A Revolução Digital, telecomunicações e gestão da
informação
A máquina a vapor, revolucionou os transportes permitiu o comboio e o barco a
vapor. A velocidade, segurança e fiabilidade do transporte de bens e pessoas
aumentou de forma significativa, os custos diminuíram de forma importante. A
máquina a vapor também permitiu a produção industrial em massa (em alguns
sectores… como os têxteis, químicos ou siderurgia). Claro que não foi a máquina
a vapor por si só, sem uma dada envolvente económica, social e política, sem o
domínio de outras técnicas pré-existentes, a “invenção” da máquina a vapor seria
irrelevante. Não é por um “carola” inventar uma “engenhoca” que seja o que for
altera-se de forma significativa. Se assim fosse a Revolução Industrial teria-se
dado no
século I em Alexandria…
Mas a adopção da máquina a vapor aos transportes e indústria nos séculos
XVIII-XIX teve um impacto tremendo e revolucionário na economia, política e
cultura. No final do século XIX o motor de combustão interna e o controlo da
produção e difusão da electricidade tiverem um impacto semelhante, permitindo o
avião, automóvel, expansão da indústria e sua aplicação a uma enorme quantidade
de bens de consumo. Daí para cá não houve muito mais técnicas que tenham tido um
impacto semelhante, a não ser… a não ser talvez aquilo que se tem designado
por Tecnologias de Informação e Telecomunicações (TIT)…
Mais uma vez, já na antiguidade clássica aparelhos capazes de gerir
informação existiam, mas foi a partir dos
anos 70 do século XX e sobretudo dos 80 até ao momento presente que essas
tecnologias de Informação e Telecomunicações se difundiram e marcaram a nossa
sociedade. Sendo que o grosso dos seus efeitos na política, cultura e economia
ainda está por se sentir.
Convém definir exactamente do que é que estamos a falar. Aquilo a que refiro
como TIT´s são diferentes técnicas que embora convergentes não são exactamente
coincidentes. Temos aquilo que se designa como “computadores”, que vai desde
aparelhos móveis, portáteis, até grandes centrais. São equipamentos capazes de
armazenar, gerir e processar informação (tudo aquilo que se possa traduzir num código de 0s e 1s… imagens, textos, sons,
filmes, números), são também capazes de copiar, reproduzir a custo
marginal zero a informação que armazenam/processam. Depois temos a parte das
comunicações – satélites, cabos de fibra óptica, GSM, Wifi e Bluray – isto
permite a transmissão, comunicação e partilha da informação, o custo marginal
não é exactamente zero, visto que a capacidade de tráfego nos vários canais é
limitada, mas relativamente há vinte ou trinta anos a quantidade de informação
que pode fluir é muitíssimo maior e a custos marginais baixíssimos. Neste último
caso as limitações da infraestrutura são também mais relevantes. Em vários
países (por exemplo em África), não há cabos para transmitir a informação, tem
de se recorrer aos satélites, que têm uma capacidade muitíssimo mais limitada,
de qualquer das formas sempre é melhor que nada. Mas para ter uma banda
larga a sério, para se ter capacidade para transmitir grandes
quantidades de informação só mesmo por cabos… Convém não esquecer, que por
mais propaganda que certos sectores façam em prol da economia “imaterial” e
“virtual”, a verdade é que, mesmo o fetiche máximo da “imaterialidade” (a
Internet) não existiria sem uma robusta infraestrutura material a
suportá-la.
O que estas técnicas em conjunto permitem é que hoje em dia seja possível:
reproduzir a um custo marginal zero tudo o que seja composto por
imagens e/ou sons; transmitir para grande parte do
mundo, praticamente à velocidade da luz, a um custo marginal quase igual a zero
tudo o que seja composto por sons e/ou imagem.
