Movimentos
Em uma longa entrevista a João Céu e Silva, do site português Diário de Notícias, o sociólogo Boaventura Souza Santos, que recebeu o Prêmio México de Ciência e Tecnologia, analisa a situação de Portugal e a crise mundial provocada pela especulação dos mercados financeiros. Será o Presidente mexicano que, dia 14, lhe entregará o galardão pelo trabalho no espaço ibero-americano, semanas após lhe ter também sido concedida uma bolsa de 2,4 milhões de euros para desenvolver as suas idéias.
Diário de Notícias- Por que razão é que os portugueses não se revoltam perante a imposição destas medidas de austeridade tão violentas?
Boaventura Souza Santos - Reformularia a pergunta para "porque é que ainda não se revoltaram?", ou faz parecer que nunca se revoltarão. Basta lembrar que também pensávamos que não haveria mudança na sociedade portuguesa devido aos nossos brandos costumes, e houve o 25 de Abril.
DN- Que foi uma revolta tirada a ferros!
BSS- Sim, que começou como uma revolta militar dos que tinham o poder e ficaram desafetos dele porque os tinha metido no pesadelo e na armadilha de uma guerra colonial que nunca se poderia vencer. E o povo respondeu de uma maneira criativa a esse processo.
DN- Desta vez não se vislumbram capitães para liderar a contestação.
BSS- Neste momento, não. Em primeiro lugar, porque os portugueses ainda não se deram conta de todas as consequências das medidas que estão a ser tomadas. Que nem serão as medidas definitivas, porque enquanto não forem regulados os mercados financeiros quaisquer planos de austeridade vão ser seguidos por novos planos de austeridade, porque os mercados estão numa fase absolutamente insaciável. Em segundo lugar, ainda estamos numa fase do susto.
DN- Por isso é que a reação demora?
BSS- Após um discurso de austeridade, as pessoas começaram a ver os salários, as pensões e as participações nos medicamentos a ser cortados, mas este tratamento ainda não entrou tão profundamente nos bolsos quanto acontecerá no futuro. Sobretudo, ainda não entrou na cabeça das pessoas e elas não se deram conta de que a erosão é irreversível e não ficará por aqui.
DN- Irreversível em que sentido?
BSS- De que o nível de vida a que se habituaram nas últimas duas ou três décadas vai deixar de existir. Os filhos, eventualmente, podem vir a retomá-lo, mas eles, certamente, estão num período de declínio do nível de vida e não vão recuperá-lo nos próximos anos.
DN- Mesmo com tantas promessas?
BSS- Por mais que os políticos digam que vai demorar cinco anos, os danos são muito mais profundos do que se pode imaginar agora e ainda vai levar tempo para se darem conta dos verdadeiros efeitos. A verdade é que Portugal passou 48 anos em ditadura e os hábitos democráticos expressos nos conflitos e contradições sociais não foram vividos tão intensamente como noutros países da Europa.
DN- Tal como a Grécia ou a Itália?
BSS- A Grécia teve um período de ditadura entre 1967 e 1974, mas tem uma tradição de sociedade civil organizada, enquanto a Itália tem um sistema político relativamente desconectado das formas de organização da sociedade civil. Portugal perdeu nesse meio século o período em que as sociedades se organizaram para a convivência democrática que originou a actual Europa.
DN- Mas conseguiram unir forças para derrotar o projeto de reformas do 1.º Governo de José Sócrates.
BSS- Os portugueses têm-se organizado para questões pontuais e setoriais em que os interesses estão mais organizados. No caso dos professores, tal como na função pública, há uma forma de organização sindical bastante forte, mas é evidente que não reagem espontaneamente para grandes manifestações como vemos em França, onde não foram apenas os sindicalistas que se revoltam, mas o cidadão comum, quando chegou à conclusão de que bastava.
DN- Estranhou que tivéssemos sido o único país que realiza uma Cimeira da Nato [Otan] sem um único conflito?
BSS- Não temos grande tradição de mobilização e de contestação social. Mesmo as greves gerais, ao contrário doutros países, não foram complementadas com grandes manifestações de rua, porque as centrais sindicais têm temor do fracasso. Isto é característico da sociedade portuguesa, mas nada diz que amanhã não seja diferente.
DN- As grandes contestações às medidas de austeridade vieram de sectores inesperados: do presidente socialista do Governo dos Açores e dos magistrados. Porquê?
BSS- São formas diferentes de contestação e processos políticos distintos. Temos, por um lado, as ações sindicais, os movimentos e as organizações da sociedade que se associam aos sindicatos e o cidadão em geral. Por outro lado, temos os interesses organizados e, mais complicados, quando mete órgãos de soberania na contestação.
DN- Quando os magistrados não aceitam o mesmo corte de grande parte dos portugueses, estamos perante uma defesa corporativa?
BSS- Nesse caso, sim. Mas as providências cautelares não se dirigem apenas aos salários dos magistrados.
DN- Até agora, quem lidera a contestação é o poder judicial. É normal?
BSS- O que temos neste momento é uma iniciativa judicial que em democracia é saudável. Não está a ser feita por desobediência civil a greve de magistrados judiciais, mas através de um mecanismo judicial que visa confrontar estas medidas com a nossa própria Constituição.
