O jornalista norte-americano, Edward Bernays, é frequentemente descrito como o homem que inventou a propaganda moderna.
Sobrinho de Sigmund Freud, o pioneiro da psicanálise, foi Bernays que cunhou o termo "relações públicas" como um eufemismo para volteio e seus enganos. Em 1929, ele persuadiu feministas a promoverem cigarros pondo mulheres a fumar no desfile da Páscoa de Nova York – comportamento então considerado estranho. Uma feminista, Ruth Booth, declarou: "Mulheres! Acendam outra tocha da liberdade! Derrubem mais um tabu sexista!" A influência de Bernays estendeu-se muito além da publicidade. Seu maior sucesso foi seu papel em convencer o público americano a aderir ao massacre da Primeira Guerra Mundial. O segredo, segundo ele, era a "engenharia do consentimento" popular, a fim de "controlar e dirigir de acordo com a nossa vontade, sem seu conhecimento sobre o assunto". Ele descreveu isso como "o verdadeiro poder dominante em nossa sociedade" e chamou-lhe "governo invisível". Atualmente, o governo invisível nunca foi tão poderoso e tão menos compreendido. Na minha carreira como jornalista e cineasta, nunca conheci uma propaganda tão insinuante nas nossas vidas. Ela verifica-se agora e permanece incontestada. Imagine duas cidades. Ambas estão sob o cerco das forças do governo desse país. Ambas estão ocupadas por fanáticos que cometem atrocidades terríveis, tais como a decapitação de pessoas. Mas existe uma diferença fundamental. Num cerco, os soldados do governo são descritos como libertadores por repórteres ocidentais neles incorporados, que entusiasticamente relatam suas batalhas e ataques aéreos. Há primeiras páginas de jornais com fotos destes heroicos soldados a fazerem o V de vitória. Há escassa menção a baixas civis. Na segunda cidade – em outro país vizinho – quase exatamente o mesmo está a acontecer. As forças do governo sitiam uma cidade controlada pela mesma ninhada de fanáticos. A diferença é que esses fanáticos são apoiados, financiados e armados por "nós" – Estados Unidos e Grã-Bretanha. Eles ainda dispõem de um centro de mídia que é financiado pelos Estados Unidos e Grã-Bretanha. Outra diferença é que os soldados do governo que mantêm esta cidade sob cerco são considerados os maus, condenados por agredir e bombardear a cidade – o que é exatamente o que os bons soldados fazem na primeira cidade. Confuso? Na verdade não. Tal é o duplo padrão básico que é a essência da propaganda. Refiro-me, naturalmente, ao cerco atual da cidade de Mosul pelas forças do governo do Iraque, que são apoiadas pelos Estados Unidos e Grã-Bretanha e ao cerco de Alepo pelas forças do governo da Síria, apoiados pela Rússia. Um é bom; o outro é ruim. O que raramente se informa é que ambas as cidades não seriam ocupadas por fanáticos e devastada pela guerra se a Grã-Bretanha e os Estados Unidos não tivessem invadido o Iraque em 2003. Esse empreendimento criminoso foi lançado sob mentiras notavelmente semelhantes à propaganda que agora distorce nossa compreensão da guerra civil na Síria. Sem essa propaganda apresentada como notícia, o monstruoso Daesh, a Al-Qaida, a al-Nusra e o resto da gangue jihadista poderia não existir, e o povo da Síria não precisaria estar hoje a lutar pela sua vida. Alguns podem lembrar, em 2003, uma sucessão de repórteres da BBC a voltarem-se para a câmara e a dizer-nos que Blair fora "vingado" pelo que acabou por ser o crime do século. As redes de televisão norte-americanas produziram a mesma validação para George W. Bush. A Fox News evocou Henry Kissinger para difundir as falsificações de Colin Powell. No mesmo ano, logo após a invasão, filmei uma entrevista em Washington com Charles Lewis, o famoso jornalista investigativo americano. Perguntei-lhe: "O que teria acontecido se os meios de comunicação mais livres do mundo tivessem contestado seriamente o que acabou por ser propaganda bruta?" Ele respondeu que se os jornalistas tivessem feito seu trabalho, "há uma muito, muito boa probabilidade de que não teriamos ido para a guerra no Iraque". Foi uma declaração chocante, e apoiada por outros jornalistas famosos a quem coloquei a mesma pergunta – Dan Rather da CBS, David Rose do Observer e jornalistas e produtores da BBC, que preferiram o anonimato. Por outras palavras, se os jornalistas tivessem feito o seu trabalho, se tivessem contestado e investigado a propaganda ao invés de amplificá-la, centenas de milhares de homens, mulheres e crianças estariam vivas hoje, e não haveria ISIS e nem o cerco de Alepo ou Mosul. Não teria havido nenhuma atrocidade no metro de Londres em 7 de julho de 2005. Não teria havido nenhuma fuga de milhões de refugiados; não haveria acampamentos miseráveis. Quando a atrocidade terrorista de Novembro último aconteceu em Paris, o presidente François Hollande enviou imediatamente aviões para bombardear a Síria – e mais terrorismo seguiu-se, como era de prever, o resultado da linguagem bombástica de Hollande acerca de a França estar "em guerra" e não "mostrar nenhuma clemência". Que a violência estatal e violência jihadista alimentam-se mutuamente é a verdade que nenhum líder nacional tem a coragem de falar. "Quando a verdade é substituída pelo silêncio", disse o dissidente soviético Yevtushenko, "o silêncio é uma mentira." O ataque ao Iraque, o ataque à Líbia e o ataque à Síria aconteceram porque o governo de cada um desses países não era um fantoche do Ocidente. O registo de direitos humanos de um Saddam ou de um Kadafi era irrelevante. Eles não obedeceram ordens nem renunciaram ao controle dos seus países. O mesmo destino aguardava Slobodan Milosevic uma vez que ele se recusou a assinar um "acordo" que exigia a ocupação da Sérvia e sua conversão numa economia de mercado. Seu povo foi bombardeado, e ele foi processado em Haia. Independência deste tipo é intolerável. Como revelou a WikLeaks, foi apenas quando o líder sírio, Bashar al-Assad, em 2009, rejeitou um oleoduto, que atravessaria o seu país do Qatar para a Europa, é que foi atacado. A partir desse momento, a CIA planejou destruir o governo da Síria com fanáticos jihadistas – os mesmos fanáticos que atualmente dominam o povo de Mosul e do leste de Aleppo Por que isso não é notícia? O ex-funcionário da chancelaria britânica Carne Ross, que foi responsável pela manutenção de sanções contra o Iraque, disse-me: "Nós alimentávamos os jornalistas com factoides de inteligência higienizada, ou os deixávamos congelados do lado de fora. Era assim que funcionava." O cliente medieval do Ocidente, a Arábia Saudita – à qual os EUA e a Grã-Bretanha vendem milhares de milhões de dólares em armas – está atualmente destruindo o Iémen, um país tão pobre que, no melhor dos casos, metade das crianças estão desnutridas. Procure no YouTube e verá o tipo de bombas maciças – "nossas" bombas – que os sauditas usam contra aldeias miseráveis e contra casamentos e funerais. As explosões parecem pequenas bombas atômicas. Os bombardeadores na Arábia Saudita trabalham lado a lado com os oficiais britânicos. Este fato não está no noticiário da noite. A propaganda é mais eficaz quando o nosso consentimento é engendrado por gente com uma boa educação – Oxford, Cambridge, Harvard, Columbia – e com carreiras na BBC, The Guardian, The New York Times, The Washington Post. Estas organizações são conhecidos como a mídia liberal. Eles se apresentam como iluminados, tribunas progressistas do espírito moral (zeitgeist) da época. Eles são anti-racistas, pró-feministas e pró-LGBT. E eles amam a guerra. Enquanto falam em defesa do feminismo, apoiam guerras de rapina que negam