Governo encurralado ensaia
uma “fuga em frente”. Das dificuldades objectivas
do governo sociopata prosseguir a sua acção e da oportunidade histórica de
desfazer certos mitos neo-liberais/troikistas.
A pretexto da decisão do
Tribunal Constitucional o governo recupera o relatório
FMI e prepara-se para o assalto final ao estado social, tendo já aplicado
uma espécie
de lockout. Esta é uma fuga em frente que se confrontará com importantes
obstáculos objectivos, não existem grandes exemplos históricos de
contra-reformas desta amplitude implementadas em períodos de contracção
económica persistente e sem fim à vista. Esta é uma oportunidade a não
desperdiçar pela Esquerda para derrubar o governo e de caminho desfazer certos
mitos neo-liberais.
Governo
Encurralado
O Governo estava obrigado ao corte de 4000 milhões no estado e estava
obrigado a corrigir o buraco criado pelas suas políticas de contracção
económica, muito antes de qualquer decisão do Tribunal Constitucional. Mais, a
estratégia dos sociopatas que nos governam sempre foi a de arrasar o estado
social e muito do tecido económico existente, para no seu lugar implementarem
uma utopia (distopia) ultra liberal. De Janeiro até agora, mesmo durante a 7ª
avaliação da Troika, houve uma pausa neste rumo, a forte contestação social e a
ruptura do pacto com o PS, criaram um ambiente que forçou o governo a suspender
o ritmo dos ataques. Mas chegados a este ponto, confrontados com a decisão do
Tribunal, que objectivamente é um obstáculo aos seus desígnios, é necessário
retomar a ofensiva, não haverá melhor oportunidade para os sociopatas
prosseguirem a contra-reforma. É uma oportunidade de passar as culpas dos erros
passados e das futuras medidas impopulares, é uma oportunidade para o governo se
ilibar. E ao diabolizarem assim o Tribunal Constitucional estão também a tentar
neutralizar/inibir uma das poucas (se não a única) barreira institucional às
suas acções – porque haverá mais orçamentos e legislação que terá de passar pelo
crivo do Constitucional.
Da perspectiva governamental as únicas alternativas a esta “fuga em frente”
seriam:
a) a sua demissão, mas o governo institucionalmente está
blindado – Uma maioria, um governo, um presidente – e ainda possuí a
força anímica para prosseguir esta tarefa, ainda tem folgo para um assalto mais,
não é desta que atira a toalha ao chão. Até porque há algum fanatismo e espécie
de instinto de sobrevivência à mistura… A esperança de conseguir arrasar o país
para das cinzas criar um novo ainda não se desvaneceu completamente.
b) mudança de
estratégia. Esta mudança foi ao de leve sugerida por sectores do CDS,
passava por uma renegociação com a Troika tendo em vista um alongar no tempo e
um moderar da contra-reforma. Ora, para isso acontecer era necessário uma
renegociação firme, a Troika irá sempre sangrar o porco até ao limite (é
essa a sua tarefa e é essa a sua natureza), por sua iniciativa nunca haverá
relaxamento nenhum até porque da parte da Alemanha não há interesse objectivo em
resolver esta crise. A Alemanha neste momento financia-se a juros perto dos
0%, porque haveria de querer alterar
esta situação? E desenganem-se aqueles que acham que quando a crise chegar à
Alemanha em força haverá uma catarse e um forte impulso para o Norte e o Sul da
Europa em cooperação saírem da crise sem recriminações preconceituosas de parte
a parte, antes pelo contrário. Quando a crise atingir em força o Norte a
tendência será para um aumento das tensões e recriminações, não para um aumento
da cooperação.
Uma renegociação a
acontecer só virá por forte pressão do Governo Português. Isso é impossível.
Primeiro, o ministro das finanças é um funcionário do BCE e está ao serviço da
Alemanha/IV Reich, não da República Portuguesa (muito menos do povo Português).