DN- Ao dizer que os portugueses ainda não se revoltaram é porque prevê que haja alguma convulsão?
BSS- É muito difícil fazer essa previsão. Aliás, penso que os sociólogos são muito bons a prever o passado e muito maus no que respeita ao futuro. Principalmente, em situações de grande turbulência como a que estamos a assistir. Aliás, podemos dizer que aquilo que é impensável hoje pode ser inevitável amanhã: que o euro acabe, por exemplo. Pode ser que daqui a um tempo passe de impensável a inevitável com uma fratura dentro do euro. Por outro lado, sabemos que não são as desigualdades sociais nem as formas de empobrecimento que automaticamente provocam contestação, ou os sistemas despóticos não tinham funcionado. Os sistemas mais autoritários e desiguais criam formas de resignação que tiram às pessoas a capacidade de autonomia para se revoltarem. Ficam com medo do patrão e do que lhes pode acontecer, ou seja, não é automático que o agravamento das condições econômicas leve à contestação política.
DN- Mesmo em democracia?
BSS- É evidente que as situações de conflito vão surgir em Portugal e em toda a Europa. É evidente que, quando se fala de contágio dos mercados, não se deve pensar que está apenas a esse nível mas que quando os portugueses vêem os espanhóis, os gregos ou os franceses a revoltar-se é natural que se questionem: "Afinal, por que razão é que nós não nos revoltamos perante uma situação que até é mais injusta?" É bom não esquecer que Portugal tinha em 2009 as contas muito mais equilibradas do que a Grécia ou a Irlanda.
DN- Mas se vier um PEC IV?
BSS- O que é bem provável vir a acontecer porque os portugueses ainda não se deram conta de que estão numa situação em que a soberania dos Estados - não havendo uma regulação dos mercados financeiros - está sujeita aos abutres financeiros. Uma das coisas que me horroriza é dizer-se na comunicação social cobras e lagartos do Estado ou que a festa acabou e que Portugal é insustentável, enquanto ninguém é tão veemente no que respeita ao fato de os mercados financeiros poderem ganhar rios de dinheiro com a nossa crise e até se façam apostas para ver se a dívida portuguesa será paga e que se ganhe muito dinheiro na aposta. Isto é crime contra a humanidade!
DN- Há anos dizia que o mundo pós- guerra tinha duas superpotências: Estados Unidos e agência Moody's. O que mudou foi deixarem de ser contra o Terceiro Mundo e virarem-se para a União Europeia?
BSS- Exatamente, essa minha previsão deu certo! Neste momento, estamos nas mãos das agências de notação e algo deve estar profundamente errado quando os juros da dívida de Espanha são iguais aos do Paquistão. Acho que estamos a entrar numa disjunção que pode provocar contestação e é provável que ocorra ao nível europeu em geral e, portanto, em Portugal.
DN-Voltemos a prever. O que se segue?
BSS- Penso que nos próximos anos vamos estar perante esta opção: mercados sem fim ou democracia sem fim. Ou seja, os mercados vão regular tudo e assistiremos a um empobrecimento da grande maioria e ao enriquecimento absolutamente injusto de uns poucos.
DN- A União Europeia não conseguirá responder aos mercados?
BSS- Essa é outra questão que nem os portugueses nem os europeus estão a ver bem. Porquê? Se para Portugal a Europa foi até agora um benefício líquido que, desde 1986, alavancou um desenvolvimento notável através dos fundos estruturais e de coesão que nos deram oportunidades que se pensavam que eram sustentáveis, o que estamos a verificar é que a Europa desse período não é a de agora. Mudou, sem que se tenha alterado institucionalmente situações como o aprofundamento. Por isso, é dominada por interesses egoísticos nacionais.
DN- A solução da atual crise passa pela forte ajuda da União Europeia?
BSS- De uma coisa estou certo, a Grécia nunca vai poder pagar esta dívida à União Europeia se não houver uma reestruturação da dívida. Nem a Irlanda vai conseguir! Estes processos só se resolvem com um perdão de parte dessa dívida. Como se fez à Alemanha em 1950. As dívidas pagam-se com dinheiro, não é? De onde é que vem o dinheiro para o Estado? Dos impostos. De onde é que vem o dinheiro dos impostos? Do crescimento econômico! Se não houver emprego e crescimento econômico não encontro forma de a Grécia, a Irlanda, e de amanhã Portugal, a Espanha ou a Itália também pagarem. São os que estão na fila - Portugal, Espanha e Itália - e os mercados financeiros estão a apostar na bancarrota destes países porque vão ganhar muito dinheiro até que ela ocorra. Como é que é possível que os países funcionem nesta base quando se aposta na nossa falência e no lucro que ela dá?
DN- Então, Portugal não será capaz de pagar a sua dívida?
BSS- Se estas medidas de austeridade de curto prazo não forem compensadas com as de médio prazo, que só podem vir da União Europeia, para poder repor o crescimento econômico, Portugal, Espanha, Grécia e Irlanda não poderão pagar a sua dívida porque entrarão numa fase de estagnação econômica e ficarão sem recursos para pagar. Precisamos de medidas em médio prazo e de uma refundação da Europa com políticas conjuntas e solidárias, de modo a que a Europa se afirme como uma alternativa aos Estados Unidos e não permaneça totalmente subserviente da desregulação dos mercados.
