Mark Mazower, professor de história internacional na Universidade de
Columbia, escreveu um livro magnífico.
O tempo e a escassa curiosidade histórica resultaram numa ignorância
relativamente generalizada sobre as origens das Nações Unidas. A organização
é muito discutida, mas a história da sua criação é pouco conhecida. Como diz
o autor na introdução, a versão oficial conta que "as Nações Unidas
emergiram depois da Segunda Guerra Mundial puras e descontaminadas em relação
ao passado da política mundial". Marcariam uma espécie de ‘novo começo'
da história do mundo. O autor argumenta que, ao contrário das teses da ruptura,
a origem das Nações Unidas deve ser colocada no contexto dos debates sobre os
impérios europeus, nomeadamente o Império Britânico, e a experiência da
Sociedade das Nações. Para Mazower, há duas dimensões centrais, paralelas e
opostas, nas Nações Unidas. Para uns, a organização deveria promover a
"missão civilizadora" dos impérios europeus. Para outros, deveria
legitimar as lutas anti-coloniais de libertação nacional. Essas duas
tendências, ainda hoje, explicam muitas das contradições da organização.
As Nações Unidas e o ‘internacionalismo imperial'
Os dois primeiros capítulos discutem as contribuições de um político, o
sul-africano Jan Smuts, e de um académico, o inglês Alfred Zimmern, para a
criação das Nações Unidas. Embora representassem visões distintas, foram
ambos educados pela ideologia imperial britânica. Smuts defendeu a
‘superioridade racial branca' na África do Sul. Zimmern pertencia a meios
mais cosmopolitas e progressistas dos sectores liberais britânicos. Mas ambos
olhavam para a tradição imperial britânica como uma forma de progresso
histórico ("the white man's burden").
.
Jan Smuts, primeiro-ministro sul-africano, era um dos delegados mais
experientes na Conferência de São Francisco, após ter participado na
Conferência de Paris que estabeleceu a SDN, em 1919. Tendo em conta o papel
das Nações Unidas na luta contra o regime sul-africano do ‘apartheid', quem
diria que um antigo primeiro-ministro da África do Sul teria um papel de
relevo na criação da organização em 1945. Smuts via na ONU a garantia da
preservação do Império Britânico em África, atribuindo ao governo
sul-africano a papel de agente civilizador entre as populações locais.
Ironicamente, na cabeça de um dos Pais Fundadores da organização, "as
Nações Unidas começaram a sua vida não como um instrumento para acabar com o
colonialismo, mas como um meio para o preservar". E Smuts, de certo
modo, não estava enganado. A Carta da ONU é de uma neutralidade absoluta em
relação aos impérios coloniais e, mais tarde, foi devido aos interesses de
Washington e de Moscovo e através de Resoluções da Assembleia Geral que a
organização combateu o colonialismo.
.
Não se julgue que a ligação entre as organizações universais e os Impérios
era um exclusivo dos políticos mais conservadores. Intelectuais radicais,
como J.A. Hobson, um crítico feroz do "imperialismo", defendia a
construção de uma "federação de Estados civilizados" com o
objectivo de promover a missão civilizadora dos Impérios europeus. Nos meios
intelectuais e académicos, o principal defensor do "internacionalismo
imperial" foi Alfred Zimmern. Professor de Relações Internacionais na
Universidade de Oxford e, mais tarde, na Universidade de Cornell, nos Estados
Unidos.
.
Zimmern, uma das figuras mais respeitadas e influentes no mundo anglo-saxónico
no período entre as Guerras, herdou duas ideias centrais do pensamento
liberal do século XIX. Em primeiro lugar, a Grécia clássica e Roma
representavam os modelos dos Impérios civilizadores, cujos exemplos deveriam
ser seguidos pelos europeus no século XX. Em segundo lugar, recuperou a
distinção, desenvolvida nos séculos XVII e XVIII, entre os ‘bons' e os ‘maus'
impérios. De um lado estavam os ‘impérios comerciais' e do outro os ‘impérios
de conquista' (na linguagem usada por Montesquieu, Hume e Adam Smith). A
partir do século XIX, a oposição passou a ser entre ‘impérios liberais'
(defendidos por Tocqueville e Stuart Mill) e ‘impérios militaristas'. A
Alemanha nazi constituía o exemplo mais recente (e mais terrível) dos
últimos; e o Império Britânico representava o último sobrevivente dos
primeiros.
