MEMÓRIAS - Viajando pelas linhas do Norte e do Oeste
* Victor Nogueira
Às 8:30 tomámos o rápido da linha do Norte. Caía uma chuva miúdinha e no céu via-se um lindo arco‑íris. Matabichámos [pequeno almoçámos] no bar da estação de Santa Apolónia, em, Lisboa, que é original, com motivos do caminho de ferro.
À saída de Lisboa passámos por um aeródromo militar. Monte Real era sobrevoada por aviões a jacto, da Base Aérea 5. A primeira paragem foi em Santarém. As cadeiras da automotora são mais espaçosas que as do rápido. Às 9:40 chegámos ao Entroncamento , a terra dos fenómenos. Ia tão entretido a ler que, entre Fátima e Pombal, passámos por um túnel sem eu dar por isso.
Antes de Pombal passámos por um outro que estava em obras. Nesta altura chovia. Às 11:10 chegámos a Alfarelos e pouco depois à estação de Coimbra B. O rio Mondego estava quase seco - e é um rio importante do continente! Passámos por Pampilhosa da Serra (11:43), Cúria (11:50), Aveiro (12:18), Estarreja, Ovar, Espinho, Granja (13:05), Vila Nova de Gaia (13:25), Campanhã e S. Bento (13:50). Na nossa carruagem seguiam 4 indianos que deveriam ter saído em Coimbra, mas por ignorância (passaram lá sem saber) não o fizeram e resolveram seguir até ao Porto. Muitas das estações do percurso tinham bonitos jardins.
E de Aveiro (ou será de Ovar?) recordo os vendedores que invadiam a carruagem do comboio, apregoando jornais, bebidas e... doces de ovos moles, em pequenas barricas de madeira. Espinho, cuja estação ficava no centro da povoação, indicava qase o fim da viagem.A partir de certa altura, em Vila Nova de Gaia, nova mudança de comboio, devido à fragilidade crescente da ponte D. Maria ! [1963]
No comboio, a caminho de Lisboa, pedi a um dos meus companheiros de viagem que me emprestasse as "Modas e Bordados" para folhear, pausa na conversa que mantínhamos desde o Porto. Agora o dia está maravilhoso e cheio de sol. (No Porto chovia a cântaros) Há já um bom bocado que deixámos Coimbra, onde era sempre a confusão da mudança de comboio, arrastando o saco de viagem ou malas.. O comboio desliza rápido, tac-tac, tac-tac. deixando para trás campos verdejantes, olivais e vinhedos, pinhais, alguns deles alagados, e casas dispersas na paisagem. Os meus vizinhos de compartimento dormitam, enquanto a sineta toca para o almoço. Daqui a uma hora chegaremos a Lisboa. (...) Os companheiros de viagem: a sra. D. Alice, ar aristocrático, minha velha conhecida do Porto, cheia de vivacidade, apesar da idade, rosto quadrado, sanguínea. O outro, desconhecido, deve ser um homem ligado à actividade comercial, pelo modo como veste e pelos apetrechos: óculos e lapiseira no bolso do lenço no casaco, pasta. Veste com pouca elegância, fato de um tecido acastanhado mesclado de azul e vermelho, colete cinzento de malha, gravata preta com duas listas - uma encarnada e amarela, estreita, outra mais larga, verde, junto ao nó. Sapatos castanhos, mal engraxados. Afinal a pasta continha um farnel embrulhado num guardanapo dentro dum saquito de plástico, que ele come, e que me ofereceu. (Isto faz‑me lembrar que tenho de ir ao bar comer uma sandes).
A D. Alice, o [jornal] "O 1º de Janeiro" nos joelhos, dormita, a cabeça apoiada na mão. Queixa‑se do frio, mas aqui para nós ainda bem que desligaram o aquecimento, pois isto já era um forno.
