A Internacional

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terça-feira, maio 10, 2016

Análise Uma certa liberdade de escolha

Isaura Reis, professora no Agrupamento de Escolas Gardunha e Xisto, Fundão


O novo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo inaugura de facto um tempo novo na concretização de uma agenda de mercantilização da educação



O Conselho de Ministros de 5 de Setembro de 2013 aprovou o novo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo de nível não superior, introduzindo alterações significativas em matéria dos princípios de apoio financeiro do Estado no acesso ao sistema de ensino privado. Para além dos já existentes contratos de associação, a nova legislação introduz, nomeadamente, os contratos simples de apoio à família, cuja “novidade” reside no facto de o Estado universalizar o apoio direto a todos os alunos que venham a optar pela frequência de uma escola privada.

Tal como refere o governo, esta medida deve ser entendida como uma “modalidade de opção educativa” e inscreve-se no objetivo estratégico para a educação de “desenvolver progressivamente iniciativas de liberdade de escolha para as famílias em relação à oferta disponível, considerando os estabelecimentos de ensino público, particular e cooperativo” (Programa do XIX Governo Constitucional). O que nas palavras do ministro Nuno Crato “abre um caminho mais direto a uma liberdade de escolha e a uma concorrência entre escolas e entre sistemas” (Público.pt, 05-09-2013).


Razões predominantemente ideológicas

As reações a esta medida foram imediatas. Comunicação social, redes sociais, confederações patronais e sindicais, professores e investigadores dão voz a posições dissonantes e apresentam narrativas que põem a debate duas posições contrárias em matéria do papel do Estado na efetivação do direito à educação. Se para uns o Estado deve garantir um ensino de qualidade por via, essencialmente, da escola pública, para outros a qualidade e a eficiência dos sistemas educativos só serão alcançadas por via da introdução de mecanismos de mercado na educação, nomeadamente através da liberdade de escolha.

Em Portugal a escolarização fez-se essencialmente por via da escola pública. Mas, se a este facto histórico se juntar a circunstância de a sua expansão, no sentido de uma escola de massas, ter sido igualmente consubstanciada na valorização da educação como bem público, pode entender-se que, no texto constitucional, e após sete revisões, o n.º 1 do artigo 75º mantenha a sua redação originária : “O Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população”.

É certo que o texto, aprovado em 1976, atribuía um caráter supletivo ao ensino privado e que após a 1ª revisão (Lei Constitucional n.º1/82, de 30 de Setembro) a nova redação do n.º 2 do referido artigo passou a estabelecer que “ O Estado reconhece e fiscaliza o ensino particular e cooperativo”. Não sendo de importância menor tal alteração, somos levados a partilhar a ideia de que as razões subjacentes a esta mudança foram predominantemente ideológicas.

Face a esta centralidade da escola pública, o ensino privado configura-se como um setor desvitalizado simbolicamente e situado num espaço periférico. Tem uma fraca representatividade no ensino não superior ; genericamente, as suas escolas não se afastam do figurino organizacional das públicas e os seus professores têm uma forte dependência dos parâmetros da educação pública (Estevão, 1996).

É um facto que o ensino privado teve e tem, essencialmente, uma natureza supletiva, cuja função social foi de “válvula de escape” das pressões exercidas sobre o sistema público. Durante o período de expansão da escola de massas e face “à falta de escolas e progressiva degradação das existentes”, é o ensino privado que “penetra no interior do país”, resolvendo “parte do problema” e poupando “preocupações e dinheiro ao Estado” (Cotovio, 2004, p. 391). Foi entre 1950 e 1970 que se deu um crescimento notável do ensino privado, fundamentalmente devido à escassez de oferta de ensino liceal público (Grácio, 1998). Porém, após o 25 de Abril de 1974 o Estado responde positivamente à procura até aí não satisfeita, remetendo, até hoje, o ensino privado a uma pequena expressão que tende a ocupar, preferencialmente, a fileira dos cursos profissionais[1].


Os discursos religioso e económico

De acordo com o enquadramento legislativo português (Lei n.º 49/2005, de 30 de agosto - Lei de Bases do Sistema Educativo - LBSE) o Estado assume a conceção, planeamento e definição da rede escolar, por forma a garantir a unidade e adequação do sistema educativo aos objetivos nacionais e para que a dimensão, densidade e natureza da rede assegure a igualdade de oportunidades de educação e ensino para todas as crianças e jovens.

Isto é : estão nas mãos do Estado as competências normativas e de definição dos critérios gerais de implementação da rede escolar e das tipologias das escolas, bem como da definição de princípios de afetação dos alunos às respetivas escolas, com algumas diferenças entre o ensino básico e secundário. No ensino básico, a preferência é dada à proximidade da área de residência, da atividade profissional dos pais ou, ainda, ao percurso sequencial dos alunos. No secundário, existe uma certa flexibilidade na aplicação deste critério, uma vez que a afetação pode ser feita em função da existência do curso, opções ou especificações pretendidas pelas famílias.

Pese embora esta centralização da oferta escolar e dado que o ensino privado é reconhecido em Portugal, o quadro legal (LBSE) estabelece a possibilidade da sua articulação com a rede escolar e até o seu financiamento. Para tal importa que as escolas privadas cumpram critérios e se enquadrem numa perspetiva de “racionalização de meios, de aproveitamento de recursos e de garantia de qualidade”. Se assim for, e se houver um “desempenho efetivo de uma função de interesse público”, o Estado poderá apoiar financeiramente o ensino privado português [2].