os direitos de inúmeras mulheres, incluindo o direito à vida. Em 2011, a Líbia, então um estado moderno, foi destruída com o pretexto de que Muammar Kadafi estava prestes a cometer genocídio contra seu próprio povo. Essa foi uma notícia incessante; e não houve evidência. Era uma mentira. Na verdade, a Grã-Bretanha, Europa e os Estados Unidos queriam aquilo a que gostam de chamar de "mudança de regime" na Líbia, o maior produtor de petróleo da África. A influência de Kadafi no continente e, acima de tudo, a sua independência eram intoleráveis. Assim, ele foi assassinado com uma faca nas nádegas por fanáticos apoiados pelos Estados Unidos, Grã-Bretanha e França. Hillary Clinton aplaudiu sua morte horrível diante câmara, declarando: "Nós viemos, nós vimos, ele morreu!" A destruição da Líbia foi um triunfo da mídia. À medida que os tambores de guerra eram rufados, Jonathan Freedland escrevia no Guardian: "Embora os riscos sejam muito reais, a necessidade de intervenção continua a ser forte." Intervenção – é uma palavra educada, benevolente, utilizada pelo Guardian, cujo significado real, para a Líbia, foi a morte e destruição. De acordo com os seus próprios registos, a OTAN lançou 9.700 "missões de ataque" contra a Líbia, das quais mais de um terço foram destinadas a alvos civis. Elas incluíam mísseis com ogivas de urânio. Olhe para as fotografias dos escombros de Misurata e Sirte, e as valas comuns identificadas pela Cruz Vermelha. O relatório da UNICEF sobre as crianças mortas diz, "a maioria [delas] com idade inferior a dez anos". Como consequência direta, Sirte tornou-se a capital do Daesh. A Ucrânia é outro triunfo da mídia. Jornais liberais respeitáveis, como o New York Times, o Washington Post e The Guardian, e emissoras tradicionais, como a BBC, NBC, CBS, CNN têm desempenhado um papel fundamental no condicionamento seus telespectadores para aceitar uma nova e perigosa guerra fria. Todos têm deturpado os acontecimentos na Ucrânia como sendo um ato maligno da Rússia quando, na verdade, o golpe na Ucrânia em 2014 foi o trabalho dos Estados Unidos, ajudado pela Alemanha e pela OTAN. Esta inversão da realidade é tão difusa que a intimidação militar da Rússia por Washington não é notícia. Ela é ocultada por trás de uma campanha de difamação e terror da mesma espécie daquela em que cresci durante a primeira guerra fria. Mais uma vez, os Ruskies estão a vir apanhar-nos, liderado por outro Staline, a quem The Economist descreve como o diabo. A supressão da verdade sobre a Ucrânia é um dos mais completos blackouts noticiosos que posso lembrar. Os fascistas que engendraram o golpe em Kiev são da mesma cepa que apoiou a invasão nazista da União Soviética em 1941. De todos os alarmismos acerca da ascensão do fascismo anti-semita na Europa, nunca algum líder sequer menciona os fascistas na Ucrânia – exceto Vladimir Putin, mas ele não conta. Muitos na mídia ocidental têm trabalhado arduamente para apresentar a população étnica de língua russa da Ucrânia como estranha a seu próprio país, como agentes de Moscou, quase nunca como ucranianos que pretendem uma federação dentro Ucrânia e como cidadãos ucranianos resistindo a um golpe estrangeiro orquestrada contra seu governo eleito. Há quase a alegria de uma reunião de colegas entre os belicistas. Os que rufam o tambor do Washington Post a incitar à guerra com a Rússia são os mesmos editorialistas que publicaram a mentira de que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa. Para a maior parte de nós, a campanha presidencial norte-americana é um espetáculo de anormalidade da mídia, em que Donald Trump é o vilão. Mas Trump é odiado por aqueles com poder nos Estados Unidos por razões que pouco têm a ver com o seu comportamento obnóxio e suas opiniões. Para o governo invisível em Washington, o imprevisível Trump é um obstáculo para o projeto da América para o século 21. Este é manter o domínio dos Estados Unidos, subjugar a Rússia e, se possível, a China. Para os militaristas em Washington, o problema real com Trump é que, em seus momentos de lucidez, ele parece não querer uma guerra com a Rússia; ele quer dialogar com o presidente russo, não combatê-lo; ele diz que quer dialogar com o presidente da China. No primeiro debate com Hillary Clinton, Trump prometeu não ser o primeiro a introduzir armas nucleares num conflito. Ele afirmou: "Eu certamente não faria o primeiro ataque. Uma vez que a alternativa nuclear se verifica, está tudo acabado". Não era novidade. Será que ele realmente quiz dizer isso? Quem sabe? Muitas vezes ele se contradiz. Mas o que está claro é que Trump é considerado uma séria ameaça ao status quo mantido pela vasta máquina de segurança nacional que dirige os Estados Unidos, pouco importando quem está na Casa Branca. A CIA quer vê-lo derrotado. O Pentágono quer vê-lo derrotado. A mídia quer vê-loderrotado. Mesmo seu próprio partido quer vê-lo derrotado. Ele é uma ameaça para os governantes do mundo – ao contrário de Clinton, que não deixou nenhuma dúvida de que ela está preparada para ir para a guerra com armas nucleares contra a Russia e a China. Clinton tem cabedal para isso, como muitas vezes se vangloria. Na verdade, seu registro é comprovado. Como senadora, apoiou o banho de sangue no Iraque. Quando concorreu contra Obama em 2008, ameaçou "obliterar totalmente" o Irã0. Como secretária de Estado, foi conivente com a destruição de governos na Líbia e em Honduras e pôs em marcha o assédio da China. Ela já se comprometeu a apoiar um No Fly Zone na Síria – uma provocação direta para a guerra com a Rússia. Clinton pode muito bem se tornar a presidente mais perigosa dos Estados Unidos de toda a minha vida – uma distinção para a qual a concorrência é feroz. Sem um fiapo de prova, Clinton pôs-se a acusar a Rússia de apoiar Trump e de ter hackeado seus emails. Divulgados pela WikiLeaks, esses emails revelam que tudo que Clinton diz no privado, em discursos e "palestras" compradas por ricos e poderosos, é exatamente o oposto do que ela diz publicamente. Por isso é tão importante silenciar e ameaçar furiosamente Julian Assange. Como editor da WikiLeaks, Assange conhece a verdade. E deixem-me esclarecer desde já e tranquilizar os muitos que se preocupam: Assange está bem; e a WikiLeaks está operando a pleno vapor. Hoje está em curso a maior acumulação de forças americanas lideradas desde a Segunda Guerra Mundial – no Cáucaso e na Europa Oriental, na fronteira com a Rússia, na Ásia e no Pacífico, onde o alvo é a China. Tenha isso em mente quando o circo da eleição presidencial chegar ao seu final em 8 de novembro. Se o vencedor for a Clinton, um coro grego de comentadores tolos vão comemorar sua coroação como um grande passo em frente para as mulheres. Nenhum vai mencionar as vítimas de Clinton: as mulheres da Síria, as mulheres do Iraque, as mulheres da Líbia. Ninguém vai mencionar os exercícios de defesa civil que estão sendo realizados na Rússia. Ninguém vai lembrar as " tochas da liberdade" de Edward Bernay. O porta-voz de George Bush certa vez chamou a mídia de "facilitadores cúmplices". Vindo de um alto funcionário em uma administração cujas mentiras, potenciadas pela mídia, causaram aquele sofrimento, essa descrição é um aviso da história. Em 1946 o promotor do Tribunal de Nuremberg disse acerca da mídia alemã: "Antes de cada grande agressão, eles iniciaram uma campanha de imprensa calculada para enfraquecer suas vítimas e para preparar o povo alemão psicologicamente para o ataque. No sistema de propaganda, foram a imprensa diária e a rádio as armas mais importantes".
