes desta nova direcção, discutia o Francisco Louçã, o Luís Fazenda e o Miguel Portas quando era vivo?
Sim, fundamentalmente. E o Rosas. Acho que a concepção de democracia interna e de independência não existe. A sucessão foi cozinhada nas cúpulas! O não haver um representante da lista B na direcção quotidiana do Bloco é uma infâmia para a democracia interna. O que eu digo é que o Bloco de Esquerda quer ter protagonismo nem que seja à força. A Mariana Mortágua subiu 14 degraus na lista de deputados e foi mais ou menos "cooptada" para substituir Ana Drago.
É o equilíbrio das tendências?
É o equilíbrio das ditas tendências, que não são verdadeiramente tendências. São grupos de aparelhos, e de um aparelho mais geral...
Mas o que está a dizer é que essas tendências no Bloco nem sequer têm a ver com questões ideológicas e com a sua origem multipartidária?
O Bloco de Esquerda fez coisas muito importantes, mas no caso da sucessão e da organização deste congresso não houve discussão. E querer que o Louçã saísse da direcção? Era o melhor quadro! Isso é dramático.
Mas defende que Louçã devia ter ficado na direcção do Bloco?
Claro! Era o melhor quadro! Mesmo que eu lhe faça muitas críticas, é o melhor quadro e é um pensador. E agora está remetido ao papel de comentador.
Mas Louçã não sentiu que também estava a travar a ascensão de outros quadros? No fundo, aquilo que dizia, ele era quase o "dono" do partido...
Não é bem "dono"... Ele funcionava como o ponto vectorial de equilíbrio de todas as tendências. Louçã é um político inteligente, sagaz e o Bloco perdeu. Ele foi recuando, recuando e teve de sair... e esperava que os dirigentes da UDP fizessem o mesmo. Mas o Luís Fazenda não sai.
Um ano antes de morrer, Miguel Portas deu uma entrevista ao i onde defendeu que tinha chegado a hora dos dirigentes que fundaram o Bloco de Esquerda se retirarem de cena...
Achei uma fórmula exagerada. Eles tinham era de deixar de ser protagonistas daquele modelo de trabalho ou daquela concepção de equilíbrio de tendências, que permitisse a emergência de uma nova geração de dirigentes fruto de uma outra sensibilidade... já libertados da ganga do período revolucionário, mas que tivessem uma perspectiva revolucionária. O que é que interessa um partido fazer muitos projectos-lei no parlamento, se o parlamento está bloqueado, se nós não vivemos num Estado de direito?
Porque é que acha que nós não vivemos num Estado de direito?
Por tanta coisa. É tudo aprovado numa Assembleia da República onde os deputados fazem leis especiais para eles e diferentes para o povo. É um Estado de direito esquisito, não é? É evidente que numa sociedade em que foi apagada a possibilidade de uma discussão mais livre e em que as instituições se moldaram ao parlamento, não vejo nenhum interesse em se fazerem muitas leis que não são aprovadas. O Bloco devia-se ter dirigido mais para o movimento de massas, organizado mais iniciativas de protesto, de acção, de unidade.
Acha que o Bloco está apagado nessa área?
Está. E sobretudo está apagado numa coisa fundamental, a unidade da esquerda, a prática unitária.
Recentemente, Mário Soares promoveu uma reunião das esquerdas na Aula Magna e João Semedo, o Bloco de Esquerda, esteve presente.
Mas a prática unitária não é isso. A prática unitária não é fazer um comício onde estão umas figuras. A prática unitária é trabalhar nas diversas frentes para se chegar a compromissos ou acções - mesmo que não haja acordo completo com o PCP, com o PS, com independentes - no sentido de dizer que tem de haver uma mudança na política. Isto é que é a prática unitária. E depois o Bloco às vezes tem umas posições maximalistas. Por exemplo, os cartazes que dizem "Devolvam-nos o que nos foi roubado". Isso é uma palavra de ordem maximalista! Não se deve defender um dia de ajuste de contas porque esse ajuste de contas vai ser muito difícil! Porque a Alemanha ganhou 41 mil milhões de euros, metade do que nos foi emprestado, à custa de uma desigualdade e do funcionamento da União Europeia. Todos os países periféricos estão subordinados a uma lógica capitalista e a União Europeia está subordinada ao capital financeiro. Devemos ser contra a troika, exigir a nossa autonomia e independência, mas isso implica uma discussão ao nível da Europa, o que é difícil, porque o blairismo destruiu a social-democracia, que era parte da esquerda.
Portanto, as palavras de ordem do Bloco e do PCP são inúteis?