DN- Mesmo quando a economia dos Estados Unidos já não é tão forte?
BSS- Os mercados favorecem, acima de tudo, os Estados Unidos, e não se pode deixar de pensar que estavam preocupados com a estabilidade do euro. Os Estados Unidos não tinham interesse em que o euro fosse uma moeda estável e, portanto, o ataque especulativo à Zona Euro começou pelos países mais fracos. Como os dirigentes europeus, com grande miopia e desconhecimento histórico, aceitaram que esta lógica suicida avançasse, bipolarizou-se a periferia e o centro da Europa perante a crise. Só que o que acontece à periferia hoje aparecerá no centro amanhã.
DN- O Presidente Obama defraudou a confiança europeia?
BSS- Penso que sim.
DN- Não é o tal amigo europeu?
BSS- Não é, de modo nenhum. Aliás, Obama desilude a muitos outros níveis porque tem a concepção de que acima de tudo é preciso defender os Estados Unidos. Está numa lógica nacionalista e como o seu país está em crise, procura ganhar alguns pontos à Europa.
DN- Houve boa aplicação dos fundos estruturais em Portugal?
BSS- Acho que não. Deveríamos tê-los utilizado de uma maneira muito diferente: numa aposta na educação que foi menos forte do que poderia ter sido. Temos, no entanto, feito uma boa aposta na ciência e na promoção do sistema científico nacional, apesar de não se ter feito a articulação da investigação científica com o desenvolvimento tecnológico. Para isso, falta-nos uma economia mais assente na grande inovação tecnológica, só que os lobbies ganharam e grande parte dos investimentos foram em exagero, mesmo se necessitássemos deles para auto-estradas.
DN- Se Portugal não consegue liderar na agricultura e na indústria, como é que iria fazê-lo na revolução tecnológica ou do conhecimento?
BSS- A agricultura foi um péssimo negócio em que Portugal entrou. Tínhamos uma das agriculturas familiares mais fortes da Europa e foi destruída em meia dúzia de anos porque o modelo agrícola da Europa é de grande extensão e de grandes empresas agrícolas e industriais. A nossa produção familiar até era produtiva ao seu nível e produzia, por vezes, também para o mercado. Hoje, está-se a tentar recuperar na Europa a agricultura familiar e nós, que tínhamos o potencial de ser a reserva da Europa da agricultura orgânica, ficamos para trás. As coisas foram feitas em Portugal sob complexos históricos do colonialismo e da ditadura e, quando se deu a entrada na União Europeia, aceitamos as coisas de uma maneira totalmente acrítica. A negociação não foi tão boa quanto devia ser feita.
DN- A culpa é só dos governos ou também dos próprios portugueses?
BSS- É muito difícil responder porque eu sou daqueles que pensam que o Estado e a sociedade não se opõem mas crescem organicamente. Os Estados que são fortes e as sociedades civis fortes - o caso da Suécia e dos países nórdicos - têm sociedades civis muito organizadas e autônomas a par de Estados democraticamente fortes. Portanto, de alguma maneira, o Estado é o espelho da sociedade e não o seu oposto. Também, por isso, muitas críticas que se fazem ao Estado deviam fazer-se também aos empresários que não estiveram à altura das circunstâncias e das oportunidades dadas.
DN- Qual deveria ter sido a resposta?
BSS- Tivemos sempre uma burguesia muito dependente de mercados cativos - o das colônias, anteriormente - e mantivemo-los com as benesses dos fundos estruturais da Europa. E isso pode resultar da ineficiência do Estado e pode estar também ao nível dos cidadãos e da sua pequena motivação dentro da organização social. O que é estranho porque os portugueses motivam-se extraordinariamente quando emigram e são extraordinários produtores e empresários.
DN- Mas só em condições adversas?
BSS- Sempre disse que o nosso grande problema está nos empresários, que não estiveram à altura do risco e da capacidade de criar riqueza numa janela de oportunidade que tivemos e que praticamente se começou a esgotar no ano 2000. Foi a partir daí que começamos a derrapar e a deixar de nos aproximarmos da Europa. Desde então, temos vindo a distanciar-nos da média europeia e iremos continuar por esse caminho.
DN- Nem com as medidas já tomadas se pode evitá-lo?
BSS- Estes planos de austeridade podem acalmar os mercados - que são essa coisa mítica, mas que têm uma alma e vontade política por detrás desses falsos automatismos - e resolver a curto prazo o problema do déficit orçamentário, que é o problema de 2011. Mas não irão resolver em médio prazo porque nesse caso só temos uma solução: criar emprego e ter algum crescimento econômico.
DN- Que vai contra todas as medidas que o Governo está a tomar?
BSS- Neste momento, é essa a situação. Em médio prazo, podemos vir a ter uma recessão, ainda por cima num conjunto europeu em que o nosso maior cliente é a Espanha, que, provavelmente, vai estar em situação muito semelhante. Precisaríamos de golpes de asa, de medidas europeias e também de políticas inovadoras por parte dos nossos líderes. Situações excepcionais exigem soluções também excepcionais.
DN- Considera que este Governo já não conseguirá dar esse golpe de asa?