28/Outubro/2016
O original encontra-se em www.counterpunch.org/... e a tradução em choldraboldra.blogspot.pt/... (foram efetuadas pequenas alterações). Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ . |
"e como que a experiência é a madre das cousas, por ela soubemos radicalmente a verdade" (Duarte Pacheco Pereira)
A Internacional
__ dementesim
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Do rio que tudo arrasta se diz que é violento
Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.
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Quem luta pelo comunismo
Deve saber lutar e não lutar,
Dizer a verdade e não dizer a verdade,
Prestar serviços e recusar serviços,
Ter fé e não ter fé,
Expor-se ao perigo e evitá-lo,
Ser reconhecido e não ser reconhecido.
Quem luta pelo comunismo
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Só tem uma verdade:
A de lutar pelo comunismo.
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Bertold Brecht
quarta-feira, novembro 02, 2016
Por dentro do governo invisível: guerra, propaganda, Clinton & Trump
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Reflexão sobre histórias polémicas do PCUS, da Revolução de Outubro e da URSS
por Miguel Urbano Rodrigues
Li em 1961, na Guiné Conakri, a tradução francesa da História do Partido Comunista (bolchevique) da URSS, revista e aprovada em 1938 pelo Comité Central do PCUS. Em Portugal, por iniciativa do camarada Carlos Costa, a referida História foi publicada em 2010 [1] com o subtítulo Breve Curso e um prefácio, muito elogioso, de Leandro Martins, então chefe da redação do Avante!. A iniciativa gerou polémica no PCP.
[1] História do Partido Comunista (bolchevique) da URSS , Edição de Para a História do Socialismo, Portugal, Agosto de 2010, 527 páginasOLHARES INCOMPATÍVEIS SOBRE A HISTÓRIA Tenho na minha biblioteca de Gaia a citada História do Partido Comunista (bolchevique), diferentes edições da História da União Soviética, editadas em espanhol pela Editorial Progresso de Moscovo [2] , e a tradução portuguesa da História da Grande Revolução Socialista de Outubro da mesma editora [3] , editada en 1977. A História do PCUS publicada em 1938 e aprovada pelo Comité Central do Partido foi traduzida em 67 línguas e dela foram vendidos mais de 42 milhões de exemplares. Mas, após o XX Congresso, foi retirada das livrarias e bibliotecas soviéticas. Não foi sem uma sensação de mal-estar que decidi expressar a minha opinião sobre essa obra, a da Revolução de Outubro e uma das Histórias da Rússia e da URSS, a elaborada pelos historiadores A. Fadeiev, Bridsov, Chermensky, Golikov e A. Sakharov, membros da Academia das Ciências da União Soviética. Foi editada em espanhol, também pela Progresso, em 1960. Porquê o mal-estar? Por estar consciente da extrema dificuldade de estabelecer fronteiras entre o positivo e o negativo, entre a evocação da História e a deturpação da História que, por vezes no mesmo capítulo, ora coincidem ora se fundem ou cruzam em confusão labiríntica. Na História do Partido Comunista (bolchevique) os primeiros três capítulos são dedicados ao combate pela criação de um partido operário revolucionário (o futuro Partido Operário Social Democrata da Rússia - POSDR, inicialmente marxista), à luta dos bolcheviques contra os mencheviques e à primeira revolução russa (1904/1907). A narrativa é interessante, com destaque para o papel decisivo que Lenin desempenhou nessa fase histórica. Os capítulos 4, 5 e 6 incidem sobre o período que vai da reação stolypiana à Revolução de Fevereiro de 17 que derrubou a autocracia czarista. Uma informação muito rica e inédita para os leitores do Ocidente valoriza essas páginas que iluminam a ascensão e o fortalecimento contínuo do Partido bolchevique e a importância da obra teórica de Lenin como ideólogo. As Teses leninistas de Abril, que implicaram uma viragem decisiva na linha do Partido, merecem atenção especial. Ao exigir "todo o Poder aos Sovietes", Lenin sepultou a ideia da longa duração da revolução democrático-burguesa, mobilizando o Partido e os trabalhadores contra o Governo Provisório da Rússia, esboçando a estratégia da revolução proletária rumo ao socialismo. No capítulo 7 os autores da História do Partido evocam os acontecimentos que precederam a Revolução de Outubro e a preparação desta, com muitas citações de Lenin que facilitam a compreensão das lutas travadas contra o Governo de Kerenski e no próprio Soviete de Petrogrado. Mas a linguagem do livro, a partir do 4º capítulo, dedicado à reação stolypiana no período que precedeu o início da guerra de 1914/18, muda muito e distancia-se do rigor, da serenidade e isenção exigíveis a historiadores responsáveis, como são académicos soviéticos de prestígio mundial como Evgueni Tarlé. Para caracterizar o oportunismo dos mencheviques, dos economicistas, dos empiriocriticistas e denunciar e criticar os erros de Kamenev, Zinoviev, Rikov, Preobrazhensky, Trotsky e demonstrar a sua incompatibilidade com o leninismo, os autores da História do Partido Comunista (bolchevique) da URSS recorrem a uma adjetivação agressiva e insultuosa e deturpam grosseiramente a História. Repetidamente, Stalin começa a aparecer em muitas páginas, sendo-lhe atribuídas decisões e iniciativas importantes numa época em que era ainda um dirigente pouco destacado do Partido, embora próximo de Lenin. Não é verdade que Trotsky tenha aderido ao Partido para o minar por dentro, com o objetivo de o destruir. Kamenev e Zinoviev assumiram nas vésperas da insurreição de Outubro posições que levaram Lenin a qualificá-los de traidores, mas a atitude de Trotsky, que era presidente do Soviete de Petrogrado, não suscitou então qualquer crítica de Lenin. Relativamente às negociações de Brest Litovsk os autores da História do Partido Comunista deturpam também os acontecimentos. Lenin censurou Trotsky, que era o chefe da delegação soviética, por não ter cumprido as instruções para assinar a paz com os alemães, mas nunca chamou traidores a ele e a Bukharin, que assumira uma posição ultraesquerdista, nem a Radek e Piatakov. Afirmam os referidos historiadores que eles formavam um grupo anti bolchevique que travou "no seio do partido uma luta furiosa contra Lenin". É falso que planeavam "prender V.I. Lenin, J.V. Stalin e I.M. Sverdlov, assassiná-los e formar um novo governo de bukharinistas, trotskistas e sociais revolucionários de esquerda". É falso que Trotsky, tendo "como lugar tenentes na luta Kamenev, Zinoviev e Bukharin, tentava "criar ma URSS uma organização politica da nova burguesia, partido da restauração capitalista". A prova de que não tinham agido como conspiradores e traidores foi a nomeação posterior de todos eles para tarefas da maior responsabilidade, precisamente por indicação de Lenin. Trotsky foi Comissário da Defesa durante o período mais dramático da guerra civil e da intervenção militar das potências da Entente, dos EUA e do Japão; Zinoviev assumiu a presidência da III Internacional com a aprovação de Lenin; Bukharin foi chefe da redação do Pravda de l924 a 1929, com o aval de Stalin. No capítulo 9 a deturpação da História prossegue. Ainda em vida de Lenin, Trotsky, durante o debate sobre os Sindicatos e a função da NEP assumiu