História de Angola - nota do autor - PRÉ-PUBLICAÇÃO
Há anos que se discutem projectos de elaboração colectiva de uma História de Angola, em vários volumes, com a colaboração dos múltiplos especialistas angolanos e estrangeiros que, ao longo de pelo menos quatro décadas, se têm dedicado a notáveis estudos de caso, e nas mais diversas vertentes – política, económica, social, cultural – da história angolana. Infelizmente, a concretização desses projectos, cada vez mais prementes, sobretudo depois de decorridos 40 anos sobre a Independência de Angola, tem-se revelado inviável, por razões que nos transcendem a nós, historiadores.
Mas desde a década de 1990 que me é feita uma pergunta incisiva, decerto também colocada a outros colegas: existe alguma História de Angola condensada num só livro? Um livro que, podendo ser um manual, contenha algo mais do que o essencial sobre a memória do povo angolano? Um livro que, não só possa servir, tanto ao leitor comum quanto ao estudante – do ensino universitário, do secundário e mesmo do básico –, como ainda de instrumento de trabalho e consulta aos investigadores? Se outros Estados soberanos têm a sua história compendiada em livro – há “Histórias” de Portugal, de Espanha, de França, da Inglaterra, do Brasil, de Cabo Verde, de Moçambique, da Alemanha, dos Estados Unidos da América –, porque é que não existe uma Históriade Angola?
A pergunta era embaraçante, pois convidava-me a respostas, umas titubeantes e desalentadas, outras cruelmente ingratas. Titubeantes porque se iniciavam quase sempre com um “há, mas…” ou com um “só há…”. E desalentadas porque remetiam necessariamente, ou para obras incontestavelmente meritórias e incontornáveis, mas escritas antes da Independência e espelhando perspectivas colonialistas luso-cêntricas – como as de Ralph Delgado e as de Gastão Sousa Dias –, ou para o prestimoso, mas inevitavelmente incipiente, esboço nacionalista elaborado em Argel, em 1965, pelo Centro de Estudos Angolanos, constituído por Henrique Abranches, Adolfo Maria, Mário Afonso (Kasesa), João Vieira Lopes e Artur Pestana (Pepetela). Respostas ingratas eram as que me obrigavam a dizer a verdade acerca de obras – como uma de Douglas Wheler e de René Pélissier, publicada em Portugal em 2009 – que, por razões de mercado editorial e independentemente da qualidade intrínseca e dos desígnios dos autores, foram traduzidas para a língua portuguesa ostentando abusivamente, nas livrarias, o título História de Angola. Na realidade, não só os títulos originais eram outros, como se tratava de estudos de caso balizados no tempo, ainda que brilhantes.
Curiosamente, a pergunta não me era feita pelos meus colegas historiadores, cientes, como eu, das dificuldades inerentes a um projecto ambicioso dessa natureza e, ainda por cima, da responsabilidade de um só autor. Mas era-me colocada por pessoas das mais diversas proveniências: angolanos, portugueses, estrangeiros… Os chamados leitores comuns, os simples curiosos… Para além destes, outros me atiravam com a pergunta insistentemente. Destaco, em primeiro lugar, a juventude angolana. Por um lado, os jovens que, em Luanda, assistiram às minhas conferências na União dos Escritores Angolanos e na Associação Chá de Caxinde, nomeadamente quando, em 1998, o meu romance histórico Mazanga foi distinguido com o Prémio Literário Sagrada Esperança. Por outro lado, os meus alunos universitários em Lisboa. Quando introduzi, nas disciplinas História dos ImpériosMarítimos e Coloniais e História Diplomática Portuguesa, capítulos sobre as embaixadas quinhentistas dos reinos do Kongo e do Ndongo a Portugal, foi impressionante verificar a avidez daqueles jovens, que vinham (e vêm) licenciar-se à ex-metrópole, em querer conhecer a História do seu país, que surpreendentemente não lhes era ensinada na escola secundária angolana. A maior parte deles – era inacreditável! – só conhecia Njinga Mbandi ou Mandume como nomes de ruas. Contudo, ansiavam por informação, pela recuperação merecida da remota memória histórica ignominiosamente silenciada! Em Angola reinava e reina, tal como no tempo colonial, o positivismo tecnocrático e quantitativo, pelo que só interessa falar em presente e em futuro. Porque estará Angola condenada à doença de Alzheimer?
