A Internacional

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segunda-feira, maio 21, 2007



Homenagem aos sobreviventes do Tarrafal
"Auschwitz de via reduzida" ?


Para os que pensam que "os brandos costumes" pátrios suavizaram a prática repressiva do Estado Novo, aí está o Tarrafal. Amanhã é dia de romagem pública de saudade, ao memorial do Alto de São João, em Lisboa.

* António Melo

Há 27 anos, no dia 18 de Fevereiro, levantou-se no cemitério do Alto de São João, em Lisboa, um memorial às vítimas do Tarrafal, o campo de concentração que o Governo de Salazar, seguindo o modelo da Alemanha nazi, decretou que se construísse nos terrenos do Chão Bom, Achada Grande e Ponte da Achada, em Cabo Verde, "com capacidade para 500 presos". O decreto, que tem o número 26.539, foi publicado no dia 23 de Abril de 1936.

A guerra civil ainda não eclodira em Espanha - a sublevação caudilhista foi a 18 de Julho de 1936 -, mas o Governo republicano de Madrid não escondia a sua simpatia pelos oposicionsitas portugueses e Salazar estava preocupado com o futuro do seu regime.

Daí a nazificação do Estado Novo, com a criação da Legião e da Mocidade Portuguesa, a nível de mobilização de massas, da criação das companhias disciplinares, destinadas ao serviço militar obrigatório no posto de soldado de elementos "desafectos ao regime", e, para finalizar, os campos de concentração para "os [politicamente] mais perigosos".
 
Nesta designação cabiam os anarco-sindicalistas de Mário Castelhano e os comunistas de Bento Gonçalves, que por um imperativo histórico se tinham irmanado no levantamento do 18 de Janeiro de 1934, contra a fascização dos sindicatos - decidida pelo Estatuto do Trabalho, de 1933.

Irmanados ainda mais ficaram quando os líderes destas duas organizações políticas foram enviados, com mais 155 companheiros, nos quais se incluía um grupo de republicanos democráticos, para o Tarrafal, no Luanda. Saiu de Lisboa a 18 de Outubro de 1936.

Mário Castelhano e Bento Gonçalves morreram ambos no Tarrafal. O primeiro no dia 12 de Outubro de 1940 e o segundo no dia 11 de Setembro de 1942. Tinham, respectivamente, 44 e 40 anos.

O embarque foi apressado pela acção dos marinheiros dos navios de guerra Afonso de Albuquerque, Bartolomeu Dias e Dão, que no dia 8 de Setembro desse ano tentaram apoderar-se das embarcações e zarpar para os Açores, libertar os camaradas ali detidos.

No Forte de São João Baptista, em Angra do Heroísmo, encontravam-se centenas de detidos políticos, ali acumulados em sucessivas vagas repressivas, desde 1926. A acção provocou dez mortos e malogrou-se. Os 34 marinheiros implicados foram presos na Penitenciária de Lisboa e expeditamente enviados para a colónia penal que acabara de ser criada em Cabo Verde.

"A colónia penal destinar-se-á a presos por crimes políticos que devam cumprir a pena de desterro ou que, tendo estado internados em outro estabelecimento prisional, se mostrem refractários à disciplina (...)", dizia o decreto de 23 de Abril, e foi com base nesta imprecisa definição legal que o Governo de Salazar enviou para o Cabo Verde mais de 300 perseguidos políticos.

Um deles, Acácio Tomás Aquino, fez o inventário deste atropelo legal:

"Dos 226 presos a viver no Tarrafal em 1944, 127 estavam ilegais.

[Havia] 72 sem julgamento e 55 já tinham cumprido pena, perfazendo, no total, um excesso de 200 anos" (cf. PÚBLICO 25/1/04).

O reconhecimento só veio com o 25 de Abril

Só com a Revolução de Abril é que o "campo da morte lenta" efectivamente encerrou, pois, a partir dos anos 60, com a eclosão da guerra colonial, foi reaberto para encerrar os dirigentes dos movimentos de libertação dos países africanos.

Os corpos dos 32 presos portugueses que lá morreram foram exumados e trazidos para o Alto de São João, ficando sepultados junto ao Memorial. Devido à campanha eleitoral, a romagem de saudade foi este ano adiada para sábado, 12 de Março, como sempre às 11 h.

