Tive a sorte, ainda na minha adolescência, de conhecer, pela mão do Jorge de Sena, o poema Cena do ódio , do Almada Negreiros. Entre outras passagens do poema, nunca esqueci a seguinte:
Ó Horror! Os burgueses de Portugal têm de pior que os outros o serem portugueses! [1]
Está claro que a passagem pouco esclarece para além de si mesma, mas o certo é que ela se aviva na minha memória sempre que tento perceber os motivos profundos pelos quais Portugal não atingiu, ou atingiu mal e tardiamente, muitos desenvolvimentos sócio-económicos logrados pela generalidade dos países da Europa Ocidental na sequência da Revolução Industrial. Isto, apesar da histórica abertura de Portugal ao Mundo, em força desde o século XV, da implantação da Maçonaria entre nós desde o fim do século XVIII, da chegada das ideias socialistas (geração de 70) pouco depois da publicação do Manifesto Comunista no século XIX. Um exemplo, que me é pessoalmente caro: a indústria siderúrgica, entendida modernamente, chegou com atraso da ordem de um século a Portugal; pois bem, passadas quatro décadas após o arranque (em 1961) do único alto-forno que explorámos, Portugal viu reduzir a sua siderurgia ao tipo da dos chamados países subdesenvolvidos, que iniciam logicamente a actividade industrial pela adopção das produções industriais menos complexas. Digamos que Portugal chegou tarde, e saiu cedo da siderurgia. O exemplo da siderurgia é o que se vê, apesar de Ferreira Dias, o então ministro da Economia de Salazar, ter afirmado décadas atrás: "País sem siderurgia, não é um país, é uma horta". Temos assim, por ora, uma siderurgia menor e, ao que vemos, sequer tivemos a sorte de constituir uma horta (entenda-se, agricultura) que nos pudesse alimentar capazmente. João Ferreira do Amaral (JFA), em livro assaz resumido mas de leitura instrutiva que acaba de lançar [2] , analisa muitos dos sérios problemas económicos em que nos vêm mergulhando, em particular desde a adesão ao Euro. Não é que JFA mitifique a economia que tínhamos antes, o problema que coloca, e, a meu ver, muito bem, é que o enquadramento criado pela integração de Portugal na zona do Euro – mesmo que não tivesse aparecido a chamada crise financeira em 2007/2008 – ter-nos-ia igualmente conduzido a uma crise deste tipo (desmantelamento do aparelho produtivo, elevado desemprego). O FEDERALISMO DOS ENDIVIDADOS... JFA rejeita tanto a deriva neoliberal em curso como a suposta alternativa do federalismo europeu. Desta via é cáustico ao ponto de comentar: os "nossos federalistas – que se lembraram que o eram quando começou a ser preciso que alguém nos pagasse as dívidas" (p.116). Daí que proponha a saída do Euro como medida indispensável à saída da crise em que estamos mergulhados. Um aspecto importa realçar: JFA não resiste a criticar os responsáveis pela condução da política e da economia que nos levaram à integração na moeda única, justamente porque invoca, e nisso não foi o único, os alertas que emitiu atempadamente contra os elevados perigos para a economia portuguesa que resultariam daquela opção. Mas, no fundo, e apesar de agora apontar responsáveis dirigentes da política e economia, é manifesto que a JFA terá custado a entender o motivo pelo qual, não obstante se viver em regime dito democrático, as coisas evoluíram como se sabe. JFA denuncia e exprime o seu desencanto:
"Chamei frequentemente a atenção para o conceito de bens transaccionáveis (…) e para o risco que estávamos a correr com a redução do peso da produção desses bens no total da economia. Repeti a mensagem vezes sem conta em intervenções orais e escritas. Sem qualquer resultado.
Lamento dizer que fiquei desde essa altura com uma péssima impressão das nossas elites, impressão que infelizmente tarda a desvanecer-se. O espesso manto de iliteracia económica que as afecta (mesmo de muitos supostos economistas), a suficiência bacoca e a total ausência de sentido crítico que as caracteriza fazem certamente de Portugal um dos países da Europa com piores elites". (p.106).
