A Internacional

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quarta-feira, janeiro 20, 2016

Bruno Alves - “Tino”, o “povo” e a democracia portuguesa

Posted on Janeiro 20, 2016 by Bruno Alves



Para mal dos meus pecados, tenho estado, desde que Marcelo Rebelo de Sousa anunciou a sua candidatura à Presidência da República, a preparar um “ensaio” mais ou menos longo sobre a sua campanha e o que ela revela acerca da natureza da política moderna e do estado do país. Foi um grande erro que cometi. Devia ter escolhido, para tema da coisa, a campanha de Vitorino “Tino de Rans” Silva, pois a sua candidatura é de longe o fenómeno mais interessante e significativo desta eleição presidencial.

O debate de ontem na RTP, moderado por Carlos Daniel e Vitor Gonçalves, foi um bom exemplo. Como nenhum outro participante, “Tino” captou a atenção da audiência. Carlos Daniel perguntou-lhe sobre a sua ida a Bruxelas numa acção de campanha, e “Tino” começou a falar dos irmãos que tiveram de emigrar, e que por causa deles quis ir conhecer a realidade dos portugueses que vão trabalhar para outros países; pensava, disse ele, que iria encontrar “meia dúzia”, mas deparou-se com “ruas inteiras cheias de portugueses”, e queixou-se da impossibilidade de muitos dos portugueses habitantes na cidade belga mas recenseados em Portugal votarem nas eleições: “ligam para o Consulado”, presumivelmente para se informarem, “e o Consulado tem telefone e não tem ninguém a atender o telefone”; Carlos Daniel pergunta-lhe “e quem é que responsabiliza por isso?”, ao que “Tino” responde “oh pá, ponham um telefone mas ponham também uma pessoa a atender o telefone”, e a plateia se desmancha a rir e começa a bater palmas. O espectáculo continuou, com “o calceteiro mais famoso de Portugal” a dizer que havia “candidatos que jogam no pelado” (ele próprio, Jorge Sequeira, Cândido Ferreira, Henrique Neto, Paulo Morais) e “candidatos que jogam no relvado” (os outros), e que se “Messi é um grande jogador”, é porque “não dá chutos para longe, está sempre perto da bola”, e “quem está perto da bola está perto do golo” (não sei é uma citação do filósofo Jorge Perestrelo, mas se não é, parece), terminando depois dizendo que “eu também quero estar perto do golo, mas aí, passem-me a bola”, para novo grande gáudio de quem estava a assistir no estúdio.

O melhor, no entanto, estava ainda para vir. Vitor Gonçalves pedia a “Tino” para terminar. Este respondeu-lhe que ainda tinha tempo, e nem sequer ia precisar do “mesmo tempo de alguns aqui”, porque “não venho aqui para intrigalhadas”, e “há uma parte do debate que a mim não me interessa para nada, eu estou aqui e até estou a fazer bonequinhos”. Foi o delírio. Numa simples frase, “Tino” falou por – não duvido – uma parte significativa de quem se deu ao trabalho de assistir ao debate, e por todos aqueles que preferiram ocupar o seu tempo com outras distracções. Quando disse que, no dia anterior ao debate, tinha estado a dormir com um sem-abrigo, e que “os políticos seriam melhores políticos” se “fizessem o mesmo”, Tino apenas reforçou, na cabeça de quem estivesse a ver, a ideia de que só uma “pessoa simples” – alguém que não “um político” – faria e diria algo assim.

Numa campanha que tem sido pobre, e num debate que não destoou dessa pobreza, reacções simpáticas como as que “Tino” mereceu da plateia de ontem não são de espantar. E não foi a primeira vez que algo assim teve lugar. Há alguns dias, “Tino” foi ao Fórum TSF, e não faltaram telefonemas de gente a encorajá-lo, a louvá-lo pela sua iniciativa em candidatar-se, e até a prometer votar nele, por ser uma “pessoa comum” e “uma voz do povo” geralmente ausente das discussões políticas. Dias depois, esteve na TVI24, e o teor dos telefonemas foi semelhante. E por onde quer que faça uma “presença” (afinal, estamos a falar de um ex-concorrente do Big Brother) nesta campanha, “Tino” recebe uma quantidade de abraços e palavras de reconhecimento só superada pela que “o Professor Marcelo” consegue atrair, dando a entender que, à sua escala, “Tino” se prepara para ter um excelente resultado no próximo domingo.

