A MUDANÇA DO TEMPO POLÍTICO
(Escrito antes da derrocada destes dias, sem surpresa.)
Foram anunciadas "novas medidas de austeridade". Apesar de nas últimas semanas o primeiro-ministro ter admitido que podia ter que haver novas medidas de austeridade, há uns meses o discurso oficial era de que "não iriam ser necessárias mais medidas", a não ser que houvesse um cataclismo europeu. Ora as últimas notícias europeias do BCE são boas para Portugal. A não ser que o Governo que criticou, em uníssono com os alemães, a possibilidade da compra de dívida soberana pelo banco, considere que é esse o cataclismo. Não me parece. O cataclismo está é por cá.
A evidente mudança de tempo político começou. Começou há dois ou três meses, com a queda de Relvas, o incumprimento do défice, os discursos vazios do Pontal e da Universidade de Verão, as crescentes dificuldades de fazer "passar" as políticas, como se vê com a privatização da televisão ou a legislação autárquica, a decisão do Tribunal Constitucional, as desavenças públicas na coligação, as disfunções no Governo. A estes factores políticos somam-se os sucessivos números negativos da conjuntura económico-social, a quebra do produto, a descida no ranking da competitividade, o aumento sempre crescente do desemprego, e das falências de empresas e de famílias.
No conjunto, todos estes factos mostram que se está a entrar num tempo político novo, em que a dominante da "culpa" na vida política nacional que era a rejeição de Sócrates, associada ao consenso sobre a inevitabilidade da austeridade, estão a esvanecer-se e a colocar o Governo de Passos Coelho e as suas políticas como alvo privilegiado da culpabilização dos cidadãos. Não é pequena a mudança, nem as suas consequências. Antes era possível fazer praticamente tudo, em nome do "regabofe" de Sócrates e das imposições da troika, hoje há cada vez menos margem de manobra para fazer alguma coisa, sem os efeitos perversos e o "ruído" serem maiores do que os resultados desejados. Ora, o primeiro-ministro e o Governo estão especialmente impreparados para defrontar esta situação.
Analisando alguns dos factores que revelam esta mudança do tempo político percebe-se como eles são reveladores dessa fragilidade. Veja-se o efeito do incumprimento do défice. Aqui o Governo só é vítima de si próprio, porque fez a cama em que se deitou: mesmo que haja o incumprimento do défice exigido no acordo com a troika, nem por isso deixa de haver uma descida muito significativa. Os propagandistas do Governo vêm-nos lembrar desse facto, que é verdadeiro, só que não foi isso que o Governo prometeu para justificar as medidas de choque que tomou. Não foi para diminuir o défice, foi para cumprir o acordado com a troika, e foi esse o cerne do discurso governativo. Foi para acertar e não para falhar, e algumas das mais assertivas afirmações do primeiro-ministro eram nessa matéria, como também a recusa arrogante e cheia de certezas das prevenções de todos os que disseram que isso era impossível, exactamente pelas razões que se vieram a verificar: em particular, a quebra das receitas devido aos excessos fiscais, ao desemprego e ao empobrecimento e o aumento das despesas sociais. A razão por que existe uma quebra de legitimidade no discurso do Governo sobre o défice é que tudo rondava à sua volta, tudo se justificava com o número mágico.
Outro sinal da mudança do tempo político é a sensação de que tudo o que era possível fazer há um ano não foi feito como devia, e hoje já não é possível de fazer sem grandes convulsões. O Governo esgotou o tempo psicológico das possibilidades excepcionais, para passar para o tempo psicológico do cansaço com a excepcionalidade. Sem ter cumprido o seu objectivo central, nem ter feito qualquer reforma estrutural, o Governo começa a defrontar um misto de realidade e "estado de alma", o "cansaço da austeridade". O Governo entende que a austeridade pura e dura ainda só começou, as pessoas que já durou tempo de mais. O Governo acha que o "ajustamento" ainda está na infância, mas já percebeu que não vai ter os efeitos de milagre económico que esperava. As pessoas acham que o Governo teve a sua oportunidade e que a perdeu e não estão dispostas a mais sacrifícios a não ser à força e atribuem-nos cada vez mais às asneiras de Passos Coelho, a somar aos desmandos de Sócrates.
Neste novo tempo, o factor constitucional também se tornou uma preocupação central da governação. Até ao momento em que o Tribunal Constitucional "chumbou" os cortes na função pública, o Governo não mostrava ter muita preocupação com a legalidade constitucional das suas medidas. Embalado pela consciência colectiva de que era necessário tomar medidas de austeridade (o maior património que o Governo está a desbaratar), sentia que podia fazer o que queria. que o Tribunal iria dar cobertura a medidas inconstitucionais em nome da "emergência nacional". E foi assim com muitas medidas, até um dia. Hoje, o problema da constitucionalidade, que era a última preocupação do Governo, tornou-se premente em muitas áreas, quer na privatização da RTP, quer na legislação autárquica e laboral, quer em medidas na área da justiça, o Tribunal deixou de se apagar em nome da "emergência nacional".