Assim, uma vez mais, e da parte de pessoas que sequer se reivindicam do ideal comunista, quando se atira para o aprofundamento das raízes dos nossos problemas, aí temos a mesma ideia central: a burguesia portuguesa nem do patriotismo de outras é capaz. Eis por que, sobre a tarefa de tratarmos da saída do Euro, importa também avançar na substituição da burguesia pelas classes trabalhadoras. Ponto é que estas se compenetrem de que chegou a hora da sua intervenção e que se libertem dos atávicos receios de conquistar e exercer o poder ao mais alto nível. Portugal precisa delas.
Maio/2013/Lisboa
[1] Líricas Portuguesas (Antologia), Selecção, Prefácio e Notas de Jorge de Sena, Portugália Editora, (1958), Lisboa, p.111. [2] Lisboa, Editora Lua de Papel , Abril de 2013, 128 p., ISBN 978-989-23-2314-5
Ver também:
Capítulo 5 de Porque devemos sair do euro , João Ferreira do Amaral
Rumo ao fim do euro? , Jacques Sapir
[*] Engenheiro.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
Porque devemos sair do euro
– Do absurdo às razões de esperança: novas alianças, novas estratégias
por João Ferreira do Amaral [*]
5.1. O absurdo dos programas de ajustamento A posição da Comissão Europeia, novo capataz da Alemanha 5.2. As alternativas A pseudo-solução federal A opção pelo distanciamento A saída do euro Reforço de novas alianças não europeias
5.1. O absurdo dos programas de ajustamento
Portugal está hoje sujeito a um programa de ajustamento imposto como condição pela chamada Troika para poder obter financiamento, quer para o sector público quer para a banca. Este nosso programa, tal como o da Grécia, é um verdadeiro absurdo. Estou mesmo convicto de que ambos os programas irão constituir uma machadada fatal na credibilidade do FMI e da Comissão Europeia. Visando objectivos inconsistentes e apoiando-se numa análise muito defeituosa da real situação da economia portuguesa, estes programas revelam uma triste incompetência das entidades que o impuseram. Mas vamos primeiro aos objectivos. A finalidade prioritária do programa é a de reduzir o endividamento do País. Como esse endividamento tem uma dupla faceta – a do endividamento da economia como um todo e a do endividamento do Estado –, o programa tem dois objectivos: reduzir o endividamento externo da economia e o endividamento do Estado. O que foi dito nos capítulos anteriores é suficiente para se compreender como é que surgiram estes dois grandes desequilíbrios. Uma moeda demasiado forte gerou elevados défices com o exterior, que, acumulando-se ao longo do tempo, geraram uma dívida externa insustentável e que cortou praticamente o crédito externo privado a Portugal desde que a crise teve início. A acumulação de défices da dívida pública e a impossibilidade de recorrer ao financiamento dos défices do Estado através da emissão monetária quase levaram o Estado à bancarrota no primeiro semestre de 2011. Percebe-se que numa situação destas não houvesse grande margem senão para executar um programa de ajustamento com auxílio externo. Mas o que não se percebe é que estes programas sejam concebidos de tal forma que, ao invés de resolverem os problemas, os agravam. Começam logo por propor como objectivo reduções drásticas dos dois défices, o externo e o público. Mas como estes objectivos são conflituantes, não os atingem. Porque é que são conflituantes? Significa que para atingir um tenho de prejudicar o outro? Tomemos como exemplo a redução do défice da balança com o exterior. Na ausência da desvalorização cambial, tal redução – para ser muito profunda – só pode ser feita provocando uma forte redução da procura interna, de modo a reduzir-se o consumo das famílias e o investimento, e com isso diminuir significativamente as importações. Mas ao reduzir-se a procura interna está-se a provocar uma recessão e um crescimento do desemprego, o que faz baixar as receitas fiscais e as contribuições sociais e aumentar as despesas de apoio aos desempregados. Resultado: um agravamento do défice público. Foi o que sucedeu em 2012 em Portugal. Reduziu-se muito o défice externo, mas o défice público ficou acima do pretendido. A forma inteligente de lidar com esta conflitualidade entre objectivos é estabelecer como metas reduções graduais