Historicamente a liberdade de escolha tem sido objeto de dois tipos de discurso : um religioso e outro económico. O discurso religioso é marcado pela ideia que a liberdade de educação implica devolver aos pais a responsabilidade de decidir sobre os valores e a cultura curricular a ser seguida na escolarização dos seus filhos, envolvendo o financiamento público do ensino privado confessional. O discurso económico é sustentado na ideia de que a livre escolha é o mecanismo privilegiado de criação de um mercado educativo, regulado segundo uma ótica instrumental, em que a procura escolar é financiada pela administração pública, introduzindo uma diversificação da oferta de acordo com um modelo concorrencial (Barroso, 2003).

Independentemente da motivação e da diversidade de figurinos existentes em vários países, a carta escolar e a liberdade de escolha traduzem um determinado modo de regulação dos fluxos escolares. Se num período de expansão da escolarização, o Estado fez uso da carta escolar para garantir a consolidação da escola de massas, impondo uma regulação pela oferta, já num período de retração, o Estado vê-se confrontado com estratégias deliberadas, formais e informais, de regulação pelo lado da procura.

A realidade do mundo anglo-saxónico mostra que a liberdade de escolha tem sido um mecanismo deliberado de mercantilização e privatização da educação. Mas, até agora em Portugal a escolha da escola não tem sido promovida, mas antes tolerada. Isto é, existem sinais de uma passagem de uma regulação pelo lado da oferta a uma regulação pelo lado da procura escolar.


Uma “concorrência opaca e discreta”

Esta mudança é, fundamentalmente, devida à existência de processos informais de escolha parental que têm em vista a escolha da escola e dos percursos escolares percecionados como aqueles que possibilitam um maior sucesso educativo e uma mais efetiva mobilidade social (Barroso e Viseu, 2003).

Ao contrário do que se tem verificado noutros países, a situação portuguesa não se tem caraterizado por uma verdadeira lógica de mercado, no sentido da disputa de uma clientela, mas antes por uma “concorrência opaca e discreta”, em que a escolha apresenta contornos subtis, muitas vezes resultante da imagem e da reputação projetadas pelas escolas (idem).

Mas o facto que agora importa assinalar é que com a aprovação do novo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo se inaugura um tempo novo na educação em Portugal. Um tempo em que a liberdade de escolha é a opção deliberada do Estado para a regulação dos fluxos escolares. O articulado da lei ilustra bem que estamos em presença de uma mudança radical do papel do Estado : não só o ensino privado passa a ser considerado em pé de igualdade com o ensino público, como os apoios financeiros passam a abranger não só os alunos carenciados, como todos os alunos do ensino básico e secundário. Em suma : o novo EEPC é mais uma decisão governativa cujo contexto e conteúdo tem implicações significativas na configuração institucional da educação em Portugal.

Reconhecer o ensino privado português não pode significar o seu estatuto de igualdade com o ensino público. Tal entendimento contraria o disposto na Constituição da República e na LBSE, remetendo para um entendimento da educação não como um bem público e um direito do cidadão, mas como um bem privado e uma questão de escolha do consumidor.

Não existe evidência empírica que o percurso histórico, a natureza e o perfil atual do ensino privado, não superior, em Portugal seja de “excelência” comparativamente maior ao do público. De facto, o privado não oferece uma alternativa modernizadora da escola, nem a educação e o ensino têm sido atrativos para o capital privado. A expressão da escola privada tem um suporte financeiro de dinheiros públicos significativos que garantem, em boa medida, a sua existência.

Pensar na sua expansão como uma opção de qualidade, num quadro demográfico regressivo e numa situação de crise financeira do país parece configurar mais uma captura pelos interesses privados, do que uma solução com racionalidade e sentido social. E isto também porque a investigação produzida em vários países sobre a liberdade de escolha perspetivam invariavelmente associações a processos de reprodução social e cultural e de reforço das desigualdades.


Referências

Barroso, J. (2003). Organização e regulação dos ensinos básico e secundário, em Portugal: sentidos de uma evolução. Educação & Sociedade, 82, 63-92.

Barroso, J. e Viseu, S. (2003). A emergência de um mercado educativo no planeamento da rede escolar: de uma regulação pela oferta a uma regulação pela procura. Educação & Sociedade, 84, 897-921.

Cotovio, J. (2004). O Ensino privado. Lisboa: Universidade Católica Editora.

Estêvão, C. V. (1996). Redescobrir a escola privada portuguesa como organização. Na fronteira da sua complexidade organizacional. Tese de Doutoramento. Braga: Universidade do Minho.

Grácio, S. (1998). Ensino privado em Portugal – contributo para uma discussão. Sociologia – Problemas e Práticas, 27, 129-153.


[1] No ano letivo 2010-2011 frequentavam o ensino privado cerca de 16% dos alunos do ensino básico e secundário que na sua maioria (22%) prosseguiam cursos da via profissional (GEPE, 2013).

[2] No ano letivo 2010-2011 existiam 356 estabelecimentos de ensino privado dependentes do Estado, correspondentes a instituições em que mais do que 50 por cento dos seus fundos regulares de funcionamento ou o pagamento dos salários do respetivo pessoal docente é garantido pelo Estado / Administração Pública de qualquer nível (GEPE, 20013).



O título, o subtítulo e os intertítulos são da responsabilidade da redação de Notas de Circunstância.

http://notasdecircunstancia.blogspot.pt/2013/11/analise-uma-certa-liberdade-de-escolha.html

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