8:00 Quarta feira, 11 de dezembro de 2013
Não há banqueiro e retalhista que não bote faladura sobre o futuro do país, que não dê conselhos a governantes e que não faça profundas análises socioeconómicas, sempre num tom categórico de quem se dirige a um bando de incapazes. Os jornalistas e os políticos, que têm uma profunda admiração pelos seus extratos bancários e pelas oportunidades de carreira que eles podem oferecer, ou que são apenas deslumbrados, bebem as suas palavras. E muito portugueses, que confundem sucesso com sabedoria, também.
Um dos empresários mais ouvido é Alexandre Soares dos Santos. E é aquele que, sem qualquer dúvida, se atira mais facilmente para fora de pé. É que saber vender iogurtes de pedaços, bacalhau demolhado da Noruega e champôs anticaspa não nos dá obrigatoriamente habilitações culturais e políticas fora do comum. Mesmo quando destinamos parte do dinheiro conseguido com a venda de Oreos e rolos Renova ao financiamento de fundações para propaganda ideológica.
Ultimamente, Soares dos Santos deu mais algumas entrevistas. Uma delas foi ao "Jornal de Negócios". E a sensação do leitor que tenha a escolaridade obrigatória roçará a vergonha alheia. Minto se disser que não aprendi nada. Fiquei a saber que a dieta portuguesa, ao contrário da polaca, é péssima para o negócio, porque "é peixe grelhado, é peixe grelhado, não variamos nada". Lendo o resto da entrevista, percebemos que era sobre isto, e apenas sobre isto, que Soares dos Santos deveria falar. Mas não. O merceeiro, com o mesmíssimo direito que assiste a qualquer cidadão, mas com uma reverência de todos que claramente não lhe é merecida, pelo menos quando fala dos assuntos da governação, vai muito mais longe. Fala da história de Portugal e do seu futuro, da economia, da política, da sociedade. Vou concentrar-me apenas em poucos temas, porque a entrevista de cinco página é exaustiva e duma densidade que merece uma análise mais cuidada.
Como sabemos, Portugal está sem rumo. Há mesmo quem considere que se perdeu. Apesar de reconhecer que está quase tudo melhor do que antes do 25 de novembro (o 25 de abril foi apenas "uma revolução comunista"), Soares dos Santos consegue encontrar a origem de todos os nossos problemas: termos descolonizado Angola. "Devíamos ter descolonizado Cabo Verde, São Tomé, Guiné, Moçambique, talvez, e nunca Angola. Os laços de carinho, de afeto, entre Angola e Portugal eram reais. (...) Devíamos ter feito uma associação qualquer. Uma confederação. Porque não? O que não se estudou foi nada." E Soares dos Santos, do alto do estudo que desenvolveu sobre os assuntos ultramarinos, considera que esta foi "a principal escolha do passado que determinou o presente atual", o que obrigou Portugal a entrar para a União Europeia. Portugal poderia, portanto, continuar orgulhosamente só, com uma colónia em África. Angolanos, vizinhos africanos, europeus, URSS, EUA, ninguém nos maçaria, porque quem não se consegue livrar da troika livra-se, com toda a facilidade, do mundo inteiro. A nossa salvação seria conseguirmos ser hoje o único país do planeta com uma colónia de grande dimensão. Pena que ninguém tenha estudado o suficiente para o perceber.
Da mesma fora que a soberania de Angola nada lhe diz, também dispensaria a nossa. Aliás, acha que "andamos a perder tempo a falar de soberania". "Não me importo de perder a minha soberania se, em troca, me derem alguma coisa melhor", diz o empresário que acha que a soberania é dele e que se troca como um vale de descontos. O seu pensamento sobre a democracia não é muito diferente. "Não vamos a parte nenhuma com eleições. Porque o nosso problema é dinheiro. Somos tesos e estamos falidos. Temos de unir a Nação [a tal que não precisa de soberania para nada] toda dentro do mesmo programa." Explica que o que nos falta é "método, disciplina e uma democracia musculada." É verdade que, um pouco antes, Soares dos Santos queixa-se que Portugal "detesta o debate e não quer discutir nada", mas agora afirma: "Não podemos discutir muito. É assim, é assim, toca para a frente". Venha portanto uma democracia musculada, porque as eleições não nos levam a lado nenhum, que toque para a frente um programa único, discutido mas pouco, para uma Nação que não quer ser soberana mas que ainda devia ter Angola. Perante tanto tema para reflexão, fica apenas um humilde apelo, no que suponho serei acompanhado por muitos portugueses insensíveis aos dramas comerciais de Soares dos Santos: que o programa único não inclua a ilegalização do peixe grelhado.