e de menor dimensão nos défices, de forma a não instabilizar a economia e a provocar por essa via um incumprimento do programa, condenando a economia – como aconteceu na Grécia e talvez Portugal lhe siga os passos – a anos e anos de descalabro. A forma pouco inteligente é aquela que tem sido seguida na Grécia e a que moldou o orçamento de Estado 2013: consiste em forçar ainda mais a austeridade, o que irá agravar o descalabro económico e social, sem resolver o problema do financiamento. Para se conseguir reduzir significativamente o problema do financiamento é preciso dispor de moeda e da desvalorização cambial, o que permite reduzir o défice da balança com o exterior sem forçar uma recessão e aumentar o desemprego. Por outro lado, o facto de dispor de emissão monetária torna o objectivo do défice público secundário, pois o Estado não fica dependente da redução do défice para cumprir os seus compromissos internos. A posição da Comissão Europeia, novo capataz da Alemanha Não podemos ignorar a responsabilidade da Comissão Europeia nestes programas, que correspondem a uma profunda mudança no papel da Comissão face aos estados-membros mais débeis. Até ao desencadear da actual crise, melhor ou pior e mais ou menos permeável aos interesses de lobbies poderosos, a Comissão tomava em geral uma atitude benevolente face aos estados economicamente mais débeis. Compreendia-se. Um processo de integração económica e monetária gera naturalmente (é dos livros) efeitos polarizadores sobre a actividade económica: as regiões mais ricas tendem a tornar-se relativamente mais ricas e as mais pobres relativamente mais pobres. A forma de contrariar este processo é a de adoptar políticas destinadas especificamente a reduzir as desigualdades entre as regiões que se vão integrando. E por mim – que nunca fui entusiasta em relação a aumentos de poder por parte da Comissão – reconheço sem qualquer dificuldade que durante vinte anos, a partir da nossa adesão, a Comissão foi, em geral, uma advogada coerente das necessidades das regiões menos prósperas da Comunidade. Tudo mudou a partir de 2008. Deficientemente dirigida por Durão Barroso e sofrendo da manifesta incompetência do vice-presidente e comissário para os assuntos económicos e monetários, Olli Rehn, a Comissão foi perdendo gradualmente autonomia até se transformar num mero capataz executor das decisões do Conselho, por sua vez completamente dependente dos interesses alemães. E nesse novo papel, a Comissão não se coibiu de conceber e patrocinar – em conjunto com o FMI e o BCE – programas ditos de ajustamento, absurdos e tecnicamente mal elaborados, que destroem gradualmente, mas a bom ritmo, as bases económicas da Grécia e de Portugal. Pior: ao pressionar os estados que os sofrem a tomar medidas que vão contra o espírito e até a letra dos tratados (como, por exemplo, no domínio da legislação do trabalho), a Comissão, de guardiã dos tratados – que devia ser – transformou-se no pior dos seus violadores. A própria dependência da Comissão face ao Conselho e o papel de capataz que assumiu vão contra os tratados, pois é aí claramente dito que a Comissão deve exercer as suas funções com independência. Não colhe aqui a desculpa de que a margem de manobra para a Comissão seguir outro caminho não existe face ao poderio real da Alemanha. Um político tem sempre uma arma que pode usar: a demissão por iniciativa própria. Por isso, seja o presidente seja um qualquer comissário, não podem queixar-se de que não concordam com o que se passa. Se estão lá é porque concordam, embora tenham cada vez mais dificuldades em reconhecer esse facto perante os péssimos resultados a que os programas têm conduzido. Esta mudança na União, nas suas duas vertentes – o poderio da Alemanha e a subordinação da Comissão a esse poderio – tornam hoje a União um espaço pouco amigável para Portugal: explora as suas debilidades cobrando-lhe juros excessivos e mantém-no num colete-de-forças que o faz definhar de uma forma que há uns anos ninguém poderia prever. Portugal está hoje, por isso, numa encruzilhada: ou se sujeita a uma União que lhe coarcta as possibilidades de crescimento, ou tenta ganhar novas razões de esperança mudando as suas prioridades estratégicas.