Existem certos custos iniciais: os terminais (portáteis, computadores ou
smartphones) e a infraestrutura de comunicação (torres, satélites, cabos). Mas
descontado esse investimento inicial a reprodução e transmissão de informação é
apenas limitada pela capacidade das redes de comunicação… A quantidade de
informação que circula é tal que o custo médio por bit é quase
zero… E não é só o custo, é a capacidade armazenar a informação, a velocidade a
que pode ser transmitida e a quantidade de locais que se tornam acessíveis para
o acesso e emissão dessa informação. Mais, sobretudo na última década é cada vez
mais possível que essas operações possam ser efectuadas a partir de aparelhos
móveis de tamanho reduzido (e respectivas redes de curta distância), que estão
acessíveis a um indivíduo 24h por dia, já nem é preciso sentar a uma secretária
para aceder, copiar, emitir ou processar a informação, todas essas operações
podem ser efectuadas nos transportes públicos, num café, num elevador, a andar
pela rua…
O que ainda está na sua infância e ainda está por explodir é a ligação destas
técnicas de gestão e transmissão de informação a realidades físicas. Ou seja, a
convergência dos computadores e telecomunicações está feita, o passo seguinte é
a sua ligação a sensores capazes de interpretar e actuar sobre a realidade
circundante (formas, sons, imagem, cheiro, temperatura..), isso está em curso
mas ainda não explodiu. Já existem carros que estacionam de forma automática,
casas inteligentes, pagamento automático (portagens, supermercado), drones, mas nesse campo ainda há
muitas possibilidades por explorar. Tenho dúvidas acerca da recente euforia em torno das impressoras 3d, mas
mesmo que isso não se revele o que muitos esperam, existem múltiplas
outras áreas onde a convergência de computadores+telecomunicações+sensores pode
ser revolucionária. Na produção industrial, na guerra, logística-transportes,
saúde, etc…
As consequências políticas, económicas e sociais de tudo isto já se sentem,
mas o grosso das consequências ainda estão por vir. Estas tecnologias só
emergiram há três décadas, várias componentes só se generalizaram na passada
década. Existem ainda inúmeros sectores de actividade e locais onde as
tecnologias existentes podem ser aplicadas mas ainda não o foram. Mais, existem
novas técnicas que ainda estão na sua infância e estão por se generalizar… A
primeira importante conclusão é de que tal como o motor a vapor ou o motor de
combustão interna contribuíram para alterar a sociedade, também estas técnicas o
farão e o grosso do seu impacto ainda não se fez sentir. Aliás, ainda não existe
(nem me parece possível neste momento) uma percepção clara do completo impacto
que tudo isto terá no social e político.
Para já, é possível apontar alguns impactos óbvios nas forças e relações de
produção. Por exemplo, todo um conjunto de profissões/funções associadas ao
processamento de informação e sua difusão tornaram-se obsoletas, essa tendência
apenas se reforçará (pensemos em tipógrafos, contabilistas, amanuenses… os
típicos manga de alpaca). Uma série de funções que até aqui exigiam o controle
por parte de um humano (como por exemplo registar as compras à saída de um
supermercado) irão cada vez mais tornar-se obsoletas (ou mais correcto, ocuparão
uma posição marginal). O mesmo se passa ao nível de certos produtos, tudo o que
é suporte físico para informação (e.g. livros e jornais impressos) será cada vez
mais remetido para a categoria de produto de luxo. À partida estas
transformações são positivas, podendo libertar a energia humana para tarefas
mais criativas e melhorar em muito o bom aproveitamento dos recursos à
disposição da humanidade e/ou melhorar em muito as condições de segurança e
conforto dos ambientes onde habitamos. Mas existe sempre o potencial que tais
avanços sejam sobretudo canalizados para comprimir o poder social, político e
económico das classes trabalhadoras. Talvez até de forma mais explícita e
dirigida que anteriores inovações tecnológicas, uma vez que a actual revolução
aplica-se mais à gestão e apropriação de informação, não incidindo directamente
sobre uma realidade física.
O seguinte texto - Technological Breakthroughs
and Productivity Growth - é útil (há muitos outros no mesmo estilo +-) na
medida em que se percebe que esta revolução técnica é de uma ordem de grandeza
semelhante ao motor a vapor ou da produção/distribuição eléctrica. Embora também
se deduzam algumas diferenças importantes, a máquina a vapor teve um impacto
sobretudo na produção e movimento daquilo que é material, “os computadores”
sobretudo naquilo que é imaterial. Outra importante diferença é que ao contrário
das revoluções tecnológicas precedentes, os ganhos de produtividade têm estado
sobretudo concentrados nas indústrias directamente ligadas a essa inovação. Ou
seja, o aumento de produtividade associado à generalização da máquina a vapor
fez-se sentir em várias indústrias de transportes e transformadoras, a indústria
de produção de máquinas a vapor ela própria não beneficiou de aumentos de
produtividade acima de outras indústrias. Já no caso das TITs as indústrias cuja
produtividade mais aumentou com essas inovações foram exactamente as ligadas às
tecnologias de informação e comunicações. Portanto esta última revolução
tecnológica, embora tenha efeitos em todo o sistema produtivo, acaba por ser
muito mais auto-centrada que as revoluções tecnológicas precedentes. Comparando
com a máquina a vapor, os motores de combustão interna ou a electricidade, as
TITs têm menos impacto noutros sectores económicos, têm menos capacidade de
alavancar outras indústrias.
Uma crítica importante ao texto que citei é que apenas através da medição
quantitativa dos impactos na produtividade não se podem tirar conclusões acerca
do impacto dessas técnicas no social… Por exemplo, parece-me que o domínio do
fogo ou a revolução agrícola do neolítico tiveram um impacto maior (no mínimo
semelhante) a estas técnicas, mas se se fosse fazer uma medição dos seus efeitos
na produtividade esta seria marginal comparada com as revoluções técnicas mais
recentes (a escala temporal e geográfica é muito diferente, o mesmo se passa
quando se compara os efeitos da máquina a vapor com os avanços mais
recentes)…
Outro texto “The Internet’s Unholy Marriage to Capitalism“, é
importante porque se entende até que ponto o desenvolvimento da Internet (e o
que a ela está associado) está associado à envolvente sócio-política. Também é
importante porque mostra como as promessas utópicas da colaboração em rede para
o bem comum (wikipédia, wikileaks, Linux?) em grande medida são algo marginal
quando comparadas com a os ganhos que meia dúzia de empresas privadas/indivíduos
fizeram à volta desta nova tecnologia… Mais, mantendo-se o actual rumo
neoliberal, estas novas técnicas serão cada vez mais utilizadas para construir
grandes monopólios de informação privados… informação e controlo/comando.