Segundo, toda a estratégia de negociação é a estratégia de submissão, ou seja,
fazemos tudo o que nos mandam para eventualmente aproveitar algumas migalhas que
nos atirem, para além de estratégia falhada (pelo que acima já disse) é também
uma estratégia que não se muda agora de um dia para o outro, sobretudo sem
alterar de governo. Terceiro, a estratégia de fundo do governo, depende da
Troika, sem a Troika a contra-revolução em curso não seria possível. No seu
momento mais áureo Passos até falou em “ir
além da Troika“, em última análise a Troika é o fiador da estratégia deste
governo, confrontar a Troika seria anti-natura, seria um outro governo, não
este.
Mas é importante também perceber que a Troika e o governo não são uma e a
mesma coisa (embora no caso específico do ministério das finanças até seja). O
Governo precisa da Troika para implementar a contra-reforma, a Troika precisa do
governo para ter fiéis executores na sua província, mas o governo paga um preço.
É que a sua contra-reforma fica refém das metas e ritmos definidos em conjunto
com a Troika. Ou seja, a elite nativa executa o seu plano revanchista* num
contexto de forte contracção económica, sem autonomia para gerir politica
e economicamente este processo. Portanto, não existe margem para ir isolando
certos sectores a abater de forma faseada, não existe margem para ir vilificando
certos sectores sociais enquanto se beneficiam outros, não existe margem para
que a destruição económica em curso possa facilmente ser aproveitada por outros
sectores. O resultado é a catástrofe social, económica e o esgotamento da base
social de apoio do governo.
* destruir o estado social (capturando novos mercados rentistas e
desestruturando a capacidade de resistência e dignidade popular); destruir
obstáculos legais à dominação do capital sobre o trabalho (precarização, fim dos
contractos colectivos, fim dos sindicatos…); arrasar o pequeno comércio (em
benefício de monopólios/oligopólios privados)
A batalha que agora se
inicia em torno da tentativa de destruição do estado social é decisiva, o seu
resultado será decisivo não apenas para a sobrevivência deste governo, mas
sobretudo para definir que tipo de sociedade iremos ter nas próximas
décadas.
Das dificuldades objectivas do
governo prosseguir a sua acção
Para
começar o governo retoma a ofensiva (numa acção
que se assemelha a um
lockout envergonhado) com base num pretexto pífio, a maioria social apoia
a decisão do Tribunal Constitucional. Mais, a maioria social percebe que a
necessidade de mais austeridade não é causada pela decisão do Tribunal, mas
antes por um acumular de erros, compromissos e pela própria lógica que tem vindo
a ser seguida. Só mesmo comentadores acéfalos ou a soldo podem achar que
este episódio fornece uma grande janela de oportunidade política a
Passos-Gaspar-Portas.
A chantagem
Troikista, é mesmo o seu mais forte argumento. Aliás, o que é sussurrado
pela Troika através da Reuters parece encomendado por medida por
Gaspar-Passos-Portas. A ideia de que não há qualquer margem de manobra negocial
é a ameaça necessária para este governo impor o seu programa. Quer fora da União
(US
and Europe Deeply Divided on Austerity), quer entre outros países
da zona Euro há espaço para outra atitude negocial, mesmo num plano
minimalista. Aliás um dos grandes crimes de Passos-Gaspar-Portas é a nível
Europeu comportarem-se não apenas como “aluno obediente”, mas pior, como fiel
aliado (ou cão) da Alemanha, contra os interesses do seu povo e outros povos na
mesma situação.
No entanto, o governo retoma a sua ofensiva contra o estado social num
momento em que esgotou grande parte do seu capital político e desbaratou a sua
base social de apoio. Tem de avançar agora devido às imposições da Troika. E não
é só isso, depois das autárquicas o espaço de manobra será muito menor (ou nulo)
e por mais que o actual pretexto seja pífio, não existirá momento melhor.