5.2. As alternativas
Próximo do descalabro económico e social, Portugal enfrenta a possibilidade de entrar numa profunda depressão económica e, em consequência, sofrer um empobrecimento significativo por muitos e muitos anos. As políticas actuais agravam o problema e são, portanto, de rejeitar. Restam duas alternativas: ou uma mudança na Europa que permita a instituição de um federalismo capaz de apoiar as regiões deprimidas, ou a tomada de uma atitude de algum distanciamento face a uma Europa alemã, que não nos interessa nem nunca interessou no passado – atitude de distanciamento essa que deve passar, em primeiro lugar, pela saída da zona euro. Vamos ver sucessivamente estas duas possibilidades. A pseudo-solução federal Já acima falámos do federalismo europeu. Alguns propõem um reforço do federalismo para resolver os nossos problemas financeiros. Sou frontalmente contra esta posição. Por razões políticas e por razões económicas. O federalismo europeu – a criação de um superestado europeu – irá não só destruir Portugal enquanto unidade política como até enquanto unidade cultural. De facto, a posição de Portugal na comunidade internacional, com uma larguíssima história de contactos pioneiros com os quatro cantos do mundo, é um activo essencial para a nossa sobrevivência enquanto unidade política autónoma. No dia em que, fazendo parte de um superestado europeu, sem moeda própria, deixar de ser um estado reconhecido na comunidade internacional, Portugal deixará de existir enquanto unidade política relevante. É por isso que não sou federalista. A finalidade da União não deve ser a de substituir os estados-membros, como querem os federalistas. No meu modo de ver, a justificação da existência da União é a de ajudar os estados-membros a realizarem as suas funções num contexto cada vez mais difícil e globalizado – e não substituí- los. Por isso, a União deve ser uma confederação, uma rede não exclusiva de estados, e não uma federação. Não exclusiva quer dizer que não deve impedir os seus estados-membros de pertencerem a outras redes de estados. A diferença é muito visível nas questões monetárias. Os federalistas querem que a União substitua os estados nas suas respectivas funções de emissão monetária. A minha visão é diferente: defendo que a União garanta as condições para um reforço da cooperação monetária, mantendo um novo Sistema Monetário Europeu (SME) à semelhança do anterior, mas com banda de flutuação mais apertada do que a de 15% instituída em 1993 e criando uma instituição monetária com a responsabilidade de garantir a estabilidade do sistema, dotada para isso de poder suficiente de intervenção nos mercados. Assim se corrigiria o principal defeito do SME antigo. Cada estado continuaria, dessa forma, a emitir o seu dinheiro e a ter política monetária. Mas também do ponto de vista económico, com a opção dos federalistas assistir-se-ia a um definhamento total de Portugal. Sem dispor de instrumentos próprios de política económica, sem ter inclusivamente poder de decisão sobre as opções orçamentais, sem ter diplomacia económica – porque deixava de ser um estado com representação internacional –, a situação periférica de Portugal acentuar-se-ia e o nosso país definharia de uma forma comparável ao que sucedeu ao nosso próprio interior relativamente ao litoral. E mesmo que houvesse subsídios do Centro da Europa para aguentar a situação – que é a principal razão invocada pelos federalistas para forçar um futuro federalista – tal só perpetuaria o subdesenvolvimento económico do nosso País, como se verificou com o Leste alemão depois da reunificação, que recebeu muitos milhões de euros de subsídios vindos do governo federal e de fundos europeus e continua, ao fim de mais de vinte anos, pobre em relação ao Ocidente da Alemanha. Não quero ver o meu País dependente da caridade alheia. À perda de estatuto de estado e, portanto, de autonomia política seguir- se-ia o definhamento económico, o despovoamento e talvez o fim de uma cultura que tem sido sedimentada por um estado com quase nove séculos de História. Seria este o resultado do caminho proposto pelos nossos federalistas – que se lembraram que o eram quando começou a ser preciso que alguém nos pagasse as dívidas. Longe vá o agouro. E, felizmente, deve de facto ir longe. Não acredito que os estados do Norte da Europa alinhem num federalismo, que implicará para eles gastar muito e muito dinheiro a sustentar regiões definhadas e anémicas do Sul. Rejeito, pois, totalmente o caminho federalista. Espero mesmo que os Portugueses nunca o aceitem. Mas precisam de estar alerta. Como sempre tem acontecido, as elites europeístas portuguesas – que em grande parte se têm apropriado de rendas vindas da Europa, pelo menos enquanto duraram – tentarão atirar-nos para o federalismo sem nos consultar. Se a União Europeia não mudar, limitando o poderio alemão e se não retomar o seu tradicional equilíbrio da igualdade entre os estados (mudança, que – devo dizê-lo – estou muito pouco crente que ocorra), então se Portugal quiser sobreviver deve distanciar-se da União e abandonar a trágica