Chegamos ao Entroncamento são 12:40. Por causa das obras na linha, penso eu, o comboio vem atrasado. As casas, blocos uniformes, regularmente monótonos, as linhas, cruzando‑se e divergindo, cheias de carruagens, vagões e locomotivas, são uma nota diferente na paisagem, que desde há uns bons quilómetros é mais árida que no princípio da viagem. A linha férrea é uma ponte nos campos alagados, com água barrenta, levemente ondulada. Solitariamente, pequenas ilhas, renques de árvores de ramos desfolhados, cujos nomes desconheço. Já não se vêm no entanto árvores cortadas e oliveiras deitadas no solo, raízes desentranhadas pela força dos ventos, que no Porto e nos últimos dias sibilaram noites seguidas, infiltrando‑se pelas frestas das portas e janelas. Gostaria de andar num barquito por esses campos alagados. [1972]
Doutra feita a viagem decorreu bem, embora maçadora. No compartimento, além de mim, viajavam dois rapazes sisudos e calados e uma rapariga, que não tinha culpa de ser feiosa e fortezita! Ia mesmo sentada à minha frente mas, contra o meu costume, não trocámos uma única palavra. Pensando bem, ela não era tão feiosa como isso, até tinha uns lindos olhos azuis e um sorriso bonito. Só sorriu uma vez, quando eu, com um ar muito circunspecto, fingia admirar a paisagem; eis senão quando aparece um malandro dum comboio, sem avisar, às apitadelas, que me fez dar um salto na poltrona. A muito custo lá consegui assumir um ar de dignidade ofendida, embora a vontade de rir fosse grande. Bem, lá chegámos a Lisboa, onde chovia a potes. Táxis, nem sombra; os que apareciam eram logo anexados. Mas... enquanto há vida há esperança e sempre apanhei um! [1968]
Em Aveiro a corrente eléctrica foi abaixo e lá ficou o comboio parado e eu cheio de sede e de fome, a ver que íamos ali passar o resto da noite! Lá para as tantas entrou o "Foguete" na estação, rumo ao Porto. Vai daí, eu e mais alguns expeditos mudámos para ele, e assim consegui viajar confortavelmente, em poltronas estofadas e com aquecimento (1ª classe), conseguindo chegar ao Porto à tabela, i.e, ás 21:30, sem pagar bilhete. (Soube depois que o resto da malta, do outro comboio, só chegou depois das 23:00). Enfim ...
(...) Cá vou de regresso a Lisboa, num comboio cheio mas onde consegui arranjar um lugar sentado. Os meus companheiros de cabine dormem e um deles ressona beatificamente. Este postal é - creio - uma fotografia retirada dum dos dois filmes que há dias vi sobre as campanhas de alfabetização, as tais em que eu gostaria de ter participado em Agosto último se... Esta cena do filme era comovente: uma mulher que até aí não sabia comunicar por escrito, conseguir fazê-lo. A procura das sílabas, o gesto hesitante, o voltar atrás para corrigir ou desenhar melhor a letra!!! Deve ser bestial um tipo descobrir que sabe ler! (1974)
As carruagens do comboio da Linha do Oeste são antiquadas e as do Caminho de Ferro de Benguela [em Angola] são um pouco melhores. Passámos em Francelos, onde há um sanatório para doenças dos ossos. Perto de Aveiro, os campos têm pinheiros e milho. Em Coimbra nada vi, pois a estação velha não fica na cidade. De Coimbra a Monte Real vim a conversar com um sacerdote franciscano, bastante falador. O Rio Mondego estava quase seco. Havia muito arroz e oliveiras. Chegámos a Monte Real cerca das 17:30. Na Pensão Cozinha Portuguesa fiquei instalado. Um quarto do sótão, pequeno, sem água corrente, com uma clarabóia. O quarto tem uma cama com um óptimo colchão, um guarda fatos, uma mesa de cabeceira, além do lavatório e bidé. Como é meu costume tratei de visitar a terra, tendo dois hotéis e quase duas dezenas de pensões; a nossa fica num extremo. (1963)
E se a viagem era normal em épocas normais, aos fins de semana eram mais complicadas, com as carruagens cheias de magalas ruidosos. Mas ainda mais complicada era na altura do Natal, onde uma vez fiz a viagem quase toda de pé, a cesta de vime de alguém entre as minhas pernas, a carruagem cheia de sacos, aves vivas e o mais que as pessoas transportavam. Mas o que eu gostava mesmo, nos meus tempos de juventude, era seguir no degrau da porta, o vento a bater na face e, por vezes, uma fagulha traiçoeira incomodando os olhos.
Na linha do Oeste um deslumbramento para mim foi descobrir Óbidos entre muralhas, que na altura pensava ser um enorme castelo, até que mais tarde descobri que os castelos eram mais pequenos, normalmente situados no cimo da encosta aproveitando o alcantilado, e que o resto eram apenas muralhas mais ou menos extensas protegendo a povoação, conforme a sua importância. Victor Nogueira (Memórias de Viagem - 1996)
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