Idealmente, a disputa política eleitoral deve ser uma competição entre diferentes forças partidárias ou candidatos para convencerem o maior número de eleitores da justeza das suas propostas: o que um político deve fazer é explicitar as suas convicções, e procurar mostrar a quem irá votar que elas são melhores para o país do que aquilo os seus adversários propõem. Infelizmente, não é isso que geralmente se passa. Infelizmente, a política transformou-se numa competição entre diferentes forças partidárias ou candidatos que tentam agradar mais ao maior número possível de eleitores, dizendo-lhes, não aquilo em que acreditam, mas o que julgam que esses eleitores querem ouvir. O resultado é aquele a que temos tido o azar de assistir: sentido a necessidade de nunca confrontar o eleitorado com propostas que o possam desagradar, os candidatos a cargos públicos escondem aos eleitores medidas impopulares que as circunstâncias (e a falta de vontade de realizar verdadeiras reformas) acabarão por tornar necessárias; quando a execução dessas medidas não pode mais ser adiada, os eleitores sentem-se enganados, e portanto menos dispostos a confiar nos políticos e nos “sacrifícios” que estes lhes exigem, o que por sua vez faz com que os políticos sintam uma ainda maior necessidade de esconder esses “sacrifícios” aos eleitores, num ciclo vicioso do qual parece ser impossível sair.

Esta transformação da política de uma competição de propostas numa competição de mentiras, e a percepção generalizada, por parte da população, de que “eles são todos iguais” e “não querem saber do povo para nada”, criou um terreno fértil para que esse “povo” tenha uma enorme simpatia por quem quer que apareça a “ser diferente”, e a dizer algo que que as pessoas sintam dizer respeito às suas vidas, e não apenas às “intrigalhadas” que enchem os telejornais e “o saco” do português comum. Já “Tino”, com as suas tiradas e até na demonstração da sua completa e visível inadequação ao palco político, representa mesmo a opinião de uma parte mais ou menos significativa dos portugueses; exprime efectivamente a mais ou menos mítica “voz” do “povo”, no seu melhor (quando, questionado por Vitor Gonçalves acerca de “qual é a qualidade que mais aprecia e a característica que mais deplora no ser humano?”, Tino diz que o que mais gosta é “ter saudades de casa” e que o ser humano devia “poder dar às asas para voar mas ter sempre alguém à espera”, e o que mais deplora é “fechar as portas a quem quer que seja”; ou quando, referindo-se ao facto de Cândido Ferreira ter dito que tratava “António Costa por tu”, se virou para Marisa Matias e disse “a partir de hoje trato a Marisa por tu”, é impossível não achar o homem adorável), e no seu pior (quando disse que os políticos deviam, “em vez de falarem de milhões”, falar “do zero”, “porque o zero é o ponto de partida e se soubermos onde estamos sabemos para onde podemos ir, e com isso a economia ia ganhar”, uma inanidade inqualificável que talvez passe por profundidade nos cafés de Rans mas que demonstra como o senhor tem pouca noção das coisas).

A simpatia que “Tino” tem conquistado é a maior condenação do estado a que o sistema político português chegou: é o reflexo de um número cada vez maior de portugueses confiar cada vez menos nas palavras de quem lhes pede um voto, ao ponto de se sentirem mais próximos de alguém que, mesmo não fazendo grande sentido, ao menos “genuíno”. Que ninguém duvide: cada voto que “Tino” tiver no próximo domingo, quer daqueles que votaram nele meio a gozar e por exasperação com as alternativas disponíveis, quer os que genuinamente se revêem na sua simplicidade e “sabedoria popular”, será um voto de desconfiança na democracia portuguesa e em quem a tem conduzido. Por “Tino” ser uma figura essencialmente benévola e por não ter grande capacidade para explorar demagogicamente o sentimento de repulsa para com os políticos, desta vez o estrago não será grande. Mas talvez um dia apareça alguém com maior talento demagógico para cavalgar na onda populista que torna possível o fenómeno “do Tino”, e aí a cantiga será outra.

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