A emergência da China e dos “BRIC”, miragem ou
realidade?
A China neste momento é a segunda economia mundial e são recorrentes as
previsões que irá ultrapassar os EUA e assumir o lugar cimeiro. Para alguns será
em 2016, para outros em 2020, varia mais a data de que a certeza que tal dia
chegará. É também comum a narrativa do ocidente decadente perante a emergência
de novas potências… Não só a China, mas o Brasil, a Índia e a Rússia…
Recentemente tem-se também falado da Colômbia, Indonésia, Malásia e alguns
países da África subsariana.
Até que ponto tais narrativas são sólidas, ou meras miragens? Não subscrevo
por inteiro a tese deste texto – Broken BRICs: Why the rest
stopped rising - mas pelo menos tem a virtude de desmistificar o
“inexorável” avanço dos países ditos “emergentes” face às potenciais
estabelecidas, ao contrário de certas análises simplistas como esta. Pura e simplesmente extrapolar a taxa de
crescimento de uma economia, com base na sua performance nos últimos 10 (ou
cinco) anos é um exercício coxo, que nos diz mais acerca do passado e presente
de uma economia que do seu futuro. Analisar apenas taxas de crescimento oculta
também o facto de se estarem a comparar pontos de partida completamente
diferentes. É óbvio que nos países “Ocidentais” não há margem para taxas de
crescimento equivalentes a países onde a infraestrutura é raquítica e o nível de
vida baixíssimo, ou seja onde pequenas melhorias de rendimento ou novos
projectos têm um efeito exponencial no PIB, enquanto que as melhorias em países
já desenvolvidos têm sempre efeitos marginais no produto agregado. Outro erro
comum é assumir que a clivagem fundamental é entre as potencias estabelecidas e
os países emergentes. Mais do que desalojar países da Trilateral (EUA/Europa/Japão) da sua posição
dominante, o mais comum é certos países emergentes substituírem outros
emergentes na hierarquia do sistema-mundo.
Um dos casos que fura mais a corrente narrativa é o da Rússia, considerada
uma potência emergente, mas o que é a Rússia de hoje comparada com o que foi a
URSS? Se a Rússia de Putin está bem acima do descalabro Ielstiano, não deixa de
estar a anos luz do poder social, geopolítico, político e mesmo económico da
defunta URSS. Ou pensemos numa Argentina se é verdade que está bem melhor agora
do que na década de 80 do século XX, convém lembrar que a Argentina já foi uma
potência económica e política bem mais relevante que nos dias de hoje (no final
do século XIX e até à segunda guerra mundial, mais coisa menos coisa).
No caso de África, corre o debate se o século XXI não será um século muito favorável a
esse continente. Até pode ser, espero que seja, mas daí até achar que a
África será uma super potência no final do século XXI vai uma grande
diferença.
Mas talvez o caso que mereça maior atenção seja mesmo o da China. São
inegáveis os avanços e o desenvolvimento da China nos últimos 30 anos, cuja base
foi lançada nos 20 anos antecedentes. Vários números podem ser dados para exemplificar isso, a
China ocupa hoje um lugar importante no sistema mundo. Mas irá transformar-se na
potência dominante? Os dois textos seguintes dão um bom enquadramento no que
concerne à natureza do processo de desenvolvimento Chinês e às tensões a que
esse modelo está agora sujeito.
The Global Stagnation and China, John Bellamy Foster
and Robert W. McChesney
China’s
capitalism and the crisis, Jane Hardy and Adrian Budd
O desenvolvimento de um pujante mercado interno Chinês que absorva as
exportações do Ocidente é uma das maiores esperanças dos “mandarins” das
potências da Trilateral desejosos de escapar à “espiral
recessiva”. Mas a questão prévia é saber se a economia Chinesa conseguirá
ajustar-se à queda da procura para as suas exportações no mercado ocidental. A
China não sofreu mais com a crise de 2008-2009 porque implementou uma política Keynesiana ao quadrado (ou à escala
Chinesa…), até que ponto esses investimentos e o crédito concedido obterá o
retorno necessário para sustentar a economia Chinesa e possibilitar a margem de manobra necessária a uma
reconversão do seu modelo produtivo com vista a uma dinamização do mercado
interno, é algo que está por saber. O que é certo é que entre enunciar um
rumo “desenvolver o mercado interno” e de facto operar transformações nesse
sentido, vai uma grande distância, até porque essas transformações irão colidir
com interesses particulares instalados, interesses que se baseiam no actual
modelo produtivo virado para as exportações. Isto num contexto em que a conflitualidade social e laboral atinge níveis
importantes, níveis que permitiram de facto, um aumento considerável dos salários na China.