Uma das poucas utilidades destas entrevistas indigentes é retirar a patine de respeitabilidade democrática e intelectual a uma determinada elite económica. Percebemos como é anacrónica, provinciana e incrivelmente inculta. O drama é que é ela, e não aqueles que criaram empresas inovadoras e baseadas no conhecimento e na investigação, que apostaram na mão de obra qualificada e em acrescentar valor ao que produzem, que mais influência tem junto do poder político e mediático. É esta pequena elite de vendedores a retalho e bancários de luxo que se confunde com o poder político, o influencia e vive a sonhar com um passado perdido. E é este, e não a perda de Angola e o excesso de peixe grelhado, o drama histórico de Portugal: temos uma elite dominante que sempre foi pior do que o resto do país.
Mas a entrevista não acaba aqui. Outro dos problemas detetado por Soares dos Santos é a falta de lideranças e de quadros. Isso nota-se nas empresas e na política. E ele sabe porquê. Por causa do enorme fluxo migratório do passado. O dos anos 60? Não, que disparate. O de 1974 e 1975. "A nossa crise também vem de que em 1974-75 houve uma geração de portugueses que se foi embora. E essa geração de portugueses levou crianças e essas crianças não voltaram. Voltaram os pais, na maioria dos casos, mas as crianças cresceram e ficaram lá fora. Isso dá com que haja um "gap" de uma geração. E, parecendo que não, o "gap" desse geração encontra-se nas empresas, na política - porque na política é notório, não é? (...) Que estão a ser substituídos atualmente por jovens com muito pouca experiência. E isso vem a afetar em muito."
Por acaso os números dizem que a emigração caiu brutalmente do início dos anos 70 (sobretudo depois de 72/73) até ao início dos anos 80 (continuando ainda em queda até ao início dos anos 90). Por razões internas - a qualidade de vida melhorou muito - e por razões externas - começou uma crise petrolífera. Temos, desde os anos 30, o primeiro saldo migratório positivo (largamente positivo) durante a década de 70. Se há problema que não tivemos nesse período, em contraste com a década anterior, foi o da emigração. É por isso difícil acompanhar o raciocínio de Alexandre Soares dos Santos. Mas compreendemos se entrarmos na sua cabeça. E percebemos que o seu olhar sobre Portugal é marcado pelo que observa no seu minúsculo e hermético mundo, onde, de facto, muita gente saiu do país logo depois da "revolução comunista". E percebemos qual é o problema de procurar respostas para a nossa situação junto de pessoas com uma cultura política e uma experiência social tão limitadas. É que nascendo o seu conhecimento político exclusivamente da sua experiência (e não de leituras ou de atividade cívica) e sendo a sua experiência socialmente tão restrita, ele fala dum país onde habitam uns poucos milhares de pessoas. É essa ignorância sobre o país onde vive, que o fez pensar que Portugal tinha ficado deserto em 1974, que o faz hoje acreditar que não há fome, porque as famílias tratam disso. "O problema é grave, mas não é tão grave". Só achamos que sim porque "hoje, em Portugal, tudo é político, tudo vai para a televisão, tudo aparece como uma desgraça completa".
Imagino que Alexandre Soares dos Santos será um génio do retalho. Mas, não há como dizer isto duma forma simpática depois de ler esta entrevista, é um analfabeto político. Não tem mal. Cada um cultiva-se nos assuntos que lhe interessa. O que é preocupante é serem analfabetos políticos a determinarem, em grande parte, a promoção de futuros governantes, de estrelas da academia e de fazedores de opinião. A decidirem, através da pressão que vão exercendo, o futuro do país. Se, como democrata, me oponho à ideia de ver o poder económico a mandar no poder político, isso ainda me assusta mais quando me apercebo do calibre intelectual e cultural de quem detém, em Portugal, esse poder económico. Serei, nesta matéria, um snob. Tentarei corrigir esse defeito. Só que ler as entrevistas de Soares dos Santos não me ajuda nada a encontrar o caminho da virtude.
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