Mas onde é mais evidente a deterioração do tempo político do Governo é no órgão, mais do que na função. É o Governo que está muito mal. Na verdade, o menosprezo, ou impotência, revelado pelo primeiro-ministro no tratamento do "caso Relvas", está a corroer o Governo. Ao tornar a "coordenação política" do Governo - um termo eufemístico, mas que é habitualmente usado - fantasmática, o primeiro-ministro criou um gigantesco vazio que todos se estão a apressar a ocupar: o CDS, o PSD, os lóbis da RTP, o PS, os outros ministros. A natureza da política é a de ter horror ao vácuo, e um vácuo ambulante só reforça todos os que com ele contactam.
Aliás poucas coisas revelavam melhor, desde início, as fragilidades políticas do Governo, que a ideia que Relvas pudesse ter o papel que lhe era dado, isso sim mostrando como Passos pensava que os métodos do aparelhismo partidário resultavam num governo, como resultam numa distrital do PSD ou da jota. "Coordenação política" é o que faz Portas, para o PP, entre o seu cargo de ministro e os "seus" ministros, "coordenação política" é o que fazia Vítor Gaspar, até embater contra o muro do défice. "Coordenação política" é o que não faz Passos Coelho e isso percebe-se cada vez mais, e o que Relvas fazia tem outros nomes.
A fragilidade que anda no ar teria que inevitavelmente dar origem a uma crise da coligação, ou melhor, ao desequilíbrio entre parceiros de coligação, com maior margem de manobra para o CDS e menor para o PSD. Ambos os partidos estão condenados a manter a coligação, que não penso estar em causa, mas quando um deles pensa que pode sair "melhor", ou exibir-se como "melhor", face às fragilidades do parceiro, o papel do primeiro-ministro é posto em causa, e o Governo perde força no conjunto.
O Governo só por costume se pode chamar Governo: não é "coordenado", nem tem chefia, é constituído por uma entidade coesa e autogerida, o CDS, e por uma amálgama de ministros díspares, uns independentes, outros do PSD, que não se entendem entre si, uns com graves problemas de afirmação, como o da Economia, outros tendo que lidar com estruturas governativas que a demagogia dos primeiros dias varreu de chefias e substituiu por assessores, consultores, em ministérios disformes. O ministro Gaspar é vítima dos seus resultados serem medidos em números e os números falharem e o proto-ministro Borges é vítima de não ser primeiro-ministro, que é o que ele acha que devia ser.
Não é um espectáculo bonito de se ver e vamos vê-lo cada vez mais nos próximos tempos.
A evidente mudança de tempo político começou. Começou há dois ou três meses, com a queda de Relvas, o incumprimento do défice, os discursos vazios do Pontal e da Universidade de Verão, as crescentes dificuldades de fazer "passar" as políticas, como se vê com a privatização da televisão ou a legislação autárquica, a decisão do Tribunal Constitucional, as desavenças públicas na coligação, as disfunções no Governo. A estes factores políticos somam-se os sucessivos números negativos da conjuntura económico-social, a quebra do produto, a descida no ranking da competitividade, o aumento sempre crescente do desemprego, e das falências de empresas e de famílias.
No conjunto, todos estes factos mostram que se está a entrar num tempo político novo, em que a dominante da "culpa" na vida política nacional que era a rejeição de Sócrates, associada ao consenso sobre a inevitabilidade da austeridade, estão a esvanecer-se e a colocar o Governo de Passos Coelho e as suas políticas como alvo privilegiado da culpabilização dos cidadãos. Não é pequena a mudança, nem as suas consequências. Antes era possível fazer praticamente tudo, em nome do "regabofe" de Sócrates e das imposições da troika, hoje há cada vez menos margem de manobra para fazer alguma coisa, sem os efeitos perversos e o "ruído" serem maiores do que os resultados desejados. Ora, o primeiro-ministro e o Governo estão especialmente impreparados para defrontar esta situação.
Analisando alguns dos factores que revelam esta mudança do tempo político percebe-se como eles são reveladores dessa fragilidade. Veja-se o efeito do incumprimento do défice. Aqui o Governo só é vítima de si próprio, porque fez a cama em que se deitou: mesmo que haja o incumprimento do défice exigido no acordo com a troika, nem por isso deixa de haver uma descida muito significativa. Os propagandistas do Governo vêm-nos lembrar desse facto, que é verdadeiro, só que não foi isso que o Governo prometeu para justificar as medidas de choque que tomou. Não foi para diminuir o défice, foi para cumprir o acordado com a troika, e foi esse o cerne do discurso governativo. Foi para acertar e não para falhar, e algumas das mais assertivas afirmações do primeiro-ministro eram nessa matéria, como também a recusa arrogante e cheia de certezas das prevenções de todos os que disseram que isso era impossível, exactamente pelas razões que se vieram a verificar: em particular, a quebra das receitas devido aos excessos fiscais, ao desemprego e ao empobrecimento e o aumento das despesas sociais. A razão por que existe uma quebra de legitimidade no discurso do Governo sobre o défice é que tudo rondava à sua volta, tudo se justificava com o número mágico.