Para tentar cumprir o seu programa e arregimentar alguma base de apoio,
lança-se então na destruição do estado social que se baseia nos cortes a fazer
na educação, saúde e segurança social (como anunciado por Passos no Domingo
passado). A horda de comentadores/fariseus a soldo grita em coro “já devia ter
sido mais cedo” ou “agora sim fazem o que já devia ter começado desde o início”.
Bem, a verdade é que os cortes na despesa do estado têm sido dramáticos:
Portugal
tem recorde da Europa em cortes sociais, Em apenas dois anos – 2011 e 2012
-, Portugal foi o país da Europa que mais cortou na despesa social, tendo
reduzido o bolo em 3,7 mil milhões de euros, quase o valor pretendido para a
redução permanente na despesa pública (4 mil milhões) para 2013 e 2014.
Tem havido cortes
significativos nos subsídios sociais e no número de pessoas que acede a essas
prestações. Quase
66 mil pessoas perderam RSI com entrada de novas regras.
Na saúde
e na educação
tem havido cortes significativos. Qualquer coisa somada na ordem dos 3 mil
milhões de euros (ou mais).
É completamente falsa essa ideia de que o governo tem tentado equilibrar
o défice apenas pela receita. Os cortes no estado social estão já em curso e são
profundos. Os cortes adicionais que aí vêm, não caem portanto em terreno virgem,
onde seja fácil cortar e reduzir as lendárias “gorduras do estado”. Não, os
cortes que aí vêm (e alguns que já foram feitos) não são um “emagrecimento”, são
amputações! Equivalem a cortar braços, pernas ou a remover órgãos!
Ora esses cortes vão em
directa contradição com a vontade
expressa da maioria da população. Mas mais relevante talvez, seja o facto de
que ao mesmo tempo que se vai destruindo esses sectores estatais, o sector
privado não vai fazendo grandes ganhos, antes pelo contrário. É que o ano
passado o número
de pessoas com seguros de saúde diminuí! Ou seja a destruição do Serviço
Nacional de Saúde em curso não está a conduzir mais gente para o privado, pelo
contrário há
muitos a tentar regressar ao SNS vindos das seguradoras. Nas escolas
passa-se o mesmo. Apesar dos ataques à escola pública, o
sector público tem sido o refúgio de muitos que transferem os filhos de colégios
privados para escolas públicas.
É que como acima tinha dito, a actual contra-reforma é aplicada em época de
recessão económica e em simultâneo com medidas que aprofundam a recessão, sem
horizonte de recuperação. Não há qualquer folga que liberte/aumente rendimentos
disponíveis para que a destruição do estado seja capitalizada pelo sector
privado. Não há um acesso mais fácil ao crédito e o que há é um aumento de
impostos generalizado.
Fruto da recessão,
falências e desemprego a população em geral, apesar do degradar dos serviços
públicos, vê se obrigada a recorrer a eles porque pura e simplesmente não tem
capital disponível para pagar a privados. Um dos “esquemas” a que o estado
português recorreu no passado para contornar isso foram as PPPs. Mas o esquema
está politicamente descredibilizado,
e mais relevante, o governo não tem margem de manobra financeira para neste
momento pagar essas alternativas (que ao contrário das fábulas propagadas pelos
fariseus são mais caras para os cofres do estado que a prestação directa desses
serviços).
Ora algumas conclusões absolutamente fundamentais podem e devem ser
tiradas:
- É uma falácia total achar que, sobretudo no actual contexto, os cortes na
despesa do estado, a destruição do estado social, irá libertar recursos que
serão aproveitados pelo sector privado. Antes pelo contrário, o corte nos
serviços sociais, o despedimento em massa de funcionários públicos, o fecho de
centros de saúde e outros balcões de serviço público irão directa e
indirectamente provocar uma forte contracção na procura interna. O impacto
agregado no sector privado dos cortes no sector público será extremamente
negativo (ainda que certas franjas muito localizadas e ligadas politicamente ao
governo possam vir a tirar alguns benefícios).