Mas não é só a contracção no consumo a ocidente que força a uma alteração no
modelo produtivo Chinês. Existe também o estagnar do outsorcing e das
deslocalizações de empresas ocidentais para a China. O debate sobre até que
ponto o outsorcing está a morrer (aqui ou aqui) ou até que ponto está a ocorrer um regresso
da Indústria aos EUA, está em curso (aqui, aqui ou aqui). O facto de se dar esse debate é só por si
revelador, é revelador, de que, no mínimo, o grau de deslocalizações de
Industrias ocidentais para a China estagnou. Portanto, aquele que foi um dos
maiores motores de desenvolvimento da economia Chinesa parou. A liderança
Chinesa sabe disto, daí a nova orientação para o mercado interno e o assumir de que os anos de crescimento exponencial
terminaram.
Até que ponto é possível a China re-ajustar o seu modelo a este novo ambiente
é uma grande questão. E seja qual for a resposta, esta questão por si só
desmonta a narrativa do inexorável avanço Chinês até à primazia no seio do
sistema-mundo.
Para lá destas questões, a forma como a China chegou a esta posição no
sistema mundo merece uma breve discussão. Sobretudo porque permite desmontar
certos mitos difundidos pela elite capitalista, tomados por muitos como
verdades irrefutáveis. É essa a maior força do artigo China 2013, de Samir Amin.
To say, as one hears ad nauseam, that China’s success should be
attributed to the abandonment of Maoism (whose “failure” was obvious), the
opening to the outside, and the entry of foreign capital is quite simply
idiotic. The Maoist construction put in place the foundations without which the
opening would not have achieved its well-known success. A comparison with India,
which has not made a comparable revolution, demonstrates this. To say that
China’s success is mainly (even “completely”) attributable to the initiatives of
foreign capital is no less idiotic. It is not multinational capital that built
the Chinese industrial system and achieved the objectives of urbanization and
the construction of infrastructure. The success is 90 percent attributable to
the sovereign Chinese project.
The attraction of foreign capital to China, from which it has
benefitted, is not behind the success of its project. On the contrary, it is the
success of the project that has made investment in China attractive for Western
transnationals.
For my part, I argue that if China is indeed an emerging power, this is
precisely because it has not chosen the capitalist path of development pure and
simple; and that, as a consequence, if it decided to follow that capitalist
path, the project of emergence itself would be in serious danger of
failing.
Foi exactamente por seguir uma via de desenvolvimento diferente do modelo
capitalista da trilateral que a China chegou onde chegou, a segunda economia
mundial, com o maior nível de crescimento económico das últimas décadas!!!
Tivesse a China seguido os conselhos do FMI, Banco Mundial e outros que tais,
ainda seria uma nação dividida e marginal no sistema mundo… Outro mito comum é
de que o desenvolvimento Chinês deveu-se única e exclusivamente aos salários
baixos. Se assim fosse o Burundi ou qualquer outro país a roçar o miserável
ter-se-ia desenvolvido exponencialmente. Os baixos salários foram certamente
parte da equação, mas estão longe de ser a única componente e cada vez mais
serão uma parte menor da equação, uma vez que existe um aumento do rendimento dos
trabalhadores Chineses, ao mesmo tempo que na Trilateral/ocidente há um
congelamento ou redução dos custos laborais. A existência de (e investimento
em) infraestruturas de transportes e telecomunicações, a existência de cadeias
logísticas, as economias de escala possíveis, a existência de clusters de
indústrias, a urbanização e, last but not least, o controlo político e
estratégico de todo o processo por parte do Partido Comunista Chinês é que
permitiram a China chegar onde chegou. E sobre o ponto onde a China chegou muito
se pode dizer, incluindo, que a enorme redução dos níveis de pobreza mundiais entre os
anos 80 e a actualidade se deveu, quase em exclusivo, aos esforços desenvolvidos
pela República Popular da China.
Com todas as suas vicissitudes e contradições, a China foi seguindo o seu
próprio caminho. Um caminho que incluí o crescimento exponencial das últimas
décadas e a transformação da China no maior centro de manufactura mundial. Este
caminho gerou e gera fortes tensões, tanto a nível interno, como externo.
Quanto às tensões internas e à luta de classes os dois textos que mencionei
no início da discussão sobre a China abordam o assunto. Mas acrescentaria mais
dois, China in Revolt -Today, the Chinese working
class is fighting. More than thirty years into the Communist Party’s project of
market reform, China is undeniably the epicenter of global labor
unrest - e, The Struggle for Socialism in China.