A posição tem de ser uma posição mais construtiva, sem ser reformista, mas uma posição que aponta para o caminho das lutas. O Bloco de Esquerda é muito filhinho ainda do PCP... acha que a aliança com o PCP para a saída da troika é fundamental. Ora, nós não temos um movimento de massas de esquerda para estar até à exaustão a apelar a isto. Tem de haver formas unitárias de trabalho e de transformação. Acho que os dirigentes do Bloco ficaram muito iludidos com as vitórias que foram tendo. Quando são aprovadas muitas leis sobre liberdades individuais - homossexualidade, droga, etc. - isso foi porque a social-democracia encontrou essa bandeira para se manter com uma certa figura de esquerda, quando já tinha capitulado pelo blairismo. Não se pode dizer, como o Bloco muitas vezes diz, que foi o partido que mais defendeu isso. Não, o PS defendeu tudo isso como também deputados de outros partidos defenderam. É preciso não ser tão triunfalista nesta questão e ser mais claro. Mas eu penso que o apagamento do Bloco poderia ser corrigido.
O que pensa concretamente da nova liderança do Bloco?
É uma liderança que perdeu força. Mas é difícil, a não ser que fossem um casal de apaixonados, sincronizarem o ritmo de sono e a vida em comum. Eu defendo a figura do secretário-geral. João Semedo é uma figura simpática e agradável, mas não tem o carácter incisivo que tinha o Louçã. Agora, Louçã também era muito acusado de ser muito demagógico e protagonizou o afastamento de muita gente - quem estava em divergência com ele, pertencia quase ao outro lado da barricada.
Portanto, na sua opinião, Louçã concentrava em si o melhor e o pior do Bloco?
Louçã era o melhor e depois, devido ao papel cesarista e de equilíbrio vectorial de todas as forças, foi entrando num jogo palaciano cor-de-rosa que teve consequências muito graves na situação em que o Bloco está agora. Qual é, efectivamente, o programa do Bloco? É um programa revolucionário? É um programa de compromisso? É um programa centrista? Como se faz a unidade da esquerda? O Partido Socialista é de esquerda, embora a sua direcção seja completamente blairista e traidora?
Mas João Semedo também diz que só fará alianças quando o Partido Socialista se chegar à esquerda...
Não é o Partido Socialista que se vai chegar à esquerda. São acções em vários domínios que irão levar que vários militantes e pessoas do Partido Socialista defendam que se tem de mudar de política.
Ainda acredita na revolução?
Acredito.
E como se faz a revolução?
Como se está a fazer no Brasil... Mas é muito complicado. A revolução árabe foi um fiasco. O que está a acontecer no Egipto é dramático. E é porque o regulador de tudo isto é o capital financeiro a nível mundial. E o capital financeiro está maduro para cair mas tem muitos anos de experiência e uma grande capacidade.
Mas não opõe a revolução ao parlamentarismo?
Não! O Bloco devia dividir-se entre uma acção parlamentar, desmascarando todos os actos e propostas, mas não meter a cabeça na areia. E ter outra parte, dirigida autonomamente, que era o movimento de massas.
Mas aí o PCP é melhor...
É melhor, mas não é mais revolucionário que o Bloco de Esquerda. Talvez tenha mais tradição. O PCP não é um partido revolucionário, é um partido de esquerda, como o Partido Socialista também é.
Mas então o que é um partido revolucionário?
É aquele que consegue as transformações sociais adequadas em determinado momento. Acabar com a desigualdade social, onde não existam privilégios e uma casta que se apropriou do poder. O que quer dizer revolução? A retomada da evolução! Esse nome que assusta tanto apenas quer dizer o retomar da evolução. Um revolucionário não é um tipo que põe bombas! É um tipo que retoma a evolução e não pode haver evolução com o sistema capitalista.
Como psiquiatra, como vê o disparo no consumo dos antidepressivos? As pessoas estão mais deprimidas agora do que antes? Inventam depressões? Ou foram os médicos que mudaram?
Uma mistura de tudo isso. Mas sabemos que há mais pessoas deprimidas. Uma pessoa que fica no desemprego, uma família em que vivem três gerações na mesma casa, são situações depressivas. Mas não existem mais doenças mentais, as doenças mentais crónicas têm a mesma percentagem. Os vários tipos de depressões é que não são todas elas situações médicas. Algumas são situações psicológicas, ou sociais ou uma falta de resiliência - há pessoas mais frágeis que podem cair numa situação dessas. Consomem-se mais antidepressivos porque muitas vezes os médicos não têm tempo e são poucos. Eu defendo uma percepção global. O pensamento vem da matéria, uma pessoa que pensa pode mais facilmente ultrapassar as suas crises.