Dos antigos tarrafalistas há três sobreviventes, Edmundo Pedro, Barata Júnior e Josué Martins Romão, que deverão amanhã recordar, em breves palavras, o significado da sua luta política.

A romagem de saudade é organizada pela URAP, sucessora da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, e caberá a Luísa Irene Dias Amado, sua presidente, dar as boas-vindas às famílias das vítimas e a todos os que a elas amanhã se queiram juntar.
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Público Sexta, 11 de Março de 2005

"Auschwitz de via reduzida" ?

Foi com esta frase que (...) Cândido de Oliveira procurou caracterizar, com um chocante exagero, o que foi o campo de concentração do Tarrafal. Para o horror de Auschwitz não há "vias reduzidas". O mal absoluto não admite comparações. O Tarrafal foi um campo de concentração típico. Não teve nada a ver com os campos de extermínio nazis. Mas a verdade é que o modelo físico e a lógica de funcionamento foram uma cópia exacta das dezenas (?) de campos similares que os nazis montaram na Alemanha logo após a subida de Hitler ao poder. E foi tão terrível como eles.

Vários "especialistas" portugueses estudaram naquele país a concepção e as normas de funcionamento dos Lager hitlerianos. Todas as vertentes que os celebrizaram estiveram presentes no Tarrafal: a farda vexatória; o trabalho compulsivo; a absoluta incomunicabilidade em relação ao mundo exterior; as permanentes perseguições, castigos e provocações - facilitadas pelo total isolamento - dos guardas da PIDE; a colaboração de alguns "rachados" (os kapos portugueses), felizmente poucos, que se puseram ao serviço da repressão concentracionária, e que foram, nalguns casos, tão ou mais odiosos do que os carcereiros; as fardas da ordem apodrecidas e desfeitas em farrapos (o que nos deu, em certos períodos, a aparência de um bando de maltrapilhos...); a total ausência de assistência médica e medicamentosa; as botas da ordem destroçadas; a instalação, durante dois anos, em barracas de lona que a chuva e o sol acabariam por apodrecer e por nos expor ao relento e à chuva. Este aspecto, precário e improvisado, ditado pela pressa de instalar aquele instrumento de terror, contribuiria, por si só, para degradar a saúde de muitos prisioneiros.

Cândido de Oliveira chegou ao Tarrafal no Verão de 1942 integrado num grupo de 14 presos acusados de espionagem a favor dos Aliados. (...) No seu livro Tarrafal, o Pântano da Morte, resumiu nestes termos a "estranha e dolorosa impressão" que o aspecto dos deportados lhe
causou:

"Que homens eram aqueles? Eram seres humanos que tínhamos ali perto, na nossa frente? Certamente. Mas pareciam fantasmas. Arrastavam-se, como autómatos articulados! Rapazes novos, na sua maioria à volta dos trinta anos, reflectindo velhice precoce. Vincos de martírio cavados no fundo dos rostos esquálidos, de tom baço, da cor típica do paludismo. Era como se os farrapos de caqui amarelo da farda da ordem se espelhassem nas suas magras faces." (...)Ao prestarmos uma comovida homenagem às vítimas do mal absoluto que foi o Holocausto, não podemos, nem devemos esquecer os prisioneiros que, na Alemanha e noutros países da Europa, entre os quais Portugal, passaram pela terrível experiência concentracionária e nela perderam as suas vidas.

Não nos podemos esquecer de que em Portugal também houve uma extrema-direita que se identificou com a demência nazi então reinante na Europa - demência de que o desprezado e esquecido campo do Tarrafal constitui a prova irrefutável.

Salazar, com a sua conhecida hipocrisia, escondeu-o dos olhares da população em Cabo Verde, na inóspita planície do Tarrafal. Mas as suas abandonadas ruínas testemunham a destruição prematura de muitos seres humanos. Permanecem ali como um grito de indignado protesto contra o esquecimento a que foi votada a memória dos que ali morreram na força da vida.

Portugal dissociou-se da pedagogia do horror que representa a empresa concentracionária que a consciência europeia - a começar pela própria Alemanha - mantém na agenda da luta contra a barbárie. Alguns referem-se a ela como a algo que não nos diz respeito. (...). Em Portugal tudo se passa como se o Tarrafal não tivesse existido.
(...)


PÚBLICO - Sexta, 11 de Março de 2005

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