A Internacional

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quarta-feira, dezembro 21, 2011

João Marques de Almeida ~ A origem das Nações Unidas


  

 

João Marques de Almeida
 
A origem das Nações Unidas
Diário Económico, 19|Dezembro|2009

Mark Mazower, professor de história internacional na Universidade de Columbia, escreveu um livro magnífico.

O tempo e a escassa curiosidade histórica resultaram numa ignorância relativamente generalizada sobre as origens das Nações Unidas. A organização é muito discutida, mas a história da sua criação é pouco conhecida. Como diz o autor na introdução, a versão oficial conta que "as Nações Unidas emergiram depois da Segunda Guerra Mundial puras e descontaminadas em relação ao passado da política mundial". Marcariam uma espécie de ‘novo começo' da história do mundo. O autor argumenta que, ao contrário das teses da ruptura, a origem das Nações Unidas deve ser colocada no contexto dos debates sobre os impérios europeus, nomeadamente o Império Britânico, e a experiência da Sociedade das Nações. Para Mazower, há duas dimensões centrais, paralelas e opostas, nas Nações Unidas. Para uns, a organização deveria promover a "missão civilizadora" dos impérios europeus. Para outros, deveria legitimar as lutas anti-coloniais de libertação nacional. Essas duas tendências, ainda hoje, explicam muitas das contradições da organização.

As Nações Unidas e o ‘internacionalismo imperial'
Os dois primeiros capítulos discutem as contribuições de um político, o sul-africano Jan Smuts, e de um académico, o inglês Alfred Zimmern, para a criação das Nações Unidas. Embora representassem visões distintas, foram ambos educados pela ideologia imperial britânica. Smuts defendeu a ‘superioridade racial branca' na África do Sul. Zimmern pertencia a meios mais cosmopolitas e progressistas dos sectores liberais britânicos. Mas ambos olhavam para a tradição imperial britânica como uma forma de progresso histórico ("the white man's burden").
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Jan Smuts, primeiro-ministro sul-africano, era um dos delegados mais experientes na Conferência de São Francisco, após ter participado na Conferência de Paris que estabeleceu a SDN, em 1919. Tendo em conta o papel das Nações Unidas na luta contra o regime sul-africano do ‘apartheid', quem diria que um antigo primeiro-ministro da África do Sul teria um papel de relevo na criação da organização em 1945. Smuts via na ONU a garantia da preservação do Império Britânico em África, atribuindo ao governo sul-africano a papel de agente civilizador entre as populações locais. Ironicamente, na cabeça de um dos Pais Fundadores da organização, "as Nações Unidas começaram a sua vida não como um instrumento para acabar com o colonialismo, mas como um meio para o preservar". E Smuts, de certo modo, não estava enganado. A Carta da ONU é de uma neutralidade absoluta em relação aos impérios coloniais e, mais tarde, foi devido aos interesses de Washington e de Moscovo e através de Resoluções da Assembleia Geral que a organização combateu o colonialismo.
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Não se julgue que a ligação entre as organizações universais e os Impérios era um exclusivo dos políticos mais conservadores. Intelectuais radicais, como J.A. Hobson, um crítico feroz do "imperialismo", defendia a construção de uma "federação de Estados civilizados" com o objectivo de promover a missão civilizadora dos Impérios europeus. Nos meios intelectuais e académicos, o principal defensor do "internacionalismo imperial" foi Alfred Zimmern. Professor de Relações Internacionais na Universidade de Oxford e, mais tarde, na Universidade de Cornell, nos Estados Unidos.
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Zimmern, uma das figuras mais respeitadas e influentes no mundo anglo-saxónico no período entre as Guerras, herdou duas ideias centrais do pensamento liberal do século XIX. Em primeiro lugar, a Grécia clássica e Roma representavam os modelos dos Impérios civilizadores, cujos exemplos deveriam ser seguidos pelos europeus no século XX. Em segundo lugar, recuperou a distinção, desenvolvida nos séculos XVII e XVIII, entre os ‘bons' e os ‘maus' impérios. De um lado estavam os ‘impérios comerciais' e do outro os ‘impérios de conquista' (na linguagem usada por Montesquieu, Hume e Adam Smith). A partir do século XIX, a oposição passou a ser entre ‘impérios liberais' (defendidos por Tocqueville e Stuart Mill) e ‘impérios militaristas'. A Alemanha nazi constituía o exemplo mais recente (e mais terrível) dos últimos; e o Império Britânico representava o último sobrevivente dos primeiros.
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Zimmern viu mais longe que Smuts e percebeu que o Império britânico estava condenado como resultado das relações de poder provocadas pela Segunda Guerra Mundial. À semelhança do governo britânico trabalhista do pós-Guerra, Zimmern olhava para os norte-americanos como os herdeiros da missão civilizadora liberal. Já a viver nos Estados Unidos, Zimmer tentou convencer o Departamento de Estado a apresentar um "programa americano para consolidar a civilização ocidental" através das Nações Unidas. Acabou desapontado pelo facto do Plano Marshall e da Doutrina Truman ignorarem a ONU e limitarem-se à Europa.
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A ligação entre imperialismo e internacionalismo aponta, ao contrário do que dizem as teses dominantes, para a continuidade entre a Sociedade das Nações e as Nações Unidas. Tanto em Washington como em Londres, os grupos de trabalho que, ainda durante a Guerra, pensaram as Nações Unidas eram compostos por figuras que tinham desempenhado um papel importante na construção da Sociedade das Nações (Keynes é talvez o exemplo mais conhecido). Nas palavras de Mazower, "o exemplo da Sociedade das Nações dominou as discussões sobre a Carta das Nações Unidas". A SDN fora uma "instituição Vitoriana" empenhada numa "missão civilizadora global", herdeira das ideologias imperiais europeias. Para Smuts e Zimmern, a ONU deveria prosseguir a missão civilizadora da sua antecessora, mas obviamente com mais sucesso.