BSS- Nos governos europeus em geral criou-se uma ortodoxia que está a atravessar todos os líderes, sejam de esquerda ou de direita, que provoca uma certa exaustão em relação àquilo que é preciso fazer. Sabemos muito bem que, se neste momento queremos criar crescimento, é necessário ser mais tolerante com a inflação. Se calhar, o Estado pode ter de privatizar e até nacionalizar! Isto pode parecer um escândalo, mas se não houver a regulação dos mercados financeiros ou o Estado nacionaliza os bancos ou os bancos nacionalizam o Estado.
DN- Que é o que está a verificar-se?
BSS- É isso que está a suceder, os bancos estão a nacionalizar o Estado ao fazerem o que querem, ao terem perdas como as que se observam. Como os bancos não podem falir, nem pagam IRC como as restantes empresas, é evidente que estão a nacionalizar o Estado português porque cometem todos os erros que querem e têm os lucros que se vê, para os quais os portugueses continuarão a contribuir.
DN- Então, este Governo não será capaz de ter o golpe de asa que sugere?
BSS- Vejo com muita dificuldade que possa ocorrer. Penso que neste momento o Governo poderia aproveitar alguma transformação que ocorresse ao nível do Banco Central Europeu, onde há medidas urgentes que têm de ser tomadas. O Banco Central Europeu não pode continuar a ter o papel de emprestar aos bancos a um juro baixo e deixar que estes emprestem caro aos Estados. Nem podemos continuar a ter 10% do nosso PIB em offshores!
DN- Será preciso um novo governo?
BSS- Creio que tem de haver medidas mas não acredito que, na situação em que vivemos, elas venham por iniciativa própria. Nem deste governo nem, provavelmente, do que lhe suceder! Porque o que se vê num outro governo é que vão aprofundar-se medidas iguais. Será uma austeridade multiplicada.
DN- Você é um dos protagonistas do Fórum Social Mundial. Acha que o fórum poderá alterar a atual realidade?
BSS- O Fórum Social Mundial tem conseguido alterar mais do que se pode pensar e basta ver ao nível de temáticas que entraram na agenda política da última década. Provavelmente não teriam entrado de outra forma a questão da redução da pobreza, a das desigualdades sociais ou a consciência ecológica e ambiental. O fórum esteve também por detrás dos governos progressistas que existem na América Latina, onde aconteceu uma década gloriosa para países de grande instabilidade democrática e que tinham passado recentemente por ditaduras.
DN- A consciência ecológica não foi derrotada na Cimeira de Copenhague?
BSS- É evidente que parece que a agenda ambiental ficou para segundas núpcias. Não só em Copenhague como em Cancún, aqui até houve a ideia de que tinha havido finalmente algum progresso mas se analisarmos bem o que foi decidido deparamo-nos mais com obrigações para os países em desenvolvimento do que para os desenvolvidos, que continuaram sem grandes compromissos na redução ambiental. Aliás, Portugal tem dado uma lição - para que nem tudo seja negativo - com a reconversão energética que já atinge cerca de 25% da produção sob formas alternativas e renováveis.
DN- Disse em tempos que o Fórum Social Mundial era a grande invenção da 1.ª década do 3.º milénio e que a WikiLeaks é a grande da segunda década. Ainda pensa assim?
BSS- Creio que sim e que tem condições para o ser. A WikiLeaks ainda é muito recente para se verem todas as implicações que pode ter. O que o Fórum Social Mundial veio dizer foi que o neoliberalismo não é uma fatalidade e é possível criar espaços de manobra para reagir contra essa prática econômica. A WikiLeaks é, na mesma linha, um reforço da transparência dos governos. O que estamos a ver é que há um enorme despotismo por debaixo do verniz da democracia. As palavras que os políticos usam em público não têm nada que ver com as que utilizam em privado. As alianças que dizem estar a fazer estão completamente atraiçoadas pelas verdadeiras adotadas clandestinamente. Faz-se um discurso pró-democracia e tem-se uma tolerância total para com os crimes contra a humanidade.
DN- Mas a transparência da WikiLeaks não é só pela metade?
BSS- Não é uma transparência total, mas, penso, que uma das muitas WikiLeaks futuras possa vir a trazer mais. Como será o caso da dissidência OpenLeaks, tudo depende de saber se aquilo que há para saber foi destruído ou se ainda está em condições de ser utilizado. Para mim é muito estranho que Israel saia tão bem do retrato da WikiLeaks. Será que as suspeitas de que terá havido um acordo entre Julian Assange e Netanyahu são fundadas? Sob que condições, sob que ameaças? Os serviços secretos israelitas não olham os meios quando é preciso destruir inimigos como vimos recentemente com os líderes palestinos.
DN- Quem mais vai beneficiar-se?
BSS- O que acontece sempre é que os governos mais autoritários aproveitam mais estas oportunidades do que os movimentos sociais. Segundo Régis Debray, a revolução de Cuba apanhou os norte- -americanos de surpresa, mas foram eles que acabaram por aprender mais que os partidos de esquerda da América Latina com o fato.
DN- Qual será a lição da WikiLeaks?
BSS- Neste momento já estão a surgir novas medidas de segurança e penalizações ao nível do direito para tornar o Estado "wikiseguro". Os governos estão a tomar medidas no sentido de evitar que isto possa voltar a repetir-se. Não têm nenhuma garantia a não ser que a política volte a ser sob a forma diplomática presencial ou oral, o que é uma utopia porque não pode ser realizada. Muitas destas informações que temos hoje disponíveis foram dadas por quem tinha acesso à informação, ou seja, o poder está a perder a lealdade dos seus funcionários. Não podemos criar sociedades muito injustas e depois querer que aqueles que estão ao serviço do Estado sejam completamente leais para com ele.