A concentração de uma nunca antes vista quantidade
informação, facilmente acessível e manipulável, permite um controlo sobre os
indivíduos e a sociedade nunca antes visto. O seguinte texto também apresenta uma visão crítica
acerca da revolução digital.
Confesso que tenho uma visão um pouco mais positiva destas inovações. Se é
verdade que a capacidade de controlo e comando por parte de grandes monopólios
privados aliados a um estado repressor aumentaram exponencialmente, é também
verdade que a capacidade de partilha e difusão de informação por
indivíduos/redes “anti-hegemónicas” também aumentou exponencialmente. Estas
tecnologias têm permitido que indivíduos ou grupos de activistas consigam a um
baixo custo ter acesso e emitir informação que há vinte ou trinta anos seria
impensável. Apesar de tudo parece-me que estas tecnologias, por enquanto,
democratizaram, mais do que elitizaram/concentraram, o acesso e difusão da
informação.
“We wanted flying cars, instead we got 140
characters.”, esta frase retirada de um artigo do economist ilustra bem
outra importante questão… É que à parte destas inovações na gestão de informação
e telecomunicações, não houve em nenhum outro sector (talvez na medicina? mas
mesmo aí tenho dúvidas) uma revolução nas técnicas. Tudo o que tem a ver com a
manipulação e produção de bens hoje em dia já existia na primeira década do
século XX. De então para cá têm existido melhorias incrementais, mas os tipo de
motores, combustíveis e veículos que hoje usamos são os mesmos de há 100 anos…
Ou seja, de há 100 anos para cá houve melhorias incrementais e generalização de
certas técnicas, mas nenhuma nova tecnologia foi introduzida no que ao
explicitamente material diz respeito (a não ser talvez o nuclear, mas a promessa
do nuclear ficou a anos luz dos seus intentos originais…). Ao contrário de toda
a mitologia construída em torno da “inovação”, a verdade é que muito pouca
inovação técnica tem existido, o caso do recente foguete espacial privado, Antares, é para mim paradigmático. Uma suposta inovação privada numa indústria supostamente de
ponta, mas vai se a ver e os motores que propulsionam o foguete datam dos
anos 60/70 e foram fabricados e desenhados na União das Republicas Socialistas
Soviéticas… Como acima disse, mesmo que não explicitamente, as TIT´s
implicitamente também afectaram o mundo material (incluindo da produção e
transporte). A convergência que ainda está na sua infância de
sensores+computadores+telecomunicações mais influência no material terá. Mas
mesmo assim, há um certo amargo de boca, o tal “queríamos carros voadores e em
vez disso temos mensagens de 140 caracteres”… A verdade é que na aurora
do século XXI, o sistema mundo, chamemos-lhe de “Capitalismo”, de um ponto de
vista da inovação técnica (e do aumento potencial da produtividade e de
rendimento do capital) está a anos-luz e num estado quase comatoso quando
comparado com o que era a situação no início do século XIX ou XX.
Fazendo uma síntese, direi que o fundamental perceber é que estas tecnologias
possibilitam: o processamento e armazenamento de informação a uma escala sem
precedentes e com custos baixos; a reprodução e transmissão de informação a
custo marginal quase zero e numa extensão sem precedentes. Também importa reter
que os impactos de muitas destas técnicas ainda se estão por fazer sentir,
nomeadamente da combinação computadores+telecomunicações+sensores (de que os
drones ou as “casas inteligentes” são apenas alguns exemplos). Estas novas
técnicas embora moldem o social não têm, por si só, um carácter reaccionário ou
progressista, a luta social é que determinará a forma como essas ferramentas
serão empregues (e até o seu posterior desenvolvimento). Para lá disto convém
frisar, que o sector das tecnologias da informação e comunicação é o único onde
tem havido inovações revolucionárias. Noutros sectores, nomeadamente em tudo o
que diz respeito há produção, manipulação e transporte do que é material as
melhorias têm sido de carácter incremental. As inovações na manipulação da
informação também têm efeitos no mundo material, mas em menor escala que
anteriores revoluções tecnológicas. Olhando para as primeiras décadas dos
séculos XIX ou XX os aumentos de produtividade e rendimento prometidos pelas
inovações existentes há altura parecem muitíssimo superiores ao que será
possível atingir com base na generalização das técnicas que conhecemos na
primeira década do século XXI.
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