posições que foram duramente criticadas por Lenin, mas continuou no Politburo com a aprovação deste. Nas páginas dedicadas ao XIII Congresso do Partido, a breve referência à Carta que Lenin, já inválido, lhe dirigiu a 24 de dezembro de 1922, meses antes de sofrer o último e devastador derrame cerebral, omite o conteúdo e significado desse documento fundamental. Os autores da História afirmam que "Nos acordos tomados pelo XIII Congresso foram levadas em conta todas as indicações feitas por Lenin nos seus últimos artigos e cartas". Trata-se de uma indesculpável inverdade. A Carta de Lenin e a adenda do dia 4 de Janeiro de 1923 foram lidas a muitos delegados mas não publicadas. Somente foram publicamente divulgadas na URSS em 1956. Porquê? Nessa Carta Lenin transmitia ao Congresso a sua opinião sobre os mais destacados membros do Comité Central, cuja ampliação ele propunha. A CARTA DE LENIN AO XIII CONGRESSO Pela sua importância transcrevo a seguir excertos da extensa carta de Lenin ao XIII Congresso na qual chamava a atenção para o grave perigo que ameaçava o Partido se não fossem introduzidas alterações na sua estrutura de direção: "O camarada Stalin, tendo chegado a secretário-geral, tem concentrado nas suas mãos um enorme poder, e não estou seguro de que o utilizará sempre com suficiente prudência. Por outro lado, o camarada Trotsky, como já demonstrou a sua luta contra o CC devido ao problema do Comissariado do Povo para as Vias de Comunicação, não se destacou apenas pela sua grande capacidade. Como pessoa, embora seja o homem mais dotado do atual CC, tem demasiada confiança em si mesmo e é excessivamente atraído pelas facetas puramente administrativas das coisas". Esboçava depois em poucas linhas os perfis de Kamenev, Zinoviev, Piatakov, e Tomsky que eram então, com Bukharin, Trotsky, Stalin e ele, membros do Politburo. A Bukharin apontava as fragilidades, mas elogiava-o também muito. Sobre Stalin advertia nessa adenda: "É demasiado brutal e esse defeito, perfeitamente tolerável nas relações entre nós, comunistas, não o é nas funções de secretário-geral. Proponho portanto aos camaradas que estudem uma forma de o transferir e nomear para esse lugar uma outra pessoa que somente tenha em todas as coisas uma única vantagem, a de ser mais tolerante, mais leal, mais educado, e mais atento para com os camaradas, de temperamento menos caprichoso, etc. Essas características podem parecer apenas pormenores, mas pelo que disse antes das relações entre Stalin e Trotsky, não são ínfimos pormenores mas pormenores que podem assumir uma importância decisiva". Contrariando especulações frequentes em historiadores do Ocidente, a hipótese de Trotsky ser nomeado secretário-geral é absurda. A velha guarda do Partido nunca o aceitaria. Há leves discrepâncias entre as traduções em inglês, francês, português e espanhol da Carta de Lenin ao Congresso e da adenda posterior. Mas são irrelevantes. A EPOPEIA DA RECONSTRUÇÃO DA RUSSIA E DA INDUSTRIALIZAÇÃO O capítulo 10 é o melhor do livro. A Rússia saíra arruinada da guerra mundial, da civil e da agressão das potências da Entente. Dezenas de cidades e centenas de aldeias tinham sido destruídas. A produção na agricultura e na indústria caíra para níveis muito inferiores aos de 1913. Durante a catastrófica seca de1921/22 milhões de pessoas morreram de fome. O governo soviético enfrentou tremendos desafios. As fábricas existentes eram obsoletas. Transcrevo da História do Partido: "Era necessário construir toda uma serie de setores industriais desconhecidos na Rússia czarista; construir novas fábricas de máquinas e ferramentas, de automóveis, de produtos químicos e metalúrgicos; organizar uma produção própria de motores e de materiais para a instalação de centrais elétricas; aumentar a extração de metais e carvão, pois assim o exigia a causa do triunfo do socialismo na URSS. Era necessário criar uma nova indústria de guerra, construir novas fábricas de artilharia, de munições, de aviões, de tanques e de metralhadoras, porque assim o exigiam os interesses de defesa da URSS nas condições do cerco imperialista. Era necessário construir fábricas de tratores, fábricas de máquinas agrícolas modernas para abastecer a agricultura, para dar a milhões de pequenos camponeses individuais a possibilidade de passarem à grande produção kolcosiana, porque assim o exigiam os interesses do triunfo do socialismo no campo". Essas tarefas gigantescas exigiam milhares de milhões de rublos. Ora os cofres do Tesouro estavam vazios. Como o Poder soviético havia anulado todas as dívidas a países capitalistas contraídas pela autocracia czarista, o crédito estrangeiro era uma impossibilidade absoluta. Os excedentes da agricultura eram a única fonte a que o Poder soviético podia recorrer. Mas para os obter era indispensável que a agricultura estivesse em condições de os produzir. Um duplo desafio se colocava: empreender a coletivização das terras e modernizar em tempo mínimo a agricultura, dotando os kolkhoses e os sovkhoses (quintas do Estado) de meios técnicos adequados. O Poder Soviético, contra as previsões de Paris, Londres e Washington, que consideravam impossível a sua sobrevivência, ganhou essa batalha épica. Ela coincidiu com intensas lutas internas no Partido (Trotsky foi expulso em 1927 e deportado para o Cazaquistão, Kamenev e Zinoviev também foram expulsos, embora tenham sido posteriormente readmitidos) e exigiu a destruição dos kulaks que tinham enriquecido enormemente durante a NEP. Não há precedentes na História da Humanidade para transformações tão profundas e rápidas como as que então ocorreram na URSS. Em 1926/27 foram investidos na indústria mil milhões de rublos, três anos depois 5 mil milhões. Nesse breve período foram construídas a Central Elétrica do Dnieper, o caminho-de-ferro que ligou o Turquestão à Sibéria, a gigantesca fábrica de tratores de Stalinegrado, a fábrica de automóveis AMO. Em 1928 a superfície dos kolkhoses era de 1 390 000 hectares; em 1929 ultrapassava 4 262 080 hectares e em 1930 15 milhões de hectares. No triénio 1930/33 a indústria cresceu o dobro. Esses êxitos foram porem manchados por graves desvios dos princípios e valores leninistas. Na coletivização das terras não foram apenas os kulaks o alvo da repressão. Ela atingiu também e brutalmente, milhões de pequenos camponeses que resistiram à integração nos kolkhoses. Stalin criticou os "excessos esquerdistas" de quadros do Partido num artigo em que denunciou os "graves erros daqueles que se tinham desviado da linha do Partido" através de medidas de coação administrativa". São obviamente fantasistas as estatísticas forjadas no Ocidente segundo as quais dezenas de milhões de camponeses russos e ucranianos foram mortos no processo de coletivização. Mas é inegável que cabem a Stalin grandes responsabilidades por crimes cometidos nesse período. A História do Partido Comunista (bolchevique) é omissa a esse respeito. As ideias de Lenin sobre a coletivização eram incompatíveis com a política de Stalin para a agricultura e com os métodos a que recorreu num contexto de exacerbada luta dentro do Comité Central. Mas, a minha discordância frontal da estratégia do secretário-geral do PCUS, já investido do enorme poder