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Boaventura Souza Santos - Reformularia a pergunta para "porque é que ainda não se revoltaram?", ou faz parecer que nunca se revoltarão. Basta lembrar que também pensávamos que não haveria mudança na sociedade portuguesa devido aos nossos brandos costumes, e houve o 25 de Abril.
DN- Que foi uma revolta tirada a ferros!
BSS- Sim, que começou como uma revolta militar dos que tinham o poder e ficaram desafetos dele porque os tinha metido no pesadelo e na armadilha de uma guerra colonial que nunca se poderia vencer. E o povo respondeu de uma maneira criativa a esse processo.
DN- Desta vez não se vislumbram capitães para liderar a contestação.
BSS- Neste momento, não. Em primeiro lugar, porque os portugueses ainda não se deram conta de todas as consequências das medidas que estão a ser tomadas. Que nem serão as medidas definitivas, porque enquanto não forem regulados os mercados financeiros quaisquer planos de austeridade vão ser seguidos por novos planos de austeridade, porque os mercados estão numa fase absolutamente insaciável. Em segundo lugar, ainda estamos numa fase do susto.
DN- Por isso é que a reação demora?
BSS- Após um discurso de austeridade, as pessoas começaram a ver os salários, as pensões e as participações nos medicamentos a ser cortados, mas este tratamento ainda não entrou tão profundamente nos bolsos quanto acontecerá no futuro. Sobretudo, ainda não entrou na cabeça das pessoas e elas não se deram conta de que a erosão é irreversível e não ficará por aqui.
DN- Irreversível em que sentido?
BSS- De que o nível de vida a que se habituaram nas últimas duas ou três décadas vai deixar de existir. Os filhos, eventualmente, podem vir a retomá-lo, mas eles, certamente, estão num período de declínio do nível de vida e não vão recuperá-lo nos próximos anos.
DN- Mesmo com tantas promessas?
BSS- Por mais que os políticos digam que vai demorar cinco anos, os danos são muito mais profundos do que se pode imaginar agora e ainda vai levar tempo para se darem conta dos verdadeiros efeitos. A verdade é que Portugal passou 48 anos em ditadura e os hábitos democráticos expressos nos conflitos e contradições sociais não foram vividos tão intensamente como noutros países da Europa.
DN- Tal como a Grécia ou a Itália?
BSS- A Grécia teve um período de ditadura entre 1967 e 1974, mas tem uma tradição de sociedade civil organizada, enquanto a Itália tem um sistema político relativamente desconectado das formas de organização da sociedade civil. Portugal perdeu nesse meio século o período em que as sociedades se organizaram para a convivência democrática que originou a actual Europa.
DN- Mas conseguiram unir forças para derrotar o projeto de reformas do 1.º Governo de José Sócrates.
BSS- Os portugueses têm-se organizado para questões pontuais e setoriais em que os interesses estão mais organizados. No caso dos professores, tal como na função pública, há uma forma de organização sindical bastante forte, mas é evidente que não reagem espontaneamente para grandes manifestações como vemos em França, onde não foram apenas os sindicalistas que se revoltam, mas o cidadão comum, quando chegou à conclusão de que bastava.
DN- Estranhou que tivéssemos sido o único país que realiza uma Cimeira da Nato [Otan] sem um único conflito?
BSS- Não temos grande tradição de mobilização e de contestação social. Mesmo as greves gerais, ao contrário doutros países, não foram complementadas com grandes manifestações de rua, porque as centrais sindicais têm temor do fracasso. Isto é característico da sociedade portuguesa, mas nada diz que amanhã não seja diferente.
DN- As grandes contestações às medidas de austeridade vieram de sectores inesperados: do presidente socialista do Governo dos Açores e dos magistrados. Porquê?
BSS- São formas diferentes de contestação e processos políticos distintos. Temos, por um lado, as ações sindicais, os movimentos e as organizações da sociedade que se associam aos sindicatos e o cidadão em geral. Por outro lado, temos os interesses organizados e, mais complicados, quando mete órgãos de soberania na contestação.
DN- Quando os magistrados não aceitam o mesmo corte de grande parte dos portugueses, estamos perante uma defesa corporativa?
BSS- Nesse caso, sim. Mas as providências cautelares não se dirigem apenas aos salários dos magistrados.
DN- Até agora, quem lidera a contestação é o poder judicial. É normal?
BSS- O que temos neste momento é uma iniciativa judicial que em democracia é saudável. Não está a ser feita por desobediência civil a greve de magistrados judiciais, mas através de um mecanismo judicial que visa confrontar estas medidas com a nossa própria Constituição.
DN- Ao dizer que os portugueses ainda não se revoltaram é porque prevê que haja alguma convulsão?