- Num momento de já grande fragilidade, um ataque à saúde, educação e
segurança social irá terá efeitos sociais catastróficos. O nível de indignidade,
sofrimento a que vastas camadas da população estarão sujeitas ( e já estão…)
atingirá novos patamares.
- O nível de resistência social será maior do que aqueles que o governo e os
fariseus estão à espera. Porque esses serviços são o último garante de
dignidade, esperança e sobrevivência para muita gente. Porque não existe
alternativa no privado, porque a base social de apoio que poderia haver em favor
de soluções privadas foi desbaratada.
É que há uma diferença fundamental de contexto entre a actual contra-reforma
e processos anteriores. Darei dois exemplos.
Em Portugal nos anos 80
e início dos anos 90, deu-se um intenso processo de contra-reforma com o
desmantelamento do sector estatal na economia (privatização da Banca e da grande
Indústria), desindustrialização, redução do sector primário, desregulamentação
no trabalho, reforma fiscal (por exemplo o IVA, IRS e IRC na sua actual forma
datam dessa altura) – depois há quem fale que não houve reformas estruturais.
Ora, esse processo de transformação da sociedade e economia Portuguesa foi
possível, sem rupturas de maior (embora tenham havido fortes protestos), mesmo
com intervenções do FMI à mistura, porque apesar de tudo as quedas do PIB foram
pontuais (vejam
a tabela), ou seja não houve nunca nesse período mais de um ano com
contracção do PIB (apenas em 84 e 93 isso aconteceu). Ou seja, tendo havido
crises fortes, a verdade é que sinais de retoma eram visíveis e palpáveis num
curto prazo de tempo. Sendo que alguns sectores sociais foram atacados
fortemente e indústrias inteiras quase destruídas, houve, de facto, alternativas
e paliativos. Estas transformações foram suportadas pelo horizonte de adesão à
União Europeia (na altura CEE), desvalorização da moeda e mais tarde pelos
fundos Europeus que, de facto, fluíram para o país, financiando/dinamizando
sectores (retalho, banca, obras públicas…) que na altura compensaram a
destruição económica efectuada noutras áreas.
Durante o negro reinado
da Thatcher o mesmo se passou, ou seja, uma dramática
transformação social e económica, com doses importantes de conflitualidade
social. Sendo certo que certos sectores foram trucidados, a verdade é que no
agregado não houve destruição de produto interno persistente. O que quero dizer
com isto é que tendo havido alguns anos de recessão (ver
dados) nomeadamente em 80, 81 e 91 (nesse último ano já não estava no
governo) a verdade é que não houve nunca três anos consecutivos de recessão. Ou
seja, pelo menos em certas áreas e para certos sectores, houve ganhos visíveis
no curto prazo provenientes das suas políticas.
Neste momento em
Portugal estamos no terceiro ano consecutivo de recessão, sendo que tudo indica
que em 2014 o mesmo sucederá, ou seja, quatro anos consecutivos (pelo menos
desde os anos 60 não há registo de haver dois anos de recessão consecutivos…). O
PIB é um número muito agregado, mas de qualquer das formas dá nos a indicação da
margem de manobra para ganhos, e mesmo que em certas áreas possa haver alguns
ganhos (mesmo com o PIB a descer), a verdade é que para a grande maioria há
perdas profundas. Ora não foram estes os resultados agregados apresentados por
outras contra-reformas, ou dito de outra forma, outras contra-reformas bem
sucedidas foram feitas em contextos onde apesar de tudo houve aumentos do
produto interno bruto (seja devido ao aumento do crédito ou outras razões). As
crises que serviram como espantalho para assustar as massas nessa altura foram
curtas e a reacção teve bases para argumentar que as contra-reformas estavam a
resultar e a produzir mais riqueza – o que no agregado, seja por que razão for,
até era verdade. Não estou a discutir aqui a questão da redistribuição da
riqueza/PIB ou as alterações
nas componentes do PIB.