.
Zimmern viu mais longe que Smuts e percebeu que o Império britânico estava
condenado como resultado das relações de poder provocadas pela Segunda Guerra
Mundial. À semelhança do governo britânico trabalhista do pós-Guerra, Zimmern
olhava para os norte-americanos como os herdeiros da missão civilizadora
liberal. Já a viver nos Estados Unidos, Zimmer tentou convencer o
Departamento de Estado a apresentar um "programa americano para
consolidar a civilização ocidental" através das Nações Unidas. Acabou
desapontado pelo facto do Plano Marshall e da Doutrina Truman ignorarem a ONU
e limitarem-se à Europa.
.
A ligação entre imperialismo e internacionalismo aponta, ao contrário do que
dizem as teses dominantes, para a continuidade entre a Sociedade das Nações e
as Nações Unidas. Tanto em Washington como em Londres, os grupos de trabalho
que, ainda durante a Guerra, pensaram as Nações Unidas eram compostos por
figuras que tinham desempenhado um papel importante na construção da
Sociedade das Nações (Keynes é talvez o exemplo mais conhecido). Nas palavras
de Mazower, "o exemplo da Sociedade das Nações dominou as discussões
sobre a Carta das Nações Unidas". A SDN fora uma "instituição
Vitoriana" empenhada numa "missão civilizadora global",
herdeira das ideologias imperiais europeias. Para Smuts e Zimmern, a ONU
deveria prosseguir a missão civilizadora da sua antecessora, mas obviamente
com mais sucesso.
A ambiguidade original das Nações Unidas
O livro conta, igualmente, a outra história sobre a origem e a evolução das
Nações Unidas: a defesa do princípio da auto-determinação nacional e da
libertação anti-colonial. É a história mais conhecida e a que tem marcado
grande parte da vida da organização. Esteve igualmente presente no momento de
criação da ONU. O capítulo terceiro explica a contribuição do pensamento de
dois emigrantes judeus na Palestina, Raphael Lemkin e Joseph Schechtman, para
a afirmação do princípio da auto-determinação das minorias nacionais, a
partir do caso de Israel. Neste ponto, também se nota a continuidade entre a
SDN e a ONU. A defesa da auto-determinação das nações que pertenciam aos
Impérios europeus foi um dos pontos definidores da SDN, confirmada pela vaga
de independências nacionais que se seguiu ao colapso dos Impérios Otomano,
Russo e Austro-Húngaro, após a primeira Guerra Mundial. A criação do Estado
de Israel marca a expansão do princípio da auto-determinação para fora da
Europa, e a sua transformação na luta contra os impérios coloniais.
.
Jawaharlal Nehru, conta-nos o autor no capítulo quarto, reforçou a visão
anti-colonial com a sua proposta sobre umas "nações unidas
globais", onde a Ásia e África ocupariam um lugar ao lado das
"potências ocidentais". As últimas décadas constituem a história da
emergência da ONU global e o fim dos impérios. O que, em larga medida, deu
razão a Nehru. No entanto, o desfecho da história não nos deve levar a
ignorar o seu início.´
.
A ambiguidade original reflecte uma tensão histórica entre tolerância e
civilização; ou, usando outros termos, entre nacionalismo e cosmopolitanismo.
Durante o pós-Guerra, o conceito de civilização perdeu a natureza
discriminatória, em termos raciais, e adquiriu uma identidade política,
adoptando, pelo caminho, o nome de ‘democracia e direitos humanos'. A versão
contemporânea da tensão histórica entre tolerância e civilização
transformou-se na tensão entre respeito pela soberania nacional e a promoção
da democracia e dos direitos humanos.
.
A "Agenda para a Paz" de
Boutros-Boutros Ghali, o documento fundador da "ONU pós-Guerra
Fria", constitui um dos exemplos mais recentes da tensão permanente que
habita a organização. A excelente contribuição de Mazower ajuda a entender
muito melhor não só a natureza das contradições da ONU, mas também as razões
porque continuaremos a viver com elas.
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