BSS- É muito difícil fazer essa previsão. Aliás, penso que os sociólogos são muito bons a prever o passado e muito maus no que respeita ao futuro. Principalmente, em situações de grande turbulência como a que estamos a assistir. Aliás, podemos dizer que aquilo que é impensável hoje pode ser inevitável amanhã: que o euro acabe, por exemplo. Pode ser que daqui a um tempo passe de impensável a inevitável com uma fratura dentro do euro. Por outro lado, sabemos que não são as desigualdades sociais nem as formas de empobrecimento que automaticamente provocam contestação, ou os sistemas despóticos não tinham funcionado. Os sistemas mais autoritários e desiguais criam formas de resignação que tiram às pessoas a capacidade de autonomia para se revoltarem. Ficam com medo do patrão e do que lhes pode acontecer, ou seja, não é automático que o agravamento das condições econômicas leve à contestação política.
DN- Mesmo em democracia?
BSS- É evidente que as situações de conflito vão surgir em Portugal e em toda a Europa. É evidente que, quando se fala de contágio dos mercados, não se deve pensar que está apenas a esse nível mas que quando os portugueses vêem os espanhóis, os gregos ou os franceses a revoltar-se é natural que se questionem: "Afinal, por que razão é que nós não nos revoltamos perante uma situação que até é mais injusta?" É bom não esquecer que Portugal tinha em 2009 as contas muito mais equilibradas do que a Grécia ou a Irlanda.
DN- Mas se vier um PEC IV?
BSS- O que é bem provável vir a acontecer porque os portugueses ainda não se deram conta de que estão numa situação em que a soberania dos Estados - não havendo uma regulação dos mercados financeiros - está sujeita aos abutres financeiros. Uma das coisas que me horroriza é dizer-se na comunicação social cobras e lagartos do Estado ou que a festa acabou e que Portugal é insustentável, enquanto ninguém é tão veemente no que respeita ao fato de os mercados financeiros poderem ganhar rios de dinheiro com a nossa crise e até se façam apostas para ver se a dívida portuguesa será paga e que se ganhe muito dinheiro na aposta. Isto é crime contra a humanidade!
DN- Há anos dizia que o mundo pós- guerra tinha duas superpotências: Estados Unidos e agência Moody's. O que mudou foi deixarem de ser contra o Terceiro Mundo e virarem-se para a União Europeia?
BSS- Exatamente, essa minha previsão deu certo! Neste momento, estamos nas mãos das agências de notação e algo deve estar profundamente errado quando os juros da dívida de Espanha são iguais aos do Paquistão. Acho que estamos a entrar numa disjunção que pode provocar contestação e é provável que ocorra ao nível europeu em geral e, portanto, em Portugal.
DN-Voltemos a prever. O que se segue?
BSS- Penso que nos próximos anos vamos estar perante esta opção: mercados sem fim ou democracia sem fim. Ou seja, os mercados vão regular tudo e assistiremos a um empobrecimento da grande maioria e ao enriquecimento absolutamente injusto de uns poucos.
DN- A União Europeia não conseguirá responder aos mercados?
BSS- Essa é outra questão que nem os portugueses nem os europeus estão a ver bem. Porquê? Se para Portugal a Europa foi até agora um benefício líquido que, desde 1986, alavancou um desenvolvimento notável através dos fundos estruturais e de coesão que nos deram oportunidades que se pensavam que eram sustentáveis, o que estamos a verificar é que a Europa desse período não é a de agora. Mudou, sem que se tenha alterado institucionalmente situações como o aprofundamento. Por isso, é dominada por interesses egoísticos nacionais.
DN- A solução da atual crise passa pela forte ajuda da União Europeia?
BSS- De uma coisa estou certo, a Grécia nunca vai poder pagar esta dívida à União Europeia se não houver uma reestruturação da dívida. Nem a Irlanda vai conseguir! Estes processos só se resolvem com um perdão de parte dessa dívida. Como se fez à Alemanha em 1950. As dívidas pagam-se com dinheiro, não é? De onde é que vem o dinheiro para o Estado? Dos impostos. De onde é que vem o dinheiro dos impostos? Do crescimento econômico! Se não houver emprego e crescimento econômico não encontro forma de a Grécia, a Irlanda, e de amanhã Portugal, a Espanha ou a Itália também pagarem. São os que estão na fila - Portugal, Espanha e Itália - e os mercados financeiros estão a apostar na bancarrota destes países porque vão ganhar muito dinheiro até que ela ocorra. Como é que é possível que os países funcionem nesta base quando se aposta na nossa falência e no lucro que ela dá?
DN- Então, Portugal não será capaz de pagar a sua dívida?
BSS- Se estas medidas de austeridade de curto prazo não forem compensadas com as de médio prazo, que só podem vir da União Europeia, para poder repor o crescimento econômico, Portugal, Espanha, Grécia e Irlanda não poderão pagar a sua dívida porque entrarão numa fase de estagnação econômica e ficarão sem recursos para pagar. Precisamos de medidas em médio prazo e de uma refundação da Europa com políticas conjuntas e solidárias, de modo a que a Europa se afirme como uma alternativa aos Estados Unidos e não permaneça totalmente subserviente da desregulação dos mercados.
DN- Mesmo quando a economia dos Estados Unidos já não é tão forte?