que Lenin temia e denunciou, não me impede de reconhecer que ele foi um revolucionário excecionalmente dotado que realizou em menos de uma década uma obra colossal. Distancio-me totalmente dos elogios insistentes e ditirâmbicos a Stalin, mas registo que, terminado com êxito antes do prazo o I Plano Quinquenal, a Rússia se transformara de país agrário atrasado, com estruturas medievais, num grande país industrial. Um país em que quase 75% da população adulta era analfabeta tornou-se um país instruído e culto com uma rede impressionante de escolas superiores, secundárias e básicas em que eram ensinadas as línguas de dezenas de nacionalidades que conviviam no espaço soviético do Báltico e do Mar Negro ao Pacífico; o primeiro país do mundo em que o Estado garantia a saúde a educação gratuita a todos os cidadãos. CONCLUSÕES No capítulo das Conclusões os autores da História do Partido (bolchevique) tentam apresentar o regime soviético no final dos anos 30 como a concretização do leninismo. Stalin seria o seu intérprete fiel. O andamento da História demonstrou a falsidade dessa aspiração. Já na época, o culto da personalidade de Stalin era incompatível com o projeto de Lenin. Somente em 1956 no XX Congresso do PCUS foi levantado o tema. Khrushchov, que nunca havia dirigido a mais leve critica ao secretário-geral, esboçou dele um perfil medonho. Posteriormente soube-se que o famoso Relatório ao Congresso estava semeado de informações falsas. Mas o culto da personalidade de Stalin, por ele estimulado, foi uma realidade. A chamada desestalinização não pode esconder que a chegada ao poder de Khrushchov assinalou o início da política revisionista que conduziu à destruição da URSS. Quem enterrou o Socialismo na União Soviética foi Gorbatchov, mas quem abriu a cova foi Khrushchov. SOBRE A HISTÓRIA DA GRANDE REVOLUÇÃO SOCIALISTA DE OUTUBRO A versão portuguesa, publicada em 1977 pela Progresso foi preparada por um grupo de académicos, mas a editora soviética não cita os seus nomes. Pelo estilo, pela linguagem e pelas fontes consultadas (que ocupam 71 páginas no índice) é uma obra muito diferente da História do Partido Comunista (bolchevique) de 1938. As primeiras referências a divergências na fração bolchevique do POSDR aparecem somente nas páginas 152 e 163. Os autores sublinham que Trotsky, Kamenev e Zinoviev não acreditavam na "vitória da revolução socialista na Rússia", Os dois últimos denunciaram mesmo num artigo a preparação da insurreição do 7 de novembro (25 de Outubro no calendário Juliano, ainda vigente) o que levou Lenin a acusá-los de "traidores". A III Parte da História em apreço é dedicada à Edificação do Estado Soviético e a Transformações Revolucionárias no País. Nas 200 páginas que ocupa são frequentes as críticas a Kamenev e Zinoviev e escassas as referencias a Stalin e Trotsky. As críticas a Trotsky surgem a propósito das posições contraditórias que assumiu como chefe da delegação soviética nas negociações de paz de Brest Litovsk com os alemães e os austríacos. Mas a linguagem dessas críticas não é agressiva. Os autores escrevem que "Tal como os comunistas "de esquerda" (então liderados por Bukharin), Trotsky não acreditava na possibilidade de conservar o Poder Soviético sem o apoio das revoluções nos países da Europa ocidental. Lenin tinha dado instruções para assinar o tratado de paz se os alemães apresentassem um ultimato". E Trotsky, como chefe da delegação, ignorou as indicações de Lenin, refugiando-se na fórmula absurda "nem paz nem guerra!" Mas quando os alemães retomaram a ofensiva a 18 de Fevereiro, Trotsky, na reunião de emergência do Comité Central, votou com Lenin pela assinatura imediata do tratado imposto pelos alemães, o que se fez a 3 de Março. Os autores não referem sequer a expulsão de Trotsky do Partido em 1927 e a sua deportação para a Ásia Central. Esse grupo de historiadores são obviamente seguidores disciplinados da linha revisionista adotada pelo PCUS após o XX Congresso. E refletem na sua História um tipo de sectarismo tão condenável como o dos redatores da História do Partido Comunista (bolchevique). A escassez de referências a Trotsky não se justifica. Se é falso que ele tenha sido o cérebro de um plano tenebroso que visaria desmembrar a URSS, entregando o Extremo Oriente aos japoneses e a Ucrânia a Hitler, é indesmentível que o fundador da IV Internacional conspirou permanentemente no exílio contra a União Soviética. UMA HISTÓRIA DA URSS TAMBÉM POLÉMICA A História da URSS preparada pelos cinco membros da Academia das Ciências citados no início deste artigo é também uma obra polémica na qual a deturpação dos acontecimentos históricos reflete o espirito do revisionismo khrushchoviano. É um manual pouco ambicioso destinado à juventude. O título é aliás incorreto porque os autores tentam condensar em quatrocentas e poucas páginas a história dos povos que desde o paleolítico se instalaram ao longo dos séculos no espaço da futura União Soviética. O Capítulo I, de Bridsov e A. Sakharov, é dedicado às comunidades primitivas e ao período da escravidão. No Capítulo II, de Sakharov, o tema é o feudalismo e abrange a fundação do Estado Russo, as invasões mongóis, a desintegração da Horda de Ouro, e finda com o desenvolvimento na Rússia das relações capitalistas. A perspetival marxista não é facilmente identificável nessas páginas que contêm informações muito interessantes, ausentes nos trabalhos de historiadores ocidentais sobre esses períodos. O nome de Stalin aparece pela primeira vez na página 141, incluído numa lista de bolcheviques que lutavam contra os mencheviques. Kamenev é citado na página 202 como líder dos "oportunistas de direita". Bukharin e Preobrazhensky na página 206 como "capituladores". Trotsky é criticado (pág. 212) por "ter violado as instruções do CC do Partido e do governo soviético, negando-se a assinar as condições de paz". A Stalin é atribuído, com Vorochilov, o êxito da vitória sobre Krasnov (pág. 231) em Tsaristsin (futura Stalinegrado). O trotskismo volta a ser citado criticamente na pág. 258. Bukharin e Rykov são qualificados de "grupo anti partido de oportunistas" (pág. 261) Nas páginas dedicadas à coletivização da agricultura a violação dos princípios do Partido é atribuída a funcionários e aos sovietes locais e valorizada como importante a crítica de Stalin a esses desvios. Mas não há referências aos crimes cometidos e à deportarão maciça de camponeses. O Historiador não alude sequer aos processos dos anos 30 que findaram com os fuzilamentos de Kamenev, Zinoviev, Rakovsky, Bukharin, Preobrazhensky e outros velhos bolcheviques. As primeiras referências ao culto da personalidade de Stalin aparecem na página 281. O autor do capítulo afirma que "a idolatria a Stalin infligiu graves danos ao Partido Comunista e à sociedade soviética" e sublinha que os êxitos obtidos pelo Partido e as massas populares foram injustamente atribuídos a Stalin. No capítulo dedicado à II Guerra Mundial salienta-se que Stalin "assumiu a direção militar, económica e politica dom país, concentrando nas suas mãos a plenitude do Poder do Estado" (pág. 287). No Capítulo IV, o académico F. Golikov dedica largo espaço (página 312 e seguintes) ao XX Congresso, informando que nele