Quando a crise
financeira explodiu em 2007-2008 a primeira reacção de muitos analistas do
“regime” foi classificá-la como um fenómeno restrito ao sector financeiro e aos
EUA, há vários exemplos disso… O relatório do FMI sobre a economia Grega
publicado em Dezembro de 2007 é elucidativo:
Economic
growth will continue to be driven by domestic demand in the coming years.(…)
Consumer demand is also expected to remain robust. (…) The Greek banking system
remains healthy, adequately capitalized, and highly profitable, but some
developments will need to be monitored closely. (ainda há quem leve estas
aventesmas a sério????)
Quando a crise passou do sector financeiro para a “economia real” ( como se
existi-se algum muro ou barreira a separá-los, como se o sector financeiro não
fosse uma componente, até a principal, do actual sistema económico mundial…),
muito consideraram que era uma crise séria, mas passageira. De facto em
2010-2011 as principais economias mundiais (Alemanha e seus satélites norte
europeus, EUA, China)
recuperaram e voltaram a crescer… A crise parecia restrita aos PIIGS europeus,
as cigarras pecadoras que mereciam pagar pelos seus “pecados”… Mas a realidade
não encaixa nessa visão moralista. Na verdade a maior parte dos indicadores
económicos indicam que a recuperação da actividade económica em 2010-2011 não
chegou aos níveis pré crise, o
volume de tráfego de mercadorias é um bom indicador.
O ano de 2012, para quem tenha dois dedos de testa, mais não é do que o
prenúncio da enormidade que se avizinha. Em 2012 a zona euro no seu conjunto está
em recessão e a produção
industrial da EU27 em contracção. No resto do mundo o crescimento económico
arrefeceu, a
China é o exemplo paradigmático.
A actual crise não é um soluço ou um percalço que será rapidamente superado,
estamos a viver uma depressão apenas comparável há que se iniciou em 1929. As
consequências desta crise serão profundas, no plano económico, político, social
e cultural. O sistema-mundo que irá emergir após esta crise será muito diferente
daquele em que vivemos até 2007. Estamos a viver numa era de transição em que os
anteriores equilíbrios políticos, sociais e geopolíticos são insustentáveis. Até
se atingirem novos compromissos e equilíbrios irá decorrer um longo período de
intensa conflitualidade. A forma que esses novos equilíbrios tomarão dependerá
do resultado das lutas que forem (que estão a ser) travadas.
O pensamento acima exposto não é propriamente o cúmulo da originalidade.
Existe uma quantidade quase infinita de livros e artigos que debatem a
profundidade desta crise e das suas consequências. Destaco os seguintes
textos:
” A
crise do Capitalismo Democrático“, Streeck
“Crise
Estrutural” e “Crise
Estrutural, e agora?“, Wallerstein
O argumento que pretendo vincar não é que estamos a viver a “crise final do
capitalismo”, não pretendo iniciar essa discussão, até porque primeiro teria de
se definir o que é o “capitalismo”, uma palavra usada para designar tudo e mais
alguma coisa desde sistemas políticos, hábitos culturais, e claro está, uma dada
forma de organização do sistema económico e da propriedade. É possível
afirmar-se que o sistema-mundo em 1914 era “capitalista”(existindo ainda fortes
traços aristocraticó-feudais), em 1945 também se poderá dizer que o
sistema-mundo era “capitalista”(existindo importantes bolsas de resistência ”
comunistas”)… Mas ninguém negará que entre 1914 e 1945 houve mudanças profundas,
apenas olhando para o mapa da Europa muito se pode deduzir.
Em 1914 a Europa a leste do Reno era praticamente dominada por três impérios,
com raízes fortemente aristocráticas e autocráticas. O II Reich Alemão, o
Império Austro-Húngaro e a Rússia Czarista. O Imperialismo Europeu estava no seu
auge, com practicamente toda a África e vastas partes da Ásia sobre seu controlo
directo. Mesmo onde havia regimes parlamentares liberais o sufrágio universal
era uma miragem. Os direitos laborais, o direito à greve, o descanso de dois
dias semanais, segurança social, sistemas de saúde, férias pagas, tudo isso era
ou inexistente ou (na melhor das hipóteses) restrito a sectores ultra
minoritários. A estratificação social e a diferença entre classes era vincada
não só pela diferença de poder económico mas também por normas culturais
profundamente enraizadas… Agora pensemos em como era o mundo em 1945 e nos 30
anos que se lhe seguiram? Sim em 1914 o mundo era “capitalista”, em 1945 também…
Mas a organização política, económica, os hábitos e a cultura mudaram
profundamente, o sistema-mundo de 1914 e de 1945 eram muito diferentes.