Acha que os psiquiatras abandonaram a parte mais psicoterapeuta para se concentrarem exclusivamente na neurobiologia?
Houve uma deslocação, depende dos países. Eles deixaram de ter a formação que nós dantes tínhamos, uma formação mais humanista, mais global, psicoterapêutica e psiquiátrica. E houve também uma evolução muito importante: as neurociências desenvolveram-se de uma maneira formidável e hoje é possível curar uma depressão em dois ou três meses. Agora, tenho de tratar a depressão de forma a que possa ser capaz de reconstituir a sua mente e a sua vida para não voltar a cair passados uns tantos meses no mesmo ciclo depressivo. Nos exames onde estou, costumo perguntar sempre: "Diga-me o que é a depressão". E dos internos que vão a exame poucos respondem correctamente. Dizem que é uma doença! A depressão não é uma doença!
Não é uma doença?
Só parte da depressão é uma doença. Quem não deprime é má pessoa (risos). Há pessoas que não têm de passar pela experiência da depressão. Mas todos nós, pelo menos uma vez na vida, 30 a 40% ao longo da vida temos de deprimir. A vida é uma sucessão de ganhos e perdas. Tem de haver esse balanço. Até digo que se uma pessoa está em depressão e consegue trabalhar, aí a depressão tem um lado benfazejo. Há uma coisa que se chama a natureza humana. Vejam-se os bipolares, que são pessoas muito ricas, aliás são os dirigentes de nação.
Winston Churchill era bipolar...
Sim, o Churchill, e grandes escritores e intelectuais. A bipolaridade é um problema de desequilíbrio do humor. E esse desequilíbrio do humor vai permitir uma curiosidade e uma necessidade de afirmação maior por parte dessas pessoas. E, de facto, os antidepressivos têm hoje uma qualidade que não tinham há 20 anos, são muito melhores, têm muito menos efeitos secundários. E são os únicos medicamentos energéticos, quando uma pessoa faliu. Em determinadas personalidades, o antidepressivo é preciso. Mas se não for feito um trabalho humano, de apoio, de interacção mental com essa pessoa, ou de uma forma mais elaborada de psicoterapia ou de psicanálise... As psicanálises hoje acabaram. São muito caras, levam muito tempo.
E a psicoterapia também. Há muita gente que afirma precisar de fazer psicoterapia mas não ter dinheiro para isso.
É o que está a acontecer hoje. E a psicoterapia está praticamente remetida para os psicólogos, o que não é mau, mas tem uma desgraça: eles não têm formação médica. Podiam ter internatos, mas não têm. Nós não temos psicólogos nas equipas, ou temos muito poucos.
Mas houve mesmo essa mudança de escola de pensamento que transferiu os psiquiatras da psicoterapia para a receita de substâncias químicas?
Houve uma evolução científica e tecnológica muito grande nos medicamentos. Os primeiros medicamentos para a esquizofrenia e para a doença bipolar sedavam as pessoas e toldavam o pensamento. Nos anos 50, eram vistos como instrumentos de opressão quando eram mal utilizados. Hoje, podem ser instrumentos de liberdade quando podem conter uma pessoa e dar um sentido para a vida dessa pessoa. Agora, o trabalho tem de entrar na categoria da totalidade. A evolução da neurobiologia foi fantástica e nós não a podemos negar. Mas temos de, a par disto, desenvolver os conhecimentos psicológicos e as psicoterapias. Se fosse hoje em dia não faria psicanálise nem grupanálise durante 20 anos como eu fiz! Mas faria alguma psicanálise e recomendo aos meus internos que façam. Tratam-se as pessoas como doenças e não como seres humanos que podem ou não ter doenças. O termo perturbação mental é mais adequado do que doença. Mas a doença bipolar é mesmo uma doença. Mas uma pessoa que tem sucessivas perdas na infância, adolescência, tudo isto é muito complicado. Há uma multicausalidade - é o psíquico, é o orgânico e o social.
Em quem vai votar?
Vou votar na esquerda. Ainda não sei em quem, mas seguramente na esquerda. Mas vou-lhe falar das últimas eleições. Votei no José Sócrates.
Porquê?
Porque não podia estar de acordo que um partido, ainda que tenha cometido muitos erros, com uma direcção traidora e dominada pelas ideias blairistas, pudesse ser substituído pelos senhores que vieram a seguir, mais troikistas que a troika. O voto depende da correlação de forças entre a direita e a esquerda. As pessoas não perceberam que não se pode estar junto da direita...
Então acha que o Bloco e o PCP fizeram mal em derrubar Sócrates?
Claro! Claro! Mantinham a sua posição de princípio, mas não o derrubavam.