O texto Imperialism and instability in East Asia today,
de Ha-young Kim foca-se no crescendo de tensões inter-imperialistas no
extremo-oriente - Contrary to the widespread belief that the economic
interdependence between China and the US will deter any geopolitical clash
between them, increased trade and investment do not bring peace—as the classical
Marxist theory of imperialism warns. Germany and Britain had close economic ties
before the First World War, and the same was true of the US and Japan before the
Second World War. Above all, East Asia is rife with destabilising factors such
as territorial disputes and a divided Korean peninsula, any one of which can
trigger a rapid escalation of military tension in the region.
E o que dizer dos EUA? Sem dúvida que os EUA já não estão na posição
dominante inquestionável que por instantes ocuparam após a queda da URSS. Há várias questões que se colocam quanto às bases do seu
poderio. Mas neste momento são ainda a potência hegemónica global, o seu
poder militar e económico são ímpares. O dólar continua a ser a moeda referência
mundial, as forças armadas dos EUA são ainda as mais poderosas do globo (não são
é omnipotentes…), em termos de desenvolvimento científico os EUA ocupam um lugar
cimeiro, a economia dos EUA (mesmo com problemas) continua a mais pujante do
planeta. Desalojar os EUA do seu lugar implica ultrapassar todos estes
obstáculos mais a rede de alianças centrada nos EUA (na Ásia com o Japão, Coreia
do Sul e outros, na Europa com a NATO, etc…) e a rede de instituições globais
(FMI, Banco Mundial, ONU, etc…) desenhadas para manter a hegemonia dos EUA e
a actual hierarquia dentro do sistema mundo encabeçado pela Trilateral, em que
o vértice mais alto são os EUA.
A isto acrescento outra vantagem, que os EUA dispõe face à China e mesmo a
uma putativa Europa unificada. O seu grau de coesão. É muitas vezes dito que a
sociedade dos EUA é muito desigual, que há uma enorme desigualdade social e na
distribuição de riqueza. Sem dúvida, isso é verdade. Mas o que não se faz tanto
é comparar a realidade dos EUA com a realidade Chinesa ou Europeia. Na verdade,
fazendo uma medição através do índice de gini, os EUA apresentam um índice de desigualdade social
semelhante ao da União Europeia! O que acontece é que cada país da UE tem um
nível de desigualdade inferior ao dos EUA, mas se a UE for tomada no seu todo,
as enormes diferenças entre o norte rico (e.g. Holanda, Finlândia, Dinamarca…) e
o sul pobre (e.g. Roménia, Grécia, Portugal…) resultam num índice semelhante aos
dos EUA. Mas para além do coeficiente de gini está a realidade histórica e
cultural. A Europa é uma manta de retalhos de nações com ódios seculares entre
si. A China é também uma realidade muito mais plural do que se julga, por
extensos períodos de tempo a China nem foi um país unificado, mesmo hoje em dia
por vezes certas regiões reivindicam a independência (e nem estou a falar do Tibete!)… Nos EUA, apesar de
existirem alguns regionalismos, a guerra civil resolveu a questão nacional, não
existem movimentos independentistas dignos de registo nem tensões
inter-regionais/inter-nacionais significativas. Quando comparado com a China ou
a Europa, os EUA são uma realidade político-social muitíssimo mais coesa e
homogénea. Em tempos de crise esse grau de coesão faz uma grande diferença.
Para concluir direi que é importante ter em conta que no actual sistema mundo
as potências da Trilateral já não são os únicos agentes relevantes. A China,
outras potências na Ásia, África e América do Sul também ocupam um lugar no “grande
jogo“. Outro factor a ter em conta é o reforço das relações ditas “sul-sul”,
entre China e África, África e América Latina, em que a Trilateral já não ocupa
um ponto de charneira incontornável. Estas novas realidades tem impacto na
economia, no social e na geopolítica… ou até no simples design de produtos. As
ideologias, ideias, artes, padrões estéticos até há uns anos atrás considerados
“universais” eram decalcados do mundo ocidental, haverá uma tendência para que
os novos padrões universais incluam reflexos de outras paragens e não
exclusivamente os do “Ocidente”.
Dito isto, importa acrescentar que isso não significa que iremos assistir a
uma pacífica e inexorável transição para um mundo em que a potência hegemónica
seja a China ou outra potência Asiática. Tenho grandes dúvidas que tal venha a
acontecer, mesmo a médio prazo. O que é certo é que a emergência destes novos
players, sobretudo da China, dará azo a novas contradições inter-imperialistas e
irá reacender velhas feridas, isso será cada vez mais visível à medida que a
actual crise se agudizar.
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