estratégia de se manter, custe o que custar, no centro da integração europeia. Estratégia essa que deu um péssimo resultado até hoje, porque forçou Portugal a assumir um papel que – pela sua debilidade económica e atraso de qualificação da população – não estava em condições de exercer. Tal estratégia resumiu-se sempre ao facto de o País perder poder sem ganhar nenhuma capacidade de influenciar os destinos europeus. Estratégia que teve o seu coroamento trágico quando a União se alargou e acabou praticamente com as decisões por unanimidade, condenando assim os países pequenos à irrelevância. A opção pelo distanciamento Quando falo de distanciamento, não falo de saída. Portugal tem ainda vantagem em pertencer à União. Embora, por mim, não esteja seguro, considerando o que aconteceu nos últimos tempos, se essa vantagem ainda existirá dentro de cinco ou dez anos. A estratégia de distanciamento tem duas vertentes: a saída do euro e o reforço de novas alianças não europeias. A saída do euro Felizmente a questão de uma eventual saída do euro deixou de ser um tema tabu. Há já hoje, em Portugal e no exterior, muita reflexão sobre essa matéria [18] . Para quem, como eu, não tem a religião do euro – ficou provado que a participação no euro foi um desastre de grandes proporções, que põe em causa a própria sobrevivência do nosso País –, é prioritário para Portugal sair do euro, uma vez que não temos qualquer possibilidade de crescer rapidamente dentro de uma zona monetária com uma moeda tão forte como é a moeda europeia. Acho espantoso que os defensores da nossa participação no euro, depois de terem sido completamente desmentidos nas suas afirmações que aconselhavam a nossa participação na moeda única, façam agora o seguinte raciocínio: “Como a participação no euro foi um desastre, a partir de agora é que vai ser um êxito.” O argumento é obviamente pouco inteligente e revela uma incapacidade de análise crítica confrangedora, própria – como já tive oportunidade de dizer – das nossas elites. E a afirmação é tanto mais descabida quanto é certo que a nossa estrutura produtiva está hoje ainda muito mais débil do que estava em 1992. Logo, mais alguns anos de moeda forte terão um efeito muito mais devastador ainda do que tiveram nos quinze que decorreram entre o início da caminhada para a moeda única e a crise actual. Quem considera que temos possibilidade de estar no euro com a economia no estado de debilidade em que actualmente se encontra, a meu ver, não sabe o que diz. Mas quando as questões monetárias entram no domínio religioso, é impossível debater as coisas de forma minimamente racional. Por isso, é confrangedora a incapacidade desses dogmáticos do euro para reflectirem sobre o desastre: não o da nossa saída, como costumam ameaçar, mas daquele que resultará da nossa permanência na moeda única. A prioridade das prioridades deve ser repor o equilíbrio na nossa estrutura produtiva entre produção de bens transaccionáveis e não transaccionáveis. Um país como o nosso, quando tem apenas – como na actualidade – 13% do PIB originado na indústria e 2% gerado no sector primário, não vai longe. Precisa de uma re-industrialização urgente (incluindo neste termo o sector primário). Para tal é necessário um grande golpe de rins, um intenso choque competitivo que, para ser susceptível de ser suportado pela população, tem de provir necessariamente da desvalorização cambial. De outra forma, o choque competitivo será de tal forma doloroso do ponto de vista social que a população não o suportará. O País precisa também da emissão monetária própria para permitir ao Estado evitar a bancarrota interna. E não só: a emissão monetária própria é também necessária para amenizar os efeitos negativos da desvalorização cambial, em particular sobre os mais endividados e os de menores rendimentos. Mas a saída da zona euro não deve ser feita de qualquer maneira. Deve ser controlada. Existiria aí, sim, um desastre se fôssemos empurrados para fora do euro – situação que considero inevitável, se persistirmos em manter-nos lá a todo o custo. Também não me parece viável nem desejável, do ponto de vista político, a solução que alguns autores propõem de uma saída de um dia para outro, que apanhe os cidadãos desprevenidos, após uma preparação secreta. Tal seria politicamente inaceitável, exigiria certamente a declaração de um estado de excepção e é mais do que duvidoso que se pudesse manter o sigilo na preparação da saída. Por isso, a saída deve ser anunciada simultaneamente pelas autoridades nacionais e comunitárias. Para sairmos de forma controlada, para além de só se dever encarar a questão quando a zona euro estiver minimamente estabilizada, há pelo menos cinco condições que deverão ser asseguradas:
a) Anunciar-se-ia amplamente (e cumprir-se-ia, claro) que as aplicações financeiras em instituições portuguesas manteriam o seu valor em euros, de modo a não se gerar um pânico na transição para a nova moeda; quanto ao Estado, continuaria a honrar a sua dívida em euros. Esta garantia deveria ser prestada pelas autoridades nacionais e comunitárias em conjunto.