Portanto, ou a
contra-reforma em curso em Portugal será um caso singular, em que as
instituições e os regimes sobrevivem incólumes a estas contracções económicas
sucessivas, ou haverá rupturas semelhantes às que ocorreram em crises da mesma
magnitude (anos
20-30) – sendo que na Grécia a situação ainda é mais grave e que vários
outros países europeus para lá caminham.
Não estou aqui a desprezar o factor subjectivo, ou seja, não existe uma
relação linear, unívoca entre crise económica e processo político. Mas as
crises, sobretudo desta dimensão têm um profundo impacto no mundo político e nas
instituições. A minha tese não é de que esta situação irá
desembocar automaticamente numa saída socialista e progressista para o actual
impasse, mas abre portas. O que me parece claro é o seguinte:
- actual rumo é insustentável do ponto de vista económico e social, logo do
ponto de vista político também. Por mais que os fariseus digam que “não há
alternativa” a realidade tem muita força. De uma forma ou de outra as actuais
políticas serão rejeitadas e os actuais regimes sofrerão importantes
alterações.
- o factor subjectivo
entra em grande força, na medida em que moldará a forma como as actuais
políticas serão rejeitadas e quais as alternativas que serão instituídas. Estas
rupturas adoptarão diversas formas de acordo com a correlação de forças em
presença. Por exemplo na Hungria assiste-se ao desenvolvimento de
um regime nacionalista/semi-fascista. Na Grécia o Syriza é a principal força
de oposição e logo a seguir vêm os explicitamente nazis da Aurora Dourada. No
Estado Espanhol a unidade nacional é posta em causa pelo independentismo
catalão, entre outros
o fenómenos. Na Itália há “os
palhaços“.
Se porventura tivesse
lugar uma enorme viragem de rumo na União Europeia/Alemanha, talvez fosse
possível ainda conter estas rupturas. Mas, como acima referi, essa viragem não
ocorrerá. Por falta de vontade e incentivos, aliada a uma falta de capacidade
efectiva em solucionar o problema à medida que ele se
vai alastrando. Mais, se alguma viragem de rumo ocorrer será no sentido de
um aprofundar das rupturas e não da cooperação/solidariedade Europeia.
Portanto, para qualquer
observador lúcido da situação, o actual rumo não proporciona
qualquer perspectiva positiva. A única perspectiva realista no actual paradigma
é, na melhor das hipóteses, o prolongar austeritário por longos anos, 5
anos diz a Merkel, outros já falaram numa geração ou em 20 anos. A fuga
pelas exportações faliu com o aprofundamento
da crise na Europa e mesmo noutros
mercados a situação não é famosa (até porque os “emergentes” não estando em
queda, registam crescimentos bem mais anémicos que há uns tempos atrás). A ideia
de retorno aos mercados é uma fábula, o apoio continuado da Troika será sempre
necessário neste paradigma, na melhor das hipóteses teremos um “teatrinho” em
que a Troika sem cá estar directamente vai continuando a impor os seus ditames
“or else”.
Oportunidade histórica de desfazer
certos mitos neo-liberais/troikistas
Sendo a situação insustentável, abre-se uma oportunidade histórica para
desfazer certos mitos neo-liberais, coisa que desde o início da crise em 2008
não ocorreu. Em certo sentido isso seria de esperar. Confrontado com o agudizar
de um problema a tendência natural é reforçar a dose de remédios conhecida e
estabelecida. Só depois de estabelecida a falência desses remédios se ponderam
alternativas. Esta é uma importante oportunidade para quebrar a hegemonia
intelectual que a direita ultraliberal conquistou nas últimas décadas. Quais
então alguns dos mitos que suportam o actual paradigma e poderão ser enterrados
por muitos e bons anos?
