MULHERES ANGOLANAS HISTÓRICAS (5)
Tocador de kissandge - desenho de Neves e Sousa
Muam Poenha
De fronteiras e origens imprecisas o N'Goio foi um reino que, entre os finais do século XV e o princípio do século XVI, se localizava sensivelmente na região Kapinda ou Kabinda, que constitui hoje o território de Cabinda. A sua história é difícil de reconstituir, porque dela não sobrou mais do que interpretações de alguns registos e restos esfumados da tradição oral, dos quais saiu este delicioso conto:
O antigo reino do Kongo era tão grande que ninguém conhecia os seus limites, mas sabia-se que era todo revestido por grandes florestas, que tinha um rio grande como o mar e, que apesar do seu povo ser muito numeroso, havia sítios onde nunca ninguém tinha ido. O poderoso Muenekongo ou Manikongo (rei, senhor do Kongo) vivia com a corte na capital, São Salvador do Kongo, M'Banji-a-Ekongo ou Mbanza Kongo, como há muitos, muitos anos se chamou. Este manikongo tinha uma irmã a quem muito amava, de nome Muam Poenha. A princesa era de uma beleza fora do comum numa terra de mulheres belas. De formas esculturais e olhos doces, tinha dentes muito brancos e húmidos como as conchas do rio e uma farta cabeleira com penteados trabalhados e enfeites raros.
Certo dia passou pela cidade um caçador, exímio tocador de Kisandje ¹, que arrancava ao instrumento melodias tão extraordinárias que toda a gente pasmava de admiração ao ouvi-las. Além de ser o mais era alto, forte e esbelto dos moços, tinha olhos doces como os da princesa.
Muam Poenha deixou-se enfeitiçar e perdeu-se de amores pelo caçador. Não obstante a sua alta linhagem, perdeu o sentido das conveniências e, pela calada da noite, corria para as discretas sombras dos muxitos ² para se entregar aos seus amores proibidos.
Deste amor nasceram três gémeos – duas mocinhas, Lilô e Silô, e um rapaz de nome Tumba - o que provocou um indiscritível escândalo na corte que, como era inevitável, conduziu à prisão e imediata execução do caçador/músico.
Quanto à princesa, embora o rei por muito lhe querer, estivesse inclinado ao perdão, não pode deixar de ouvir os seus conselheiros que, irredutíveis e persuasivos, lhe lembraram a vingança dos deuses, com secas e calamidades, acabando o pesaroso rei por poupar a vida à irmã, sim, mas a troco da expulsão ad iternum dos seus domínios. Muam Poenha juntou os filhos, alguns familiares e as suas bicuatas ³ e pôs-se a caminho do mar distante, que ela nunca tinha visto. Andou... andou, triste e amargurada com saudades do seu amante, com saudades da terra que deixara, em constante temor pelos bichos ferozes que vinham do mato e fustigada pelos gentes por quem passava, que a apedrejavam e lhe recusavam abrigo.
Nuns caminhos se perdeu, noutros caiu. Adoeceu, curou-se, e com tanto penar foi avançando. Andou... andou, mas tão lentamente que só ao fim de quinze anos chegou perto de um rio, já perto do mar, a um lugar que diziam chamar-se Baía do Sonho (Soyo), nas terras do rei do Sonho, parente e vassalo do rei do Kongo. Alguém da comitiva lhe contou que o rio sempre se chamara N'zari, mas tinham vindo uns brancos em grandes barcos, que lhe chamaram rio do Padrão.
Lilô, Silô e Tumba, sobreviveram à longa caminhada e estavam já crescidos. Muam Poenha era ainda uma mulher linda que não se deixara vencer pelas fadigas e privações da jornada mas, com temor do repudio dos povos que não deixavam de os flagelar, decidiu atravessar o rio, porque embora as terras do outro lado também fossem do rei do Kongo, o rio era tão largo e as correntes tão fortes que lhe parecia não ser o mesmo o mundo para lá daquela margem que se via ao longe.
Este outro mundo era o N'Goio, uma espécie de condado dependente mas afastado do reino do Kongo. Tão diferente era que Muam foi recebida pela população com calorosas manifestações de afecto e carinho, e tal foi o acolhimento que o chefe maior – Mirimbi Pucuta – a quis tomar como esposa, acabando com as desditas da princesa.
Deste casamento nasceram mais dois filhos, Moe Panzo e Moe Pucuta. Tendo chegado notícias destes acontecidos ao rei do Kongo que, apesar dos pesares, não eliminara a sua irmã dos pensamentos. Com as novidades confirmadas, apressou-se a mandar emissários credenciados a Muam, oferecendo-lhe, por desanexação do seu vasto reino, o N'Goio a Lilô, o reino de Cacongo a Silô e a Tumba presenteava-o com o reino de Loango, que começava onde é hoje uma terra chamada Ponta Negra e ia para além de Tchibanga e Mossaka.
Lilô e Tumba tomaram conta dos seus domínios, mas como no dia marcado para a coroação Silô estivesse doente, e as regras “dos mais velhos” não permitissem que fosse investida neste estado físico, a coroa foi parar ao primogénito de Muam Poenha e Mirimbi Putuca – Moe Panzo.
E foi assim que se formou o reino de N'Goio, de que Moe Panzo, filho de Muam Poenha, foi o primeiro Mongoio (rei), ao qual se seguiram outros dez mongoios que, com mais ou menos sorte, mais ou menos desventuras, foram governando um país belo e de abundâncias.
Aqui acaba a história que eu sei, de Muam Poenha , princesa bonita de amores arrebatados.
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(1) – também designado, entre os Kiocos por tchissanje, é um instrumento musical de que existem vários modelos de afinação grave e aguda, providos ou não de caixas de ressonância, quer no próprio instrumento, quer por aplicação de uma cabaça aberta no topo. Os sons são tirados pelo dedilhar de tiras de metal ou de bordão.
(2) – aglomerado de árvores nas margens dos rios ou dos ribeiros.
(3) – haveres, tralha diversa de que os viajantes, normalmente, se fazem acompanhar.
FONTE
http://www.carlosduarte.ecn.br/mulheresdeangola.htm
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