b) O balanço dos bancos não seria prejudicado, pelo que os créditos a famílias, empresas e Estado aumentariam na nova moeda em função da desvalorização desta.
c) Para evitar um incumprimento generalizado por parte dos devedores à Banca, o Estado substituir-se-ia a estes no montante do aumento da dívida em moeda nacional que resultasse da desvalorização. O Estado financiaria este acréscimo de dívida (que é interno) através de empréstimos contraídos junto do Banco de Portugal expressos na nova moeda.
d) Entraríamos no Mecanismo de Taxas de Câmbio II, que regula as relações dos países do euro com as dos estados membros que não adoptaram a moeda europeia. Tal significa que, ajudados pelo BCE, teríamos de manter a nova moeda numa banda de flutuação de 15% em relação a uma taxa de referência da nova moeda relativamente ao euro; esta taxa de referência seria desvalorizada todos os meses em regime crawling peg(desvalorização deslizante), de modo a que a desvalorização da nova moeda se fizesse de forma progressiva.
e) Seria obtida a cooperação das autoridades europeias em dois pilares: governos e BCE. Os governos autorizariam um novo empréstimo (empréstimo que, em qualquer dos casos, vai ser necessário) que será fundamental para honrar a dívida do Estado e sustentar a balança de pagamentos durante o período de um ano, um ano e meio que a desvalorização da moeda demorará até ter efeitos positivos no reequilíbrio das contas externas; o BCE comprometer-se-ia a renovar durante algum tempo a dívida dos bancos portugueses e também – como, aliás, é seu dever – a ajudar a nova moeda a manter-se na banda de flutuação. Abriria ainda uma facilidade especial, temporária, de crédito aos bancos portugueses durante a fase de transição para a nova moeda, a utilizar, se necessário, de modo a reagir imediatamente a qualquer sintoma de pânico.