É preciso
cumprir os “compromissos”, Pois eu digo Salus populi
suprema lex esto. O compromisso único e mais importante de qualquer
governo deveria ser o bem estar do povo. O pagamento de dívidas do estado e a
definição do que é dívida do estado e não é, deve estar subordinado a esse
princípio. Do ponto de vista moral os compromissos com os pensionistas,
funcionários públicos, pequenos empresários da restauração são mais ou menos
válidos que os compromissos com os supostos “mercados”? Há quem diga que
o default, o “não pagamento” seria uma catástrofe absoluta. É
falso, não tem de ser catástrofe nenhuma, aliás é uma condição necessária para
sair do actual ciclo vicioso.
É interessante olhar
para a forma como a falência é encarada nos EUA em contraponto com a Europa For
the bulk of Europe, the only way to do a restructuring was to avoid insolvency
proceedings, while in the U.S., in order to get a restructuring done, you start
off by going into Chapter 11. – ver o que é o capítulo
11 aqui.
Regressando à questão da
dívida soberana, temos a Islândia que pura e simplesmente não pagou a dívida dos
bancos que faliram aos credores estrangeiros. Temos a Argentina que desvalorizou
a moeda e não pagou parte da sua dívida. Ambos esses países retomaram o
crescimento após essas acções… e a Alemanha do pós-guerra? Uma das condições do
seu sucesso foi a
total renegociação da sua dívida, a Alemanha “não pagou” mais de metade da
dívida que tinha! Aliás a Grécia, e bem, vem agora relembrar que
a Alemanha lhe deve para cima de 160 mil milhões de euros…
A lista de reestruturações
e defaults soberanos é extensa. Incluindo os EUA, que por exemplo após a
guerra civil recusaram-se a pagar as dívidas que os estados do sul tinham ao
Reino Unido e à França… Um default, por si só, não é uma receita milagrosa, nem
é algo que não envolva riscos e dificuldades. Mas está longe de ser o bicho
papão que a direita neo-liberal/troikista faz dele.
Se sairmos do euro abre-se um buraco nos céus e todos seremos para
ele sugados e daí desceremos directamente às profundezas dos infernos onde
arderemos para toda a eternidade. Não? Estou a exagerar? Bem é que é o
que parece, até vindo de alguma gente à esquerda… Até o banqueiro Ulrich já
citou Francisco Louçã para defender a permanência no Euro, triste, muito
triste.
Mas enfim, a verdade é
que este é
um debate que vai fazendo caminho e felizmente cada vez
mais gente está a perceber o óbvio. Uma renegociação da dívida e um default
total ou parcial, só é possível com, pelo menos, a hipótese de saída do Euro bem
posta em cima da mesa. Para aqueles que passam a vida a dizer “vai ser uma
desvalorização de 50%” pergunto o seguinte: em quanto já se reduziu o rendimento
disponível dos portugueses desde o período dos PECs socratistas até este
momento? E se estivermos a falar de uma família em que um dos elementos for
funcionário público? E se forem os dois? E se for uma família em que um dos
elementos é desempregado? Em todos esses casos, em quanto foi a redução de
rendimento? E quais são as perspectivas de perda de rendimento (incluindo acesso
a serviços públicos) para os próximos anos?
Aliás, em várias crises, por várias partes do mundo, seja na Finlândia do
início dos anos 90, nos “tigres asiáticos” do final dos anos 90 ou no Portugal
dos anos 80, uma das medidas sempre tomadas, fundamentais para assegurar a
retoma económica, foi exactamente a desvalorização da moeda.