foi discutido o relatório do primeiro secretário, Khrushchov, sublinhando que "a questão de superar o culto da personalidade de Stalin e as suas consequências" mereceu especial atenção. "O Congresso – escreve Golikov – revelou audaz e sinceramente as faltas e as deficiências no trabalho, resultantes da idolatria a Stalin, sobretudo nos últimos anos da sua vida e atividade. Alheio ao espirito do marxismo-leninismo e à natureza do regime socialista da sociedade, a androlatria travou o desenvolvimento da democracia soviética e impediu o avanço da União Soviética para o comunismo. Mas, ao criticar os "aspetos erróneos da atividade de Stalin" a nova direção do Partido afirma que "como fiel marxista-leninista e firme revolucionário Stalin ocupará o seu devido lugar na História". Na sessão plenária do CC de junho de 1957 salienta-se que "foi derrotado e desmascarado o grupo anti partido integrado por Malenkov, Kaganovitch, Molotov, Bulganin e Shepilov". Seguem-se páginas apologéticas dos extraordinários êxitos que o PCUS sob a direção de Khrushchov estaria alcançando e que permitiriam à URSS "ocupar nos próximos 15 anos o primeiro lugar no mundo tanto quanto ao volume global da produção como à produção per capita. No país será criada a base material e técnica do comunismo". Para mal da humanidade, essa previsão otimista foi desmentida pela História. Pelo estilo e linguagem, no Ensaio em apreço transparece com clareza a mentalidade revisionista que empurrou a URSS para a sua desagregação e a reimplantação na Rússia do capitalismo. É um trabalho que não contribuiu para o prestígio da historiografia soviética. Transcorridas décadas, é minha convicção firme que a História do Partido Comunista (bolchevique) de 1938, a História da Grande Revolução de Outubro e as diferentes Histórias da URSS editadas nos anos 70 deturparam todas, com objetivos opostos, a História real de acontecimentos que deixaram marcas inapagáveis no caminhar da humanidade. É útil recordar que a grande maioria dos historiadores ocidentais, epígonos do capitalismo, longe de contribuírem para iluminar a história real da União Soviética, a deturpam com perversidade para demonizar o marxismo e Lenin. Em vésperas das comemorações do centenário da Revolução de Outubro, sinto a necessidade de afirmar que, não obstante as graves deformações que desnaturaram o projeto de Lenin, o desaparecimento da URSS configurou uma tragédia para a humanidade. A vitória da Revolução Socialista foi o maior acontecimento da História e a sua herança confirma que foi a experiência mais justa e ambiciosa de libertação do homem da sua exploração milenária. [2] História da Grande Revolução Socialista de Outubro, Edições Progresso, Moscovo, 1977, 676 páginas [3] Historia de la URSS (Ensayo), publicada em 1960 pelas Edições Progresso, de Moscovo, 422 páginas Serpa e Vila Nova de Gaia, Setembro e Outubro de 2016 O original encontra-se em www.odiario.info/reflexao-sobre-historias-polemicas-do-pcus/ Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ . |
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domingo, outubro 23, 2016
a crise da social-democracia
O Partido Socialista, naquela ânsia do nacional porreirismo que o caracteriza, dissolveu-se qual bloco de gelo em água quente. Prefere agradar (ou tentar agradar) a seguir um rumo.
Rumo que não tem, nunca teve, em boa verdade e nunca terá, pois não pode um partido dito socialista “jogar” com o capitalismo como estes Partidos Socialistas europeus despudoradamente fazem.
Entre o meter na gaveta as poucas linhas programáticas que os caracterizavam e lhe davam um “esqueleto” e o “repintar” da bandeira, substituindo a mão fechada pela rosa, os Partidos socialistas vão-se prostituindo ao sabor das correntes neo-liberais, confundindo-se com eles.
O pior inimigo destes Partidos Socialistas, são os próprios ditos socialistas, a maior parte dos quais anda travestido de neo liberal e com estes jogam o jogo da finança. O discurso é o mesmo, exactamente o mesmo. A única diferença é a pouca vergonha destes “socialistas” que se continuam a afirmar como tal. Os neo-liberais, são muito mais honestos, politicamente, que os socialistas.
Muito antes de Hollande meter o socialismo na gaveta, já Mário Soares havia feito o mesmo perante o seu bem amado Carlucci.
Pessoalmente não tenho dúvidas que o grande objectivo de toda a luta do Partido Socialista foi contra os comunistas, até os destruir ou reduzir à expressão mais ínfima. Esqueceram-se esses democratas de meia tigela que a democracia assenta na convivência política. Fez o jogo da direita e extrema direita de quem agora tanto se queixam.
O Socialismo, tal como qualquer Partido Socialista o definiu antes, não existe mais. Os “submarinos” tomaram conta dele, prostituiram-no com a canção dos “comedores de crianças ao pequeno almoço” e este povinho, na sua maioria inculto (excepto na bola) foi na canção.
Os Partidos Socialistas têm hoje aquilo que merecem. São governados por interesses e por gente sem coluna vertebral.
A seguir a Hollande virá um Emmanuel Macron (veja-se o percurso dele para se perceber como os neo-liberais chegam a socialistas) mas como se diz na política “a merda é sempre a mesma, as moscas é que mudam”
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Um presidente mediocre
22/10/2016 por Autor Convidado
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terça-feira, maio 10, 2016
Utilidade, privilégio e abuso dos colégios
OPINIÃO
RUI J. BAPTISTA
Impus a mim mesmo uma quarta vinda a terreiro em defesa da escola pública.
"Toda a instituição começa por três estágios: utilidade, privilégio e abuso”.
François Chateaubriand
Numa altura em que surgem notícias em catadupa nos media e manifestações na via pública de professores e alunos unidos (para não serem jamais vencidos?) em defesa dos colégios com contrato de associação com o Estado, de estranhar seria o meu silêncio, depois de ter escrito neste jornal três artigos de opinião sobre esta controvérsia que sob a capa de interesse público oculta, inevitavelmente, interesses de negócios privados. Passo a enumerar esses artigos: “Ensinos oficial, convencionado e privado” (13/11/2013), “Suspeitas sobre os colégios do grupo de ensino GPS” (11/02/2014) e “A polémica sobre escolas privadas com contrato de associação” (13/10/2015).
Entretanto, numa longa e envolvente polémica que põe de parte o papel dos colégios privados tout court, continuam a pronunciar-se várias entidades que, como diria Aquilino Ribeiro, trazem às costas a mochila do regimento. E neste dize- tu, direi- eu, vai-se esquecendo o verdadeiro papel do ensino privado com contrato de associação porque descontextualizado da sua finalidade de alternativa ao ensino público inexistente em determinadas zonas do país. Nunca em satisfação de famílias que gostam de blasonar, sem qualquer dispêndio para os seus mais ou menos rendosos proventos, o facto de terem os filhos a estudar em colégios à custa dos cofres públicos, o dinheiro dos impostos de todos nós. E se o riso é a forma mais corrosiva de crítica, como reconheceu o próprio Eça, ocorre-me a expressão humorística que circulou em Portugal de uma personagem da televisão brasileira: “Estão mexendo no meu bolso!”
