Até que, há uma semana atrás, recebi um telefonema de uma amiga. Estava indignada com os resultados, revelados no dia anterior: Salazar encontrava-se entre os dez finalistas.
Mesmo partindo do princípio, por natural boa fé, de que a votação foi justa, não me surpreende a inclusão de Salazar neste grupo de notáveis lusitanos: anos e anos de branqueamento do fascismo, da sua natureza e dos seus crimes, bem como de recuperação da imagem dos seus dirigentes, deixam marcas profundas.
A biografia de Salazar que surge na secção do concurso na página da RTP na Internet dá, aliás, um grande contributo à absolvição do ditador. Apresentado como uma «figura controversa» que «marcou sem dúvida a história do País», Salazar terá criado, afirma a RTP, as «condições para o desenvolvimento económico de Portugal». Além do mais, continua a estação, «equilibrou as finanças públicas».
Mas é claro que nem tudo poderia ser assim tão bom numa figura tão «controversa». E os defeitos apontados ao candidato a «melhor português» são o facto de ter dirigido, «de forma ditatorial, os destinos do País durante quatro décadas». Tal tendência ditatorial fez, imagine-se!, com que afastasse «todos quantos tentaram destituí-lo do cargo». Outros pecados apontados a tão prestigiada figura são a instituição da censura e da polícia política e a criação de dois «movimentos paramilitares: a Legião e a Mocidade Portuguesas».
Simples e conciso. Há que ser objectivo e não condicionar a escolha. A instauração em Portugal de um Estado fascista em tudo semelhante ao da Itália de Mussolini; a criação de um brutal aparelho repressivo montado com o apoio de especialistas nazis; o Campo de Concentração do Tarrafal; os milhares de presos políticos, comunistas na sua maioria; as torturas; os assassinatos de resistentes antifascistas, são, aparentemente, pormenores sem importância para o potencial votante ser informado pela RTP…
É preferível insistir na tese do milagreiro das Finanças, que desenvolveu Portugal. Mas, claro, sem referir que da biografia da salazarenta figura (a real, não a apresentada pela RTP) constam a constituição de grandes monopólios industriais e financeiros que se apoderaram da riqueza nacional à custa da miséria de milhões; a negação de quaisquer direitos sindicais e laborais; a violenta repressão dos trabalhadores, o analfabetismo, a fome, a morte na guerra em África, o atraso económico e social…
Mas nada disso parece interessar quando se trata de eleger o «melhor português de sempre». Por trás da reescrita da história estão os realmente grandes portugueses, os que querem ver regressado esse desenvolvimento – do capitalismo monopolista, da ausência de direitos e liberdades, da exploração desenfreada, do aprofundamento das desigualdades. Mas, ao contrário do que sucede no concurso da RTP, na história real há outros portugueses – os pequenos – que trabalham, sofrem e lutam. E são esses que fazem avançar a história. E o desenvolvimento será outro!
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