O ponto onde quero chegar é que independentemente do mundo em 2045 poder vir
a ser qualificado como “capitalista”, será tão diferente de 2014 como 1914 foi
diferente de 1945. E como será então o mundo em 2045? Bem isso será o resultado
das lutas que se irão travar. No global o mundo em 1945 era bem melhor do que em
1914… Mas não foi fácil… E por mais que alguns se escandalizem, para que em 45
as perspectivas fossem bem melhores que em 14 foram necessárias coisas como a Revolução
Bolchevique ou a “Ordem
227“. Não é certo que haverá novas guerras mundiais, aliás se houverem serão
tão diferentes (e semelhantes) das guerras mundiais do século XX como essas
foram das guerras Napoleónicas do século XIX. Também as revoluções do século XXI
serão tão iguais a 1917, como 1917 foi igual a 1789-1792. Aquilo que é certo é
que a intensidade da luta atingirá níveis semelhantes, sendo que a forma que
essas lutas tomarão serão moldadas pelas condições sociais e geopolíticas do
século XXI (diferentes das de 1789 ou
1917).
Mas há uma importante conclusão a reter, é de que nesta nova era de transição
os tiradas inflamadas de um Marat “O Homem tem o direito de
lidar com os opressores devorando seus corações palpitantes“, poderão não
apenas vir a ser adequadas como necessárias. Talvez sejam expressões demasiado
hiperbólicas para já, mas são necessárias para acordar muita gente dos
anestesiantes anos 90 com o seu elán liberaló-pacifista onde lutas sangrentas
apenas aconteciam em distantes paragens… Basta pensar na reacção que umas
quantas pedras atiradas aos que actuaram como mercenários do
Cavaco-Passos-Gaspar+Portas causaram. Vá lá que vai havendo quem tem alguma
memória histórica.
Neste momento é fundamental perceber que os eventos de 14 de Novembro são
apenas um leve prelúdio daquilo que será necessário acontecer para que de 2014 a
2045 os ganhos (ou a derrota de projectos tenebrosos) sejam pelo menos ao nível
do que se conseguiu em 1914-1945.
De forma a reforçar o argumento da inevitabilidade do agudizar das
contradições e ao mesmo tempo identificar algumas tendências que moldarão o
mundo onde se darão os 1917s e 1792s do
futuro, parece-me útil discutir quatro grandes áreas/temas:
- Monopolização e economias de escala.
- A Revolução Digital, telecomunicações e gestão da informação.
- A emergência da China e dos “BRIC”, miragem ou realidade?
- A escassez de recursos e a sustentabilidade material do actual modelo
económico, a centralidade da luta social e os mitos eco-deterministas.
A Europa e as suas múltiplas contradições sociais, inter-estados (países do
sul versus norte, Reino Unido em curso para sair da UE…) e intra-estados
(Espanha-Catalunha, Reino Unido-Escócia, Itália-Lombardia) é
o palco chave a curto prazo. O arco mediterrânico do euro
Portugal-Espanha-Itália-Grécia-Chipre-Eslovénia é o elo fraco da cadeia
capitalista/sistema-mundo. Por esta ser uma análise mais próxima e de mais curto
prazo não será discutida neste texto em específico, fica para a parte III.
Infelizmente, o 14 de Novembro não suscitou uma resposta mais vigorosa e não deu azo a uma legítima revolta popular, mas, pelo contrário, serviu para afastar manifestações do parlamento. É pena! Espero que o curto prazo que preconizas seja verdadeiramente curto, mas temo que somos semelhantes aqueles que viverem em 1870 e anunciaram plenos pulmões a inevitabilidade de uma revolução social que só chegaria 50 anos depois.