Em plena época de grave crise económica, prover uma situação de favor para o ensino privado, pago integralmente pelo erário público, é uma forma de transformar o ensino oficial num barco em perigo de adernar sob o falacioso argumento de uma melhor qualidade do ensino convencionado sem ter em conta que este tipo de magistério tem a faculdade de selecionar os seus alunos e, em acrescento de benefícios, os pais, porque desonerados de mensalidades pesadas, poderem, ipso facto, pagarem aos filhos explicações a várias disciplinas do currículo escolar. Ou seja, só os mais ingénuos, ou pessoas com vendas nos olhos, acreditarão que os colégios com contratos de associação são frequentados, na sua maioria, por alunos em que o respectivo nível socio-económico é idêntico à generalidade dos alunos do ensino oficial, estando ambos, consequentemente, em igualdades circunstanciais no que respeita à influência de um factor decisivo para a melhoria do respectivo rendimento escolar, como o comprovam diversos estudos publicados recentemente.
Como escreveu Alfred Montapert, “tudo o que excede o limite da moderação tem uma base instável”. E não excederá o limite da moderação evocar o desemprego dos professores dos colégios convencionados sem ter em conta igual situação de desemprego para os docentes das escolas oficiais transformadas em verdadeiros elefantes brancos com instalações faraónicas (carenciadas de alunos e,ipso facto, com professores com horário zero) construídas no consulado de José Sócrates, enquanto antigos e prestigiados liceus e escolas técnicas, crismadas hoje de escolas do ensino secundário, se encontram a cair aos bocados como, por exemplo, a Escola Secundária de Camões, em Lisboa, em que chega a chover dentro das próprias instalações.
E porque a lembrança dos homens é, por vezes, desmemoriada, recorde-se o apoio “sem rei nem roque” aos colégios convencionados situação que motivou uma corajosa reportagem na TVI da autoria da jornalista Ana Leal e que mereceu deste órgão de informação escrita a notícia: “A Polícia Judiciária (PJ) realizou esta terça-feira uma operação que envolveu mais de cem inspectores que visou o grupo de ensino GPS (Gestão e Participações Sociais), detentor de 26 colégios, entre os quais 14 que recebem apoio do Ministério da Educação. Em investigação, apurou o PÚBLICO estão crimes de corrupção e branqueamento de capitais” (PUBLICO, 22/01/2014).
Independentemente do que venha a ser apurado ou se tenha, porventura, já apurado ou mesmo não apurado, como diz o povo que paga os seus impostos e a quem, como tal, deve ser dada conta da respectiva aplicação, não há almoços grátis. Mas há, isso sim, escandalosas benesses pagas com o sacrifício impiedoso de uma sacrificada classe média entalada entre pobres e ricos diferentes de todos nós porque pagam menos impostos, como sentenciou Peter Vries.
Perante as lamúrias dos colégios com contrato de associação que se dizem em risco de sobrevivência (de que resguardo, tão-só, a validade do argumento que as regras do jogo não devem ser mudadas a meio do respectivo decurso), impus a mim mesmo uma quarta vinda a terreiro em defesa de uma escola pública que formou, e deve continuar a formar, personagens que se têm distinguido no panorama da vida política, social, económica, científica e cultural da vida portuguesa.
A exemplo da académica Maria Filomena Mónica, todos nós, em dever de cidadania, não podemos, deixar, outrossim, de nos interrogar: “Deve ou não o Ministério da Educação subsidiar as escolas privadas que são frequentadas por meninos ricos, cujos pais têm dinheiro? Para que é que o Estado está a subsidiar?” (“Jornal i “, 29/08/2015).
As soluções inadiáveis para as interrogações atrás levantadas cabem por inteiro, e sem tibiezas, aos poderes políticos sem o recurso habitual a que se mude alguma coisa para que tudo fique na mesma, como o acontecido na solução encontrada por uma personagem de Giuseppe di Lampedusa no livro O Leopardo.
Ex-docente do ensino secundário e universitário e co-autor do blogue De Rerum Natura
https://www.publico.pt/sociedade/noticia/utilidade-privilegio-e-abuso-dos-colegios-1731428?page=-1
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Rui J. Baptista
Análise Uma certa liberdade de escolha
Isaura Reis, professora no Agrupamento de Escolas Gardunha e Xisto, Fundão
O novo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo inaugura de facto um tempo novo na concretização de uma agenda de mercantilização da educação…
O Conselho de Ministros de 5 de Setembro de 2013 aprovou o novo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo de nível não superior, introduzindo alterações significativas em matéria dos princípios de apoio financeiro do Estado no acesso ao sistema de ensino privado. Para além dos já existentes contratos de associação, a nova legislação introduz, nomeadamente, os contratos simples de apoio à família, cuja “novidade” reside no facto de o Estado universalizar o apoio direto a todos os alunos que venham a optar pela frequência de uma escola privada.
Tal como refere o governo, esta medida deve ser entendida como uma “modalidade de opção educativa” e inscreve-se no objetivo estratégico para a educação de “desenvolver progressivamente iniciativas de liberdade de escolha para as famílias em relação à oferta disponível, considerando os estabelecimentos de ensino público, particular e cooperativo” (Programa do XIX Governo Constitucional). O que nas palavras do ministro Nuno Crato “abre um caminho mais direto a uma liberdade de escolha e a uma concorrência entre escolas e entre sistemas” (Público.pt, 05-09-2013).
Razões predominantemente ideológicas
As reações a esta medida foram imediatas. Comunicação social, redes sociais, confederações patronais e sindicais, professores e investigadores dão voz a posições dissonantes e apresentam narrativas que põem a debate duas posições contrárias em matéria do papel do Estado na efetivação do direito à educação. Se para uns o Estado deve garantir um ensino de qualidade por via, essencialmente, da escola pública, para outros a qualidade e a eficiência dos sistemas educativos só serão alcançadas por via da introdução de mecanismos de mercado na educação, nomeadamente através da liberdade de escolha.
Em Portugal a escolarização fez-se essencialmente por via da escola pública. Mas, se a este facto histórico se juntar a circunstância de a sua expansão, no sentido de uma escola de massas, ter sido igualmente consubstanciada na valorização da educação como bem público, pode entender-se que, no texto constitucional, e após sete revisões, o n.º 1 do artigo 75º mantenha a sua redação originária : “O Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população”.
É certo que o texto, aprovado em 1976, atribuía um caráter supletivo ao ensino privado e que após a 1ª revisão (Lei Constitucional n.º1/82, de 30 de Setembro) a nova redação do n.º 2 do referido artigo passou a estabelecer que “ O Estado reconhece e fiscaliza o ensino particular e cooperativo”. Não sendo de importância menor tal alteração, somos levados a partilhar a ideia de que as razões subjacentes a esta mudança foram predominantemente ideológicas.
Face a esta centralidade da escola pública, o ensino privado configura-se como um setor desvitalizado simbolicamente e situado num espaço periférico. Tem uma fraca representatividade no ensino não superior ; genericamente, as suas escolas não se afastam do figurino organizacional das públicas e os seus professores têm uma forte dependência dos parâmetros da educação pública (Estevão, 1996).
