| | A faísca
| Não é fácil escrever sobre isto. Mais difícil é ficar calado. Refiro-me ao fenómeno que parece incendiar a Europa e os países islâmicos, criando, de um lado, uma fervente indignação a propósito de um boneco que apareceu num jornal dinamarquês. Uma indignação que já custou mortes e feridos, fogos ateados e embaixadas destruídas; do outro lado, uma estarrecida incompreensão sobre as razões e as raízes de tanta turbulência. «Então já não se pode fazer bonecos e brincar com coisas sérias?», perguntará o cidadão comum. O cidadão incomum, afecto à ideologia da direita «cristã», que terá participado em simulacros de autos de fé quando algum filme lhe fere os sentimentos integristas, é capaz de clamar por uma nova cruzada que esmague o Islão. A comunicação social em geral, socorrendo-se dos seus peritos, hesita entre o deitar água na fervura e o atear de novos fogos. E, por fim, muita gente concorda que se trata de uma questão religiosa, transformada em conflito entre a liberdade ocidental e um fundamentalismo cego. . Sobre o que é o Ocidente e sobre o que são as liberdades, parece que ainda não estamos conversados. Marrocos ou a Argélia estão mais a Ocidente do que a Dinamarca. E a liberdade «ocidental» escreve-se na maioria dos jornais com cifrões. . Que terá levado multidões furiosas a queimar primeiro bandeiras e depois embaixadas, a manifestar ruidosamente a sua indignação perante um cartoon? Certamente a ofensa contida nesse cartoon, dirá o espírito estritamente lógico, não se indagando por que motivo outras ofensas mais graves não terão juntado tanta gente nem tanta fúria. . É que se trata de muito mais do que uma questão religiosa. A religião e a «ofensa» caricaturada foi apenas o pretexto, a faísca que incendiou a planície. Mesmo que movidas por cegos sentimentos religiosos e fundamentalistas, sem a consciência plena do que mostra o movimento que alastra no mundo islâmico, as multidões erguem-se, afinal, perante a injustiça e o imperialismo. O raciocínio não é um chavão. Países e povos cuja cultura se baseia na ancestralidade corânica, sentem-se esmagados perante o mando explorador dos estados imperialistas. O Afeganistão está ocupado; o Iraque sofre uma guerra de ocupação; o Irão é ameaçado; a Palestina, onde as recentes eleições deram a vitória a uma força política do desagrado de Israel e dos Estados Unidos, vê pôr em questão os resultados democráticos da votação maioritária que, agrade ou não, levou o Hamas ao poder. . Uma pequena faísca, um boneco caricaturando o Profeta, lançou o incêndio. Não adianta tentar apagá-lo com desculpas hipócritas.
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