OPINIÃO
Profecias políticas
O tempo novo de que falava Nóvoa não acabou, claro. Mas vai ter em Marcelo um adversário de peso.
… e o herdeiro está eleito! Não arrasou, longe disso, mas acrescentou 200 mil votos aos 2,2 milhões que a PAF e o resto da direita juntaram em outubro Cavaco foi eleito em 2006 com 360 mil votos mais, Sampaio (1996) e Soares (1986) com mais 700 mil. Marcelo fica para a história da democracia como o Presidente eleito pela primeira vez com menos votos. Persistente como ninguém, arguto como poucos, reunia algumas condições para poder ser imbatível: a campanha dos afetos, dos pastéis e das pastilhas, sossegou muitos dos que querem que o governo Costa tenha sucesso, o professor que desde 2000 se fez passar por apartidário. As que lhe faltassem, ofereceu-lhas a esquerda, e o PS em primeiro lugar.
Como profecia, prever a sua eleição era a menos difícil de acertar; sempre pensei que, com 10 candidatos, e a esquerda mais dispersa que nunca, era dificílimo derrotá-lo. Outra coisa seria, claro, se o candidato à direita fosse Rui Rio ou Santana Lopes! O que é revelador é como, a propósito das presidenciais, e coincidindo com a discussão do Orçamento, tão depressa se voltou ao clima político dos meses de preparação do(s) acordo(s) à esquerda. As mesmas vozes da desgraça que antes gritavam “the Reds are coming!”, são as que agora os veem moribundos e, por isso, raivosos: “declínio definitivo” do PCP e Bloco reforçado levará a “exigências inaceitáveis” e à rutura! Chama-se a isto wishful thinking: ler na realidade o que se quer que a realidade seja.
O anúncio da morte do PCP (como em 1987, 1989-91, 2002...) é o mesmo da morte do BE nos últimos quatro anos e a da “inconsistência” de Catarina Martins. Há aqui uma obsessão pela profecia, uma vontade de encontrar em cada momento vivido um “fim da história”, produzindo interpretações que morrem em cada novo dia, para serem logo substituídas por outras que terão mesmo destino...
Se se tem generalizado a tendência para personalizar todas as eleições em Portugal, há uma eleição em que as candidaturas são estritamente individuais: a do Presidente da República. Mais do que nos demais casos, nesta são sistematicamente desfavorecidas as candidaturas que, aos olhos dos eleitores, aparecem com menos chances de eleição. Se o mesmo pode acontecer nas legislativas (ainda que não se eleja nunca um Primeiro-Ministro), esta é a natureza própria da eleição uninominal: a apreciação do candidato depende da perceção da sua elegibilidade - a menos que ele consiga apresentar-se como um candidato anti-sistémico, de protesto, o que (quase nunca) é o caso dos candidatos partidários. Neste contexto, o PCP, o BE ou o CDS sabem que, se assumirem candidaturas de iniciativa exclusiva sua (Marisa Matias e de Edgar Silva nesta eleição, ou Louçã, Fernando Rosas, Jerónimo, Francisco Lopes, etc...), se arriscam mais fortemente do que em qualquer outra a que o voto útil dos eleitores da sua área se dirija ao candidato mais bem posicionado à esquerda ou à direita. É por isso que nas eleições presidenciais se tende – ou melhor, tendeu - à convergência da indicação de voto no mesmo candidato por parte de forças políticas por vezes muito díspares: Eanes teve o apoio do PS, PPD e CDS (1976), ou do PS e do PCP (1980); Sampaio de toda a esquerda (1996). É por isto que o CDS apresentou sozinho um candidato uma única vez (1991, Basílio Horta contra Soares apoiado pelo PSD), e que o PSD nunca o fez. Cavaco foi apoiado por toda a direita nas três presidenciais a que se apresentou – e em duas delas (1996, 2011), depois de Manuel Monteiro e Paulo Portas terem dito dele o que disseram... À direita, só nas duas primeiras eleições se apresentaram candidatos alternativos ao cavalo ganhador: Pinheiro de Azevedo (1976), Pires Veloso e Galvão de Melo (1980). Desde então, o que vigora é a unicidade - e engolem-se os elefantes que houver que engolir.
À esquerda do PS, e desde 2006 no próprio PS, pelo contrário, a norma é a dispersão de candidaturas, apresentados para marcar posição - e para condicionar uma eventual 2.ª volta que uma só vez (1986) ocorreu. Nas nove eleições presidenciais, o PCP apresentou sempre um candidato autónomo, mas apenas em seis (Pato, 1976; Carvalhas, 1991; Abreu, 2001; Jerónimo, 2006; Lopes, 2011; e agora Edgar Silva, 2016) as suas candidaturas foram até ao fim. Destes, apenas Carvalhas e Jerónimo tiveram melhores resultados que a CDU em legislativas; nos outros casos, a desmobilização dos eleitores típica das eleições presidenciais e o voto (considerado mais) útil (em Otelo, em 1976; em Sampaio, em 2001; em Nóvoa, há uma semana atrás) fez com que os candidatos comunistas perdessem 25%-50% dos votos obtidos em legislativas precedentes. O PCP defendeu sempre a máxima de dever manter uma voz autónoma em cada ato eleitoral – mas não teve problemas em convergir em candidaturas mais amplas: na da reeleição de Eanes (1980) contra o sonho da AD de “um Governo, uma maioria, um Presidente”; na de Zenha (1986), para impedir que o chefe do governo do Bloco Central (Soares) pudesse passar à 2ª volta; na de Sampaio (1996), para impedir a eleição de Cavaco logo depois de este ter deixado o Governo. Em suma, o PCP não precisou de ir sempre até às urnas para manter a autonomia da sua voz. O aparecimento do Bloco, em 1999, acabou por acrescentar um novo obstáculo a que à esquerda do PS se encontrassem candidaturas de convergência alternativas a um PS que, como se confirma, não apoia nunca candidatos que não sejam estritamente partidários (Eanes foi a exceção, explicável pelo contexto pós-revolucionário). Em 2001, 2006 e 2016, o PCP e BE competiram entre si – quase sempre (salvo Rosas, 2001, e Jerónimo, 2006) para ambos perderem votos. Em 2011, o BE convergiu com o PS para apoiar Alegre; o seu mau resultado não reverteu a favor do candidato comunista (Francisco Lopes), ainda que este tenha conservado mais eleitores da sua área que Alegre.
2016 podia ser a exceção: o PS não tinha candidato próprio, deixando que Nóvoa, com uma identidade cívica e política que parecia coerente com a convergência que se conseguiria à esquerda em torno de um programa mínimo de governo, fosse ocupando o espaço. O aparecimento de Maria de Belém, contra a “esquerda radical” que Nóvoa representaria, fez com que muitos pensassem que Marisa e Edgar poderiam desistir no último momento a favor de Nóvoa. Foi o que muitos eleitores da CDU pensaram, mas não os do BE. Pelo caminho, muitos se convenceram que Marcelo ganharia à primeira, pelo que seria inútil desistir a favor de alguém que não disputaria uma 2.ª volta. Pela sua parte, o PCP deixou que se queimasse um dos candidatos mais interessantes e originais que alguma vez apresentou. Cumpriu uma regra – mas perdeu, mais do que outros, esta batalha política. Mas nada disto é a sua morte nem o seu declínio.
O tempo novo de que falava Nóvoa não acabou, claro. Mas vai ter em Marcelo um adversário de peso.
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