Outro sinal da mudança do tempo político é a sensação de que tudo o que era possível fazer há um ano não foi feito como devia, e hoje já não é possível de fazer sem grandes convulsões. O Governo esgotou o tempo psicológico das possibilidades excepcionais, para passar para o tempo psicológico do cansaço com a excepcionalidade. Sem ter cumprido o seu objectivo central, nem ter feito qualquer reforma estrutural, o Governo começa a defrontar um misto de realidade e "estado de alma", o "cansaço da austeridade". O Governo entende que a austeridade pura e dura ainda só começou, as pessoas que já durou tempo de mais. O Governo acha que o "ajustamento" ainda está na infância, mas já percebeu que não vai ter os efeitos de milagre económico que esperava. As pessoas acham que o Governo teve a sua oportunidade e que a perdeu e não estão dispostas a mais sacrifícios a não ser à força e atribuem-nos cada vez mais às asneiras de Passos Coelho, a somar aos desmandos de Sócrates.
Neste novo tempo, o factor constitucional também se tornou uma preocupação central da governação. Até ao momento em que o Tribunal Constitucional "chumbou" os cortes na função pública, o Governo não mostrava ter muita preocupação com a legalidade constitucional das suas medidas. Embalado pela consciência colectiva de que era necessário tomar medidas de austeridade (o maior património que o Governo está a desbaratar), sentia que podia fazer o que queria. que o Tribunal iria dar cobertura a medidas inconstitucionais em nome da "emergência nacional". E foi assim com muitas medidas, até um dia. Hoje, o problema da constitucionalidade, que era a última preocupação do Governo, tornou-se premente em muitas áreas, quer na privatização da RTP, quer na legislação autárquica e laboral, quer em medidas na área da justiça, o Tribunal deixou de se apagar em nome da "emergência nacional".
Mas onde é mais evidente a deterioração do tempo político do Governo é no órgão, mais do que na função. É o Governo que está muito mal. Na verdade, o menosprezo, ou impotência, revelado pelo primeiro-ministro no tratamento do "caso Relvas", está a corroer o Governo. Ao tornar a "coordenação política" do Governo - um termo eufemístico, mas que é habitualmente usado - fantasmática, o primeiro-ministro criou um gigantesco vazio que todos se estão a apressar a ocupar: o CDS, o PSD, os lóbis da RTP, o PS, os outros ministros. A natureza da política é a de ter horror ao vácuo, e um vácuo ambulante só reforça todos os que com ele contactam.
Aliás poucas coisas revelavam melhor, desde início, as fragilidades políticas do Governo, que a ideia que Relvas pudesse ter o papel que lhe era dado, isso sim mostrando como Passos pensava que os métodos do aparelhismo partidário resultavam num governo, como resultam numa distrital do PSD ou da jota. "Coordenação política" é o que faz Portas, para o PP, entre o seu cargo de ministro e os "seus" ministros, "coordenação política" é o que fazia Vítor Gaspar, até embater contra o muro do défice. "Coordenação política" é o que não faz Passos Coelho e isso percebe-se cada vez mais, e o que Relvas fazia tem outros nomes.
A fragilidade que anda no ar teria que inevitavelmente dar origem a uma crise da coligação, ou melhor, ao desequilíbrio entre parceiros de coligação, com maior margem de manobra para o CDS e menor para o PSD. Ambos os partidos estão condenados a manter a coligação, que não penso estar em causa, mas quando um deles pensa que pode sair "melhor", ou exibir-se como "melhor", face às fragilidades do parceiro, o papel do primeiro-ministro é posto em causa, e o Governo perde força no conjunto.
O Governo só por costume se pode chamar Governo: não é "coordenado", nem tem chefia, é constituído por uma entidade coesa e autogerida, o CDS, e por uma amálgama de ministros díspares, uns independentes, outros do PSD, que não se entendem entre si, uns com graves problemas de afirmação, como o da Economia, outros tendo que lidar com estruturas governativas que a demagogia dos primeiros dias varreu de chefias e substituiu por assessores, consultores, em ministérios disformes. O ministro Gaspar é vítima dos seus resultados serem medidos em números e os números falharem e o proto-ministro Borges é vítima de não ser primeiro-ministro, que é o que ele acha que devia ser.
Não é um espectáculo bonito de se ver e vamos vê-lo cada vez mais nos próximos tempos.
(Versão do Público de 8 de Setembro de 2012.)
(url)
Sem comentários:
Enviar um comentário