Quando daqui a uns anos
se fizer a História deste período, as teorias e práticas da “desvalorização
interna” (consideradas actualmente pelos fariseus como “única alternativa”)
serão daquelas ideias que são consideradas erros absurdos, responsáveis por um
sofrimento desnecessária e causa de catástrofes
que começamos a viver…
Mais uma vez, a saída do Euro não é uma solução fácil, não é uma varinha
mágica, mas é um elemento fundamental para superar a crise. Até porque não é
apenas através do Euro que a UE asfixia o povo português. Há uma bateria de
directivas e regulamentos comunitários que impossibilitam uma política
industrial com pés e cabeça e que têm de ser
ignorados/rasgados/renegociados.
Só o
investimento privado causa desenvolvimento e é produtivo. Pois, foram
estas lógicas de pensamento que nos conduziram às famosas
PPPs… Para fornecer bens públicos (infraestruturas de transporte, embora
também existam tristes exemplos na saúde e educação) em vez de ser o estado a
obter a dívida para financiar o projecto (que seria mais barata) são privados
que fingem que a assumem (porque o estado depois assume uma taxa de
rentabilidade garantida aos parceiros privados ao longo do tempo de vida da
concessão), tudo porque supostamente a gestão privada seria mais eficiente e
traria ganhos ao projecto e aos próprios cofres do estado… BARRETE!
O
desenvolvimento industrial de qualquer das nações desenvolvidas esteve – em
algum momento da sua história - sempre associado a forte investimento
público e controle do estado sobre importantes sectores económicos. Não
significa isto que qualquer investimento público seja positivo, ou que o
controlo do estado sobre sectores estratégicos produza
resultados automaticamente benéficos. Mas na situação em que nos encontramos,
sem dúvida que apenas o estado tem a dimensão e a capacidade de assumir o
risco necessária para levar a cabo certos projectos de investimento. E só o
estado deve controlar certos sectores estratégicos, como a energia ou as
finanças/crédito, que influenciam/condicionam a actividade de muitos outros
sectores. Sem isso não me parece possível uma saída digna e democrática da
espiral recessiva.
Depois da fase de delírio ideológico, a realidade parece que se vai impondo.
Nem que seja para efeitos de propaganda, o governo vai falando de possíveis
investimentos públicos – reabilitação urbana, terminais na trafaria e ligações
ferroviárias de mercadorias (não estou a defender esses projectos específicos,
mas ao menos já falam nesse conceito radical “investimento público”).
O que é preciso é baixar os salários. Bem acho que fora o
António Borges, os sociopatas no governo e uns quantos talibãs neo liberais, já
ninguém papa esta. Nem mesmo as confederações patronais…
As eleições seriam uma catástrofe… o poder cair na rua seria o
Apocalipse. Por isso mesmo continuemos no corrente rumo em direcção ao
abismo! Bem, mais uma vez, não é solução única nem milagrosa, mas o poder cair
na rua é absolutamente necessário. Travar o actual rumo e adoptar algumas das
medidas acima sugeridas implica assumir rupturas e confrontar importantes
interesses instalados. Só um movimento de massas forte poderá impor estas
mudanças, só a forte mobilização popular poderá empurrar certos elementos
hesitantes no caminho recto e combater todo o tipo de sabotagem e golpismo que a
reacção irá desencadear.
E vou para lá da questão da reivindicação e confrontação. A crise que vivemos
é de tal ordem que só uma mobilização geral popular a poderá derrotar. Só uma
população mobilizada, unida em torno de uma visão comum, tem a força, energia,
inteligência e criatividade que serão necessárias para superar a crise.
Para já temos a Troika
que parece vir fazer-nos uma visita para a semana. Seria um bom pretexto
para a contestação voltar às ruas. Sem isso nada será possível.
O enterro destes mitos é não apenas uma oportunidade, é uma
necessidade! É verdade que muitos outras estórias da carochinha
existem. No desenrolar do processo histórico outras medidas e formas de
organização social irão surgir, a cada etapa novas questões se colocarão. Neste
momento, em traços gerais, este parece me ser o conjunto de mitos a desfazer e
de tarefas a cumprir. Menos do que isto é que não vejo como…
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