Recordo também os meus colegas docentes e investigadores dos Estudos Africanos em Angola, no Brasil e em Portugal, os estudiosos da Sociologia, da Economia e da Literatura angolana, que tiveram a hombridade de me confessar as suas lacunas no conhecimento da História de Angola e de me relembrar a urgência da concepção desse livro inexistente. Alguns empurraram-me literalmente para o escrever. Destaco, no caso angolano, a minha velha amiga e irmã – e eterna Professora! – Elizabeth Ceita Vera Cruz, no caso brasileiro as Professoras Doutoras Tania Celestino Macêdo e Rita Chaves, e no caso português/moçambicano a Professora Doutora Ana Mafalda Leite. Em 2006, a pedido de Tania Macêdo, Rita Chaves e Ana Mafalda Leite, vi-me numa situação singular para um académico: a de, durante semanas, desempenhar em salas de aulas o papel de “contador de histórias”, narrando século a século a História de Angola e dos seus povos aos estudantes de Literaturas Africanas. A experiência repetiu-se na Universidade de São Paulo (USP) e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL). Em finais de 2010, concluído o meu Doutoramento, estas amigas e irmãs, às quais se juntaram muitos outros amigos, de entre os quais destaco os meus filhos e os meus pais – sobretudo o meu pai! –, não hesitaram em dar-me o empurrão decisivo: “Escreve agora a História de Angola!”.
Eis o livro, finalmente. Como é evidente, nem esgota a História de Angola, nem retira o lugar a outras experiências no género que é desejável sejam feitas no futuro. Trata-se, apenas, da primeira tentativa de um angolano, passados 40 anos sobre a Independência de Angola, narrar e explicar – pois desde Heródoto que a História é acima de tudo analítica e, pelo menos desde o Romantismo, tem uma função explicativa e não meramente narrativa dos factos –, de modo abrangente, com todas as inevitáveis subjectividades e imperfeições, o entrosamento das acções e dos interesses humanos que, ao longo dos séculos, foram construindo o seu país. Escolhi deliberadamente, como baliza cronológica final, o ano de 2002, que tem sido unanimemente convencionado como o do início da era da paz. Entendo extemporânea uma análise a quente, se me é permitida a expressão, das transformações sofridas em Angola nos 13 anos que entretanto decorreram, dos quais os quatro últimos dediquei a este trabalho. Mas, se a Providência me ajudar, admito a possibilidade de, em futuras reedições refundidas do livro, proceder a apreciações devidamente distanciadas e frias do que tem sido o percurso angolano neste primeiro quartel do século XXI.
Tratando-se de um livro que só poderia ser escrito por um académico e sendo susceptível de leitura e de consulta por outros académicos, não é, de modo algum, um livro académico. Destina-se a qualquer leitor. E o leitor tem, evidentemente, como em tempos o enunciou Daniel Pennac, o direito de saltar páginas e capítulos. Mas o autor, ao concebê-lo, teve que obedecer escrupulosamente a dois ditames essenciais a um historiador: a noção inexorável da limitação dos seus conhecimentos; e a fidelidade à cronologia. Assim sendo, só muito pontualmente me socorri dos meus trabalhos pregressos. Era inevitável a consulta de uma plêiade de autores que, muito antes de mim, se debruçaram sobre incontáveis momentos e temáticas da História de Angola. No entanto, num livro deste género, era-me impossível, por cada vez que os citasse, recorrer ao habitual expediente da nota de rodapé. Além de redobrar o número total de páginas, já por si assaz extenso, criaria, como soe dizer-se, obstruções à fluência da leitura. Mas tive a preocupação de fundamentar todas as minhas afirmações e de, frequentemente, mencionar os autores e as obras que me serviram de fonte, os quais o leitor encontrará devidamente inventariados na bibliografia apresentada a páginas finais. Quanto à cronologia, ela é indispensável ao historiador de todos os tempos, pois não é possível organizar a memória sem o recurso a marcadores. E, ao contrário do que alguns podem pensar, a história cronológica não invalida – antes lhe confere sentido – aquela que ilustres historiadores – com destaque para Elikia M´Bokolo – designam por “História em espiral”. A espiral é uma linha helicoidal que se desloca sobre uma semi-recta, a qual lhe serve de fio condutor. Qual é o fio condutor da História? A cronologia!
Falando em espiral da História – ou, segundo a metáfora também recorrente, dos rodízios que impulsionam os ponteiros do tempo como os do relógio –, não é demais salientar que a minha construção historiográfica de Angola assentou nas dimensões política, económica, social e cultural, com todas as limitações e subjectividades na sua interpretação, delineação e articulação fatalmente inerentes a um trabalho desta natureza. Aos interesses económicos e políticos dos homens associam-se os imaginários e as representações. Todos contribuem para a História de Angola, que não se iniciou, evidentemente, em 1975, com a Independência do Estado angolano. Muita gente, aliás, me tem deixado perplexo quando afirma que a História de Angola só tem 40 anos ou quando se admira ao saber que o meu quadro cronológico se inicia por volta dos anos de 7.000 a.C., como se em Angola – e na África Subsariana em geral, tal qual o entendia o discurso colonial – não pudesse ter existido uma “Pré-História”.