Não me parece inviável obter o apoio das instituições comunitárias e dos estados-membros para uma saída controlada do euro, pois a saída da zona euro será benéfica para Portugal e sê-lo-á também para os outros parceiros da moeda única. Queiramos ou não, a verdade é que a débil situação estrutural da nossa economia será sempre e cada vez mais um factor potencial de instabilização da zona euro e, por isso, os nossos parceiros receberão certamente, com alívio, essa saída (se for controlada) e tomarão uma atitude cooperante. Há, pois, condições para um divórcio de mútuo consentimento. Mais: arrisco-me a afirmar que os mercados também a encararão com optimismo, se forem prestadas as garantias suficientes que acima referi. Com efeito, a confiança que nos atribuíam por pertencermos ao euro, perdeu-se há muito tempo. Estava assente no pressuposto de que, em caso de dificuldades de um país, os outros ou as instituições europeias o apoiariam incondicionalmente. Esse pressuposto – no qual nunca acreditei – esfumou-se completamente. Então, só há uma possibilidade de cumprirmos os nossos compromissos: é recomeçarmos a crescer rapidamente com base na produção de bens transaccionáveis, gerando saldos positivos na balança de pagamentos. Objectivos que os mercados sabem muito bem que não conseguiremos alcançar continuando a fazer parte do euro. A saída é uma condição essencial para evitar a estagnação durante décadas e para manter um mínimo de autonomia em termos políticos, mas não nego que tem riscos. A verdade é que também o tem qualquer operação cirúrgica que infelizmente precisemos de fazer. Sofrer uma intervenção cirúrgica é arriscado e doloroso. Mas, muitas vezes, é a única forma de salvar o doente. Para Portugal poder ganhar de novo esperança no futuro, a primeira ruptura a fazer é – volto a repetir – a saída do euro. Mas não será a única. É importante também fazer um corte relativamente ao que tem sido o essencial da política externa. Reforço de novas alianças não europeias Desde que aderiu à então CEE, em 1986, Portugal optou pelo completo seguidismo em relação à Europa. Tudo em nome do princípio absurdo de que o que é bom para a Europa é bom para Portugal. Nenhuma autonomia de pensamento, nenhuma visão sólida dos interesses nacionais permanentes presidiu a esta antipolítica que foi o seguidismo europeu. Este comportamento é bem característico da qualidade das nossas elites, a que já me referi. Elites que, neste domínio, devem ter personificado um caso único em toda a História. Com efeito, tem sido relativamente frequente ao longo dos tempos que um estado emergente estabeleça como objectivo nacional dotar-se de moeda própria. Compreende-se porque é um instrumento importante para a sua autonomia. Mas que uma elite, como a portuguesa, estabeleça, como único projecto nacional consistentemente prosseguido, perder a autonomia monetária deve ser caso único da História e revela bem a qualidade dessa elite. Este seguidismo europeu só recentemente tem vindo a ser corrigido (mas não no que se refere ao programa de ajustamento económico e financeiro) de forma ténue, devido, em primeiro lugar, à crise. A mudança começou ainda no tempo dos Governos Sócrates e tem continuado no actual governo, o que, em minha opinião, constitui um aspecto positivo. Positivo mas insuficiente. É preciso ir muito mais além e ter a noção do que os nossos aliados de futuro não se podem encontrar numa Europa dominada pela Alemanha, que já provou ser implacável para com os mais débeis. Seria um desastre embarcarmos numa estratégia de “orgulhosamente sós” [19] . Pelo contrário, existem felizmente muitas alternativas: toda a América (do Norte e do Sul), Angola, China e outras nações do Extremo Oriente são parceiros que podem e devem ter muito mais entrada no nosso futuro. Vou dar um exemplo. Temos já hoje uma enorme riqueza ainda por explorar, que é a nossa plataforma continental – e espera-se que venha até a alargar os seus limites. A Europa já olha gulosa para essa oportunidade (ver a recente Declaração de Limassol sobre o assunto, de Outubro de 2012, em que se acena com fundos para uma política marítima europeia [20] ). Já inventou uma política marítima europeia e, sabendo o que a casa gasta, já promete fundos às nossas elites para que estas abram mão dos recursos. Não devemos deixar a Europa, enquanto tal, imiscuir-se no aproveitamento da nossa plataforma continental (o que não quer dizer que não acolhamos países europeus individualmente considerados). Mas as grandes parcerias que devemos estabelecer para aproveitarmos essa riqueza devem estar na América, em particular, nos Estados Unidos e Brasil.
Notas 18. Ver, por exemplo, o recente O Fim do Euro em Portugal, de Pedro Brás Teixeira (2012). 19. Expressão célebre de Oliveira Salazar na tentativa de transformar em virtude o isolamento que Portugal sofria devido ao prosseguimento da Guerra Colonial. E a nossa experiência actual mostra que também pode existir isolamento dentro da própria União Europeia. 20. http://ec.europa.eu/maritimeaffairs/policy/documents/limassol_en.pdf
Ouvir também:
Intervenção do autor no debate "O euro e a dívida"
[*] Professor emérito do ISEG. O presente texto é o capítulo 5 de "Porque Devemos Sair do Euro", Lisboa, Editora Lua de Papel , Abril de 2013, 128 p., ISBN 978-989-23-2314-5
Este texto encontra-se em http://resistir.info/ .
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