BSS- Os mercados favorecem, acima de tudo, os Estados Unidos, e não se pode deixar de pensar que estavam preocupados com a estabilidade do euro. Os Estados Unidos não tinham interesse em que o euro fosse uma moeda estável e, portanto, o ataque especulativo à Zona Euro começou pelos países mais fracos. Como os dirigentes europeus, com grande miopia e desconhecimento histórico, aceitaram que esta lógica suicida avançasse, bipolarizou-se a periferia e o centro da Europa perante a crise. Só que o que acontece à periferia hoje aparecerá no centro amanhã.
DN- O Presidente Obama defraudou a confiança europeia?
BSS- Penso que sim.
DN- Não é o tal amigo europeu?
BSS- Não é, de modo nenhum. Aliás, Obama desilude a muitos outros níveis porque tem a concepção de que acima de tudo é preciso defender os Estados Unidos. Está numa lógica nacionalista e como o seu país está em crise, procura ganhar alguns pontos à Europa.
DN- Houve boa aplicação dos fundos estruturais em Portugal?
BSS- Acho que não. Deveríamos tê-los utilizado de uma maneira muito diferente: numa aposta na educação que foi menos forte do que poderia ter sido. Temos, no entanto, feito uma boa aposta na ciência e na promoção do sistema científico nacional, apesar de não se ter feito a articulação da investigação científica com o desenvolvimento tecnológico. Para isso, falta-nos uma economia mais assente na grande inovação tecnológica, só que os lobbies ganharam e grande parte dos investimentos foram em exagero, mesmo se necessitássemos deles para auto-estradas.
DN- Se Portugal não consegue liderar na agricultura e na indústria, como é que iria fazê-lo na revolução tecnológica ou do conhecimento?
BSS- A agricultura foi um péssimo negócio em que Portugal entrou. Tínhamos uma das agriculturas familiares mais fortes da Europa e foi destruída em meia dúzia de anos porque o modelo agrícola da Europa é de grande extensão e de grandes empresas agrícolas e industriais. A nossa produção familiar até era produtiva ao seu nível e produzia, por vezes, também para o mercado. Hoje, está-se a tentar recuperar na Europa a agricultura familiar e nós, que tínhamos o potencial de ser a reserva da Europa da agricultura orgânica, ficamos para trás. As coisas foram feitas em Portugal sob complexos históricos do colonialismo e da ditadura e, quando se deu a entrada na União Europeia, aceitamos as coisas de uma maneira totalmente acrítica. A negociação não foi tão boa quanto devia ser feita.
DN- A culpa é só dos governos ou também dos próprios portugueses?
BSS- É muito difícil responder porque eu sou daqueles que pensam que o Estado e a sociedade não se opõem mas crescem organicamente. Os Estados que são fortes e as sociedades civis fortes - o caso da Suécia e dos países nórdicos - têm sociedades civis muito organizadas e autônomas a par de Estados democraticamente fortes. Portanto, de alguma maneira, o Estado é o espelho da sociedade e não o seu oposto. Também, por isso, muitas críticas que se fazem ao Estado deviam fazer-se também aos empresários que não estiveram à altura das circunstâncias e das oportunidades dadas.
DN- Qual deveria ter sido a resposta?
BSS- Tivemos sempre uma burguesia muito dependente de mercados cativos - o das colônias, anteriormente - e mantivemo-los com as benesses dos fundos estruturais da Europa. E isso pode resultar da ineficiência do Estado e pode estar também ao nível dos cidadãos e da sua pequena motivação dentro da organização social. O que é estranho porque os portugueses motivam-se extraordinariamente quando emigram e são extraordinários produtores e empresários.
DN- Mas só em condições adversas?
BSS- Sempre disse que o nosso grande problema está nos empresários, que não estiveram à altura do risco e da capacidade de criar riqueza numa janela de oportunidade que tivemos e que praticamente se começou a esgotar no ano 2000. Foi a partir daí que começamos a derrapar e a deixar de nos aproximarmos da Europa. Desde então, temos vindo a distanciar-nos da média europeia e iremos continuar por esse caminho.
DN- Nem com as medidas já tomadas se pode evitá-lo?
BSS- Estes planos de austeridade podem acalmar os mercados - que são essa coisa mítica, mas que têm uma alma e vontade política por detrás desses falsos automatismos - e resolver a curto prazo o problema do déficit orçamentário, que é o problema de 2011. Mas não irão resolver em médio prazo porque nesse caso só temos uma solução: criar emprego e ter algum crescimento econômico.
DN- Que vai contra todas as medidas que o Governo está a tomar?
BSS- Neste momento, é essa a situação. Em médio prazo, podemos vir a ter uma recessão, ainda por cima num conjunto europeu em que o nosso maior cliente é a Espanha, que, provavelmente, vai estar em situação muito semelhante. Precisaríamos de golpes de asa, de medidas europeias e também de políticas inovadoras por parte dos nossos líderes. Situações excepcionais exigem soluções também excepcionais.
DN- Considera que este Governo já não conseguirá dar esse golpe de asa?
BSS- Nos governos europeus em geral criou-se uma ortodoxia que está a atravessar todos os líderes, sejam de esquerda ou de direita, que provoca uma certa exaustão em relação àquilo que é preciso fazer. Sabemos muito bem que, se neste momento queremos criar crescimento, é necessário ser mais tolerante com a inflação. Se calhar, o Estado pode ter de privatizar e até nacionalizar! Isto pode parecer um escândalo, mas se não houver a regulação dos mercados financeiros ou o Estado nacionaliza os bancos ou os bancos nacionalizam o Estado.