É um facto que o ensino privado teve e tem, essencialmente, uma natureza supletiva, cuja função social foi de “válvula de escape” das pressões exercidas sobre o sistema público. Durante o período de expansão da escola de massas e face “à falta de escolas e progressiva degradação das existentes”, é o ensino privado que “penetra no interior do país”, resolvendo “parte do problema” e poupando “preocupações e dinheiro ao Estado” (Cotovio, 2004, p. 391). Foi entre 1950 e 1970 que se deu um crescimento notável do ensino privado, fundamentalmente devido à escassez de oferta de ensino liceal público (Grácio, 1998). Porém, após o 25 de Abril de 1974 o Estado responde positivamente à procura até aí não satisfeita, remetendo, até hoje, o ensino privado a uma pequena expressão que tende a ocupar, preferencialmente, a fileira dos cursos profissionais[1].
Os discursos religioso e económico
De acordo com o enquadramento legislativo português (Lei n.º 49/2005, de 30 de agosto - Lei de Bases do Sistema Educativo - LBSE) o Estado assume a conceção, planeamento e definição da rede escolar, por forma a garantir a unidade e adequação do sistema educativo aos objetivos nacionais e para que a dimensão, densidade e natureza da rede assegure a igualdade de oportunidades de educação e ensino para todas as crianças e jovens.
Isto é : estão nas mãos do Estado as competências normativas e de definição dos critérios gerais de implementação da rede escolar e das tipologias das escolas, bem como da definição de princípios de afetação dos alunos às respetivas escolas, com algumas diferenças entre o ensino básico e secundário. No ensino básico, a preferência é dada à proximidade da área de residência, da atividade profissional dos pais ou, ainda, ao percurso sequencial dos alunos. No secundário, existe uma certa flexibilidade na aplicação deste critério, uma vez que a afetação pode ser feita em função da existência do curso, opções ou especificações pretendidas pelas famílias.
Pese embora esta centralização da oferta escolar e dado que o ensino privado é reconhecido em Portugal, o quadro legal (LBSE) estabelece a possibilidade da sua articulação com a rede escolar e até o seu financiamento. Para tal importa que as escolas privadas cumpram critérios e se enquadrem numa perspetiva de “racionalização de meios, de aproveitamento de recursos e de garantia de qualidade”. Se assim for, e se houver um “desempenho efetivo de uma função de interesse público”, o Estado poderá apoiar financeiramente o ensino privado português [2].
Historicamente a liberdade de escolha tem sido objeto de dois tipos de discurso : um religioso e outro económico. O discurso religioso é marcado pela ideia que a liberdade de educação implica devolver aos pais a responsabilidade de decidir sobre os valores e a cultura curricular a ser seguida na escolarização dos seus filhos, envolvendo o financiamento público do ensino privado confessional. O discurso económico é sustentado na ideia de que a livre escolha é o mecanismo privilegiado de criação de um mercado educativo, regulado segundo uma ótica instrumental, em que a procura escolar é financiada pela administração pública, introduzindo uma diversificação da oferta de acordo com um modelo concorrencial (Barroso, 2003).
Independentemente da motivação e da diversidade de figurinos existentes em vários países, a carta escolar e a liberdade de escolha traduzem um determinado modo de regulação dos fluxos escolares. Se num período de expansão da escolarização, o Estado fez uso da carta escolar para garantir a consolidação da escola de massas, impondo uma regulação pela oferta, já num período de retração, o Estado vê-se confrontado com estratégias deliberadas, formais e informais, de regulação pelo lado da procura.
A realidade do mundo anglo-saxónico mostra que a liberdade de escolha tem sido um mecanismo deliberado de mercantilização e privatização da educação. Mas, até agora em Portugal a escolha da escola não tem sido promovida, mas antes tolerada. Isto é, existem sinais de uma passagem de uma regulação pelo lado da oferta a uma regulação pelo lado da procura escolar.
Uma “concorrência opaca e discreta”
Esta mudança é, fundamentalmente, devida à existência de processos informais de escolha parental que têm em vista a escolha da escola e dos percursos escolares percecionados como aqueles que possibilitam um maior sucesso educativo e uma mais efetiva mobilidade social (Barroso e Viseu, 2003).
Ao contrário do que se tem verificado noutros países, a situação portuguesa não se tem caraterizado por uma verdadeira lógica de mercado, no sentido da disputa de uma clientela, mas antes por uma “concorrência opaca e discreta”, em que a escolha apresenta contornos subtis, muitas vezes resultante da imagem e da reputação projetadas pelas escolas (idem).
Mas o facto que agora importa assinalar é que com a aprovação do novo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo se inaugura um tempo novo na educação em Portugal. Um tempo em que a liberdade de escolha é a opção deliberada do Estado para a regulação dos fluxos escolares. O articulado da lei ilustra bem que estamos em presença de uma mudança radical do papel do Estado : não só o ensino privado passa a ser considerado em pé de igualdade com o ensino público, como os apoios financeiros passam a abranger não só os alunos carenciados, como todos os alunos do ensino básico e secundário. Em suma : o novo EEPC é mais uma decisão governativa cujo contexto e conteúdo tem implicações significativas na configuração institucional da educação em Portugal.
Reconhecer o ensino privado português não pode significar o seu estatuto de igualdade com o ensino público. Tal entendimento contraria o disposto na Constituição da República e na LBSE, remetendo para um entendimento da educação não como um bem público e um direito do cidadão, mas como um bem privado e uma questão de escolha do consumidor.
Não existe evidência empírica que o percurso histórico, a natureza e o perfil atual do ensino privado, não superior, em Portugal seja de “excelência” comparativamente maior ao do público. De facto, o privado não oferece uma alternativa modernizadora da escola, nem a educação e o ensino têm sido atrativos para o capital privado. A expressão da escola privada tem um suporte financeiro de dinheiros públicos significativos que garantem, em boa medida, a sua existência.
Pensar na sua expansão como uma opção de qualidade, num quadro demográfico regressivo e numa situação de crise financeira do país parece configurar mais uma captura pelos interesses privados, do que uma solução com racionalidade e sentido social. E isto também porque a investigação produzida em vários países sobre a liberdade de escolha perspetivam invariavelmente associações a processos de reprodução social e cultural e de reforço das desigualdades.
Referências
Barroso, J. (2003). Organização e regulação dos ensinos básico e secundário, em Portugal: sentidos de uma evolução. Educação & Sociedade, 82, 63-92.
Barroso, J. e Viseu, S. (2003). A emergência de um mercado educativo no planeamento da rede escolar: de uma regulação pela oferta a uma regulação pela procura. Educação & Sociedade, 84, 897-921.
Cotovio, J. (2004). O Ensino privado. Lisboa: Universidade Católica Editora.
Estêvão, C. V. (1996). Redescobrir a escola privada portuguesa como organização. Na fronteira da sua complexidade organizacional. Tese de Doutoramento. Braga: Universidade do Minho.
Grácio, S. (1998). Ensino privado em Portugal – contributo para uma discussão. Sociologia – Problemas e Práticas, 27, 129-153.
[1] No ano letivo 2010-2011 frequentavam o ensino privado cerca de 16% dos alunos do ensino básico e secundário que na sua maioria (22%) prosseguiam cursos da via profissional (GEPE, 2013).
[2] No ano letivo 2010-2011 existiam 356 estabelecimentos de ensino privado dependentes do Estado, correspondentes a instituições em que mais do que 50 por cento dos seus fundos regulares de funcionamento ou o pagamento dos salários do respetivo pessoal docente é garantido pelo Estado / Administração Pública de qualquer nível (GEPE, 20013).
O título, o subtítulo e os intertítulos são da responsabilidade da redação de Notas de Circunstância.
http://notasdecircunstancia.blogspot.pt/2013/11/analise-uma-certa-liberdade-de-escolha.html
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