A ambiguidade original das Nações Unidas
O livro conta, igualmente, a outra história sobre a origem e a evolução das Nações Unidas: a defesa do princípio da auto-determinação nacional e da libertação anti-colonial. É a história mais conhecida e a que tem marcado grande parte da vida da organização. Esteve igualmente presente no momento de criação da ONU. O capítulo terceiro explica a contribuição do pensamento de dois emigrantes judeus na Palestina, Raphael Lemkin e Joseph Schechtman, para a afirmação do princípio da auto-determinação das minorias nacionais, a partir do caso de Israel. Neste ponto, também se nota a continuidade entre a SDN e a ONU. A defesa da auto-determinação das nações que pertenciam aos Impérios europeus foi um dos pontos definidores da SDN, confirmada pela vaga de independências nacionais que se seguiu ao colapso dos Impérios Otomano, Russo e Austro-Húngaro, após a primeira Guerra Mundial. A criação do Estado de Israel marca a expansão do princípio da auto-determinação para fora da Europa, e a sua transformação na luta contra os impérios coloniais.
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Jawaharlal Nehru, conta-nos o autor no capítulo quarto, reforçou a visão anti-colonial com a sua proposta sobre umas "nações unidas globais", onde a Ásia e África ocupariam um lugar ao lado das "potências ocidentais". As últimas décadas constituem a história da emergência da ONU global e o fim dos impérios. O que, em larga medida, deu razão a Nehru. No entanto, o desfecho da história não nos deve levar a ignorar o seu início.´
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A ambiguidade original reflecte uma tensão histórica entre tolerância e civilização; ou, usando outros termos, entre nacionalismo e cosmopolitanismo. Durante o pós-Guerra, o conceito de civilização perdeu a natureza discriminatória, em termos raciais, e adquiriu uma identidade política, adoptando, pelo caminho, o nome de ‘democracia e direitos humanos'. A versão contemporânea da tensão histórica entre tolerância e civilização transformou-se na tensão entre respeito pela soberania nacional e a promoção da democracia e dos direitos humanos.
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 A "Agenda para a Paz" de Boutros-Boutros Ghali, o documento fundador da "ONU pós-Guerra Fria", constitui um dos exemplos mais recentes da tensão permanente que habita a organização. A excelente contribuição de Mazower ajuda a entender muito melhor não só a natureza das contradições da ONU, mas também as razões porque continuaremos a viver com elas.

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