DN- Que é o que está a verificar-se?
BSS- É isso que está a suceder, os bancos estão a nacionalizar o Estado ao fazerem o que querem, ao terem perdas como as que se observam. Como os bancos não podem falir, nem pagam IRC como as restantes empresas, é evidente que estão a nacionalizar o Estado português porque cometem todos os erros que querem e têm os lucros que se vê, para os quais os portugueses continuarão a contribuir.
DN- Então, este Governo não será capaz de ter o golpe de asa que sugere?
BSS- Vejo com muita dificuldade que possa ocorrer. Penso que neste momento o Governo poderia aproveitar alguma transformação que ocorresse ao nível do Banco Central Europeu, onde há medidas urgentes que têm de ser tomadas. O Banco Central Europeu não pode continuar a ter o papel de emprestar aos bancos a um juro baixo e deixar que estes emprestem caro aos Estados. Nem podemos continuar a ter 10% do nosso PIB em offshores!
DN- Será preciso um novo governo?
BSS- Creio que tem de haver medidas mas não acredito que, na situação em que vivemos, elas venham por iniciativa própria. Nem deste governo nem, provavelmente, do que lhe suceder! Porque o que se vê num outro governo é que vão aprofundar-se medidas iguais. Será uma austeridade multiplicada.
DN- Você é um dos protagonistas do Fórum Social Mundial. Acha que o fórum poderá alterar a atual realidade?
BSS- O Fórum Social Mundial tem conseguido alterar mais do que se pode pensar e basta ver ao nível de temáticas que entraram na agenda política da última década. Provavelmente não teriam entrado de outra forma a questão da redução da pobreza, a das desigualdades sociais ou a consciência ecológica e ambiental. O fórum esteve também por detrás dos governos progressistas que existem na América Latina, onde aconteceu uma década gloriosa para países de grande instabilidade democrática e que tinham passado recentemente por ditaduras.
DN- A consciência ecológica não foi derrotada na Cimeira de Copenhague?
BSS- É evidente que parece que a agenda ambiental ficou para segundas núpcias. Não só em Copenhague como em Cancún, aqui até houve a ideia de que tinha havido finalmente algum progresso mas se analisarmos bem o que foi decidido deparamo-nos mais com obrigações para os países em desenvolvimento do que para os desenvolvidos, que continuaram sem grandes compromissos na redução ambiental. Aliás, Portugal tem dado uma lição - para que nem tudo seja negativo - com a reconversão energética que já atinge cerca de 25% da produção sob formas alternativas e renováveis.
DN- Disse em tempos que o Fórum Social Mundial era a grande invenção da 1.ª década do 3.º milénio e que a WikiLeaks é a grande da segunda década. Ainda pensa assim?
BSS- Creio que sim e que tem condições para o ser. A WikiLeaks ainda é muito recente para se verem todas as implicações que pode ter. O que o Fórum Social Mundial veio dizer foi que o neoliberalismo não é uma fatalidade e é possível criar espaços de manobra para reagir contra essa prática econômica. A WikiLeaks é, na mesma linha, um reforço da transparência dos governos. O que estamos a ver é que há um enorme despotismo por debaixo do verniz da democracia. As palavras que os políticos usam em público não têm nada que ver com as que utilizam em privado. As alianças que dizem estar a fazer estão completamente atraiçoadas pelas verdadeiras adotadas clandestinamente. Faz-se um discurso pró-democracia e tem-se uma tolerância total para com os crimes contra a humanidade.
DN- Mas a transparência da WikiLeaks não é só pela metade?
BSS- Não é uma transparência total, mas, penso, que uma das muitas WikiLeaks futuras possa vir a trazer mais. Como será o caso da dissidência OpenLeaks, tudo depende de saber se aquilo que há para saber foi destruído ou se ainda está em condições de ser utilizado. Para mim é muito estranho que Israel saia tão bem do retrato da WikiLeaks. Será que as suspeitas de que terá havido um acordo entre Julian Assange e Netanyahu são fundadas? Sob que condições, sob que ameaças? Os serviços secretos israelitas não olham os meios quando é preciso destruir inimigos como vimos recentemente com os líderes palestinos.
DN- Quem mais vai beneficiar-se?
BSS- O que acontece sempre é que os governos mais autoritários aproveitam mais estas oportunidades do que os movimentos sociais. Segundo Régis Debray, a revolução de Cuba apanhou os norte- -americanos de surpresa, mas foram eles que acabaram por aprender mais que os partidos de esquerda da América Latina com o fato.
DN- Qual será a lição da WikiLeaks?
BSS- Neste momento já estão a surgir novas medidas de segurança e penalizações ao nível do direito para tornar o Estado "wikiseguro". Os governos estão a tomar medidas no sentido de evitar que isto possa voltar a repetir-se. Não têm nenhuma garantia a não ser que a política volte a ser sob a forma diplomática presencial ou oral, o que é uma utopia porque não pode ser realizada. Muitas destas informações que temos hoje disponíveis foram dadas por quem tinha acesso à informação, ou seja, o poder está a perder a lealdade dos seus funcionários. Não podemos criar sociedades muito injustas e depois querer que aqueles que estão ao serviço do Estado sejam completamente leais para com ele.
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