Na concepção da história desta realidade cultural, primeiro territorial, depois colonial e por fim nacional que é Angola, há que considerar, não apenas as fontes escritas – inclusive, evidentemente, as coloniais –, mas também as fontes orais e arqueológicas. Sobretudo no que diz respeito às informações sobre os Estados angolanos ditos “pré-coloniais”. Quanto a esse e outros pontos, este livro está longe de ser exaustivo. Um excelente exemplo diz respeito à história do povo Ovimbundu e da maioria dos povos angolanos a sul do Planalto Central antes do século XIX, para as quais há todo um caminho aberto à arqueologia e a outros historiadores, nomeadamente aos que se preocupam com a incontornável história regional. Que o meu trabalho contribua para os incentivar!
Outro caminho inteiramente em aberto é o da ortografia dos vocábulos de origem bantu, sobretudo topónimos, incorporados na língua portuguesa falada em Angola. O tema daria para um ensaio, mas no curto espaço de que disponho limito-me a adiantar que não acredito em nenhum projecto de unificação dessa ortografia, a qual deriva, pelo menos, de três fontes bem distintas: do próprio critério ortográfico do português de Portugal, com todas as variantes seculares; do dos missionários católicos de línguas latinas – portugueses, castelhanos e italianos – disseminados sobretudo pelo Vale do Kuanza desde o século XVII; por fim, do dos missionários reformistas (ou protestantes) de línguas germânicas – flamengos, britânicos e alemães –, preponderante do Planalto Central para sul a partir da segunda metade do século XIX. Presentemente, do meu ponto de vista, cabe aos poderes locais e não aos centrais a definição das fórmulas ortográficas, com toda a salvaguarda das diferenças regionais. Por exemplo, consoante as diferentes regiões, o adjectivo kuanhama ou kwanyama tanto pode ser grafado pela primeira fórmula, a latina, como pela segunda, a germânica. E porque não – tal como me acontece nos capítulos deste trabalho relativos às campanhas militares portuguesas no sul de Angola no dealbar do século XX – na formula vernacular portuguesa cuanhama? Aliás, em diversos momentos do meu trabalho, optei por manter a grafia portuguesa, não recorrendo ao kambaquista e conservando o c. Tal é o caso, por exemplo, de nomes de rios e de localidades que ainda hoje, na toponímia oficial angolana, mantêm o c, tais como Ambaca, Cacuaco, Cambambe,Cunene, Caculuvar, Caconda ou Catumbela.
Em várias passagens desta História de Angola pude advertir o leitor de que a minha opção se pautou, preferencialmente, pelo critério ortográfico latino, também designado por ambaquista. No entanto, no que diz respeito a topónimos, as conjunturas podem introduzir matizes. Por exemplo, o Kongo passa a Congo quando não é designado como Estado bantu independente e sim como realidade colonial ou pós-colonial. Ou quando é grafado com c nas fontes citadas. A capital do antigo Reino do Kongo,Mbanza Kongo, torna-se São Salvador do Congo em 1595, com a criação da diocese homónima. Será necessário sublinhar que os naturais do Reino do Kongo, os Congueses, diferem dos naturais das ex-colónias belga e francesa do Congo, os Congoleses? Também não se confunda o Ndongo, o Estado independente dos Ngola, com o Dongo, um Estado títere criado pelos Portugueses no século XVII. Aliás a elisão deliberada do n consta dos próprios documentos portugueses coevos.
Sejam-me permitidas mais duas advertências. Uma primeira ainda relacionada com a ortografia. Nos múltiplos mapas que o livro apresenta, destinados a contextualizar as matérias e cujas fontes são meticulosamente indicadas, o leitor deparará com as mais diversas fórmulas ortográficas para os topónimos angolanos. Que esta aparente incongruência nos incentive a um debate que nunca foi feito desde a Independência de Angola, sem que, insisto, nos deixemos levar por tentações espúrias como acordos ortográficos ou outras imposturas similares.
A segunda advertência também diz respeito à componente iconográfica deste livro. Deliberadamente, não figura nele qualquer retrato de nenhuma figura humana da história de Angola, nomeadamente de nenhum governador colonial nem de nenhum político nacional. O leitor encontrá-los-á noutras sedes. Abri, contudo, uma excepção para a rainha Njinga Mbandi, cujos retratos apresentados são imaginários.
Que este livro desperte ou acentue em quem o ler uma avidez de conhecimento da memória de Angola tão insaciável quanto a minha o tem sido e continuará a ser.
Alberto Oliveira Pinto
Lisboa, Agosto de 2015
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